Você está na página 1de 4

Coração alugado

Decidi alugar um coração. Existem muitos para aí e se, algum dia, também quiserem um
podem perguntar-me onde arranjei o meu. Com ele é fácil entender o porquê daqueles tantos
porquês. Porquês que todos nós questionamos, porquês demasiado simples para serem dadas
respostas ora curtas, ora longas. Porquês de crianças que retiram a ingenuidade do mundo
fazendo-o parecer perfeito (“uma criança curiosa será um adulto inteligente”). Porquês de
quem desconhece as histórias, as teorias, as vidas. Porquês, apenas isso: porquês!

Perguntas que trazem o mistério com elas, mistérios esses que, de vez em quando, são
desvendados e que rapidamente se tornam em realidades. As realidades nem sempre
requerem mistérios desvendados, por vezes são nos dadas com a maior das facilidades: são as
“realidades más”. Realidades que nos deixam com as lágrimas no canto do olho, mas estas
nem sempre caem, porque caso acontecesse iriam desencadear outras, e logo outras, e outras
(“o nosso corpo obedece a um ciclo vicioso”).

Odiar, amar: por vezes os dois sentimentos sucedem-se e encadeiam-se com tal rapidez como
se entre ambos não discorresse, hesitante ou cegamente precipitada, aquela transição, um
tanto mágica à força de tão simples, de primeiro detestar, de logo em seguida se amar alguém.
Amar. Segundo o dicionário de capa escura que encontro na primeira prateleira a contar do
meio da estante que se encontra junto à parede da pequena sala, onde o lugar foi escolhido
para a primeira porta do corredor do lado direito, na posição de quem entra em casa, amar é
“ter amor a alguém ou a alguma coisa; adorar; ter gosto ou inclinação”. Sinceramente amar
não se traduz nem se define com o sentido literal daquelas palavras copiadas do “caderno do
conhecimento” (como ao primeiro lhe chamava, mas que depois teve a alcunha comum de
“dicionário”).

Nessa estante, existem ainda imediatas prateleiras com a mesmíssima altura e largura de
todas as outras. E nessas, eu encontro a minha vida exposta, sob a poeira das coisas baratas
que comprara ao longo dos anos.

Junto ao dicionário, estão os livros que nunca cheguei a ler, aqueles que fui obrigada a guardar
para que nenhuma prateleira ficasse em vácuo, e que agora tenho pena de abandonar por este
mundo fora sem saber se algum dia alguém os iria ler, ou se, tal como eu, faria deles acessório
de decoração para a sala. Existem ainda os filmes que vi naquelas noites longas acompanhada
(é claro) pelo cremoso gelado que muitas das vezes era esquecido durante tempos no
congelador, e só lembrado quando os filmes começavam, ou então quando as lágrimas
também o faziam...

Na parte mais alta da estante, estendem-se longas histórias escritas por ninguém e que jamais
alguém conseguirá lê-las, histórias sem capa e (claramente) sem título. Histórias que nunca
foram escritas literalmente, mas que hipoteticamente podem tê-las marcado em papel branco.

Na última das prateleiras a contar de cima, estão expostas pequenas recordações, e escolhi-
lhes aquele lugar pelo facto de fazerem parte do passado, e por isso, já não se encontram ao
nível dos meus olhos, na minha posição de descanso quando me encontro de pé. Essas são
aquelas que evito olhar, porque as lágrimas são invadidas pela minha face quando recordo
aqueles (bons) momentos. Tento então abstrair-me daquela parte da estante inteiramente
rotulada de “Passado” e faço os meus olhos olharem para o dicionário, ou para os livros que
nunca li. Mas, às vezes, os meus olhos não me obedecem como deveriam e fazem-me olhar
para onde não posso (ou não devo).

A estante acaba, então, assim, como se precipitada por aquilo que não quero olhar e que ela
própria também não tem muito interesse em guardar. E a harmonia estende-se e espalha-se
pela sala pequena decorada apenas com mais um sofá para uma pessoa e uma mesa de centro
destinada a segurar as bebidas (na sua maioria sem álcool). Debaixo dessa mesa, também se
encontra uma carpete em tons escuros para não destoar do resto do espaço, tendo então este
ambiente o Ph perfeito.

Saindo desta sala, o corredor estende-se infinitivamente, que, por vezes, nem eu (que conheço
muito bem a casa) consigo avistar o seu fim. E passando por todo ele, eu consigo ver mais
recordações (de um passado próximo) e que, por isso, não me deixam saudade. Dou passos
largos para que o corredor pareça mais curto, mas, no entanto, ele continua longo, tão longo
como a linha do horizonte. Decido, então, entrar na terceira porta do lado esquerdo, a contar
do fim onde posso desta vez, assistir a um espaço amplo e claro: a sala de visitas.

Nesta sala, as cores são baseadas no branco, passando pelas paredes, pelos luxuosos sofás,
pelas almofadas e ainda pelas enormes carpetes quadradas de um tecido quase pêlo. No
entanto, existem mesas de tampos de vidro com molduras (também brancas) vazias e jarras
altas do mesmo tom. E ainda um grande candeeiro de pé, feito de aço muito bem trabalhado,
mas que, normalmente, se mantém desligado (amenos quando existem visitas). Aqui, o que
me chama à atenção, são as flores com que as jarras brancas colocadas nas mesas de tampos
de vidro são decoradas, como se quisessem desfazer este ambiente de céu com pequenos
objectos de decoração, novamente simples (tal como toda a sala). Como se fossem lá
colocados para fazer doer os olhos, ou então, a alma. As jarras são, então, completadas com
molhos pequenos de rosas negras, que funcionam quase como um buraco negro e que tenta
levar toda a sala com ele. No entanto, acho que nunca o conseguiu.

A sala de visitas termina com uma janela bem no centro da parede do fundo, uma janela do
chão ao tecto que, se a abrirmos, vai dar a uma varanda enorme com vista para o mundo. Esta
é talvez a sala favorita das pessoas que entram cá em casa, pela graciosidade que ela
demonstra a todos os que a avistam da entrada, mas mais, a quem a avista da varanda.

Novamente, o corredor estende-se daquela maneira básica de à bocado e faz qualquer pessoa
que saia da sala de visitas ficar com tonturas, pela mudança de ambiente de uma forma tão
radical. E por mais que esteja habituada, a mim, estas tonturas também me afetam.

Avisto agora a última porta, como se feliz por demonstrar-me a mim própria que, afinal, este
corredor é finito, e entro nela. A porta encontra-se, mesmo no fundo, a escassos centímetros
do final da casa, do lado direito daquele espaço de maior comprimento que largura. Quando
abro a porta, sou invadida por uma onda de pureza, uma onda que me leva às maiores
recordações, e claramente, às mais felizes! É novamente uma sala, um espaço grande, mas
cheio! Salta-me ao olhar um pequeno sofá cor-de-rosa coberto de uma manta de um amarelo
vivo e decorado com bonecos peludos que me mostram uma infância vivida há já alguns anos
atrás. Longe do sofá, encontra-se uma caixinha preta coberta de mistério e que, sob uma
máscara infeliz, se encontra uma tanta magia transmitida através de um pequeno som que,
mesmo assim tão pequeno, nos consegue levar para qualquer galáxia, que nos transforma os
sonhos em puras realidades, fazendo-nos parecer verdadeiras bailarinas a dançar ao som um
uma música calma e inspiradora. Acho que ainda se consegue ouvir essa música se abrirmos
aquela caixinha preta, ou talvez, precise de pilhas novas.

A caixa de música ainda se encontra com um laço apertado à sua cintura, como ma haviam
dado, como se ela quisesse parecer ainda jovem, no entanto, encontra-se já velha (não no
sentido literal da palavra, mas já demasiado vivida para ainda ser recordada naquele espaço
com cheiro a bebé), e talvez seja por isso que ela se encontra, assim, tão longe de todos os
outros brinquedos, como para que nunca ninguém reparasse nela e para que nunca ninguém
se lembrasse de levá-la para bem longe daquela sala tão estranhamente decorada
(comparando com o resto da casa: muito harmoniosa) ali não havia harmonia nenhuma, a não
ser o facto de haver uma manta amarela e um brinquedo amarelo (também).

Olhando bem para as paredes, encontram-se desenhos expostos sem qualquer direito a
moldura ou tela. Desenhos que nos remetem a um passado longínquo e, ao qual, todos
querem voltar! Àquele passado onde a ingenuidade é trazida com a calma que ela necessita,
para que nunca chegue o dia de nos esquecermos dela, ali, guardada numa sala, ou então, no
coração (apenas).

A sala estende-se por longos metros cheios de pequenos detalhes e pequenos brinquedos de
uma criança habituada ao luxo, como se nunca quisessem que ela saísse daquele espaço, para
que nunca descobrisse os perigos do mundo. A porta tende a fechar-se quando tento entrar,
como esta sala estivesse envolvida por uma parede de vidro (para que nunca se soubesse a
solidão que esta criança que cá fora criada passou). Deixo então a porta fechar-se e volto ao
corredor comprido que me levará, em breve, a outra sala (e em breve /também/ descobrirei o
porquê desta viagem sem passageiros).

Novamente, como se não soubesse o porquê de ligar todas aquelas salas, estende-se um
grande espaço, por todos já conhecido, que me faz caminhar sem destino, impulsionando-me
quando quer que eu deixe de pisá-lo, ou então, quando quer que eu descubra mais o mistério
de um passeio.

Olhando bem para este sítio, reparamos que as paredes se levantam muito rapidamente,
sendo, então, também este espaço, um lugar sem graciosidade (e harmonia). No entanto,
parece sempre enfeitiçar-me dessa maneira, um tão básica à força de tão simples, e fazer com
que não o olhe de uma forma fria, como se quisesse que eu descobrisse o seu segredo, mas
tivesse vergonha de alguém desvendá-lo.

Era fácil designar “vergonha” se decorresse novamente ao dicionário de capa castanha (e peço
desculpa a repetição de fazê-lo), mas só ele me consegue explicar aquelas palavras demasiado
difíceis (fáceis para quem nunca as olhou com olhos de ver). Lá, “vergonha” (entre muitos
conceitos escolhi estes) é “sentimento de desgostoso, que resulta da idéia ou de receio da
desonra ou deslustre” e ainda “timidez, acanhamento”. Mas (novamente) o dicionário não
define bem as coisas quando as vivemos... E é isso que esta (nova) sala me mostra, uma certa
vergonha de algo ou de alguém (ou até de uma pessoa para o seu próprio espírito).

Olho para ela, mas fico um tanto assustada pela sua dimensão, é demasiado pequena, como se
alguém se quisesse esconder lá, mas do resto do mundo! Entro de uma maneira lenta, para
que não me assuste com algum objecto decorativo, estranhamente recto ou curvo. Mas a
verdade é que não existe nada! Apenas um vazio que aperta e torna a minha alma cada vez
mais pequena e que, intencionalmente, me faz deixar cair uma lágrima exactamente pela
canto do olho esquerdo (é o olho mais próximo do coração). Não entendo bem o porquê, mas
algo aqui me faz baixar o nível de adrenalina, como se fosse uma coca-cola (mas sem gás).

Sento-me na injustiça de não ter uma pista do que significa esta sala, e ai, olhando para o
tecto, entendo parte daquele mistério: aquele céu está pintado de verde, um verde estranho
que rapidamente me remete a algumas imagens guardadas (já há algum tempo) nesta
gavetinha de borracha com o nome de recordações. Desisto então de pensar e vivo o
momento sem força, ainda sentada, no entanto, agora, na saudade e na lembrança de uma
vida um tanto mágica e um tanto proibida.

Não sei bem o que fazer: se fugir desta recordação, ou se adormecer aqui, embrulhada na
sensação selvagem de ser (ou parecer) livre!... Deixo-me estar e aqui descubro o porquê
daqueles porquês sem resposta, daquele corredor sem fim, e daquelas salas sem visitas. Todas
representam etapas de uma vida (que por sinal é a minha). Algumas ainda representam o
futuro, outras o presente, outras, aquele passado escuro, onde só é abstraído o verde daquele
tecto que, por muito e muitos tempos, me serviu de céu.

Deixo-me agora neste pequeno espaço, e retiro, com muita calma, o meu coração alugado,
que me permitiu reviver e descobrir a minha vida. E só espero que um dia possa (de novo)
fazê-lo.

Acabo com o meu próprio espírito, esmagando-o com a maior ternura possível, para que possa
começar uma vida do zero, onde possa esquecer quem realmente nunca me amou ou quem.

Um beijo,

A rapariga da Rosa Negra

Você também pode gostar