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O grotesco

• Leitura recomendada:
• BAKHTIN, Mikhail. Apresentação do
problema. In: A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec (Editora da
Universidade de Brasília), 1987.
O grotesco

• Conceito

O grotesco apresenta-se como uma


manifestação artística que reflete e refrat[a] a
realidade, rebaixando-a. Nessa refração,
instaura-se a posição do criador frente à
tradição e/ou em face do objeto em foco.
• Rebaixamento é um conceito elaborado por Mikhail
Bakhtin que significa “a transferência ao plano
material e corporal [...] de tudo que é elevado,
espiritual ideal e abstrato” (Bakhtin, A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento, 2002,
p. 17).

• É um modo irreverente de tratar tudo o que a


cultura oficial eleva ou mesmo sacraliza.

• Caracteriza-se pela superposição de duas camadas


semânticas: o estilo elevado e o estilo rebaixado.
Hayati Evren. Photoshops. (Instagram) – O grito
de Munch em Stranger things.
“A degradação cava o túmulo corporal para dar
lugar a um novo nascimento. E por isso não tem
somente um valor destrutivo, mas também
positivo, regenerador [...]. Precipita-se não
apenas para baixo, para o nada, a destruição
absoluta, mas também para o baixo produtivo, no
qual se realizam a concepção e o renascimento,
e onde tudo cresce profusamente. (A cultura...,
2002, p. 19)
• O Realismo Grotesco:

“A imagem grotesca caracteriza um fenômeno


em estado de transformação, de
metamorfose ainda incompleta, no estágio da
morte e do nascimento, do crescimento e da
evolução” (Bakhtin, A cultura..., 2002, p. 21).
• Características do realismo grotesco:
– Promove a ruptura com o princípio de que a
expressão artística é a representação do belo.
– Introduz a percepção carnavalesca do mundo
– Degrada/rebaixa o sublime
– O objeto artístico traduz-se como a reprodução
de uma realidade disforme, intensificando a
distorção das proporções, a mistura de
domínios, etc.
– Ambivalência (degradação x renovação
– O motivo da máscara (as simbologias)
– O mundo está em constante transformação – em
devir
– O princípio dessa construção imagética tem
suas bases numa concepção do conjunto corporal
e dos seus limites, ou seja, ruem-se as fronteiras
entre os diferentes corpos.
– Vocabulário familiar e grosseiro (insultos,
juramentos, etc.)
“O grotesco e o sublime completam-se mutuamente
sua unidade produz a beleza autêntica que o
clássico puro é incapaz de atingir” (Bakhtin, A
cultura popular..., 2002, p. 38).

• Victor Hugo (1802-1885) prefácio de Cromwell,


Do grotesco e do sublime

– defende a união do cômico e do trágico na arte,

– o grotesco – uma mescla de agonia e riso


“A 6 de janeiro, [...] era a dupla solenidade,
realizada desde tempos memoráveis, do dia de
Reis e da festa dos Loucos” (Hugo. O corcunda
de Notre Dame, 2003, p. 21).

“A aclamação foi unânime; o povo se precipitou


para a capela. De lá fizeram sair em triunfo o bem
aventurado papa dos loucos. Mas foi então que a
surpresa e a admiração chegaram ao auge; a
careta era seu próprio rosto [referência a
Quasímodo]” (Hugo. O corcunda de Notre Dame,
2003, p. 51).
“O corpo grotesco não está separado do resto do
mundo, não está isolado, acabado nem perfeito,
mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia os
seus próprios limites.” Caracteriza-se pela
ênfase naquilo que Bakhtin denomina de baixo
corporal: “orifícios, protuberâncias, ramificações
e excrescências, tais como a boca aberta, os
órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz”
(Bakhtin, A cultura popular..., 2002, p. 23).
Hieronimus Bosch. O jardim das delícias (c. 1500-1505)
• “Jardim das
delícias na
terra”
(painel
central)
• Óleo sobre
madeira.
Museu do
Prado,
Madri.
• “Paraíso” (asa direita)
• “Inferno” (asa
esquerda)
O jardim
das
delícias

“Inferno”
(asa
esquerda)
Detalhe do inferno, de O jardim das delícias.
Detalhe do inferno, de O jardim das delícias.
Detalhe do inferno, de O jardim das delícias.
• As três formas de manifestação da cultura
popular:
– formas dos ritos e espetáculos (festejos
carnavalescos, obras cômicas representadas na
praça pública);

“Nenhuma festa se realizava sem a intervenção


dos elementos de uma organização cômica,
como, por exemplo, a eleição de ‘rainhas’ e ‘reis’
para rir no período das festividades (Bakhtin, A
cultura popular..., 2002, p. 4).

– Obras cômicas e satíricas (como a paródia, mas


não só ela);
– Elaboravam-se formas especiais do vocabulário
e do gesto da praça pública, francas e sem
restrições, que aboliam toda distância entre
indivíduos em comunicação, liberados das
normas correntes da etiqueta e da decência.
(Bakhtin, A cultura popular..., p. 9)
Grotesco na mídia
“Rainha por um dia” (Sílvio Santos)
• As imagens grotescas do corpo opõem-se às
imagens clássicas do corpo humano:

[...] as imagens grotescas conservam uma


natureza original, diferenciam-se claramente das
imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e
perfeitas. São imagens ambivalentes e
contraditórias que parecem disformes,
monstruosas e horrendas, se consideradas do
ponto de vista da estética “clássica”, isto é, da
estética da vida cotidiana preestabelecida e
completa (Bakhtin, A cultura popular..., p. 22).
O grotesco como sátira
• O grotesco ao provocar a inversão
carnavalesca gera o riso. Segundo
Bakhtin, o riso gera o rompimento do
estabelecido, liberta da opressão, mesmo
que apenas em uma brecha do sistema
hierárquico.
Depois do Dia das Crianças
Frank. Jornal A Notícia (SC). 14/10/2013 (2ª feira), 10:48h.
Grotesco na literatura contemporânea
Fragmento do conto “O jantar”, de Clarice Lispector

Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda vivia,


vira um homem guloso comendo. Espiara seus olhos
arregalados, brilhantes e estúpidos tentando não perder
o menor gosto do alimento. E as mãos, as mãos. Uma
delas segurando o garfo espetado num pedaço de carne
sangrenta – não morna e quieta, mas vivíssima, irônica,
imoral –, a outra crispando-se na toalha, arranhando-a
nervosa na ânsia de já comer novo bocado. As pernas
sob a mesa marcavam compasso a uma música
inaudível, a música do diabo, de pura e incontida
violência. Avermelhada nos lábios e na base do nariz,
pálida e azulada sob os lábios miúdos. Joana
estremecera arrepiada diante de seu pobre café. Mas
não saberia depois se fora por repugnância ou por
fascínio e voluptuosidade. Por ambos certamente.
(Lispector, 1998, p. 76)
Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular no Renascimento e na Idade


Média: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 2002.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução de Célia Berrettini.
São Paulo: Perspectiva, 2001.
___________. O corcunda de Notre Dame. Tradução de Uliano
Tevoniuk. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
LISPECTOR, Clarice. O jantar. In: Laços de família. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.

Outra referência relevante:


KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e
na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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