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AUTO DO FRADE

João Cabral de Melo Neto

Poema para Vozes


(1984)
“I salute you and I say I am not
displeased I am not pleased,
I am not pleased I am not
displeased” – Gertrude Stein

Execução de Frei Caneca,


de Murillo La Greca.
AUTO
“Vinculado aos mistérios e moralidades, e talvez
deles proveniente, o auto designa toda peça breve, e
talvez deles proveniente, o auto designa toda peça
breve, de tema religioso ou profano, encenada
durante a Idade Média: equivaleria a um ato que
integrasse espetáculo maior e completo; daí o
apelativo que recebeu auto.
Ibérico por excelência, o auto remonta aos fins do
século XII [...] ”
- MOISÉS, MASSAUD. Dicionário de Termos Literários. p.45.
Cadeia
NA CELA
• Estática.
• O provincial (um clérigo de alguma
importância em uma determinada região) e
o carcereiro estão à porta da cela de Frei
Caneca e conversam sobre como o sono
dele é profundo. Estão espantados, pois
sua sentença de morte será cumprida em
breve.
• O sono de Caneca é comparado à morte.
NA CELA

O PROVINCIAL E O CARCEREIRO:
— Dorme.
— Dorme como se não fosse com ele.
— Dorme como uma criança dorme.
— Dorme como em pouco, morto, vai dormir.
— Ignora todo esse circo lá embaixo.
— Não é circo. É a lei que monta o espetáculo.
— Dorme. No mais fundo do poço onde se dorme.
— Já terá tempo de dormir: a morte inteira.
— Não se dorme na morte. Não é sono.
— Não é sono. E não terá, como agora, quem o acorde.
— Que durma ainda. Não tem hora marcada.
— Mas é preciso acordá-lo. Já há gente para o espetáculo.
NA PORTA DA CADEIA

• Estática e Dinâmica.
• Espaço -> Princípio organizador.
• Fala do Meirinho, repetida 14 (15) vezes:
“Vai ser executada a sentença natural na fora, proferida
contra o réu Joaquim do Amor Divino Rabelo, Caneca”
• A primeira fala de Frei Caneca é uma reflexão sobre o
sono e a vigília, na qual o primeiro é associado à
interioridade e o segundo, à exterioridade. Desta maneira,
Caneca afirma que dormimos em nós e acordamos através
do outro.
• “A gente na calçada” destaca a serenidade, a clareza do
discurso, a fé no mundo e a calma de Frei Caneca.
NA PORTA DA CADEIA
FREI CANECA: — sempre à espera dessa voz
— Acordo fora de mim — que autorize o que é sua sina,
— como há tempos não fazia. — esses padres que as invejam
— Acordo claro, de todo, — por serem mais efetivas
— acordo com toda a vida, — que os sermões que passam largo
— com todos cinco sentidos — dos infernos que anunciam.
— e sobretudo com a vista — Essas coisas ao redor
— que dentro dessa prisão — sim me acordam para a vida,
— para mim não existia. — embora somente um fio
— Acordo fora de mim: — me reste de vida e dia.
— como fora nada eu via, — Essas coisas me situam
— ficava dentro de mim — e também me dão saída;
— como vida apodrecida. — ao vê-las me vejo nelas,
— Acordar não é de dentro, — me completam, convividas.
— acordar é ter saída. — Não é o inerte acordar
— Acordar é reacordar-se — na cela negra e vazia:
— ao que em nosso redor gira. — lá não podia dizer
— Mesmo quando alguém acorda — quando velava ou dormia.
— para um fiapo de vida,
— como o que tanto aparato
— que me cerca me anuncia:
— esse bosque de espingardas
— mudas, mas logo assassinas,
Da Cadeia à Igreja do Terço
• Dinâmica.
•A calma e serenidade de Caneca, unidas ao apreço que o povo tem
por ele e a ausência do Juiz, transformam o cortejo em uma
procissão.
• O andar de Frei Caneca orienta o passo dos demais, é calmo e
sereno.
• O conduto mais se aproxima de uma procissão, quando a gente
nas calçadas o coloca como o santo, que caminha sem andor.
• Em sua segunda fala, o Frei considera seu conduto como
procissão, mas logo pondera que é, de fato, enterro. No caminho,
repara na forma do evento, que desconhece, mas também as casas e
as pessoas, das quais é íntimo.
• A seguir, Frei Caneca faz um comentário sobre a paisagem do
Recife, para, por fim, refletir sobre paisagem, luz e criação.
• Há também a apresentação, por parte do povo, da visão de Nossa
Senhora, que protege Frei Caneca do Sol.
Da Cadeia à Igreja do Terço
— O raso Fora-de-Portas — Sei que traçar no papel
— de minha infância menina, — é mais fácil que na vida.
— onde o mar era redondo, — Sei que o mundo jamais é
— verde-azul, e se fundia — a página pura e passiva.
— com um céu também redondo — O mundo não é uma folha
— de igual luz e geometria! — de papel, receptiva:
— Girando sobre mim mesmo, — o mundo tem alma autônoma,
— girava em redor a vista — é de alma inquieta e
— pelo imenso meio-círculo explosiva.
— de Guararapes a Olinda. — Mas o sol me deu a ideia
— Eu era um ponto qualquer — de um mundo claro algum
— na planície sem medida, dia.
— em que as coisas recortadas — Risco nesse papel praia,
— pareciam mais precisas, — em sua brancura crítica,
— mais lavadas, mais dispostas — que exige sempre a justeza
— segundo clara justiça. — em qualquer caligrafia;
— Era tão clara a planície, — que exige que as coisas nele
— tão justas as coisas via, — sejam de linhas precisas;
— que uma cidade solar — e que não faz diferença
— pensei que construiria. — entre a justeza e a justiça.
— Nunca pensei que tal mundo
— com sermões o implantaria.
NO ADRO DO TERÇO
• Estática.
•A justiça passa-o à Igreja Frei Caneca e recebe-o Joaquim do Amor
Divino. A justiça não poderia condená-lo enquanto membro da Igreja,
por isso faz-se necessária a execração.
• Algumas falas preveem a execução por fuzilamento:

“Para enforcado, o justo é o roxo


pois sangue não é derramado.” -> Ele está com
vestes vermelhas.

“Me parece, sim, presságio:


não indulto, vão fuzilá-lo” -> Sobre as vestes.
DA IGREJA DO TERÇO AO FORTE
• Dinâmica.
• A gente na calçada descreve o contexto político a partir do
qual Frei Caneca foi condenado.
FREI CANECA: — sinto na sola dos pés
— Dentro desta cela móvel, — que as pedras estão mais vivas,
— do curral de gente viva, — que as piso como descalço,
— dentro da cela ambulante — sinto as arestas e a fibra.
— que me prende mas caminha, — Embora a viva melhor,
— posso olhar de cada lado, — como mais dentro, mais íntima,
— para baixo e para cima. — como será o Recife
— Eis as pedras do Recife — que será? Não há quem diga.
— que o professo carmelita, — Terá ainda urupemas,
— embora frade calçado, — xexéus, galos-de-campina?
— sente na sola despida. — Terá estas mesmas ruas?
— Como estou vendo melhor — Para sempre elas estão fixas?
— essa grade, essa cornija, — Será imóvel, mudará
— o azulejo mal lavado, — como onda noutra vertida?
— a varanda retorcida! — Debaixo dessa luz crua,
— Parece que melhor vejo, — sob um sol que cai de cima
— que levo lentes na vista; — e é justo até com talvezes
— se antes tudo isso milvi, — e até mesmo todavias,
— as coisas estão mais nítidas. — quem sabe um dia virá
— Andando nesse Recife — uma civil geometria?
— que me sobrará da vida,
FREI CANECA: — que é uma conta devida.
— Esta alva de condenado — Devemos todos a Deus
— substituiu-me a batina. — o preço de nossa vida
— Não penso que ainda venha — e a pagamos com a morte
— a vestir outra camisa. — (o poeta inglês já dizia).
— Certo também é mortalha — Nessa contabilidade
— e nela sairei da vida. — morte e vida se equilibram,
— Não sei por que os condenados — e, embora no livro-caixa,
— vestem sempre esta batina, — e também nas estatísticas,
— como se a forca fizesse — apareça favorável,
— disso a questão mais estrita. — e sempre, o saldo da vida,
— Será que a morte é de branco, — no dia do fim do mundo
— onde coisa não habita, — serão iguais as partidas.
— ou, se habita, dá na soma
— uma brancura negativa?
— Ou será que é uma cidade
— toda de branco vestida,
— toda de branco caiada
— como Córdoba e Sevilha,
— como o branco sobre branco
— que Malevitch nos pinta
— e com os ovos de Brancusi
— largados pelas esquinas?
— Se essa mortalha branca
— é bilhete que habilita
— a essa morte, eu, que a receio,
— entro nela com alegria.
— Temo a morte, embora saiba
NA PRAÇA DO FORTE
• Estático.
• O carrasco oficial, e outros dois, nega-se a enforcar Frei
Caneca, pois tem uma visão de Nossa Senhora.
• Após buscarem os carrascos e outros na cadeia, os militares
se veem obrigados a mudar de plano e mandar fuzilar Frei
Caneca. Contudo, ao fazê-lo, ascendem sua posição de preso
comum a de preso militar.
• A fala do meirinho muda:
“Vai ser executada a sentença de morte natural por
espingardamento, proferida contra o réu Joaquim do Amor
Divino Rabelo, Caneca”
NO PÁTIO DO CARMO
• Estático.
• Um grupo no pátio narra como O CANECA, pai do Frei,
esperou o momento todo do cortejo: rezando e acendendo
velas para os santos, olhando para o mar à espera do navio
que pudesse trazer a notícia que impedisse a morte de seu
filho. Ao ouvir os tiros, desespera-se e lança as imagens de
santos, uma a uma, ao mar.
• Cinema no Pátio (?) : Cena do corpo de Frei Caneca
depositado no pátio do Convento do Carmo.

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