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A surra que nós levamos


Alceu A. Sperança

O mundo vai acabar. Estamos


em fevereiro de 2000 e os
profetas, de Nostradamus para
baixo, juram que de 2000 ele
não passa. Passou, bem ou
mal. E não só o mundo
continuou como, em 22 de
fevereiro de 2000, deu-se a
feliz criação da Associação dos
Amigos dos Rios de Cascavel,
que saudamos então como o
limiar de uma nova era.

Mas agora o mundo acabou, mesmo. Estamos em 19 de fevereiro


de 2011 e um acidente envolvendo um caminhão entupido de óleo
fez nosso mundo cair. Toda a amizade pelos rios, todos os esforços
para salvar o Rio Cascavel, símbolo da cidade e sua fonte de água
para matar a sede, preparar alimentos e se banhar, foi por óleo
abaixo.
Levamos uma surra. Não conseguimos defender nem o rio que
nos sustenta. Os amigos dos rios apanharam. O projeto Cidade das
Águas desabou de vez nas desesperadas tentativas de conter, na base
do cimento de última hora, a implacável marcha do óleo assassino
sobre o leito do pobre Rio Cascavel.
Um rio com escassos e derrotados amigos, agredido mais uma vez
pela imprevidência política: há séculos a orientação ambientalmente
correta tem sido desapropriar o entorno do Rio Cascavel para não ter
que lamentar depois. Mas torramos inutilmente milhões em
Calçadão e praça...
Dan Brown, esse ardiloso, não nos avisou que além das peripécias
do Código Da Vinci havia uma sociedade secreta confabulando para
que fôssemos surrados implacavelmente no 19 de fevereiro.
RPC-TV
Nessa data, deu-se a
vitória de uma secretíssima
“Sociedade dos Inimigos
dos Rios”, constituída por
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Tal sábia providência impediria toda a palhaçada em torno da


construção inadequada de um mega-shopping contíguo ao Parque
Ecológico, onde está a joia máxima de todo o nosso arcabouço de
preservação e educação ambiental, fonte de água e sobrevivência
para a população – o Rio Cascavel.
A Sociedade Inimigos dos Rios nos deu uma surra sem
precedentes. Mas ela não nos surraria a todos isolada, sozinha. Ela
teve a ajuda (e Dan Brown também não nos avisou disso!) da
Sociedade Inimigos de Todos os Prefeitos de Cascavel.
As duas “sociedades secretas” – a dos inimigos dos rios e dos
inimigos de todos os prefeitos – com certeza foram as responsáveis
pela falta de uma resposta honesta e direta a uma questão formulada
pelo gestor ambiental Gelson Zanella de Ávila:
“Toda a região da bacia do Rio Cascavel vem sendo ocupada
desde a formação do município. Por que até hoje não foram
indenizadas as áreas de interesse ambiental e criada a APA do Rio
Cascavel?”
Quem nos surrou em 19 de fevereiro foram os inimigos, por
exemplo, do prefeito Pedro Muffato, cujos técnicos perceberam a
gravidade do problema de abastecimento de água e propuseram, em
1974, represar o Rio Cascavel.
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Áreas que já
deveriam ter sido
desapropriadas em
2002 para evitar
danos maiores ao
Rio Cascavel e sua
bacia.
O número 1 indica a
área na qual está
projetado um
inconveniente mega-
shoppping

E represá-lo para que? Para protegê-lo, meu! Para que ele nos
garantisse água limpa com fartura. Para que a bacia do Cascavel
fosse protegida desde a cabeceira até sua marcha rumo ao belo
Iguaçu. Nossa água também faz as Cataratas e precisa seguir limpa
até lá.
Os inimigos de Muffato foram tão sagazes que o fizeram criar um
projeto de tamanha importância sem entender que seria preciso
conter a especulação imobiliária no entorno, onde se construiu a
valer sem peias nem Rimas, Eias, sus, hips ou hurras. Mas rolou o
velho champã dos malandros que acertam tramoias imobiliárias na
calada da noite.
Inimigos do prefeito Jacy Scanagatta, que aproveitou os técnicos
de Muffato e trouxe Jaime Lerner e Cássio Taniguchi para montar o
esquema do lago. Inimigos, portanto, também dos prefeitos
curitibanos Lerner e Taniguchi.
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Marcelino Duarte

A construção
de barreiras,
na luta
desesperada
para evitar
que a
poluição se
alastre

Inimigos do prefeito Fidelcino Tolentino, que construiu o Parque


Ecológico. Inimigos de seu sucessor Salazar Barreiros, que seguiu
fielmente os projetos dos antecessores. Inimigos que quebraram a
espinha do prefeito Edgar Bueno quando, em 2001, o mundo acabou
mais uma vez.
O vazamento (sempre ele, essa Besta do Apocalipse!) de oito mil
litros de óleo diesel da empresa Auto Posto Pegoraro em 2001, uma
odisseia do bagaço, batismo ungido de óleo no Cidade das Águas,
deu uma rebarba de mais de mil desses litros despejados no lago,
espancando o ecossistema.
Os inimigos dos rios, inimigos dos prefeitos, inimigos de todos
nós, estão felizes. Estão nos surrando pelo menos desde o bagaço de
2001. E prefeito algum, nem antes nem depois de 2001,
desapropriou as áreas ao redor do lago nem adotou mecanismos
adequados de controle, como a necessária contenção aos previsíveis
desastres que descem da BR-277.
O Rio São Francisco Falso não merece esse nome. Há muito mais
falsidade por aí, ao redor e fora dos nossos pobres rios, tão cheios de
inimigos e agressores.

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