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A bem da verdade, Doutor Antunes nem precisava mais trabalhar, pois aposentara-se
com um bom salário, e com o que ganhou em suas vendas de gado e como advogado,
foi-lhe possível formar um bom patrimônio e ter renda contínua garantida, mais do que
suficiente para as suas necessidades e as da família. Mas ele gostava de trabalhar e
dizia que fazia isso, não por necessidade econômica, mas por distração.
Só uma coisa conseguia fazê-lo parar de trabalhar: problemas com a sua netinha de
nove anos ou algo que ela a ele pedisse e o obrigasse a interromper ou paralisar de vez
seus afazeres. Aí, não tinha pra ninguém. Parava mesmo e só depois de atender às
necessidades da neta voltava para o trabalho.
Certo dia, a mãe da menina precisou deixá-la no escritório do Doutor Antunes por duas
horas, numa situação emergencial. O avô pediu à neta “Marcinha” que ficasse na sala
dele, para evitar o tédio de ficar sentadinha na recepção, o que era quase impossível de
conceber. Estava claro que aquilo não daria certo, pois alguma travessura dali sairia.
Marcinha, com a curiosidade natural de uma criança de 9 anos, começou a observar
todos os objetos da bem decorada sala: a estante “cheia de livros” , o frigobar do avô,
a decoração, os quadros...
Nesse ponto, fez-se um silêncio. Doutor Antunes ficou gélido, absorto, lembrando-se da
sua atuação na “brilhante” defesa que fizera para os agricultores e fazendeiros, nos
processos que sofreram pelos danos ambientais que causaram o assoreamento do rio e,
por fim, a sua morte.
- Por que você fez isso, Vô? Você devia era ter mandado prender eles. Se quisesse
podia, não é Vô?
- É, podia sim, mas fiquei com pena deles.
- Se fosse eu, Vô, não ia ter pena não. Mandava eles pra cadeia. Vou estudar pra ser
igual ao senhor, mas pra mandar prender quem mata.
Então, pegou a menina pelo braço e disse: “Vamos embora, amor. O Vô vai te ajudar
nisso e vai deixar você craque em condenar criminosos, principalmente os que matam
rios e florestas”.
Jurou para si que faria de sua neta uma juíza. Trabalhou mais uns vinte dias, para
resolver as pendências e, depois, nunca mais abriu o escritório, dedicando-se
integralmente à sua querida netinha.
A história contada acima ficou famosa em toda a cidade e regiões próximas a Rio das
Pontes, porque o próprio Doutor Antunes se encarregou de divulgá-la, em roda de
amigos. E, invarialmente, iniciava a narrativa assim:
"Veja que coisa interessante: foi preciso uma criança de nove anos para me mostrar o
que eu, aos setenta e quatro, não havia conseguido enxergar [...]"
Ivo S G Reis
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