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CURSO DE FILOSOFIA

PRIMEIRO ANO

HUMBERTO ZANARDO PETRELLI

MESTRE EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

LIMEIRA – SÃO PAULO


2007
- PROGRAMA PARA O PRIMEIRO ANO -

DOCENTE RESPONSÁVEL:
Humberto Zanardo Petrelli
Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
petrelli@hotmail.com

TEMA/NOME DA DISCIPLINA:
Milagre Grego? O desenvolvimento da “razão” (lógos) na Antigüidade Clássica.

OBJETIVOS:
Estudar os principais pensadores chamados “pré-socráticos” (625-370 a.C.), a fim de estabelecer uma relação entre o
desenvolvimento racional de cada um com o pensamento nascente da época.
Aproximar as teorias desenvolvidas por esses pensadores aos nossos dias para questionar a importância desses pensamentos
como um instrumento para desenvolvermos um mundo melhor e mais justo.
Proporcionar fundamentos teóricos relevantes para possibilitar a discussão de qualquer tema ligado à Filosofia.
Mesclar as teorias estudadas com livros didáticos de Filosofia para o Ensino Médio com o objetivo de estabelecer uma real
aproximação do conteúdo pesquisado com questões relevantes de nossa época, além de buscar esclarecer qual a principal utilidade da
Filosofia: um instrumento para calcularmos e pensarmos com mais rigor.

JUSTIFICATIVA:
Enquanto documento da História da Filosofia, os fragmentos dos “pré-socráticos” interessam a diversas disciplinas. Este
estudo nos leva a questionar como esses seres humanos pensavam os temas essenciais às nossas vidas.

CONTEÚDO E CRONOGRAMA:
Curso de um (1) ano, dividido esquematicamente pelas seguintes aulas (1 aula = 45 ou 50 minutos):
1. Apresentação do curso e o alfabeto grego;
2. Introdução temática: o nascimento da filosofia;
3. Demócrito de Abdera;
4. Técnicas de redação;
5. Tales de Mileto;
6. Anaximandro de Mileto;
7. Anaxímenes de Mileto;
8. Pitágoras de Samos;
9. Xenófanes de Colofão;
10. Heráclito de Éfeso;
11. Parmênides de Eléia;
12. Zenão de Eléia;
13. Empédocles de Agrigento;
14. Anaxágoras de Clazômenas;
15. Avaliação do curso e encerramento.

METODOLOGIA DE ENSINO:
- Aulas expositivas;
- Seminários;
- Exercícios extra-sala.

AVALIAÇÃO:
- Verificação escrita;
- Seminários;
- Trabalhos e participação em sala de aula.

BIBLIOGRAFIA:

PRÉ-SOCRÁTICOS, Col. “Os Pensadores”, vol. 1, seleção de textos e supervisão do prof. Dr. José Cavalcante de Souza, São Paulo,
Abril Cultural, 1978.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR:

CHAUI, M. Filosofia, Série Novo Ensino Médio, Volume Único, São Paulo, Editora Ática, 2004.
CHAUI, M. Introdução à História da Filosofia – dos pré-socráticos a Aristóteles, Volume 1, São Paulo, Cia. das Letras, 2002.
COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia: História e Grandes Temas, São Paulo, Ed. Saraiva, 7a tiragem, 2005.
KIRK, G.S., RAVEN, J. E. & SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1994.
ÍNDICE

AULA 1 .................................................................................................................................................................................................... ALFABETO GREGO


AULA 2 ..................................................................................................................................... “A CANA DOS OUTROS” DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO
AULA 3 ..................................................................................................................................................................................... MITO E FILOSOFIA (PARTE I)
AULA 4 ................................................................................................................................................................................... MITO E FILOSOFIA (PARTE II)
AULA 5 ........................................................................................................................................................................... DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE I)
AULA 6 ......................................................................................................................................................................... DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II)
AULA 7 .................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE I)
AULA 8 ................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II)
AULA 9 .................................................................................................................. FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE III)
AULA 10 ................................................................................................................ FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE IV)
AULA 11 ............................................................................................................................................................................................................... EXERCÍCIO
AULA 12 .................................................................................................................................................................. TÉCNICAS DE CORREÇÃO DE REDAÇÃO
AULA 13 ................................................................................................................. FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE V)
AULA 14 ................................................................................................................ FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VI)
AULA 15 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 16 ............................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VII)
AULA 17 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 18 ............................................................................................................................................................................................ PARA QUE FILOSOFIA?
AULA 19 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 20 ................................................................................................................................................................... TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE I)
AULA 21 .................................................................................................................................................................. TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE II)
AULA 22 ................................................................................................................................................................. TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE III)
AULA 23 ................................................................................................................................................................. TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE IV)
AULA 24 ......................................................................................................................................................................................................... INÚTIL? ÚTIL?
AULA 25 ......................................................................................................................................................................... ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE I)
AULA 26 ........................................................................................................................................................................ ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE II)
AULA 27 ...................................................................................................................................................................... ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE III)
AULA 28 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 29 ....................................................................................................................................................................................... A REFLEXÃO FILOSÓFICA
AULA 30 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 31 ................................................................................................................................................................................... TALES DE MILETO (PARTE I)
AULA 32 .................................................................................................................................................................................. TALES DE MILETO (PARTE II)
AULA 33 ................................................................................................................................................................................ TALES DE MILETO (PARTE III)
AULA 34 .....................................................................................................................................................................ANAXIMANDRO DE MILETO (PARTE I)
AULA 35 ................................................................................................................................................................... ANAXIMANDRO DE MILETO (PARTE II)
AULA 36 ........................................................................................................................................................................................ ANAXÍMENES DE MILETO
AULA 37 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 38 ............................................................................................................................................................................................ JEAN DE LA FONTAINE
AULA 39 ............................................................................................................................................................................ PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE I)
AULA 40 ........................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE II)
AULA 41 .......................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE III)
AULA 42 .......................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE IV)
AULA 43 ........................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE V)
AULA 44 ..................................................................................................................................................................................................... MEIO AMBIENTE
AULA 45 ....................................................................................................................................................................... XENÓFANES DE COLOFON (PARTE I)
AULA 46 ...................................................................................................................................................................... XENÓFANES DE COLOFON (PARTE II)
AULA 47 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 48 ............................................................................................................................................................................. HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE I)
AULA 49 ............................................................................................................................................................................ HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)
AULA 50 ....................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE I)
AULA 51 ...................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)
AULA 52 .................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE III)
AULA 53 .......................................................................................................................................................... FILOSOFIA: UM PENSAMENTO SISTEMÁTICO
AULA 54 ............................................................................................................................................................................ PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE I)
AULA 55 .......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE II)
AULA 56 ......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE III)
AULA 57 ......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE IV)
AULA 58 .......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE V)
AULA 59 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 60 .............................................................................................................................. CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA O SURGIMENTO DA FILOSOFIA
AULA 61 ..................................................................................................................................................................................... ZENÃO DE ELÉIA (PARTE I)
AULA 62 .................................................................................................................................................................................... ZENÃO DE ELÉIA (PARTE II)
AULA 63 ................................................................................................................................................................................... ZENÃO DE ELÉIA (PARTE III)
AULA 64 .................................................................................................................................................................................. ZENÃO DE ELÉIA (PARTE IV)
AULA 65 ......................................................................................................................................................................... FRAGMENTOS DE ZENÃO DE ELÉIA
AULA 66 ................................................................................................................................................................. EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE I)
AULA 67 ................................................................................................................................................................ EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE II)
AULA 68 ............................................................................................................................................................... EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE III)
AULA 69 .............................................................................................................................................................. EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE IV)
AULA 70 ............................................................................................................................................................ ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE I)
AULA 71 ........................................................................................................................................................... ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE II)
AULA 72 .......................................................................................................................................................... ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE III)
AULA 73 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 74 ............................................................................................................................................................................................ FRIEDRICH NIETZSCHE
CURSO DE FILOSOFIA

 PRIMEIRO ANO 
 Primeiro Bimestre 

AULA 1.

ALFABETO GREGO:

Α α alfa (a) Ν ν ni (n)


Β β beta (b) Ξ ξ csi/xi (cs/x)
Γ γ gama (g) Ο ο ômicron (o)
∆ δ delta (d) Π π pi (p)
Ε ε êpsilon (e) Ρ ρρ rô (r)
Ζ ζ zeta/sdeta (z/sd) Σ σς sigma (s)
Η η éta (é) Τ τ tau (t)
Θ θ theta (th) Υ υ upsilon/ypsilon (u/y)
Ι ι iota (i) Φ φφ fi/phi (f/ph)
Κ κ kapa (k/c) Χ χ khi (kh/ch)
Λ λ lambda (l) Ψ ψψ psi (ps)
Μ µ mi (m) Ω ω omega (ó)

Transliterar do grego para o português:

Aqhnaj :________________________________________________________________________
Kubernhthj :____________________________________________________________________
Poseidon (Deus do Mar) :__________________________________________________________
φiloj :__________________________________________________________________________
anqrwpoj :______________________________________________________________________
qalatta :_______________________________________________________________________
melaina :_______________________________________________________________________
logoj :__________________________________________________________________________
φoboj :__________________________________________________________________________
ψeudwj :________________________________________________________________________

Transliterar do português para o grego:

Yppopotamos :____________________________________________________________________
dracma :_________________________________________________________________________
nomos :__________________________________________________________________________
acropolis :_______________________________________________________________________
telos :___________________________________________________________________________
patér :___________________________________________________________________________
basileus :________________________________________________________________________
Theous :_________________________________________________________________________
AULA 2.

SERIAL*

A José Lins do Rego**

A CANA DOS OUTROS

1. Esse que andando planta Em Serial (1962), João Cabral de Melo


os rebolos de cana Neto (1920-1999) apresenta poemas de ênfase social.
nada é do Semeador O poeta perde a sua individualidade em função da
que se sonetizou. composição em série. Fazer poema é um ofício, um
trabalho poético de contenção, com o objetivo de
É o seu menos um gesto ultrapassar o lirismo e a musicalidade.
de amor que de comércio; A coletânea está divida em dezesseis
e a cana, como a joga, conjuntos ou séries, organizadas, por sua vez, em
não planta: joga fora. quadras.

2. Leva o eito o compasso, * A palavra sugere a idéia “de uma poesia


na limpa, contra o mato, dessacralizada, que nasce num universo de produção
bronco e alheadamente em série, e sua escolha para o título revela no autor a
de quem faz e não entende. consciência do espaço sociológico-cultural em que
cria a obra: um espaço onde já não cabe uma
De quem não entendesse concepção da arte como atividade sagrada, onde não
porque só é mato este; se enquadra mais a figura do criador envolto numa
porque limpar do mato, aura de magia” (MARTA DE SENNA, João Cabral –
não, da cana, limpá-lo. Tempo e Memória).

3. Num cortador de cana ** A dedicatória ao romancista nordestino


o que se vê é a sanha José Lins do Rego (1901-1957) aponta para uma parte
de quem derruba um bosque: dos temas desta coletânea, evocativos da situação
não o amor de quem colhe. social das plantações de cana-de-açúcar.

Sanha fúria, inimiga, *** Nas quatro “séries” deste poema, o


feroz, de quem mutila, poeta registra a condição “severina” do trabalhador
de quem sem mais cuidado dos engenhos e usinas de açúcar.
abre trilha no mato.

4. A gente funerária Rebolos: parte da cana-de-açúcar com dois


que cuida da finada ou mais gomos, usada no plantio.
nem veste seus despojos: Sonetizar: composição poética de 14 versos,
ata-a em feixes de ossos. dispostos em 2 quartetos e 2 tercetos.
Eito: seqüência ou série de coisas que estão
E quando o enterro chega, na mesma direção ou linha. Limpeza de uma
coveiro sem maneiras plantação por turmas que usam enxadas.
tomba-a na tumba-moenda: Sanha: ira, fúria, ódio, rancor.
tumba viva, que a prensa.*** Despojos: o que caiu ou se arrancou, tendo
servido de revestimento.
AULA 3.

MITO E FILOSOFIA (PARTE I)

A filosofia nasceu realizando uma (que conhecemos mais com o nome de Cupido),
transformação gradual sobre os antigos mitos gregos exemplo extraído do Banquete 203a, de
ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos? Platão:“Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os
Mas, o que é um mito? deuses, e entre os demais se encontrava também o
Um mito é uma narrativa sobre a origem de filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de
alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou
das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, na porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar –
do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos pois o vinho ainda não havia – penetrou o jardim de
instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando
poder, etc.). em sua falta de recurso engendrar um filho de
A palavra mito vem do grego màqoj, e deriva Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o
de dois verbos: do verbo màqeÚw (contar, narrar, falar Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de
alguma coisa para os outros) e do verbo màqew Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo
(conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para tempo que por natureza amante do belo, porque
os gregos, mito é um discurso pronunciado ou também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de
proferido para ouvintes que recebem como verdadeira Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele
a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está
narrativa feita em público, baseada, portanto, na de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é
autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem
essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos
diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre
de quem testemunhou os acontecimentos narrados. convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso,
ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer
um escolhido dos deuses, que lhe mostram os maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos,
acontecimentos passados e permitem que ele veja a a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro,
origem de todos os seres e de todas as coisas para que sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e
possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra  o mito no mesmo dia ora ele germina e vive, quando
 é sagrada porque vem de uma revelação divina. O enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à
mito é, pois, incontestável e inquestionável. natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa,
Como o mito narra a origem do mundo e de de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece,
tudo o que nele existe? assim como também está no meio da sabedoria e da
De três principais maneiras: ignorância. Eis com efeito o que se dá”.
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos 2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança
seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo.
sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre forças
geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos divinas ou uma aliança entre elas para provocar alguma
e semi-divinos), os heróis (filhos de um deus com uma coisa no mundo dos homens.
humana ou de uma deusa com um humano), os O poeta Homero, na Ilíada, epopéia que narra
humanos, os metais, as plantas, os animais, as a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas,
qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claro- os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia
escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a
etc.. favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez,
A narração da origem é, assim, uma o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos,
genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das aliava-se com um grupo e fazia um dos lados  ou os
coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus troianos ou os gregos  vencer a batalha.
pais ou antepassados. A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade
Tomemos um exemplo de narrativa mítica. entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o
Observando que as pessoas apaixonadas estão príncipe troiano Páris, oferecendo a ele seus dons e ele
sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas,
mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher
seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a do general grego Menelau, e isso deu início à guerra
origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros entre os humanos.
AULA 4.

MITO E FILOSOFIA (PARTE II)

O mito, como estudado na aula anterior, narra a sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do
origem do mundo e de tudo que existe nele, e a terceira homem. Dizia-se, então, que a filosofia nasceu por uma
principal maneira de narração mítica é: ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação
científica da realidade produzida pelo Ocidente.
3. Encontrando as recompensas ou os castigos
A segunda resposta foi dada a partir de meados
que os deuses dão a quem lhes obedece ou a quem lhes
do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos
desobedece, respectivamente.
historiadores mostraram a importância dos mitos na
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo
organização social e cultural das sociedades e como os
pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois
mitos estão profundamente entranhados nos modos de
com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam
pensar e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que
a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a
os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em
se aquecer no inverno quanto podem fabricar
seus mitos e que a filosofia nasceu, vagarosa e
instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.
gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma
Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do
racionalização deles.
que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe
Atualmente, consideram-se as duas respostas
de presente para os homens. Prometeu foi castigado
exageradas e afirma-se que a filosofia, percebendo as
(amarrado num rochedo para que as aves de rapina,
contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e
eternamente, devorassem seu fígado) e os homens
racionalizando as narrativas míticas, transformando-as
também. Qual foi o castigo dos homens?
numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e
Os deuses fizeram uma mulher encantadora,
diferente.
Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria
Quais são as diferenças entre filosofia e mito?
coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta.
Podemos apontar três como as mais importantes:
Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram
e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela
ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e
saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e,
fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo
sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males
existisse tal como existe no presente. A filosofia, ao
do mundo.
contrário, preocupa-se em explicar como e por que, no
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das
passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do
coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre
tempo), as coisas são como são.
forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino
2. O mito narrava a origem através de
dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são
genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas
genealogias, diz-se que são cosmogonias e theogonias.
sobrenaturais e personalizadas, enquanto a filosofia, ao
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do
contrário, explica a produção natural das coisas por
verbo genn£w (engendrar, produzir, gerar, fazer nascer e
elementos e causas naturais e impessoais.
crescer) e do substantivo gšnoj (nascimento, gênese,
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a
descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer
filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem
dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e
dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais,
do parto. Cosmos, por sua vez, quer dizer mundo
homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano
ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa
e Ponto. A filosofia explica o surgimento desses seres por
sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de
composição, combinação e separação dos quatro
forças geradoras (pai e mãe) divinas.
elementos  úmido, seco, quente e frio, ou água, terra,
Theogonia é uma palavra composta de gonia e
fogo e ar.
qeÒj, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres
3. O mito não se importava com contradições,
divinos, os deuses. A theogonia é, portanto, a narrativa da
com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses
origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.
eram traços próprios da narrativa mítica, como também
A filosofia, ao nascer, é uma cosmologia, uma
porque a confiança e a crença no mito vinham da
explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as
autoridade religiosa do narrador. A filosofia, ao contrário,
causas das transformações e repetições das coisas; para
não admite contradições, fabulação e coisas
isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos
incompreensíveis, mas exige que a explicação seja
ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou
coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da
rompe com a cosmogonia e a theogonia?
explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão,
Duas foram as respostas dadas pelos estudiosos.
que é a mesma em todos os seres humanos.
A primeira delas foi dada nos fins do século XIX
e começo do XX, quando reinava um grande otimismo
AULA 5.

DEMÓCRITO DE ABDERA (cerca de 460-370 a.C.)

Demócrito nasceu em Abdera (colônia jônica da Trácia). ordem) e da conversão (ou posição) da mesma matéria fundamental,
Foi discípulo e sucessor de Leucipo na direção da Escola de Abdera. como vemos com as letras quando A difere de N pela forma; AN e
Do ponto de vista cronológico, não poderíamos colocar Leucipo e NA diferem pela ordem; e Z e N pela posição.
Demócrito juntos, pois o primeiro teria sua akmé (ponto de Com os atomistas temos, além de uma cosmologia, uma
maturação filosófica) por volta de 450 a.C. (conforme Apolodoro), física. De fato, as cosmologias explicam a multiplicidade e variação
enquanto que Demócrito nasceu em 460-459 a.C.. O primeiro era de qualitativa das coisas e da natureza afirmando que as coisas e a
Mileto, e suas preocupações eram fundamentalmente cosmológicas, natureza são constituídas por qualidades. A diferença na qualidade
enquanto o segundo, de Abdera, contemporâneo e conterrâneo do (quente-frio, seco-úmido, luminoso-opaco, duro-mole, denso-sutil,
sofista Protágoras, teve preocupações éticas e com a técnica. O etc.) causa as diferentes coisas; a mudança na qualidade causa a
motivo pelo qual são colocados juntos é a existência de um único variação e o devir. Ora, os atomistas eliminam as qualidades como
corpus de doutrina reunido num conjunto de obras, conhecidas originárias. Os átomos não são qualidades, são formas (figura,
como da Escola de Abdera. Atribuem-se-lhe muitas viagens, numa ordem, posição), são estruturas das coisas, cuja origem e mudança
das quais também chegou a Atenas. Mas mesmo assim, nesta decorrem apenas dos movimentos dos átomos no vácuo.
cidade, sua filosofia foi ignorada por muito tempo. Qual seria a relação entre o pensamento, que conhece os
Demócrito deve ter sido um dos escritores mais fecundos átomos e o vácuo (invisíveis, não percebidos por nossos sentidos), e
da antigüidade. Segundo Diógenes Laércio, deixou umas noventa a percepção ou sensação, que alcança as coisas por meio de suas
obras. Restam-nos fragmentos do Mikrós Diakósmos ou Pequeno qualidades? A física atomista responderá a essa pergunta com uma
Ordenamento, Da Forma, Do Entendimento e outras (de conteúdo teoria do conhecimento revolucionária, exposta por Demócrito.
teórico), Do Bom Ânimo, Preceitos, etc. (de conteúdo moral). Pelas Aparentemente, Demócrito estaria apenas reafirmando
fontes, não podemos distinguir com suficiente segurança o que se aquilo que, desde Heráclito e Parmênides, já estava decidido pelos
deve a Demócrito e o que a Leucipo. John Burnet, historiador da filósofos pré-socráticos, isto é, que não conhecemos a realidade ou a
filosofia inglês, acreditava que muitas das obras atribuídas a verdade por meio de nossos sentidos, pois estes nos dão a aparência
Demócrito formavam como que o corpus da Escola. O Mégas das coisas e com elas apenas formamos opiniões. Todavia,
Diakósmos ou Grande Ordenamento seria da autoria de Leucipo, de Demócrito foi muito além de seus antecessores.
acordo com Teofrasto, enquanto as outras, dos discípulos da Escola. Os fragmentos afirmam que as qualidades (quente-frio,
É considerado o sistematizador da doutrina atomista. Para doce-amargo, luminoso-escuro, cores, sabores, odores, texturas das
os atomistas, a “natureza” (φÚsij) deveria ser idêntica a si mesma, coisas, etc.) são uma convenção entre os homens. “Convenção”
eterna e imutável, e formada de unidades discretas. A “natureza” (nÒmoj) é aquilo que não é por “natureza” (φÚshi), mas por opinião
(φÚsij) ou o ser, portanto, são os átomos, o não-cortável, isto é, os e por acordo entre os homens. A percepção das qualidades das
indivisíveis. Os átomos, partículas invisíveis e as menores possíveis, coisas é subjetiva, isto é, depende das disposições do corpo de cada
são plenos, indivisíveis, unos, contínuos, imutáveis, eternos. Há uma um, varia com as variações do corpo (para o doente, o doce pode
quantidade inumerável ou infinita de átomos ou unidades discretas. tornar-se amargo, por exemplo), de tal modo que diferentes homens
Entre um átomo e outro há o vazio ou o vácuo, que é o não-ser terão diferentes percepções das coisas, e um mesmo homem,
como algo real, existente. Pela primeira vez foi admito o vácuo e dependendo das disposições de seu corpo, terá percepções diferentes
afirmou-se que o espaço é real sem ser corporal. Os atomistas, de uma mesma coisa. Essas qualidades, os filósofos posteriores
portanto, acreditavam que a “natureza” (φÚsij) eram os átomos e o chamarão de qualidades sensíveis, para marcar com essa expressão
vácuo. O pleno (o átomo) e o vazio são princípios constitutivos de a idéia de que não são qualidades das coisas, mas modos subjetivos
todas as coisas, geradas pelo contato entre os átomos que se movem ou humanos de perceber as coisas.
no vácuo, chocando-se, ricocheteando uns contra os outros, fazendo Mas, por que percebemos cores, odores, sabores,
as coisas nascer, mudar e perecer. Esse movimento espontâneo dos formatos, texturas, tamanhos, aspereza, dureza, etc.? Qual a causa
átomos é inerente a eles (não é preciso uma força externa para da percepção das qualidades? As diferenças nas formas dos átomos,
movê-los, como o Amor e o Ódio, em Empédocles, ou o noàj, em que provocam o efeito perceptivo ou subjetivo de qualidades.
Anaxágoras) e é racional e necessário, não sendo contingente ou por Assim, o azedo decorre da forma angulosa de certos átomos; o doce,
acaso. de átomos cujas formas são arredondadas e pequenas; o amargo, de
A diferença entre os átomos não é qualitativa, isto é, não átomos cujas formas são pequenas, lisas e redondas; e assim para
há átomos frios, quentes, úmidos, secos, luminosos, escuros, cada qualidade. Dependendo da quantidade ou proporção maior de
pesados, leves, mas puramente quantitativa, isto é, os átomos se uma forma sobre as outras num composto, nosso corpo é afetado por
diferenciam por sua forma, grandeza, posição, direção e velocidade. essa forma predominante e percebe, como qualidade, a sensação
Determinam o nascimento das coisas por agregação e a morte delas correspondente a essa forma. Como, porém, os corpos são
por desagregação; determinam a ordem do devir ou da mudança compostos de átomos de várias formas, nosso corpo pode confundi-
pela sua ordem, posição e velocidade. Todos os átomos são dotados las e, por isso, dependendo de nosso estado, podemos sentir amargo
de extensão ou grandeza e são todos iguais em substância, de sorte o que era doce, quente o que era frio, e assim por diante. As
que as diferenças entre as coisas devem ser explicadas apenas pela sensações e os pensamentos dependem, portanto, objetivamente das
forma, arranjo e posição dos átomos. Mantendo a tradição médica e formas dos átomos e subjetivamente das disposições de nosso corpo.
empedocliana de que só o semelhante age sobre o semelhante e só o É apenas por convenção que os homens decidem o que é uma
semelhante sofre a ação do semelhante, Demócrito afirmou que o qualidade ou outra, porque, por natureza, elas não existem. As
contato entre os átomos para formar as coisas se deve ao fato de que qualidades percebidas são nomes que damos ao que percebemos
são iguais ou semelhantes em sua substância, pois, de outro modo, indiretamente da realidade atômica. Damos o nome de azedo à
não poderiam entrar em contato e agir uns com os outros. Isso percepção de átomos angulosos; de doce, à de átomos arredondados
significa que a substância de todas as coisas é a mesma e por isso a e pequenos, etc..
diferença decorre apenas da forma (ou proporção), do arranjo (ou
AULA 6.

DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II)

menciona em nenhuma de suas obras, manifestando desprezo


pelo “materialismo” dos pensadores de Abdera.
Uma das contribuições mais duradouras do
pensamento de Demócrito é sua defesa e elogio das técnicas ou
artes. Numa sociedade escravista, como a grega, os trabalhos
manuais eram deixados aos escravos ou aos artesãos livres,
considerados inferiores pelos aristocratas. Até a consolidação da
democracia, as artes ou técnicas (tšcnai) eram vistas com
desprezo. Com a democracia, porém, outra visão das artes surge
na pólis, que passou a dividi-las em manuais (como a pintura, a
escultura, a arquitetura, a medicina) e liberais (como a oratória,
a poesia, a tragédia, etc.).
Que fez Demócrito? Abandonando as explicações
míticas sobre a origem do homem e da sociedade, afirma que, no
princípio, o mundo humano não tinha ordem nem lei. Como o
mundo dos animais selvagens que vivem isolados nas florestas,
o mundo humano era cheio de medo e de morte. Pouco a pouco,
os homens perceberam a utilidade da vida em comum e da ajuda
Como se dá a percepção e como ocorre o pensamento.
mútua. O medo os levou a compreender a utilidade da reunião
Para os atomistas, todo conhecimento, seja ele sensível ou
para a defesa recíproca. Também o medo os fez explicar a
intelectual, se dá por contato. As coisas emitem imagens,
natureza como obra e intervenção contínua dos deuses, isto é,
películas ou membranas muito finas, que guardam o aspecto das
sentindo necessidade de explicar as causas das coisas,
coisas de onde vieram, atravessam o ar e se chocam com nosso
inventaram os deuses e a eles atribuíram a origem das coisas e
corpo. Esse choque é a causa da percepção. O pensamento, por
das técnicas, doadas aos humanos.
sua vez, recebe por contato as imagens mais finas e sutis,
Todavia, não é só a reunião e a religião que
produzidas dentro de nós pelas sensações. Ou seja, o
caracterizam a primeira ordenação do mundo humano. Existiu
pensamento não recebe imagens externas vindas dos corpos,
algo mais fundamental, que foi a condição para que os homens
mas as imagens internas que a sensação ou percepção
se reunissem e a religião aparecesse: a descoberta da linguagem.
produziram no interior de nosso corpo. Essas imagens, que são
Linguagem e religião foram as primeiras invenções que
menores, têm uma clareza e precisão maiores, convidam o
propiciaram aos homens o sentimento da estabilidade,
pensamento e o orientam a pensar o que é invisível, isto é, o
regularidade e repetição dos acontecimentos. Esse sentimento e
pleno e o vazio, os átomos e suas formas, ordenações e posições.
a capacidade da linguagem de permitir a retenção de fatos na
Assim, do conhecimento obscuro que os sentidos nos oferecem,
memória criaram a experiência, isto é, a capacidade para intervir
o pensamento retira o conhecimento genuíno, mais fino e
sobre os acontecimentos de modo regular, estável e contínuo.
preciso.
Com a experiência, surgiram as técnicas, e, com elas, a vida em
Porque tudo é matéria (átomos), porque a percepção é
sociedade foi finalmente organizada.
contato material entre os corpos, porque a alma é um tipo sutil
Voz, mãos e razão, respondendo às carências e
de átomo e porque o pensamento é o contato material com as
necessidades dos homens, permitiram a invenção das artes ou
imagens da percepção que permanecem guardadas em nosso
técnicas. As técnicas, portanto, são consideradas por Demócrito
corpo, os atomistas são considerados os primeiros filósofos
não um dom dos deuses aos homens, mas descobertas humanas.
materialistas. Essa designação, porém, é incorreta e anacrônica
Os homens descobriram que não bastava rezar para conseguir
por dois motivos: em primeiro lugar, porque, até Sócrates e
frutos, mas era preciso lavrar a terra (descobriram a agricultura).
Platão, nenhum filósofo admitiu outra realidade senão a
Descobriram que não bastava rezar para conseguir abrigo, mas
corpórea (o lÒgoj de Heráclito, o Ser de Parmênides, o Amor-
era preciso construí-lo (inventaram a arquitetura). Que não
Ódio de Empédocles, o noàj de Anaxágoras são todos
bastava rezar aos deuses para curar as doenças, mas era preciso
corpóreos, ainda que sua corporeidade não seja igual à dos
conhecer suas causas e os modos de atuar sobre elas (criaram a
corpos que percebemos pelos sentidos); em segundo lugar, medicina). Que não bastava ter filhos para assegurar a
porque os atomistas foram os primeiros filósofos a afirmar a continuidade da vida, mas era preciso educá-los (inventaram a
existência do vazio e, portanto, de uma realidade (o espaço) não
pedagogia). Que não bastava viverem reunidos para haver
corporal ou imaterial.
sociedade, mas era preciso leis e instituições (inventaram a
Em geral, quando se diz que são materialistas, o que se política). Linguagem e técnicas são, assim, responsáveis pela
quer dizer é que não invocam nenhuma força externa aos átomos vida humana dos humanos. Embora atribuíssem aos deuses suas
(à matéria) para explicar a origem do movimento e do devir. Na
próprias invenções e criações, os humanos se fizeram humanos
verdade, a designação dos atomistas como materialistas é tardia.
por si mesmos e graças a si mesmos.
Foi usada como uma crítica aos “partidários dos átomos” por Foi proverbial na antiguidade o sorriso contínuo de
uma cultura que, pouco a pouco, dará maior peso, maior Demócrito.
importância e maior realidade ao espiritual, entendido como
algo diferente e superior ao corporal. Essa é, sem dúvida, a
razão pela qual Platão, contemporâneo de Demócrito, não o
AULA 7.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE I):

2. g…netai d ™k toà φrone‹n tr…a taàta· bouleÚesqai kalîj, lšgein ¢namart»twj kaˆ pr£ttein §
de‹.

Têm origem no saber estas três coisas: deliberar bem, falar sem erros e fazer o que é preciso.

D. d ™tumologîn tÕ Ônom£ [sc. Tritogšneia] φhsin, Óti ¢pÕ tÁj φron»sewj tr…a taàta
sumba…nei· tÕ eâ log…zesqai, tÕ eâ lšgein kaˆ tÕ pr£ttein § de‹.

Demócrito, porém, ao dar a etimologia da palavra [Tritogênia], diz que da sabedoria surgem estas três
coisas: o calcular bem, o falar bem e o fazer o que é preciso.

9. “nÒmwi” g£r φhsi “glukÚ, [kaˆ] nÒmwi pikrÒn, nÒmwi qermÒn, nÒmwi ψucrÒn, nÒmwi croi», ™teÁi d
¥toma kaˆ kenÒn” ... [136] “¹me‹j d tîi mn ™Ònti oÙdn ¢trekj sun…emen, metap‹pton d
kat£ te sèmatoj diaq»khn kaˆ tîn ™peisiÒntwn kaˆ tîn ¢ntisthrizÒntwn”.

Por convenção, (Demócrito) diz, existe o doce e por convenção o amargo, por convenção o quente, por
convenção o frio, por convenção a cor; na realidade, porém, átomos e vazio ... [136] Nós, porém,
realmente nada de preciso apreendemos, mas em mudança, segundo a disposição do corpo e das coisas
que nele penetram e chocam.

11. gnèmhj d dÚo e„sˆn „dšai, ¹ mn gnhs…h, ¹ d skot…h· kaˆ skot…hj mn t£de sÚmpanta, Ôψij,
¢ko», Ñdm», geàsij, ψaàsij. ¹ d gnhs…h, ¢pokekrimšnh d taÚthj. Ótan ¹ skot…h mhkšti
dÚnhtai m»te ÐrÁn ™p’ œlatton m»te ¢koÚein m»te Ñdm©sqai m»te geÚesqai m»te ™n tÁi
ψaÚsei a„sq£nesqai, ¢ll’ ™pˆ leptÒteron <dšhi zhte‹n, tÒte ™pig…netai ¹ gnhs…h ¤te Ôrganon
œcousa toà nîsai leptÒteron>.

Há duas formas de conhecimento, um genuíno, outro obscuro. Ao conhecimento obscuro pertencem,


no seu conjunto, vista, audição, olfato, paladar e tato. O conhecimento genuíno, porém, está separado
daquele. (...) Quando o obscuro não pode ver com maior minúcia, nem ouvir, nem sentir cheiro e
sabor, nem perceber pelo tato, mas é preciso procurar mais finamente, então apresenta-se o genuíno,
que possui um órgão de conhecimento mais fino. (...)

31. „atrik¾ mn g¦r kat¦ DhmÒkriton sèmatoj nÒsouj ¢kšetai, soφ…h d ψuc¾n paqîn ¢φaire‹tai.

Segundo Demócrito, a medicina cura as doenças do corpo, a sabedoria livra a alma das paixões.

33. ¹ φÚsij kaˆ ¹ didac¾ parapl»siÒn ™sti. kaˆ g¦r ¹ didac¾ metarusmo‹ tÕn ¥nqrwpon,
metarusmoàsa d φusiopoie‹.

A natureza e a instrução são algo semelhante, pois a instrução transforma o homem, mas,
transformando-o, cria-lhe a natureza.
AULA 8.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II):

35. gnwmšwn meu tînde e‡ tij ™paoi xÝn nÒwi, poll¦ mn ›rxei pr£gmat’ ¢ndrÕj ¢gaqoà
¥xia, poll¦ d φlaàra oÙc ›rxei.

Quem escutar de mim estas sentenças com inteligência, realizará muitos atos dignos de um
homem e não realizará muitos atos vis.

37. Ð t¦ ψucÁj ¢gaq¦ aƒreÒmenoj t¦ qeiÒtera aƒršetai· Ð d t¦ sk»neoj t¦ ¢nqrwp»ia.

Quem escolhe os bens da alma, escolhe os divinos; quem escolhe os do corpo, escolhe os
humanos.

39. ¢gaqÕn À enai creën À mime‹sqai.

É preciso ou ser bom ou imitar quem o é.

40. oÜte sèmasin oÜte cr»masin eÙdaimonoàsin ¥nqrwpoi, ¢ll’ ÑrqosÚnhi kaˆ
poluφrosÚnhi.

Não é pelo corpo, nem pela riqueza que os homens são felizes, mas pela retidão e muita
sabedoria.

41. m¾ di¦ φÒbon, ¢ll¦ di¦ tÕ dšon ¢pšcesqai ¡marthm£twn.

Não por medo, mas por dever, evitai os erros.

45. Ð ¢dikîn toà ¢dikoumšnou kakodaimonšsteroj.

Quem comete injustiça é mais infeliz que o que sofre injustiça.

50. Ð crhm£twn pantelîj ¼sswn oÙk ¥n pote e‡h d…kaioj.

Quem fosse totalmente submisso ao dinheiro jamais poderia ser justo.

51. „scurÒteroj ™j peiqë lÒgoj pollacÁi g…netai crusoà.

Para a persuasão a palavra freqüentemente é mais forte que o ouro.

52. tÕn o„Òmenon noàn œcein Ð nouqetšwn mataiopone‹.

Quem adverte aquele que pensa ser inteligente, trabalha em vão.

55. œrga kaˆ pr»xiaj ¢retÁj, oÙ lÒgouj, zhloàn creièn.

Obras e ações de virtude, não palavras, é preciso invejar.


AULA 9.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE III):

57. kthnšwn mn eÙgšneia ¹ toà sk»neoj eÙsqšneia, ¢nqrèpwn d ¹ toà ½qeoj eÙtrop…h.

A boa natureza dos animais é a força do corpo; a dos homens, a excelência do caráter.

59. oÜte tšcnh oÜte soφ…h ™φiktÒn, Àn m¾ m£qhi tij.

Nem arte, nem sabedoria é algo acessível, se não há aprendizado.

66. probouleÚesqai kre‹sson prÕ tîn pr£xewn À metanoe‹n.

Deliberar previamente antes de agir é melhor que arrepender-se.

69. ¢nqrèpoij p©si twÙtÕn ¢gaqÕn kaˆ ¢lhqšj· ¹dÝ d ¥llwi ¥llo.

Para todos, o belo e o verdadeiro são a mesma coisa, mas o agradável é diferente para cada um.

72. aƒ per… ti sφodraˆ Ñršxeij tuφloàsin e„j t«lla t¾n ψuc»n.

Desejar algo violentamente cega a alma para o restante.

78. cr»mata por…zein mn oÙk ¢cre‹on, ™x ¢dik…hj d p£ntwn k£kion.

Conseguir bens não é sem utilidade, mas, através da injustiça, é o pior de tudo.

79. calepÕn mime‹sqai mn toÝj kakoÚj, mhd ™qšlein d toÝj ¢gaqoÚj.

É triste imitar os maus e não querer imitar os bons.

80. a„scrÕn t¦ Ñqne‹a polupragmonšonta ¢gnoe‹n t¦ o„k»ia.

É vergonhoso ocupar-se muito das coisas alheias e ignorar as próprias.

81. tÕ ¢eˆ mšllein ¢telšaj poie‹ t¦j pr»xiaj.

O sempre adiar toma sem fim as ações.

82. k…bdhloi kaˆ ¢gaqoφanšej oƒ lÒgwi mn ¤panta, œrgwi d oÙdn œrdontej.

Falsos e bons na aparência os que de boca fazem tudo, mas nada na realidade.

84. ˜wutÕn prîton a„scÚnesqai creën tÕn a„scr¦ œrdonta.

É preciso que quem comete atos vergonhosos tenha em primeiro lugar vergonha de si mesmo.
AULA 10.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE IV):

91. m¾ Ûpoptoj prÕj ¤pantaj, ¢ll’ eÙlab¾j g…nou kaˆ ¢sφal»j.

Não sejas desconfiado com todos, mas cuidadoso e seguro.

92. c£ritaj dšcesqai creën proskopeuÒmenon kršssonaj aÙtîn ¢moib¦j ¢podoànai.

Deve-se receber favores com a intenção de corresponder com outros maiores.

94. mikraˆ c£ritej ™n kairîi mšgistai to‹j lamb£nousi.

Pequenos favores prestados no momento oportuno são os maiores para quem os recebe.

96. caristikÕj oÙc Ð blšpwn prÕj t¾n ¢moib»n, ¢ll’ Ð eâ dr©n prohirhmšnoj.

Benfeitor não é quem visa à retribuição, mas quem optou pela boa ação.

97. polloˆ dokšontej enai φ…loi oÙk e„s…, kaˆ oÙ dokšontej e„s…n.

Muitos, embora pareçam bons amigos, não são e, embora não pareçam, são.

98. ˜nÕj φil…h xunetoà kršsswn ¢xunštwn p£ntwn.

A amizade de um só homem inteligente é melhor que a de todos os tolos.

102. kalÕn ™n pantˆ tÕ son· Øperbol¾ d kaˆ œlleiψij oÜ moi dokšei.

Em tudo é belo o equilíbrio, mas não, parece-me, o excesso e a carência.

106. ™n eÙtuc…hi φ…lon eØre‹n eÜporon, ™n d dustuc…hi p£ntwn ¢porètaton.

Na fortuna, encontrar um amigo é fácil, mas, no infortúnio, é a coisa mais difícil.

107a. ¥xion ¢nqrèpouj Ôntaj ™p’ ¢nqrèpwn sumφora‹j m¾ gel©n, ¢ll’ ÑloφÚresqai.

É coisa digna, sendo homem, não rir dos infortúnios dos homens, mas chorá-los.

112. qe…ou noà tÕ ¢e… ti dialog…zesqai kalÒn.

É próprio de inteligência divina sempre discutir algo belo.

113. meg£la bl£ptousi toÝj ¢xunštouj oƒ ™painšontej.

Causam grandes prejuízos os que louvam os tolos.

129. φrenˆ qe‹a noàntai.

Com a mente pensam coisas divinas.

145. lÒgoj g¦r œrgou ski».

Pois a palavra é sombra da ação.


NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 11.

EXERCÍCIO:

Desenvolva uma redação, utilizando no mínimo quinze (15) linhas, com o seguinte tema:

“Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo”.

Ludwig Wittgenstein, Tratactus Lógico-Philosophicus, 5.6.


1.______________________________________________________________________________
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________________________________________________________________________________
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5.______________________________________________________________________________
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10._____________________________________________________________________________
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15._____________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
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20._____________________________________________________________________________
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AULA 12.
TÉCNICAS DE CORREÇÃO DE REDAÇÃO:
PONTUAÇÃO
I. CORRESPONDÊNCIA COM O TEMA PROPOSTO:
1. Não há nenhuma correspondência entre o texto e o tema proposto. 0
2. Abordagem superficial do tema. 0,5
3. Abordagem adequada do tema, com desenvolvimento ingênuo. 1,0
4. Abordagem adequada do tema, com bom desenvolvimento. 1,5
5. Abordagem adequada do tema, com ótimo desenvolvimento e contribuição pessoal. 2,0
II. CORRESPONDÊNCIA DO TEXTO COM A MODALIDADE REDACIONAL PEDIDA/ESCOLHIDA:
1. Não há nenhuma correspondência entre o tipo de texto produzido e a modalidade redacional solicitada/pedida. 0
2. Fuga parcial ao tipo de texto (alguns/graves problemas/mistura de modalidade textuais). 0,5
3. Atende ao tipo de texto, porém sem exploração de seus recursos. 1,0
4. Atende ao tipo de texto, com alguma exploração de seus recursos. 1,5
5. Apresenta bom/ótimo aproveitamento de todos os recursos do tipo de texto. 2,0
III. ADEQUAÇÃO À COLETÂNEA:
1. Há desprezo total aos fragmentos de texto oferecidos. 0
2. Utilização dos fragmentos, porém com transcrição literal de trechos. 0,5
3. Utilização dos fragmentos, mas com abordagem simplória/de aspectos secundários. 1,0
4. Utilização dos fragmentos, com correta interpretação dos dados neles apresentados. 1,5
5. Utilização dos fragmentos, com correta interpretação e aprofundamento da abordagem. 2,0
IV. COERÊNCIA:
1. Exposição totalmente desconexa de idéias e argumentos. 0
2. Exposição predominantemente desconexa de idéias e argumentos. 0,5
3. Pouca coerência interna: 1,0
A – Trechos obscuros/idéias contraditórias ou ambíguas.
B – Quebra de relação entre idéias.
C – Falhas de coesão.
4. Texto coerente, porém sem sofisticação das relações de sentido. 1,5
5. Exposição coerente de idéias e argumentos, com sofisticação das relações de sentido (enfoque inovador). 2,0
V. COESÃO:
1. Muitos/Graves problemas de coesão, impedindo a fluência da leitura. 0
2. Muitas falhas de encadeamento (repetição excessiva de itens, frases incompletas ou emendas, falta de paralelismo). 0,5
3. Não há deficiências graves, entretanto mantém o uso das conjunções mais conhecidas e utiliza poucos recursos pronominais.
Algum problema na estruturação frasal. 1,0
4. Bom uso dos elementos coesivos e transições adequadas entre as idéias. 1,5
5. Boa transição entre os parágrafos e recursos que beneficiam o texto. 2,0
VI. LINGUAGEM (DOMÍNIO DA LÍNGUA ESCRITA NA VARIEDADE PADRÃO):
1. Insuficiência vocabular e graves inadequações gramaticais. 0
2. Variedade vocabular deficiente, interferência de oralidade, inadequações gramaticais. 0,5
3. Variedade vocabular, entretanto há falha em propriedade vocabular e na adequação gramatical. 1,0
4. Adequação gramatical e vocabular. 1,5
5. Além de adequação gramatical, há variedade e propriedade vocabular, com uso pessoal do léxico. 2,0

A) Ortografia; B) Concordância; C) Acentuação; D) Pontuação; E) Adequação Pronominal; F) Regência; G) Adequação Verbal.


TOTAL
Obs.: ______
1. O item III só será avaliado se for obrigatória a utilização de fragmentos;
2. Pontuação zero em um dos primeiros itens implica em nota final zero.
AULA 13.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE V):

154. gelo‹oi d’ ‡swj ™smn ™pˆ tîi manq£nein t¦ zîia semnÚnontej, ïn Ð D. ¢poφa…nei maqht¦j ™n to‹j
meg…stoij gegonÒtaj ¹m©j· ¢r£cnhj ™n ØφantikÁi kaˆ ¢kestikÁi, celidÒnoj ™n o„kodom…ai, kaˆ tîn
ligurîn, kÚknou kaˆ ¢hdÒnoj, ™n çidÁi kat¦ m…mhsin.

Talvez sejamos ridículos quando nos vangloriamos de ensinar os animais. Deles, prova Demócrito, somos
discípulos nas coisas mais importantes: da aranha no tecer e remendar, da andorinha no construir casas, das aves
canoras, cisne e rouxinol no cantar, por meio da imitação.

174. Ð mn eÜqumoj e„j œrga ™piφerÒmenoj d…kaia kaˆ nÒmima kaˆ Ûpar kaˆ Ônar ca…rei te kaˆ œrrwtai kaˆ
¢nakhd»j ™stin· Öj d’ ¨n kaˆ d…khj ¢logÁi kaˆ t¦ cr¾ ™Ònta m¾ œrdhi, toÚtwi p£nta t¦ toiaàta
¢terpe…h, Ótan teu ¢namnhsqÁi, kaˆ dšdoike kaˆ ˜wutÕn kak…zei.

Quem de boa vontade se lança a obras justas e lícitas, dia e noite está alegre, seguro e despreocupado; mas, quem
não faz conta da justiça e não realiza o que é preciso, entedia-se com coisas tais, quando se lembra de alguma
delas, sente medo e atormenta-se a si mesmo.

175. oƒ d qeoˆ to‹si ¢nqrèpoisi didoàsi t¢gaq¦ p£nta kaˆ p£lai kaˆ nàn. pl¾n ÐkÒsa kak¦ kaˆ blaber¦
kaˆ ¢nwφelša, t£de d’ oÜ<te> p£lai oÜte nàn qeoˆ ¢nqrèpoisi dwroàntai, ¢ll’ aÙtoˆ to‹sdesin
™mpel£zousi di¦ noà tuφlÒthta kaˆ ¢gnwmosÚnhn.

Os deuses dão aos homens todos os bens, tanto antigamente quanto agora. Apenas as coisas quantas são más,
prejudiciais e inúteis, os deuses não dão aos homens nem antigamente, nem agora, mas são eles próprios que as
procuram por cegueira da mente e insensatez.

177. oÜte lÒgoj ™sqlÕj φaÚlhn prÁxin ¢maur…skei oÜte prÁxij ¢gaq¾ lÒgou blasφhm…hi luma…netai.

Um discurso nobre não encobre uma ação má, nem uma ação boa é enxovalhada por uma calúnia.

178. p£ntwn k£kiston ¹ eÙpete…h paideàsai t¾n neÒthta· aÛth g£r ™stin ¿ t…ktei t¦j ¹don¦j taÚtaj, ™x ïn ¹
kakÒthj g…netai.

O pior de todos os males é a leviandade no educar a juventude, pois é ela que gera aqueles prazeres de que nasce
a perversidade.

179. ™xwtikîj m¾ pone‹n pa‹dej ¢nišntej oÜte gr£mmat’ ¨n m£qoien oÜte mousik¾n oÜte ¢gwn…hn oÙd’ Óper
m£lista t¾n ¢ret¾n sunšcei, tÕ a„de‹sqai· m£la g¦r ™k toÚtwn φile‹ g…gnesqai ¹ a„dèj.

Se as crianças tivessem liberdade de não trabalhar, nem as letras aprenderiam, nem a música, nem as lutas, nem
o sentimento de honra que é a principal condição para a virtude, pois é sobretudo desses estudos que costuma
nascer o sentimento de honra.

186. ÐmoφrosÚnh φil…hn poie‹.

Acordo no pensar engendra amizade.

187. ¢nqrèpoij ¡rmÒdion ψucÁj m©llon À sèmatoj lÒgon poie‹sqai· ψucÁj mn g¦r teleÒthj sk»neoj
mocqhr…hn Ñrqo‹, sk»neoj d „scÝj ¥neu logismoà ψuc¾n oÙdšn ti ¢me…nw t…qhsin.

Para os homens é mais acertado dar valor à alma que ao corpo, pois, se a perfeição da alma corrige a maldade do
corpo, a força do corpo, sem inteligência, em nada faz melhor a alma.
AULA 14.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VI):

189. ¥riston ¢nqrèpwi tÕn b…on di£gein æj ple‹sta eÙqumhqšnti kaˆ ™l£cista ¢nihqšnti. toàto d’ ¨n e‡h, e‡
tij m¾ ™pˆ to‹j qnhto‹si t¦j ¹don¦j poio‹to.

O melhor para o homem é levar a vida com o máximo de ânimo e o mínimo de desânimo. Isso aconteceria, se
não se baseassem os prazeres nas coisas mortais.

190. φaÚlwn œrgwn kaˆ toÝj lÒgouj paraithtšon.

De obras vis deve-se afastar também as palavras.

194. aƒ meg£lai tšrψeij ¢pÕ toà qe©sqai t¦ kal¦ tîn œrgwn g…nontai.

Os grandes prazeres nascem do contemplar as belas obras.

195. e‡dwla ™sqÁti kaˆ kÒsmwi diaprepša prÕj qewr…hn, ¢ll¦ kard…hj kene£.

Imagens belas de se ver pelas vestes e adornos, mas vazias de coração.

200. ¢no»monej bioàsin oÙ terpÒmenoi biotÁi.

Insensatos vivem sem tirar prazer da vida.

207. ¹don¾n oÙ p©san, ¢ll¦ t¾n ™pˆ tîi kalîi aƒre‹sqai creèn.

Não todo prazer, mas o que está no belo é preciso escolher.

211. swφrosÚnh t¦ terpn¦ ¢šxei kaˆ ¹don¾n ™pime…zona poie‹.

O comedimento multiplica as alegrias e faz maior o prazer.

213. ¢ndre…h t¦j ¥taj mikr¦j œrdei.

A coragem faz pequenos os golpes do destino.

214. ¢ndre‹oj oÙc Ð tîn polem…wn mÒnon, ¢ll¦ kaˆ Ð tîn ¹donîn kršsswn. œnioi d pol…wn mn despÒzousi,
gunaixˆ d douleÚousin.

Corajoso não é apenas quem supera os inimigos, mas quem supera também os prazeres. Alguns são senhores nas
cidades, mas são escravos de mulheres.

223. ïn tÕ skÁnoj cr»izei, p©si p£restin eÙmaršwj ¥ter mÒcqou kaˆ talaipwr…hj· ÐkÒsa d mÒcqou kaˆ
talaipwr…hj cr»izei kaˆ b…on ¢lgÚnei, toÚtwn oÙk ƒme…retai tÕ skÁnoj, ¢ll’ ¹ tÁj gnèmhj kakoqig…h.

As coisas de que o corpo precisa estão à disposição de todos facilmente, sem pena e sofrimento; tudo quanto
precisa de pena e sofrimento e torna dolorosa a vida não é o corpo que deseja, mas a má constituição do
pensamento.

225. ¢lhqomuqšein creèn, oÙ polulogšein.

É preciso falar a verdade; não, falar muito.


NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 15.

EXERCÍCIOS:
1. Copie as letras maiúsculas e minúsculas do alfabeto grego, em ordem. Dê o nome de cada uma
das letras e indique qual a sua correspondente no nosso abecedário.
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2. O que o poema “A cana dos outros” de João Cabral de Melo Neto, da maneira como constrói a
linguagem, expressa por si mesmo? Pode-se notar alguma relação entre este poema e vida das
pessoas em geral? Justifique sua resposta.
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AULA 16.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VII):

231. eÙgnèmwn Ð m¾ lupeÒmenoj ™φ’ oŒsin oÙk œcei, ¢ll¦ ca…rwn ™φ’ oŒsin œcei.

Sensato é quem não sofre pelo que não tem, mas se alegra pelo que tem.

241. pÒnoj sunec¾j ™laφrÒteroj ˜autoà sunhqe…hi g…netai.

O trabalho continuado torna-se mais leve com o hábito.

242. plšonej ™x ¢sk»sioj ¢gaqoˆ g…nontai À ¢pÕ φÚsioj.

Mais numerosos são os que vêm a ser bons pelo exercício do que pela natureza.

244. φaàlon, k¨n mÒnoj Ãij, m»te lšxhij m»t’ ™rg£shi· m£qe d polÝ m©llon tîn ¥llwn seautÕn
a„scÚnesqai.

Nada de vil, mesmo que estejas sozinho, fales ou faças. Aprende a respeitar mais a ti que aos outros.

247. ¢ndrˆ soφîi p©sa gÁ bat»· ψucÁj g¦r ¢gaqÁj patrˆj Ð xÚmpaj kÒsmoj.

Para o homem sábio toda a terra é acessível, pois o mundo inteiro é pátria da alma boa.

256. d…kh mšn ™stin œrdein t¦ cr¾ ™Ònta, ¢dik…h d m¾ œrdein t¦ cr¾ ™Ònta, ¢ll¦ paratršpesqai.

Justiça é fazer o que é preciso; injustiça, não fazer o que é preciso, mas deixá-lo de lado.

267. φÚsei tÕ ¥rcein o„k»íon tîi kršssoni.

Por natureza o governar pertence ao mais forte.

272. æj gambroà Ð mn ™pitucën eáren uƒÒn, Ð d ¢potucën ¢pèlese kaˆ qugatšra.

Quem teve sorte com o genro, encontrou um filho; quem não a teve, perdeu também uma filha.

284. Àn m¾ pollîn ™piqumšhij, t¦ Ñl…ga toi poll¦ dÒxei· smikr¦ g¦r Ôrexij pen…hn „sosqenša ploÚtwi
poišei.

Se não cobiçares muitas coisas, as poucas julgarás muitas, pois o pequeno apetite faz a pobreza equivalente
à riqueza.

291. pen…hn ™pieikšwj φšrein swφronšontoj.

Suportar com brandura a pobreza é próprio do homem sensato.

295. Ð gšrwn nšoj ™gšneto, Ð d nšoj ¥dhlon e„ ™j gÁraj ¢φ…xetai· tÕ tšleion oân ¢gaqÕn toà mšllontoj
œti kaˆ ¢d»lou kršsson.

O velho foi jovem, mas, quanto ao jovem, é incerto se ele chegará à velhice. Portanto, o bem realizado vale
mais que o que está ainda por vir e é incerto.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 17.

EXERCÍCIOS:

1. Translitere as seguintes palavras do grego para o português:


aporia :_________________________________________________________________________
gunh :__________________________________________________________________________
didaskaloj :____________________________________________________________________
dunamij :________________________________________________________________________
exaiφnhj :_______________________________________________________________________
eurhka :________________________________________________________________________
keφalh :________________________________________________________________________
megaj :__________________________________________________________________________
nouj :___________________________________________________________________________
praxij :_________________________________________________________________________

2. Transliterar as seguintes palavras do português para o grego:

politikos :________________________________________________________________________
sófrón :__________________________________________________________________________
Apóllón :________________________________________________________________________
psyché :_________________________________________________________________________
kalos :___________________________________________________________________________
xenos :__________________________________________________________________________
mythos :_________________________________________________________________________
niké :___________________________________________________________________________

3. A partir dos fragmentos de Demócrito de Abdera vistos em aula, escolha e copie cinco (5)
fragmentos e responda o por quê de sua escolha.

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AULA 18.

PARA QUE FILOSOFIA?

Ora, muitos fazem esta pergunta: afinal, para Verdade, pensamento, procedimentos
que filosofia? especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e
É uma pergunta interessante. Não vemos nem prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é
ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que ciência, são questões filosóficas. O cientista parte
matemática ou física, para que geografia ou geologia, delas como questões já respondidas, mas é a filosofia
para que história ou sociologia, para que biologia ou que formula e busca respostas para elas.
psicologia, para que astronomia ou química, para que Assim, o trabalho das ciências pressupõe,
pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo como condição, o trabalho da filosofia, mesmo que o
“acha” muito natural perguntar: para que filosofia? cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os
Em geral, essa pergunta costuma receber uma cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum
resposta irônica, conhecida dos estudantes de filosofia: continua afirmando que a filosofia não serve para nada.
“a filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o Para dar alguma utilidade à filosofia, muitos
mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a filosofia não consideram que, de fato, a filosofia não serviria para
serve para nada. Por isso, costuma-se chamar de nada se “servir” fosse entendido como a possibilidade
“filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no de fazer usos teóricos dos produtos filosóficos ou dar-
mundo da Lua, pensando e dizendo coisas que lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles;
ninguém entende e que são perfeitamente inúteis. consideram também que a filosofia nada teria a ver
Essa pergunta: “para que filosofia?”, tem a sua com a ciência e a técnica.
razão de ser. Para quem pensa dessa forma, o principal para
Em nossa cultura e em nossa sociedade, a filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por
costumamos considerar que alguma coisa só tem o conta da ciência) nem as aplicações de teorias (que
direito de existir se tiver alguma finalidade prática, ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento
muito visível e de utilidade imediata. moral e ético. A filosofia seria a arte do bem-viver.
Por isso, ninguém pergunta para que as Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade
ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão
ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação para impor limites aos nossos desejos e paixões,
científica à realidade. ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na
Todo mundo também imagina ver a utilidade companhia dos outros seres humanos, a filosofia teria
das artes, tanto por causa da compra e venda das obras como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o
de arte quanto porque nossa cultura vê os artistas como princípio do bem-viver.
gênios que merecem ser valorizados para o elogio da Essa definição da filosofia, porém, não nos
humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral
serviria a filosofia, donde dizer-se: não serve para ou ética, ou uma arte do bem-viver, a filosofia continua
nada. fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas:
Parece, porém, que o senso comum não o que é o homem?; o que é a vontade?; o que é a
percebe algo que os cientistas sabem muito bem. As paixão?; o que é a razão?; o que é o vício?; o que é a
ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, virtude?; o que é a liberdade?; como nos tornamos
obtidos graças a procedimentos rigorosos de livres, racionais e virtuosos?; por que a liberdade e a
pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através virtude são valores para os seres humanos?; o que é um
de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer valor?; por que avaliamos os sentimentos e ações
progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e humanas?
aumentando-os. Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da
Ora, todas essas pretensões das ciências filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o
pressupõem que elas acreditam na existência da conhecimento da nossa capacidade para conhecer,
verdade, de procedimentos corretos para bem usar o mesmo se disséssemos que o objeto da filosofia é
pensamento, na tecnologia como aplicação prática de apenas a vida moral ou ética, ainda assim o estilo
teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os
podem ser corrigidos e aperfeiçoados. mesmos, pois as perguntas filosóficas  o que, por
que e como  permanecem.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 19.
EXERCÍCIOS:

1. O que é o mito?
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2. Quem narra o mito? E por quê?


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3. Qual a diferença entre mito e filosofia?


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4. Tem sentido perguntar: para que filosofia? Por que a filosofia é diferente dos outros tipos de
conhecimento e de ações? Justifique sua resposta.
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CURSO DE FILOSOFIA

 PRIMEIRO ANO 
 Segundo Bimestre 

AULA 20.

TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE I)


No livro VI da República, Platão (427-347 a.C.) faz uma nÒhsij; ™pist»mh: intuição intelectual ou ciência intuitiva;
exposição de sua teoria do conhecimento, demonstrando a separação e edoj ou idéia.
diferença entre o sensível e o inteligível, cada qual com seus modos de di£noia: raciocínio ou pensamento discursivo; matemática.
conhecer hierarquicamente distribuídos. Os modos ou graus de p…stij ou dÒxa: crença e opinião; coisas/objetos sensíveis.
conhecimento agora vão sendo separados uns pelos outros, num e„kas…a: imagens das coisas sensíveis, cópias.
caminho ascendente ou ascencional. O PRIMEIRO GRAU é o simulacro ou a simulação, a e„kas…a,
Platão apresenta os modos ou graus de conhecimento palavra da mesma raiz de e„kÒj (imagem, ícone), indicando aquelas
distribuídos em um diagrama dividido em duas partes desiguais, isto é, coisas que são apreendidas numa percepção de segunda mão, isto é, são
uma delas é maior do que a outra. A parte dita inferior é chamada de “o as cópias ou as imagens de uma coisa sensível, como os reflexos no
visível” (corresponde ao mundo sensível) e é menor do que a parte dita espelho ou na água, as narrativas dos poetas, as pinturas, as esculturas e
superior, chamada de “invisível” (corresponde ao mundo inteligível). A as imagens na memória. Esse primeiro nível ou modo de conhecer
primeira parte é o mundo físico e ético percebido por intermédio da costuma ser chamado pelos comentadores de imaginação, entendida
aparência sensível das coisas; a segunda parte é o mundo das idéias como conhecimento por imagens, as quais são cópias da coisa sensível.
puras, apreendido exclusivamente pelo pensamento. Assim, a cada modo Assim, a poesia, a pintura, a escultura, a retórica pertencem a esse nível
ou grau de conhecimento corresponderá um tipo de objeto ou de coisa, mais baixo do conhecimento porque nos oferecem uma imagem da coisa
de tal maneira que, em cada um deles, o filósofo nos mostra qual é a sensível e não a própria percepção da coisa sensível. A e„kas…a é uma
ação cognitiva realizada pelo corpo e pela alma (ou só pela alma, nos conjetura feita a partir dos reflexos e das cópias das coisas sensíveis.
modos ou graus superiores) e quais são os objetos correspondentes a e„kas…a: representação, imagem, conjetura, comparação. O
cada uma dessas atividades cognitivas. verbo e„k£zw significa: representar, desenhar os traços, retratar, pintar a
O inteligível tem uma extensão muito maior do que o imagem, comparar uma coisa com outra semelhante, conjeturar sobre
sensível, ou seja, a separação platônica das duas esferas de uma coisa a partir de outra. O verbo e‡kw significa: ser semelhante,
conhecimento e de realidade introduz uma diferença de extensão entre assemelhar, parecer, ter o ar de. Da mesma raiz vem e‡koj: ícone,
elas, o que pode ser visto se usarmos uma figura proposta por Platão e imagem (retrato, pintura, escultura), imagem refletida no espelho,
conhecida com o nome de “símile/imagem da linha”: simulacro, fantasma. Para Platão, as coisas sensíveis são como o e‡koj e
por isso o grau mais baixo do conhecimento é a e„kas…a.
A_________________G__________________________________B O SEGUNDO GRAU é a p…stij (crença) ou a dÒxa (opinião),
SENSÍVEL INTELIGÍVEL isto é, a confiança ou fé que depositamos na sensação e na percepção ou
a opinião que formamos a partir das sensações e do que ouvimos dizer.
AB = TOTALIDADE DA REALIDADE É um conhecimento necessário para o uso da vida cotidiana, tendo por
AG = SENSÍVEL objeto as coisas naturais, os seres vivos, os artefatos, etc.. É a opinião
GB = INTELIGÍVEL acreditada sem verificação; conhecimento que não foi demonstrado nem
provado, mas passivamente aceito por nós pelo testemunho de nossos
Agora, devemos incluir uma divisão em cada um dos mundos, sentidos, por nossos hábitos e também pelos costumes nos quais fomos
correspondente a diferentes modos de conhecimento de cada um deles: educados. É uma crença que se conserva enquanto funcionar na prática
da vida cotidiana ou enquanto uma outra, mais forte, não a contradisser
A_____D___________G__________E_______________________B ou a puser em dúvida. Varia de pessoa para pessoa, de sociedade para
IMAGEM OPINIÃO RACIOCÍNIO INTUIÇÃO INTELECTUAL sociedade, de época para época. É subjetiva tanto porque depende das
condições de nosso corpo e de nossa alma durante as sensações como
Platão estabelece uma proporção entre esses quatro modos de também porque é adquirida por costume ou por convenção, podendo
conhecimento, segundo a extensão de cada um deles, ou seja, a extensão mudar se mudarem os costumes e as convenções.
da imagem é menor do que a da opinião, no mundo sensível, de tal p…stij: fé, confiança em alguém, dar crédito, ter por
maneira que a imagem está para a opinião assim como o raciocínio está verdadeiro em virtude da fé, crença ou confiança; meio de inspirar
para a intuição intelectual: confiança ou fé.
dÒxa: opinião, crença, reputação (isto é, boa ou má opinião
AD/DG = GE/EB sobre alguém), suposição, conjetura. Esta palavra possui dois sentidos
diferentes por ser usada em dois contextos diferentes: o contexto
Platão designa o conhecimento por imagens com o termo e„kas…a; político, no qual foi usada inicialmente, e o contexto filosófico, a partir
e por opinião, p…stij e dÒxa. Designa o conhecimento por raciocínios de Parmênides e Platão. Deriva-se do verbo dokšw, que significa: 1)
dedutivos ou demonstrativos, isto é, o pensamento discursivo, com o tomar o partido que se julga mais adequado para uma situação; 2)
termo di£noia; e a intuição intelectual, nÒhsij. Assim, AD é a e„kas…a; conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo; 3) escolher, decidir,
DG é a p…stij/dÒxa; GE é a di£noia; e EB é a nÒhsij. deliberar e julgar segundo os dados oferecidos pela situação e segundo a
O símile da linha também costuma ser representado por regra ou norma estabelecida pelo grupo. Era este o seu sentido na
diagrama, no qual se vê a distância entre cada um dos modos de assembléia dos guerreiros que deu origem à assembléia política, na
conhecimento e os objetos correspondentes a cada um deles, notando-se democracia. Como a escolha e decisão se davam a partir do que era
que a extensão do inteligível é maior do que a do sensível e que a percebido, dito e convencionado pelo grupo, dÒxa ganha também o
distância entre a dÒxa e a di£noia é maior do que entre a e„kas…a e a sentido de uma modalidade de conhecimento e, agora, articula-se ao
dÒxa e do que entre a di£noia e a nÒhsij. A distância entre a dÒxa e a verbo dox£zw, que significa: ter uma opinião sobre algumas coisas, crer,
di£noia é menor do que entre a di£noia e a nÒhsij porque o conjeturar, supor, imaginar, adotar opiniões comumente admitidas. É
conhecimento por raciocínio ainda opera com dados provenientes da neste segundo sentido que dÒxa pode ter o sentido pejorativo de
sensação e da opinião: conhecimento falso, preconceito, conjetura sem fundamento, sem
convenção, arbitrária.
AULA 21.

TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE II)

O TERCEIRO GRAU é a di£noia, palavra composta de O QUARTO GRAU ou quarto modo é a ™pist»mh
di£, divisão, separação, distinção, e no…a, vinda do verbo nošw, (ciência, isto é, saber verdadeiro), palavra da mesma família do
compreender pelo pensamento. É o raciocínio, que separa e verbo ™pist£mai que significa saber, pensar, conhecer, no
distingue argumentos ou razões para realizar dedução ou sentido de algo adquirido e possuído (ter um saber, ter um
demonstração; é o raciocínio discursivo ou aquele que opera por conhecimento). Mas o quarto modo é também nÒhsij (ação de
etapas sucessivas de arranjo e disposição de argumentos para conceber uma coisa pela inteligência ou pelo intelecto, ato
chegar a uma conclusão justificada. A di£noia é o intelectual de conhecimento), palavra que, como no…a e noàj, é
conhecimento dos objetos matemáticos (aritmética, geometria, derivada do verbo nošw (compreender pelo pensamento,
estereometria, música ou harmonia, astronomia, tudo quanto se inteligir). Esse nível, o mais alto, é o que conhece a essência,
refere a estruturas proporcionais estáveis e conhecidas pela designada por Platão com a palavra edoj, a forma inteligível, a
razão). As matemáticas surgem, assim, como um tipo de idéia, a verdade incondicionada. A dialética é o movimento que
conhecimento que nos permite passar da aparência das coisas permite à alma, subindo de hipótese em hipótese, chegar ao não-
(imagens e crença-opinião) a um primeiro contato da hipotético, isto é, ao não-condicionado por outra coisa, ao que é
inteligência com a essência delas. Mas ainda não são o modo verdadeiro em si e por si mesmo, à idéia como princípio de
superior de conhecimento ou filosofia. Duas de suas realidade e de conhecimento. Pela força do diálogo, diz Platão, o
características principais explicam por que não são elas o ponto raciocínio puro toma as hipóteses como tais e não como se
mais alto do conhecimento. Em primeiro lugar, o matemático fossem princípios, isto é, toma as hipóteses como pontos de
precisa representar ou ilustrar sensivelmente seu objeto por meio apoio para elevar-se gradualmente ao não-hipotético, aos
de linhas, pontos, traços, superfícies, volumes e diagramas; princípios puros. Aqui, o pensamento alcança exclusivamente
embora seu objeto seja puramente ideal e não material, para naturezas essenciais, formas inteligíveis, indo de umas a outras
compreendê-lo o matemático ainda precisa recorrer a sem nunca recorrer ao raciocínio hipotético, nem recair na
representações sensíveis ou a imagens. Em segundo, cada ramo opinião ou no simulacro. A nÒhsij é a intuição ou visão
das matemáticas começa pela admissão de princípios não intelectual de uma idéia intelectual ou das várias nÒhsij. Nela, o
questionados nem demonstrados, isto é, axiomas, postulados e pensamento, contemplando diretamente as formas ou idéias,
definições, cuja verdade é assumida sem que sua causa seja conhece a causa ou a razão dos próprios conhecimentos, pois
conhecida. Os matemáticos partem de certas afirmações ou alcança seus princípios.
suposições que funcionam como princípios indemonstráveis de
suas demonstrações (par, ímpar, ângulo, ponto, linha, ™pist»mh: ciência, conhecimento teórico das coisas por
comprimento, largura, altura, volume, figura, “o todo é maior meio de raciocínios, provas e demonstrações; conhecimento teórico
que as partes”, “a linha é constituída por pontos”, “a reta é a por meio de conceitos necessários (isto é, daquilo que é impossível
menor distância entre dois pontos”, “o triângulo tem três lados”, que seja diferente do que é; o que não pode ser de outra maneira, ser
“no círculo as extremidades são eqüidistantes do centro”, etc.). diferente do que é) e universais (isto é, válidos para todos em todos
os tempos e lugares). Opõe-se à ™mpeir…a (experiência). O verbo
Em outras palavras, a di£noia é o pensamento que opera
™p…stamai, da mesma família de ™pist»mh, significa: saber, ser
hipoteticamente, por raciocínios que concluem de modo correto
apto ou capaz, ser versado em (portanto, inicialmente, este verbo
e verdadeiro a partir de definições e de premissas não não distinguia nem separava ™pist»mh e ™mpeir…a, mas referia-se a
demonstradas, isto é, de hipóteses (é o conhecimento que, todo conhecimento obtido pela prática ou pela inteligência, referia-
séculos mais tarde, será denominado hipotético-dedutivo). No se à habilidade). A seguir, passa a significar: conhecer pelo
entanto, as matemáticas têm lugar proeminente na teoria dos pensamento, ter um conhecimento por raciocínio e, com Aristóteles,
graus do conhecimento por várias razões. Antes de mais nada, passa a significar investigar cientificamente.
porque embora representem sensorialmente números, figuras e noàj: faculdade de pensar, inteligência, espírito,
operações, os matemáticos sabem que as imagens empregadas pensamento, intelecto, reflexão, intenção racional, maneira de ver
não são os próprios objetos matemáticos conhecidos pelo pelo pensamento, sentido racional de um discurso. O verbo nošw
pensamento  distinguem, portanto, sensação e inteligência. significa: colocar no espírito, refletir, compreender, meditar; ter
Além disso, os objetos matemáticos, ao contrário das coisas bom senso ou razão; ter um sentido ou uma significação. O
sensíveis e de seus simulacros, não estão submetidos ao fluxo do substantivo nÒhma significa: fonte do pensamento ou inteligência,
devir ou ao movimento, mas permanecem idênticos a si mesmos reflexão, projeto, desígnio. O substantivo nÒhsij significa: ação de
e não toleram a contradição  as matemáticas, portanto, colocar no espírito, concepção, inteligência ou compreensão de
ensinam a exigência intelectual ou lógica da identidade, da não- alguma coisa, faculdade de pensar, espírito. Opõe-se a a‡sqhsij,
contradição e da concordância do pensamento consigo mesmo. conhecimento através dos sentidos, sensibilidade. Anaxágoras
designa como noàj o ser inteligente que põe a natureza em
Eis por que Platão as considera “ciências despertadoras” ou o
movimento e faz existir o kÒsmoj. Com Platão e Aristóteles noàj,
passo decisivo para superar os graus inferiores do conhecimento
nÒhsij, nÒhma indicam o intelecto e a atividade intelectual; nÒhsij
e alcançar o grau mais alto. significa a intuição intelectual, o conhecimento direto e imediato da
di£noia/dianÒhsij: raciocínio, pensamento que opera verdade de uma essência ou de um princípio.
por inferência ou por etapas até chegar à conclusão verdadeira; edoj: inicialmente, na linguagem comum dos gregos,
raciocínio dedutivo e/ou indutivo. É o conhecimento discursivo ou significava aspecto exterior e visível de uma coisa: a forma de um
racional como atividade da inteligência na ciência, diferente da corpo, a fisionomia de uma pessoa. A seguir, na linguagem
intuição direta e imediata das idéias. Faculdade de pensar como filosófica (com Platão), passa a significar a forma imaterial de uma
reflexão, meditação, disposição atenta da inteligência, raciocínio. coisa, a forma conhecida apenas pelo intelecto ou pelo espírito, a
idéia ou a essência puramente inteligível de uma coisa. Significa
também a forma própria de uma coisa que a distingue de todas as
outras.
AULA 22.

TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE III)

Platão estabeleceu uma correspondência participa da natureza do objeto conhecido e que


total entre o modo de conhecer, isto é, a operação pode conhecê-lo porque é de mesma natureza que
realizada pela alma, e a natureza do objeto ele. Em outras palavras, nos pré-socráticos e no
conhecido: na e„kas…a, a atividade cognitiva é a Sócrates dos diálogos de juventude, a identidade de
percepção indireta de alguma coisa e o objeto natureza entre aquele que conhece e aquilo que ele
conhecido é uma sombra, um reflexo, uma imagem conhece estava pressuposta, mas em Platão essa
deformada e ilusória da coisa sensível; na p…stij ou identidade é demonstrada: graças à distinção inicial
dÒxa, a atividade cognitiva é a sensação e o ouvir entre atividade cognitiva e objeto conhecido,
dizer e o objeto conhecido é a coisa sensível demonstra-se que aquele que conhece e o conhecido
percebida ou ouvida; na di£noia, a atividade por ele são de mesma natureza (tudo – quem
cognitiva é o raciocínio discursivo e o objeto conhece e o que é conhecido – é sensível, na
conhecido é uma idealidade, mas que ainda precisa e„kas…a, na p…stij e na dÒxa; uma parte é sensível
de representação imagética e do movimento e outra é inteligível, na di£noia; tudo é inteligível
sucessivo do raciocínio ou da dedução; na nÒhsij, a na nÒhsij ou ™pist»mh). Essa participação da alma
atividade cognitiva é a intuição direta e o objeto na natureza da coisa conhecida é o que, no
conhecido é a idéia pura, a forma inteligível Banquete, recebe o nome de “Eros” ou amor, e por
apreendida diretamente pela inteligência, bem como isso ali é feita a distinção entre dois amores, o amor
as relações entre idéias. Esse último grau de pelo perecível e o amor pela forma boa-bela.
conhecimento encontra a causa ou a razão da Na República, Platão também vai enfatizar o
existência e da verdade do objeto conhecido e por caráter dinâmico do conhecimento, sublinhando o
isso nele a alma alcança a ™pist»mh. É nessa movimento de passagem de um grau de
correspondência entre a atividade cognitiva e a coisa conhecimento para outro. Mas, como é possível a
conhecida que, na Carta Sétima, Platão chamara de passagem? Por meio da dialética. A tarefa desta é
afinidade da alma com o conhecido. Em outras fazer com que, graças à descoberta das contradições
palavras, graças à distinção inicial entre as encontradas num grau de conhecimento inferior, se
atividades da alma e as coisas conhecidas por ela, possa passar para o seguinte (passar da e„kas…a para
Platão pôde, a seguir, demonstrar aquilo que os pré- a p…stij ou dÒxa e desta para a di£noia). No caso
socráticos simplesmente admitiam sem saber por dos graus superiores, a tarefa da dialética é fazer a
quê: a alma e o conhecimento são de mesma alma passar de hipótese em hipótese (di£noia) até a
natureza. visão intelectual (nÒhsij) do não-hipotético e
Quando a alma conhece por meio do corpo – incondicionado, o edoj. Por ser passagem, a
no primeiro e segundo graus do conhecimento – a dialética é a educação da inteligência, uma
coisa conhecida também é corporal; quando a alma pedagogia (paide…a) do espírito que o prepara para
conhece deduzindo uma coisa de outra – nas contemplar o ser ou a Verdade. Para prepará-lo para
matemáticas ou na di£noia – a coisa conhecida essa contemplação, a pedagogia platônica educa por
também é constituída de partes ou de elementos que meio das matemáticas: pela aritmética, ciência do
precisam ser agrupados, reunidos, distinguidos cálculo que introduz homogeneidade e estabilidade
(lados, ângulos, dimensões, pontos, linhas retas, nas coisas, corrigindo as aparências sensoriais; pela
linhas curvas, par, ímpar, limitado, ilimitado, geometria, ciência dos entes imutáveis; pela
relações proporcionais, derivação de uma coisa astronomia, ciência dos sólidos no espaço ordenado
geométrica a partir de outras, etc.); quando a alma e perfeito (os céus realizam o movimento mais
conhece por si mesma, como inteligência pura ou próximo da imobilidade, ou seja, o movimento
intuição intelectual pura, o objeto é a pura idéia ou a circular, eterno, sem começo e sem fim); a música,
pura forma, uma unidade perfeita que não pode ser ciência da harmonia ou da medida como proporção
decomposta em partes e que não é conhecida por rigorosa. As matemáticas, portanto, ciências da
distinção e reunião de partes, e sim em sua ordem, medida e proporção inteligíveis, educam o
integridade perfeita. Essa correspondência entre a intelecto para desligar-se da multiplicidade móvel
natureza do objeto, a operação de conhecimento e a das imagens, percepções e opiniões sensíveis.
alma é o que leva Platão a afirmar que a alma
AULA 23.

TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE IV)

A dialética é uma técnica cujas principais características podem ser assim resumidas:
1. é a arte de conduzir uma discussão (isto é, um lÒgoj dividido em d…ssoi lÒgoi) para captar as
contradições e os desvios que perturbam o caminho de chegada a uma definição coerente e universal de uma
coisa tomada em si mesma; ou seja, é um processo de depuração da linguagem e do pensamento;
2. é o método filosófico-científico para desenvolver o conhecimento por meio de perguntas e
respostas; isto é, para buscar aquilo que não se sabe;
3. é o método para que a alma racional consiga apreender intelectual e conceitualmente uma
realidade, captando sua essência ou forma ou idéia;
4. é o método pelo qual a razão ou o pensamento, superando a divisão dos d…ssoi lÒgoi, entra em
contato direto e imediato com seu objeto, alcança o lÒgoj, isto é, o ser inteligível ou a forma real do objeto,
o edoj;
5. é uma atividade que se realiza em duas etapas: a primeira, inferior, opera com as contradições das
opiniões e crenças, isto é, com a multiplicidade sensível móvel e dispersa; a segunda, superior ou verdadeira
dialética, opera ultrapassando demonstrações baseadas em hipóteses, isto é, a multiplicidade ordenada e
sistematizada pelas matemáticas, para alcançar o incondicionado, a unidade da forma inteligível;
6. difere das matemáticas porque estas, além de operar hipotética e dedutivamente, operam com
relações entre elementos ou entre partes, enquanto a dialética superior alcança a essência mesma da coisa em
sua unidade e integridade indecomponíveis (a bondade, a beleza, a justiça, a virtude, o amor, em si mesmos);
7. como verdadeira dialética ou dialética superior, é uma atividade que somente pode ser exercitada
por aqueles que conhecem as matemáticas, pois seu ponto de partida são as hipóteses ou proposições
matemáticas. Isso não significa que os objetos ou idéias da dialética superior sejam os mesmos que os das
matemáticas e sim que somente quem aprendeu a pensar matematicamente está preparado para pensar
dialeticamente. As matemáticas são o treino intelectual para a dialética superior. Em outras palavras,
somente quem aprendeu a pensar por meio de axiomas, postulados, definições, teoremas, problemas e
deduções rigorosas está preparado para a dialética superior;
8. sobretudo, a dialética é a técnica perfeita da alma, comparável à medicina para o corpo. Uma
técnica, por sua vez, é um saber especializado capaz de concretizar algo que existia apenas potencialmente
numa coisa qualquer (é atualizar a dÚnamij) e na mente de alguém (é fazer passar à obra o que estava no
espírito do técnico), e é a passagem de um estado de privação a um outro de aquisição de uma qualidade
conforme à natureza da coisa. Assim como a medicina é a técnica que concretiza a possibilidade de saúde
para um corpo doente, fazendo-o passar da privação de saúde à aquisição dela como aquilo que é conforme à
natureza do paciente, assim também a dialética é a técnica que concretiza a possibilidade do conhecimento
verdadeiro para a alma ignorante, fazendo-a passar da privação de saber à aquisição dele porque a sabedoria
é conforme à sua natureza. A tšcnh concretiza uma dÚnamij (potencialidade): a dÚnamij da alma é o
conhecimento e a dialética, a tšcnh que atualiza o que era apenas possibilidade. Por isso, a dialética difere da
retórica, pois em vez de violentar a alma, impondo-lhe opiniões, opera para que a alma, por si mesma, realize
ou concretize plenamente sua natureza.

tšcnh: arte manual, técnica; ofício, profissão; habilidade para fabricar, construir ou
compor alguma coisa ou artefato; habilidade para decifrar presságios; habilidade para
compor com palavras (poesia, retórica, teatro). Obra de arte. Produto da arte. A tšcnh se
apresenta por meio de obra ou objetos: o médico cuja obra é produzir a saúde, assim como
o arquiteto faz a casa e o oleiro faz o vaso de cerâmica; o dramaturgo é um técnico que
produz como obra uma peça teatral, assim como o poeta produz o poema e o pintor, o
quadro; o capitão produz a viagem da embarcação, como o tecelão produz o tecido. Tudo
que se referir à fabricação ou produção de algo que não é feito pela própria natureza é uma
técnica, cujo campo é o artefato ou o objeto da arte, isto é, o artifício, seja o utensílio, o
instrumento, a arma ou o poema. Com exceção do político e do sábio, todos os outros
ofícios são técnicos. Com exceção da teoria, da ética e da política, todas as práticas são
técnicas.
AULA 24.

INÚTIL? ÚTIL?

Um dos primeiros ensinamentos filosóficos é perguntar: o que é útil? Para que e para quem
algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?
O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza.
Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa
expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a filosofia é inteiramente inútil e
defende o direito de ser inútil.
Não poderíamos, porém, definir o útil de uma outra maneira?
Platão (428-347 a.C.) definia a filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em
benefício dos seres humanos.
René Descartes (1596-1650) dizia que a filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento
perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da
saúde e a invenção das técnicas e das artes.
Espinosa (1632-1677) afirmou que a filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser
percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Immanuel Kant (1724-1804) afirmou que a filosofia é o conhecimento que a razão adquire de
si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade
humana.
Karl Marx (1818-1883) declarou que a filosofia havia passado muito tempo apenas
contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação
que traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) escreveu que a filosofia é um despertar para ver e
mudar nosso mundo.
Qual seria, então, a utilidade da filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar
guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar
compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das
criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa
sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a
liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de
todos os saberes de que os seres humanos são capazes.
AULA 25.

ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE I)

Para explicar o movimento de passagem de um grau perfeição) para que haja mundo inteligível. Assim como os
de conhecimento para o outro, no Livro VII da República, olhos e as coisas participam da luz, assim também a alma e as
Platão narra o Mito da Caverna, alegoria da teoria do idéias participam da bondade (ou perfeição) e é por isso que a
conhecimento e da paidéia platônicas. Para conhecermos esse alma pode conhecer as idéias. E assim como a visão é
mito, precisamos retomar, noutro nível, a exposição da teoria do passividade e atividade do olho, assim também o conhecimento
conhecimento feita nas aulas anteriores, pois essa versão é passividade e atividade da alma: passividade, porque a alma
apresentada deixou de lado a beleza, a dramaticidade e as precisa receber a ação das idéias para poder contemplá-las;
metáforas que tecem o Livro VI da República. atividade, porque essa recepção e contemplação constituem a
Para dar a entender ao jovem Glauco o que é e como própria natureza da alma.
se adquire o conhecimento verdadeiro, Sócrates começa Assim como na treva não há visibilidade, assim
estabelecendo uma analogia entre conhecer e ver. também na ignorância não há verdade. A e„kas…a e a dÒxa são
Todos nossos sentidos, diz Sócrates, mantêm uma para a alma o que a cegueira é para os olhos e a escuridão é para
relação direta com o que sentem. Não é esse, porém, o caso da as coisas: são privações (privação de visão e privação de
visão. Para que a visão se realize, não bastam os olhos (ou a conhecimento).
faculdade da visão) e as coisas coloridas (pois vemos cores e são Sob a analogia da luz, a diferença entre o sensível e o
elas que desenham a figura, o volume e as demais qualidades da inteligível se apresenta assim:
coisa visível), mas é preciso um terceiro elemento que permita
aos olhos ver e às coisas serem vistas: para que haja um visível MUNDO SENSÍVEL MUNDO INTELIGÍVEL
visto é preciso a luz. A luz não é o olho nem a cor, mas o que
faz com que o olho veja a cor e que a cor seja vista pelo olho. É Sol Bem
graças ao Sol que há um mundo visível. Por que as coisas Luz Verdade
podem ser vistas? Porque a cor é filha da luz. Por que os olhos Cores Idéias
são capazes de ver? Porque são filhos do Sol: são faróis ou luzes Olhos Alma racional ou inteligência
que iluminam as coisas para que se tornem visíveis. A visão é, Visão Intuição
assim, uma atividade e uma passividade dos olhos. Atividade, Treva, cegueira Ignorância, opinião
porque é a luz do olhar que torna as coisas visíveis. Passividade, Privação de luz Privação de verdade
porque os olhos recebem sua luz do Sol.
Conhecer a verdade é ver com os olhos da alma ou Essa analogia é o tema do Mito da Caverna, narrado
com os olhos da inteligência. Assim como o Sol dá sua luz aos por Sócrates a Glauco para fazê-lo compreender o sentido da
olhos e às coisas para que haja mundo visível, assim também a paidéia filosófica, isto é, da dialética e do conhecimento
idéia suprema, a idéia de todas as idéias, o Bem (isto é, a verdadeiro.
perfeição em si mesma) dá à alma e às idéias sua bondade (sua
AULA 26.

ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE II)

Imaginemos, diz Sócrates, uma caverna subterrânea instrumento com o qual quebra os grilhões. De início, move
separada do mundo externo por um alto muro. Entre este e o a cabeça, depois o corpo todo; a seguir, avança na direção do
chão da caverna há uma fresta por onde passa alguma luz muro e o escala. Enfrentando as durezas de um caminho
exterior, deixando a caverna na obscuridade quase completa. íngreme e difícil, sai da caverna. No primeiro instante, fica
Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus
ali estão acorrentados, sem poder mover a cabeça na direção olhos não estão acostumados. Enche-se de dor por causa dos
da entrada, nem se locomover, forçados a olhar apenas a movimentos que seu corpo realiza pela primeira vez e pelo
parede do fundo, vivendo sem nunca ter visto o mundo ofuscamento de seus olhos sob a ação da luz externa, muito
exterior nem a luz do Sol, sem jamais ter efetivamente visto mais forte do que o fraco brilho do fogo que havia no interior
uns aos outros, pois não podem mover a cabeça nem o corpo, da caverna. Sente-se dividido entre a incredulidade e o
e sem se ver a si mesmos porque estão no escuro e deslumbramento. Incredulidade porque está obrigado a
imobilizados. Abaixo do muro, do lado de dentro da caverna, decidir onde se encontra a realidade: no que vê agora ou nas
há um fogo que ilumina vagamente o interior sombrio e faz sombras em que sempre viveu. Deslumbramento
com que as coisas que se passam do lado de fora sejam (literalmente: ferido pela luz) porque seus olhos não
projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. conseguem ver com nitidez as coisas iluminadas. Seu
Do lado de fora, pessoas passam conversando e carregando primeiro impulso é retornar à caverna para livrar-se da dor e
nos ombros figuras ou imagens de homens, mulheres, do espanto. Embora esteja reconquistando sua verdadeira
animais cujas sombras também são projetadas na parede da natureza, o sofrimento que essa reconquista lhe traz é tão
caverna, como num teatro de fantoches. Os prisioneiros grande que se sente atraído pela escuridão, que lhe parece
julgam que as sombras de coisas e pessoas, os sons de suas mais acolhedora. Além disso, precisa aprender a ver e esse
falas e as imagens que transportam nos ombros são as aprendizado é doloroso, fazendo-o desejar a caverna, onde
próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são tudo lhe é familiar e conhecido.
seres vivos que se movem e falam. A descrição platônica é dramática: o caminho em
Nesse ponto, Glauco diz a Sócrates que o quadro direção ao mundo exterior é íngreme e rude; o prisioneiro
descrito por ele lhe parece algo estranho, incomum e libertado sofre e se lamenta de dores no corpo; a luz do Sol o
inusitado. Sócrates, porém, diz-lhe que os prisioneiros “são cega; ele se sente arrancado, puxado para fora por uma força
semelhantes a nós”. E prossegue. Os prisioneiros se incompreensível. Platão narra um parto: o parto da alma que
comunicam, dando nomes às coisas que julgam ver (sem vê- nasce para a verdade e é dada à luz.
las realmente, pois estão na obscuridade) e imaginam que o Sentindo-se sem disposição para regressar à
que escutam, e que não sabem que são sons vindos de fora, caverna por causa da rudeza do caminho, o prisioneiro
são as vozes das próprias sombras e não vozes dos seres permanece no exterior. Aos poucos, habitua-se à luz e
reais. Qual é, pois, a situação dessas pessoas aprisionadas? começa a ver o mundo. Encanta-se, tem a felicidade de
Tomam sombras por realidade, tanto as sombras das coisas e finalmente ver as próprias coisas, descobrindo que estivera
dos homens exteriores como as sombras dos artefatos prisioneiro a vida toda e que em sua prisão vira apenas
fabricados por eles. Essa confusão, porém, não tem como sombras. Doravante, desejará ficar longe da caverna para
causa a natureza dos prisioneiros e sim as condições adversas sempre e lutará com todas as suas forças para jamais
em que se encontram. Por isso Sócrates indaga: que regressar a ela. No entanto, não pode evitar lastimar a sorte
aconteceria se fossem libertados dessa condição de miséria e, dos outros prisioneiros e, por fim, toma a difícil decisão de
“retornando à sua natureza, pudessem ver as coisas e ser regressar ao subterrâneo sombrio para contar aos demais o
curados de sua ignorância?”. que viu e convencê-los a se libertarem também.
Essa pergunta é um tanto grave. De fato, para os Assim como a subida foi penosa, porque o caminho
prisioneiros, o único mundo real é a caverna, portanto, a era ingrato e a luz, ofuscante, também o retorno será penoso,
obscuridade na qual não podem se ver nem ver os outros não pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é
é percebida como tal e sim experimentada como realidade muito mais difícil do que se habituar à luz. De volta à
verdadeira. E a caverna é para eles todo o mundo real, pois caverna, o prisioneiro fica cego novamente, mas, agora, por
não sabem que o que vêem na parede do fundo são sombras ausência de luz. Ali dentro, é desajeitado, inábil, não sabe
de um outro mundo, exterior à caverna, uma vez que não mover-se entre as sombras nem falar de modo compreensível
podem virar a cabeça para ver que há algo lá fora e que é de para os outros, não sendo acreditado por eles. Torna-se
lá de fora que outros homens lhes enviam imagens e sons. objeto de zombaria e riso, e correrá o risco de ser morto
Ora, se para os prisioneiros o mundo real é a caverna, como pelos que jamais se disporão a abandonar a caverna.
poderiam sair da ilusão se não sabem que vivem nela? Impossível aqui não identificar a figura de Sócrates na do
Um dos prisioneiros, inconformado com a condição prisioneiro que se liberta, retorna e é morto pelos homens das
em que se encontra, decide abandoná-la. Fabrica um sombras.
AULA 27.

ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE III)

A caverna, explica Sócrates a Glauco, é o mundo ensinando-lhes como quebrar os grilhões e subir o
sensível onde vivemos. O fogo que projeta as sombras na caminho. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (a
parede é um reflexo da luz verdadeira (do Bem e das dialética ascendente), que vai da imagem à crença ou
idéias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As opinião, desta para as matemáticas e destas para a intuição
sombras são as coisas sensíveis, que tomamos pelas intelectual e a ciência; e o do descenso (a dialética
verdadeiras, e as imagens ou sombras dessas sombras, descendente), que consiste em praticar com outros o
criadas por artefatos fabricados de ilusões. Os grilhões trabalho para subir até às idéias.
são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos Os olhos foram, portanto, feitos para ver, a alma
sentidos, nossas paixões e opiniões. O instrumento que foi feita para conhecer. Os primeiros estão destinados à
quebra os grilhões e permite a escalada do muro é a luz solar, a segunda, à fulguração/revelação da idéia. A
dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A dialética é a técnica que liberta os “olhos do espírito”.
luz que ele vê é a luz plena do ser, isto é, o Bem, que O relato da subida e da descida expõe a paidéia
ilumina o mundo inteligível como o Sol ilumina o mundo como dupla violência necessária para a liberdade e para a
sensível. O retorno à caverna para convidar os outros a realização da natureza verdadeira da alma: a ascensão é
sair dela é o diálogo filosófico, e as maneiras desajeitadas difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna,
e insólitas do filósofo são compreensíveis, pois quem uma imposição terrível à alma libertada, agora forçada a
contemplou a unidade da verdade já não sabe lidar abandonar a luz e a felicidade. A dialética, como toda
habilmente com a multiplicidade das opiniões nem se técnica, é uma atividade exercida contra uma passividade,
mover com engenho no interior das aparências e ilusões. é um esforço para obrigar uma dÚnamij a se atualizar, um
Os anos despendidos na criação do instrumento para sair trabalho para concretizar um fim, forçando um ser a
da caverna são o esforço da alma para libertar-se. realizar sua própria natureza. No Mito da Caverna, a
Conhecer é, pois, um ato de libertação e de iluminação. A dialética leva a alma a ver sua própria essência ou forma
paidéia filosófica é uma conversão da alma voltando-se (edoj), isto é, conhecer, vendo as essências ou formas,
do sensível para o inteligível. Essa educação não ensina para descobrir seu parentesco com elas, pois a alma é
coisas nem nos dá a visão, mas ensina a ver, orienta o parente da idéia como os olhos são parentes da luz.
olhar, pois a alma, por sua natureza, possui em si mesma a
capacidade para ver.
O Mito da Caverna apresenta a dialética como
movimento ascendente de libertação do olhar intelectual
que nos livra da cegueira para vermos a luz das idéias.
Mas descreve também o retorno do prisioneiro para
convidar os que permaneceram na caverna a sair dela,
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 28.

EXERCÍCIOS:
1. Segundo Platão, qual a diferença entre opinião (dÒxa) e conhecimento autêntico (™pist»mh)?
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2. Para se atingir o conhecimento autêntico (™pist»mh) Platão propõe a dialética. Resumidamente,


em que consiste a dialética?
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3. Tente explicar o que Platão quis nos ensinar escrevendo o Mito da Caverna. Seria possível ao
homem libertado persuadir os prisioneiros sobre a realidade que ele vivenciou do lado de fora
da caverna? Justifique sua resposta.
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AULA 29.

A REFLEXÃO FILOSÓFICA

Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si


mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a
si mesmo.
A reflexão filosófica é tida como radical porque é um movimento de volta do pensamento
sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que
se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e
acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de
gestos e ações.
A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade
circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações.
A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou
questões:

1. por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos?
2. o que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que
queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos
ou fazemos?
3. para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto
é, qual a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?

Essas três questões podem ser resumidas em: o que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem
a seguinte pergunta: nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento?
A atitude filosófica inicia-se indagando: o que é?, como é?, por que é?, dirigindo-se ao
mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas
sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.
A reflexão filosófica, por sua vez, indaga: por quê?, o quê?, para quê?, dirigindo-se ao
pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a
finalidade humanas para conhecer e agir.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 30.

EXERCÍCIOS:

1. Tem sentido perguntar: para que filosofia? Justifique sua resposta.

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2. Pode-se dizer que a filosofia é útil? Quando e por quê? A filosofia é diferente dos outros tipos de
conhecimentos e de ações? Justifique sua resposta.

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3. Tente adotar uma atitude filosófica diante de alguma situação que vivemos costumeira e
normalmente. Observe a diferença entre dizer “eu acho” e “eu penso”.

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AULA 31.

TALES DE MILETO (cerca de 625-558 a.C.)

Tales, de ascendência fenícia, era natural da pretendendo desviar o curso de rios para favorecer a
Jônia, na Ásia Menor, cidade famosa pelo florescente navegação e a irrigação; um hábil comerciante. Tales teria
comércio marítimo, pátria também de Anaximandro e também estudado as causas das inundações do rio Nilo,
Anaxímenes. Floresceu pelo ano de 585 a.C.. Segundo o desfazendo mitos que as narravam. Fez algumas
relato de Heródoto, Tales de Mileto foi um dos sete descobertas astronômicas; além da previsão do eclipse
sábios da Grécia arcaica e, conforme Diógenes Laércio, solar, descobriu a constelação da Ursa Menor e
teria sido o primeiro a ser assim chamado. Sua origem é aconselhou os navegantes a se guiarem por ela. Proclo lhe
desconhecida e alguns o consideram fenício. Sua akmé atribuiu o “Teorema de Tales” (dois triângulos são iguais
está ligada à predição que fez de um eclipse solar e cuja quando possuem um lado igual compreendido entre dois
data não é segura (610, 597 ou 548 a.C.). A grande ângulos iguais), mas é improvável que tenha sido seu
dificuldade para conhecer sua vida e sua obra deve-se ao autor. O mais provável é que o teorema tenha sido
fato de que nada deixou escrito (se é que escreveu alguma inspirado por um fato relatado por Plutarco, a saber, que
coisa). Tudo quanto sabemos sobre ele deve-se a fontes Tales descobriu um método para medir a altura de uma
indiretas, as principais sendo Aristóteles, Teofrasto e pirâmide colocando a prumo uma vara no final da sombra
Simplício. da pirâmide e, traçando dois triângulos com a linha
Platão faz uma breve referência a Tales para descrita pelo raio do Sol, mostrou que havia proporção
repetir uma anedota muito espalhada na Grécia: por ser entre a altura da pirâmide e a da vara ou entre os dois
um teórico, isto é, um contemplador puro, Tales, triângulos e suas sombras.
caminhando com os olhos voltados para o céu, tropeçou É Aristóteles que consagra Tales como fundador
numa pedra e caiu num poço. Consagrou-se, assim, a da filosofia cosmológica, tendo sido o primeiro a tratar de
imagem que, daí por diante, os outros possuem do modo sistemático e racional o problema da origem,
filósofo como pessoa distraída para as coisas práticas da transformação e conservação do mundo. Para Tales, o
vida e perdido em pensamentos abstratos. princípio de todas as coisas é a água, ou melhor, a
No entanto, os relatos sobre Tales nos oferecem qualidade da água, o úmido.
uma imagem muito diferente desta. Foi um político
interessado, procurando unir as cidades da Jônia numa
confederação contra os persas; um hábil engenheiro,
AULA 32.

TALES DE MILETO (PARTE II)

DOXOGRAFIA:

ARISTÓTELES, Metafísica, I, 3.983b6-33 (DK11A12) tîn d¾ prètwn φilosoφhs£n twn oƒ ple‹stoi


t¦j ™n Ûlhj e‡dei mÒnaj ò»qhsan ¢rc¦j enai p£ntwn· ™x oá g¦r œstin ¤panta t¦ Ônta kaˆ ™x oá
g…gnetai prètou kaˆ e„j Ö φqe…retai teleuta‹on, tÁj mn oÙs…aj ØpomenoÚshj to‹j d p£qesi
metaballoÚshj, toàto stoice‹on kaˆ taÚthn ¢rc»n φasin enai tîn Ôntwn, kaˆ di¦ toàto oÜte
g…gnesqai oÙqn o‡ontai oÜte ¢pÒllusqai, æj tÁj toiaÚthj φÚsewj ¢eˆ swzomšnhj, (...) g¦r ena…
tina φÚsin À m…an À ple…ouj mi©j ™x ïn g…gnetai t«lla swzomšnhj ™ke…nhj. tÕ mšntoi plÁqoj kaˆ
tÕ edoj tÁj toiaÚthj ¢rcÁj oÙ tÕ aÙtÕ p£ntej lšgousin, ¢ll¦ QalÁj mn Ð tÁj toiaÚthj ¢rchgÕj
φilosoφ…aj Ûdwr φhsˆn enai (diÕ kaˆ t¾n gÁn ™φ’ Ûdatoj ¢peφ»nato enai), labën ‡swj t¾n
ØpÒlhψin taÚthn ™k toà p£ntwn Ðr©n t¾n troφ¾n Øgr¦n oâsan kaˆ aÙtÕ tÕ qermÕn ™k toÚtou
gignÒmenon kaˆ toÚtJ zîn (tÕ d’ ™x oá g…gnetai, toàt’ ™stˆn ¢rc¾ p£ntwn) di£ te d¾ toàto t¾n
ØpÒlhψin labën taÚthn kaˆ di¦ tÕ p£ntwn t¦ spšrmata t¾n φÚsin Øgr¦n œcein, tÕ d’ Ûdwr ¢rc¾n
tÁj φÚsewj enai to‹j Øgro‹j. e„sˆ dš tinej o‰ kaˆ toÝj pampala…ouj kaˆ polÝ prÕ tÁj nàn
genšsewj kaˆ prètouj qeolog»santaj oÛtwj o‡ontai perˆ tÁj φÚsewj Øpolabe‹n·

“A maior parte dos primeiros filósofos considerava como os únicos princípios de todas as coisas os
que são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos, e de que primeiro são gerados
e em que por fim se dissolvem, enquanto a substância subsiste mudando-se apenas as afecções, tal é, para
eles, o elemento, tal é o princípio dos seres; e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal
natureza subsistisse sempre (...). Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do que uma, donde as
outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao número e à forma destes princípios,
nem todos dizem o mesmo. Mas Tales, o iniciador de tal filosofia, diz ser a água [o princípio] (é por esse
motivo também que ele declarou que a terra está sobre a água), levado sem dúvida a esta concepção por ver
que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de
que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio). Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as
sementes de todas as coisas terem a natureza úmida; e a água é o princípio da natureza para as coisas úmidas.
Alguns há que pensam que também os mais antigos, bem anteriores à nossa geração, e os primeiros a tratar
dos deuses, teriam a respeito da natureza formado a mesma concepção”.

SIMPLÍCIO, Física, 9, 23, 21 (DK11A13) Tîn d m…an kaˆ kinoumšnhn legÒntwn t¾n ¢rc»n, oÞj
kaˆ φusikoÝj „d…wj kale‹, oƒ mn peperasmšnhn aÙt»n φasin, ésper QalÁj mn 'ExamÚou Mil»sioj
kaˆ “Ippwn, Öj doke‹ kaˆ ¥qeoj gegonšnai, Ûdwr œlegon t¾n ¢rc¾n ™k tîn φainomšnwn kat¦ t¾n
a‡sqhsin e„j toàto proacqšntej. kaˆ g¦r tÕ qermÕn tù Øgrù zÍ kaˆ t¦ nekroÚmena xhra…netai kaˆ
t¦ spšrmata p£ntwn Øgr¦ kaˆ ¹ troφ¾ p©sa culèdhj· ™x oá dš ™stin ›kasta, toÚtJ kaˆ tršφesqai
pšφuken· tÕ d Ûdwr ¢rc¾ tÁj Øgr©j φÚseèj ™sti kaˆ sunektikÕn p£ntwn. diÕ p£ntwn ¢rc¾n
Øpšlabon enai tÕ Ûdwr kaˆ t¾n gÁn ™φ’ Ûdatoj ¢peφ»nanto ke‹sqai.

“Alguns dos que afirmam um só princípio de movimento — [Aristóteles,] propriamente, chama-os


de físicos — consideram que ele é limitado; assim Tales de Mileto, filho de Examyas, e Hipão, que parece
ter sido ateu, afirmavam que água é o princípio, tendo sido levados a isto pelas (coisas) que lhes apareciam
segundo a sensação; pois o quente vive com o úmido, as coisas mortas ressecam-se, as sementes de todas as
cosias são úmidas e todo alimento é suculento. Donde é cada coisa, disto se alimenta naturalmente: água é o
princípio de tudo e afirmam que a terra está deitada sobre ela”.

ARISTÓTELES, Da Alma, 5.411a7-33 (DK11A12) kaˆ ™n tù ÓlJ d» tinej aÙt¾n mem‹cqa… φasin,
Óqen ‡swj kaˆ QalÁj ò»qh p£nta pl»rh qeîn enai. Cf. PLATÃO, Leis, X, 899b.

“E afirmam alguns que ela (a alma) está misturada com o todo. É por isso que, talvez, também Tales
pensou que todas as coisas estão cheias de deuses”.
AULA 33.

TALES DE MILETO (PARTE III)

A água ou o úmido é o princípio (¢rc») de todo hylozoísmo (Ûlh, em grego, quer dizer matéria) para
o universo, ou mais precisamente, de toda (φÚsij) significar a matéria que possui em si mesma e por si
natureza, e a grandeza de Tales está em que não pergunta mesma o princípio ou a causa de seus movimentos
(como o mito perguntava) qual era a qualidade ou coisa (geração, corrupção, alterações qualitativas e
primitiva, mas afirma qual é (antes, agora e sempre) a quantitativas, locomoção). Tales, como os demais
qualidade ou o ser primordial, isto é, aquilo de que o membros da Escola de Mileto, seria hylozoísta. Isso
mundo é feito. explicaria por que, segundo Aristóteles, teria afirmado
Por que Tales teria escolhido a água ou o úmido que a água é “a alma motora do kÒsmoj”.
como princípio (¢rc») ou natureza, ação de brotar (φÚsij)? O fato de considerar a água como alma, isto é,
Os intérpretes oferecem várias razões para essa como princípio vital, leva Tales a considerar que todas as
escolha, baseando-se naqueles autores que expuseram as coisas são viventes ou animadas e por isso se
opiniões do filósofo de Mileto: transformam e se conservam. A água é o “deus
1. a água apresenta-se sob as mais variadas inteligente” que faz todas as coisas e é a matéria e a alma
formas e em todos os estados em que vemos os corpos da de todas elas. Eis por que se atribui a Tales a afirmação:
natureza: líquido, sólido, gasoso. Vemos a água passar de “Todas as coisas estão cheias de deuses”.
um estado a outro, de uma forma a outra, num processo Segundo o testemunho de Aristóteles, um dos
contínuo no qual mantém a identidade consigo mesma. O argumentos de Tales para afirmar que todos os seres são
fenômeno da evaporação faz pensar que a água é a causa animados ou vivos, e que por isso todas as coisas estão
do céu e do que nele existe; o fenômeno da chuva, que a “cheias de deuses”, foi a observação sobre a chamada
água é a causa da terra e do que nela existe; pedra de Magnésia, isto é, o ímã, que move o ferro.
2. a água está diretamente vinculada à vida: as Com efeito, Tales considera que o princípio vital
sementes, o sêmen animal e humano são úmidos (o ou a ψuc» (em latim, anima e, em português, alma) é uma
cadáver em putrefação é uma umidade que vai se força motriz ou cinética, isto é, uma força capaz de
ressecando). “As coisas mortas secam, as sementes são k…nhsij, capaz de se mover e de mover outras coisas.
úmidas, o alimento é suculento”, escreve Simplício, Diante do ímã, Tales observa que há uma força cinética
explicando a escolha de Tales; que atrai o ferro. Ora, se a alma é o princípio vital e uma
3. Tales viajou pelo Egito e certamente se força cinética, deve-se concluir que o ímã possui essa
assombrou com as cheias do rio Nilo: a terra seca e força e, portanto, é uma alma; ou seja, é preciso concluir
desértica, antes da cheia, tornava-se fértil, verdejante, que o ímã é animado, vivo. Tales oferece um argumento
cheia de flores e frutos depois dela. Tales teria concluído cuja estrutura é propriamente filosófica, pois, segundo o
que a água é a causa das plantas; estudioso J. Barnes, em seu artigo Lês Penseurs
4. a existência de fósseis de animais marinhos, préplatoniciens (1997) 11, “deriva uma conclusão notável
descobertos nas montanhas e em grandes altitudes, teria [tudo é animado] a partir de premissas que dependem, ao
levado Tales a considerar que, no início, tudo era água e mesmo tempo, da observação empírica [o ímã move o
que a vida animal fora causada pela água; ferro] e de uma análise conceitual [o que tem força
5. a mitologia grega falava no rio Oceano que cinética ou motora é vivo]”.
circundava toda a terra e que teria engendrado nosso Assim, não nos interessa saber se Tales estava
mundo. Não seria descabido, portanto, supor que Tales “cientificamente” certo ou errado quanto à natureza viva
houvesse dado uma explicação racional para a narrativa ou animada do ímã, mas deve interessar-nos a maneira
mítica; como ele raciocinou para chegar a tal afirmação, pois é
A água ou úmido, por ser princípio de todas as essa maneira que é nova e propriamente filosófica. Foi
coisas, é também o princípio do devir, isto é, do esse modo novo de raciocinar que o fez concluir que a
movimento (k…nhsij) ou da mudança. É dotada de água era a ¢rc» (princípio) e φÚsij (natureza, ação de
movimento próprio, ou seja, é automotora ou “se brotar), isto é, ele deduziu e inferiu de fatos visíveis uma
movente”: transforma-se a si mesma em todas as coisas e conclusão obtida apenas pelo pensamento ou pela razão.
transforma todas as coisas nela mesma. Alguns
denominam o automovimento da φÚsij com a expressão
AULA 34.

ANAXIMANDRO DE MILETO (cerca de 610-547 a.C.)

Concidadão, discípulo e sucessor de Tales. Geógrafo, 3. ARIST. Phys. G 4 203b 13 [vgl. A 15] ¢q£naton...
matemático, astrônomo e político. De sua vida, praticamente kaˆ ¢nèleqron (tÕ ¥peiron = tÕ qe‹on).
nada se sabe. Em compensação, os relatos doxográficos nos dão “Imortal... e imperecível (o ilimitado enquanto o
conta de que escreveu um livro, intitulado “Sobre a Natureza”, divino)”.
tido pelos gregos como a primeira obra filosófica no seu idioma. Em linguagem não poética e não tão rigorosa, o
Infelizmente o livro se perdeu, restando-nos apenas um fragmento de Anaximandro costuma ser traduzido da seguinte
fragmento e notícias de filósofos e escritores posteriores. maneira: “Todas as coisas se dissipam onde tiveram sua gênese,
Atribui-se a Anaximandro a confecção de um mapa do mundo conforme a necessidade, pagando uma às outras castigo e
habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon (esquadro expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo. O
ou qualquer haste vertical cuja sombra indica a direção e a altura ilimitado é eterno. O ilimitado é imortal e indissolúvel”.
do Sol), a medição das distâncias entre as estrelas e o cálculo de Conforme o relato doxográfico de Simplício, no
sua magnitude. É o iniciador, portanto, da astronomia grega. Comentário à Física de Aristóteles, Anaximandro foi o primeiro
Ampliando a visão de Tales, foi o primeiro a formular uma a empregar a palavra ¢rc» e, portanto, o primeiro a elaborar o
tentativa compreensiva e circunstanciada para explicar todos os conceito de princípio de todas as coisas.
aspectos do mundo da experiência humana. Se compararmos ao de Tales, o pensamento de
Segundo o testemunho de Aristóteles no Tratado do Anaximandro introduz grandes mudanças teóricas que merecem
Céu, Anaximandro teria explicado por que a Terra permanece ser destacadas.
imóvel, ou, nas palavras do próprio Aristóteles, “a Terra Em primeiro lugar, a clara identificação entre φÚsij e
permanece em seu lugar por indiferença”. Para um corpo que ¢rc» como aquilo que só pode ser alcançado pelo pensamento,
ocupa um lugar num centro, mover-se para o alto ou para baixo, pois o princípio não se confunde com os quatro elementos
para a direita ou para a esquerda é a mesma coisa ou visíveis e observáveis — lembremos que a φÚsij apresenta o
perfeitamente indiferente; por outra parte, como não é possível sentido de “vivente” ou “brotante”, mas existe também o
realizar ao mesmo tempo dois movimentos em direções aspecto “autoritário” e “governante” da ¢rc» como princípio. A
contrárias, o corpo que ocupa o centro deve necessariamente φÚsij parece falar de um jorrar auto-gestivo e de um
permanecer em seu lugar. Ora, a Terra, que Anaximandro julga movimento contínuo imanente; a ¢rc» parece introduzir nesse
ter a forma cilíndrica, ocupa o centro do mundo sem estar movimento a noção de “necessidade” —. Em segundo, e como
sustentada por nada a não ser por um equilíbrio interno de todas conseqüência, a concepção do princípio como algo
as suas partes e, por sua forma, por seu equilíbrio interno e por quantitativamente sem limites e qualitativamente indeterminado
seu lugar central está imóvel. Podemos notar, assim, que a para que possa eternamente dar origem a todas as coisas
afirmação de Anaximandro (independentemente de estar determinadas do ponto de vista da quantidade e da qualidade.
incorreta do ponto de vista da astronomia moderna) não é Em terceiro, a afirmação de que o princípio é eterno — “sem
arbitrária, mas resulta de um raciocínio preciso, ou seja, a Terra idade e sem velhice”, “imortal e imperecível” — de tal maneira
não se move por razões de ordem lógica. que ele é muito mais do que eram os antigos deuses, pois estes
De Tales para Anaximandro, a cosmologia dá um eram imortais, mas não eram eternos, uma vez que haviam sido
salto teórico importante. A φÚsij (natureza, ação de brotar) e a gerados. Em quarto lugar, a clara distinção entre a perenidade
¢rc» (princípio), agora, não é nenhum dos elementos materiais imortal do princípio e o devir ou vir a ser como ordem temporal
percebidos na natureza, nenhuma das qualidades (úmido, seco, da geração e corrupção das coisas. Em quinto, e mais
quente, frio) percebidas nas coisas, nenhuma qualidade profundamente, Anaximandro concebe a ordem do tempo como
determinada ou definida, delimitada. A ¢rc» é o ¥peiron. A uma lei necessária — por isso fala em injustiça e reparação justa
¢rc» é o ilimitado, indefinido e indeterminado, sem fronteiras, — segundo a qual os elementos se separam do princípio,
sem definição, o que não sendo nenhuma das coisas e nenhuma formam a multiplicidade das coisas como opostas ou como
das qualidades dá origem a todas elas. contrários em luta e depois retornam ao princípio, dissolvendo-
Traduzimos o fragmento de Anaximandro da seguinte se nele para pagar o preço da individuação injusta porque
maneira: belicosa. Em outras palavras, Anaximandro procura explicar
1. SIMPLÍCIO, Phys. 24, 17 ... ¢rc¾n ... e‡rhke tîn como do indeterminado e ilimitado surgem as coisas
Ôntwn tÕ ¥peiron, ... ™x ïn d ¹ gšnes…j ™sti to‹j oâsi, kaˆ determinadas e limitadas, ou a origem das coisas
t¾n φqor¦n e„j taàta g…nesqai “kat¦ tÕ creèn: didÒnai individualizadas, de suas diferenças e oposições.
g¦r aÙt¦ d…khn kaˆ t…sin ¢ll»loij tÁj ¢dik…aj kat¦ t¾n A origem do mundo é, pois, explicada por um
toà crÒnou t£xin”. processo injusto e culpado ou pela guerra incessante que fazem
Princípio... dos seres, ele disse que era o ilimitado, ... entre si os elementos no interior do ¥peiron. A luta dos
pois de onde a gênese é para os entes/exitentes (de onde os seres contrários, isto é, o mundo em que vivemos, fere a justiça (d…kh)
têm sua gênese), é para onde também a corrupção dos mesmos e esta exige a reparação. Cabe ao tempo reparar a injustiça,
se gera “segundo o necessário: pois eles (os entes) mesmos dão obrigando todas as coisas determinadas e limitadas a retornar ao
justiça/ajuste e deferência uns aos outros por causa da seio do indeterminado e ilimitado: a corrupção e a morte das
injustiça/desajuste, segundo a taxação do tempo”. coisas é a expiação da culpa pela separação, individuação e
2. HIPPOL. Ref. I, 6, 1 [vgl. A 11] taÚthn (sc. φÚsin guerra dos contrários.
tin¦ toà ¢pe…rou) ¢…dion enai kaˆ ¢g»rw.
“Esta (a natureza do ilimitado) é sem idade e sem
velhice”.
AULA 35.

ANAXIMANDRO DE MILETO (PARTE II)

Anaximandro espantava-se com as oposições que Atribuem-se ainda a Anaximandro duas idéias muito
constituem o mundo: o fogo que consome o ar, mas é destruído originais: a primeira delas, sobre a origem e formação do céu e
pela água; a terra seca que luta para não ser tomada pela água da terra, e a segunda, sobre a existência de mundos inumeráveis.
nem pelo fogo; o mar que é úmido, mas que se torna ar ao A primeira separação do quente e do frio formou um
evaporar e luta contra ele ao recair como chuva; a seqüência anel luminoso de chamas que cercou o ar frio, prosseguiu
eterna das estações do ano; as diferenças entre os animais formando novos e menores anéis — os astros — dispondo-os
(alguns estão sempre na água, outros na terra, outros no ar); as para formar o zodíaco. Donde, segundo Hipólito, Anaximandro
diferenças entre os homens (alguns de cor diferente de outros, afirmar que “os corpos celestes são rodas de fogo separadas do
alguns calmos e serenos, outros coléricos e belicosos); as lutas fogo que cerca o mundo, e fechadas em círculos de ar”. Há três
entre homens e animais, entre os próprios animais e entre os rodas ou três anéis: o anel do Sol, o anel da Lua e o anel das
próprios homens; a luta dos homens para cultivar a terra, estrelas (aí compreendidos todos os astros que não o Sol e a
conquistar o mar, etc.. Essas lutas, decorrentes da individuação e Lua). A terra e o mar formaram-se com a separação do seco e do
diferenciação dos seres, do predomínio de uma qualidade sobre úmido, no interior do primeiro círculo de fogo que se destacara:
as outras, ao mesmo tempo que cria o kÒsmoj, é uma injustiça o mar é o que restou do úmido sob a ação do fogo, e a terra, o
que precisa ser reparada, pois a justiça é a paz e o mundo é que restou do seco sob a ação do fogo e do úmido.
guerra dos contrários. Diferentemente de Tales e da tradição, que acreditava que a
Como surge o mundo? Por um movimento circular, Terra estava sustentada por alguma coisa, sendo plana,
semelhante a um turbilhão, que irrompe em diversos pontos do Anaximandro descreve a Terra como um cilindro ou disco
¥peiron. Nesse movimento, separam-se do ilimitado- convexo, solto no espaço, imóvel, sem possuir um alto e um
indeterminado as duas primeiras determinações ou qualidades: o baixo.
quente e o frio dando origem ao fogo e ao ar; em seguida, Quanto à afirmação de Anaximandro de que existem
separam-se o seco e o úmido, dando origem à terra e à água. mundos inumeráveis, não se tem certeza se com isto ele
Essas determinações combinam-se ao lutar entre si e os seres afirmava que existem mundos simultâneos formados do ¥peiron
vão sendo formados como resultado dessa luta, quando um dos (que, sendo ilimitado, poderia dar origem a inumeráveis
contrários domina os outros. O devir é esse movimento mundos) ou mundos sucessivos produzidos a cada nova
ininterrupto da luta entre contrários e terminará quando forem separação no interior do ¥peiron, depois do fim de cada mundo
todos reabsorvidos no ¥peiron. anterior.
AULA 36.

ANAXÍMENES DE MILETO (cerca de 585-525 a.C.)

Anaxímenes foi discípulo e continuador de ¢rc» é ilimitada, incorruptível e imortal, Anaxímenes


Anaximandro. Escreveu sua obra, “Sobre a Natureza”, exige que ela seja determinada ou qualificada, pois o
também em prosa, no dialeto jônico. Dedicou-se pensamento só pode pensar o que possui determinações.
especialmente à meteorologia. Foi o primeiro a afirmar O ar, enquanto φÚsij e ¢rc», não é o frio e o ar que
que a Lua recebe sua luz do Sol. Os antigos consideraram sentimos, mas o princípio do qual o ar de nossa vida e de
Anaxímenes a figura principal da escola de Mileto. nossa experiência provém. Torna-se sensível para nós por
meio do frio, do quente, do úmido e do seco, mas, quando
perfeitamente homogêneo e idêntico a si mesmo, torna-se
insensível e só pode ser apreendido pelo pensamento.
Por que a escolha do ar? Segundo o testemunho
doxográfico, Anaxímenes teria escrito que “assim como
nossa alma, que é ar, nos sustenta e nos governa, assim
também o sopro e o ar abraçam todo o cosmos” e que “o
ar está nas cercanias do incorpóreo [sem forma e
invisível] e já que nascemos graças ao seu fluxo, é preciso
que seja ilimitado para que jamais acabe”. Assim,
podemos supor que Anaxímenes concebeu o ar como
φÚsij e ¢rc» porque:
1. ao contrário da água, que precisa de um
suporte ou de um continente, o ar sustenta-se a si mesmo;
FRAGMENTOS:
possui uma autonomia ou auto-suficiência, própria de um
1. tÕ g¦r sustellÒmenon aÙtÁj kaˆ fundamento ou princípio;
puknoÚmenon ψucrÕn ena… φhsi, tÕ d’ ¢raiÕn kaˆ tÕ 2. sua presença e sua difusão são ilimitadas,
calarÕn (oÛtw pwj Ñnom£saj kaˆ tîi φ»mati) podendo compor todas as coisas;
qermÒn.
3. respirar é o primeiro ato de um ser vivo e
O contraído e condensado da matéria ele diz que também o último, antes de morrer, por isso o ar é o
é frio, e o ralo e frouxo (é assim que ele se expressa) é princípio vital. Num dos fragmentos lemos: “como nossa
quente. alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim
também todo o cosmos, sopro e ar o mantêm”. O ar, alma
2. oon ¹ ψuc», φhs…n, ¹ ¹metšra ¢¾r oâsa nossa e do mundo, é o que mantém unidas as partes de um
sugkrate‹ ¹m©j, kaˆ Ólon tÕn kÒsmon pneàma kaˆ todo — nosso corpo e o cosmos. O mundo é um ser vivo
¢¾r perišcei. que respira e que recebe do sopro originário a unidade que
o mantém.
Como nossa alma, ele diz, que é ar,
soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o A grande originalidade de Anaxímenes, perante
cosmos, sopro e ar o mantêm. Tales e Anaximandro, consiste no fato de que a
multiplicidade, transformação e ordenação do mundo se
2a. platÝn æj pštalon tÕn ¼lion.
fazem por alterações quantitativas em um único princípio:
menos ar (rarefação) e mais ar (condensação) determinam
O sol é largo como uma folha.
toda a variação e organização do real. O ar, elemento
universal, invisível e indeterminado, por sua força interna
A ¢rc», ou o princípio, é o ar. As idéias de
própria, movimenta-se: contraindo-se ou dilatando-se, vai
Anaxímenes podem parecer um retrocesso se comparadas
engendrando todos os seres determinados como
às de Anaximandro, que evitara identificar a ¢rc» com
manifestações visíveis de uma vida perene. O cosmos
qualquer dos elementos ou qualidades sensíveis de nossa
vive no ritmo de uma respiração gigantesca que o anima e
experiência. Na verdade, não é o caso. Anaxímenes
mantém coesas suas partes.
considera o ¥peiron de Anaximandro ainda muito
próximo do caos que é descrito pelo mito antigo.
Mantendo a idéia central de seu predecessor, isto é, que a
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 37.

EXERCÍCIOS:

1. Para Tales de Mileto qual o princípio de todas as coisas? O que ele queria dizer ao afirmar que
“todas as coisas estão cheias de deuses”? Justifique sua resposta.
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2. Explique, em poucas palavras, o que Anaximandro pretendia nos ensinar com o seu fragmento.
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3. Segundo Anaxímenes de Mileto, qual o princípio ou elemento formador do mundo? Justifique


sua resposta.
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AULA 38.

JEAN DE LA FONTAINE (1621-1695)

– A CIGARRA E A FORMIGA – – LA CIGALE ET LA FOURMI –

Tendo a Cigarra em cantigas La Cigale, ayant chanté


Folgado todo o verão, Tout l’été,
Achou-se em penúria extrema Se trouva fort dépourvue
Na tormentosa estação. Quand la bise fut venue:

Não lhe restando migalha Pas un seul petit morceau


Que trincasse, a tagarela De mouche ou de vermisseau.
Foi valer-se da Formiga, Elle alla crier famine
Que morava perto dela. Chez la Fourmi sa voisine,

Rogou-lhe que lhe emprestasse, La priant de lui prêter


Pois tinha riqueza e brio, Quelque grain pour subsister
Algum grão com que manter-se Jusqu’à la saison nouvelle.
Té voltar o aceso estio.

– “Amiga, diz a cigarra, - “Je vous paierai, lui dit-elle,


Prometo, à fé d’animal, Avant l’Oût, foi d’animal,
Pagar-vos antes d’Agosto Intérêt et principal”.
Os juros e o principal”.

A Formiga nunca empresta, La Fourmi n’est pas prêteuse:


Nunca dá, por isso junta. C’est là son moindre défaut.
“No verão em que lidavas?” - “Que faisiez-vous au temps chaud?”
À pedinte ela pergunta. Dit-elle à cette emprunteuse.

Responde a outra: “Eu cantava -“ Nuit et jour à tout venant


Noite e dia, a toda a hora”. Je chantais, ne vous déplaise”.
– “Oh! bravo!” – torna a Formiga – -“ Vous chantiez? J’en suis fort aise.
“Cantavas? Pois dança agora!” Eh bien! dansez maintenant”.

Tradução de du Bocage (1823-1907)


CURSO DE FILOSOFIA

 PRIMEIRO ANO 
 Terceiro Bimestre 

AULA 39.

PITÁGORAS DE SAMOS (cerca de 580-497 a.C.)

É muito pouco o que conhecemos sobre a vida de - Por ser um adepto de Apolo Delfo, o deus dos
Pitágoras. Este indivíduo cedo foi envolvido pelo legendário, de oráculos, considerava que a verdade chega aos homens por
modo que é difícil separar nele o histórico do fantástico. Nasceu inspiração divina e teria dito que a verdade plena ou a sabedoria
em Samos, rival comercial de Mileto. Pelo ano de 540 a.C. pertence ao divino, cabendo ao sábio (soφÒj) apenas desejá-la e
deixou sua pátria, estabelecendo-se na Magna Grécia (sul da amá-la, ligando-se a ela pelo laço da amizade (φil…a). Aquele,
Itália). Em Crotona fundou uma espécie de associação de caráter portanto, que tem amizade pela sabedoria é filósofo e sua
mais religioso que filosófico, cujas doutrinas eram mantidas em atividade chama-se filosofia.
segredo. Seus adeptos logo criaram novos centros: Tarento, - Como todos os primeiros filósofos, Pitágoras buscou
Metaponto, Síbaris, Régio e Siracusa. Participantes ativos da explicar a φÚsij através de uma ¢rc» e afirmou que esta era o
política, provocaram a revolta dos crotonenses. Pitágoras então número — ¢riqmÒj (arithmos). Como teria chegado a essa
abandona Crotona, refugiando-se em Metaponto, onde morreu idéia? Os exercícios espirituais da comunidade pitagórica eram
em 497 ou 496 a.C.. realizados ao som da lira órfica ou a lira tetracorde (lira de
quatro cordas), e é muito provável que Pitágoras tivesse
percebido que os sons produzidos pela lira obedeciam a
princípios e regras para formar os acordes e para criar a
concordância entre sons discordantes, isto é, os sons da lira
seguem regras de harmonia que se traduzem em expressões
numéricas (as proporções). Ora, se o som é, na verdade, número,
por que toda a realidade — enquanto harmonia ou concordância
dos discordantes como o seco e úmido, o quente e o frio, o bom
e o mau, o justo e o injusto, o masculino e o feminino — não
seria um sistema ordenado de proporções e, portanto, número?
Pitágoras não deixou nenhum documento escrito. Seus
A proporção ou harmonia universal faz com que o mundo possa
ensinamentos, transmitidos oralmente, eram rigorosamente
ser conhecido como um sistema ordenado de opostos em
guardados em segredo pelos primeiros discípulos que também
concordância recíproca e por isso, assim como Pitágoras foi o
nada escreveram. Daí a grande dificuldade em reconstituir o
primeiro a falar em φilosoφ…a, foi o primeiro a falar no mundo
pensamento do pitagorismo primitivo e ainda mais o do próprio
Pitágoras, distinguindo-o do de seus discípulos. No entanto, o como kÒsmoj.
pitagorismo exerceu profunda influência na filosofia grega, quer - Porque o mundo seria regido pelas mesmas leis de
pela reação polêmica que provocou (Xenófanes, Heráclito, proporcionalidade que as das cordas da lira, Pitágoras teria dito
Parmênides, Zenão), quer pelos elementos positivos que que há uma música universal e que não a ouvimos porque
passaram aos pensadores posteriores. Ao pitagorismo posterior nascemos e vivemos em seu interior e não possuímos o contraste
— com escritos — pertencem Filolau e Arquitas. do silêncio que nos permitiria ouvi-la. No mundo, as cordas da
Podemos considerar com algum grau de certeza que os lira são as esferas celestes, onde se encontram os astros, e a
seguintes aspectos correspondem ao pensamento de Pitágoras: esfera terrestre, onde nos encontramos. A música ou harmonia
- Afirmou a transmigração das almas (isto é, sua universal é a relação proporcional e ordenada entre as esferas ou
passagem por diferentes corpos, tanto humanos quanto animais) entre o céu e a terra.
e a reencarnação. Propôs a purificação da alma pelo - A natureza numérica da φÚsij ou a estrutura
conhecimento ou pela vida contemplativa, isto é, pela theoria harmônica do mundo ou kÒsmoj está presente em todas as
(qewr…a), única que poderia libertar-nos da “roda dos coisas e também na alma, ψuc». Segundo os doxógrafos,
nacimentos”. Atribui-se a Pitágoras a idéia de aumento da Pitágoras e seus discípulos teriam dito que “a alma é harmonia”
sabedoria graças a regras de vida fundadas no silêncio, no (portanto, unificação de muitos elementos e concordância dos
isolamento e na abstinência (abstinência sexual, abstinência de contrários ou discordantes). Justamente por ser constituída pela
certos alimentos, como carnes e favas, e de bebidas fortes). mistura de muitos elementos discordantes, a alma precisa buscar
- Segundo os doxógrafos, Pitágoras teria dito que aos a concordância entre eles e fazer com que os elementos
Jogos Olímpicos comparecem três tipos de homens: os que vão superiores dominem os inferiores. Pitágoras afirmava também o
para comerciar e ganhar a expensas de outros; os atletas, que poder terapêutico da lira sagrada de Orfeu porque a harmonia de
vão para competir e exibir suas qualidades ao público; e os que seus sons auxiliava o esforço da alma para ser, ela também,
vão para contemplar os torneios e avaliá-los. Assim também harmonia, estabelecendo a justa proporção entre os contrários
existem três tipos de almas: as cúpidas, presas às paixões; as que a constituem. Há, portanto, em Pitágoras, uma ética
mundanas, presas às vaidades da fama e da glória; e as sábias, deduzida da cosmologia.
voltadas para a contemplação.
AULA 40.

PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE II)

O que sabemos sobre o pitagorismo nos vem de maneira que a tetráktys da década contém num só número os
fragmentos deixados por pitagóricos como o médico Alcmeão divisíveis e os indivisíveis em mesma quantidade ou em
de Crotona e os matemáticos Filolau de Crotona e Arquitas de harmonia; 3. contém todas as figuras: o 1 é o ponto, o 2 é a linha,
Tarento, assim como por referências de Platão e Aristóteles, e o 3 é o triângulo, o 4 o quadrado, etc.. A perfeição da tetráktys
pela doxografia. da década fez com que fosse tomada como critério de todas as
Ao afirmar que os pitagóricos foram os primeiros a operações matemáticas, dando origem ao que viríamos a
fazer avançar as matemáticas, em sua Metafísica, 1, 5, conhecer com o nome de “sistema decimal”.
Aristóteles afirmou a opinião de todos os antigos de que os A partir da tetráktys, os pitagóricos conceberam o
pitagóricos foram, de certa maneira, os criadores da geometria “número triangular”, ou a tríada com a soma da unidade e da
como ciência das figuras, volumes e superfícies e os primeiros a díada (1+2). Usando o gnómon (isto é, o esquadro), inventaram o
estabelecer relações entre ela e a aritmética ou a ciência dos “número quadrado” ou “número retangular”. O “número
números. quadrado” é obtido acrescentando-se à unidade uma quantidade
Para compreendermos o que o pitagorismo quer dizer ímpar de pontos; o “número retangular” é obtido acrescentando-
quando afirma que o número, ou melhor, o Um é a φÚsij e a se à díada uma quantidade par de pontos.
¢rc», precisamos compreender o que entendem por número.
Lembremos que os gregos e romanos representavam os números
por letras, pois os algarismos, tais como os conhecemos, foram
inventados pelos árabes; e Euclides, o grande sistematizador da
matemática grega, em seus Elementos — escrito por volta de 300
a.C. — representava os números por letras e linhas. Lembremos
também que gregos e romanos desconheciam o zero e que este
também foi concebido pelos árabes.
Primitivamente, os gregos representavam os números
por pontos arranjados em desenhos simétricos e facilmente NÚMERO QUADRADO NÚMERO RETANGULAR
reconhecíveis, como em cada face de um dado ou em peças de
dominó. Essa representação tinha a seguinte peculiaridade: os A construção dos vários números mostra como os
números não eram concebidos numa seqüência — 1, 2, 3, ... — pitagóricos puderam concebê-los como uma série ou seqüência
obtida pelo acréscimo do 1 a cada número da série; mas eram ordenada de pontos e linhas a partir de um critério fundamental,
concebidos cada qual como uma unidade discreta e qual seja, a distinção entre o par e o ímpar. Mas não só isso. Além
independente, ou seja, havia o 1, o 2, o 3, o 4, etc.. Os de conceberem uma ordem numérica, os pitagóricos também
pitagóricos, porém, inventaram a representação aritmético- conceberam essa ordem como harmonia, isto é, como proporção na
geométrica dos números, distribuindo-os em figuras. Graças a composição de alguma coisa constituída por elementos diferentes e
essa nova maneira de representação, puderam: 1. definir a mesmo opostos.
unidade (mon£j); 2. tomar os números como seqüência De fato, suas descobertas matemáticas provieram de seus
ordenada; 3. distinguir os elementos constitutivos dos números, estudos da música e, como vimos, da percepção de uma relação
isto é, distinção entre o par (o divisível ou ilimitado) e o ímpar direta entre sons e os números: assim, a diversidade de sons
(o indivisível ou limitado); 4. diferenciar pontos e superfícies, produzidos pelos martelos (ou marimbas) que golpeiam uma fieira
chamando aos primeiros de “termos” (ou limites) e às segundas de juncos suspensos pode ser determinada numericamente pelas
diferenças de grandeza e peso dos martelos e dos juncos; a
de “campos” (ou lugares).
diversidade de sons produzidos pelos bastões que golpeiam a
Ao que tudo indica, o início dessa invenção foi o
superfície de um tambor pode ser determinada numericamente pela
estudo de uma figura que o pitagorismo julgava sagrada, a grandeza e peso dos bastões e pela espessura da superfície do
tetraktÚj (tetráktys ou tetráktys da década), isto é, a tambor; a diversidade de sons produzidos pelas cordas da lira
representação do número 10 (ou da década) por um triângulo tetracorde pode ser determinada numericamente pelo comprimento e
eqüilátero em que cada lado é constituído por 4 (tetras) pontos, espessura das cordas. Dessa maneira, os pitagóricos descobriram
com um ponto no centro: que as relações harmônicas do diapasão, os acordes de quarta,
quinta e oitava podem ser traduzidos em leis numéricas (1:2, 2:3,
3:4). Além disso, não deixaram de perceber a determinação
numérica de fenômenos naturais como a duração do dia, dos meses
e do ano, das estações, da gestação dos animais e dos humanos, dos
ciclos da vida.
Visto que haviam descoberto as relações e proporções
entre todas as coisas a partir de sua determinação numérica, não nos
deve causar estranheza que julgassem o número — ou melhor, o Um
e a proporção ou harmonia — como φÚsij e ¢rc», natureza e
Lembremos que o ponto de partida dos pitagóricos foi estrutura de todas as coisas e que, como disse Aristóteles, julgassem
o estudo da lira tetracorde, isto é, a lira de quatro cordas. Ora, a que ela não é o fogo, a água, a terra ou o ar porque estes — ou
tetráktys da década (ou a década constituída pelos lados de melhor, o quente, o úmido, o seco, o frio — nada mais são senão
proporções ou combinações ou dissociações das qualidades das
quatro pontos) é considerada sagrada e perfeita porque possui
coisas. Num comentário de Aécio é dito que, para Pitágoras (ou para
características que nenhum outro número possui: 1. é igual à
os pitagóricos), o cubo produziu a terra, o tetraedro produziu o fogo,
soma dos quatro primeiros números (1+2+3+4), ou, na o octaedro produziu o ar, o icosaedro produziu a água, e o
linguagem pitagórica, é a síntese da unidade, da díada, da tríada dodecaedro produziu a esfera do universo.
e da quadra; 2. inclui uma quantidade igual de números pares e
ímpares (4 pares — 2, 4, 6, 8; e 4 ímpares — 3, 5, 7, 9), e par ou
ímpar são os elementos definidores de um número, de tal
AULA 41.

PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE III)

pois são feitas da mesma φÚsij. Conhecer é encontrar a


A φÚsij está presente em todas as coisas, tanto
unidade de alguma coisa e o princípio de sua mudança ou
as visíveis quanto as invisíveis: assim, a unidade é a
de seu devir. O número é o que produz a unidade e a
inteligência, pois é sempre idêntica a si mesma; a díada é
diversidade das coisas e por isso as torna conhecíveis por
a opinião, pois sempre dividida entre dois; a tríada é a
nossa alma. Eis por que o ideal contemplativo ou teórico
justiça, pois é a síntese da unidade e da díada, isto é, da
do pitagorismo se realiza plenamente com uma
identidade e da divisão, uma vez que resulta da soma dos
cosmologia matemática.
dois primeiros números. E assim por diante. Dizer que a
φÚsij e a ¢rc» são o número é dizer que as coisas são A matematização do universo concebida pelos
ritmos, proporções, relações, somas, subtrações, pitagóricos lhes permitiu explicar a origem de todas as
combinações e dissociações ordenadas e reguladas. Em coisas por um processo regulado e inteligível de
outras palavras, o número não representa nem simboliza delimitações do uno primordial ilimitado segundo
as coisas, ele é a estrutura das coisas. Ou, como dirá proporções que diferenciam os opostos e os dispõem
Galileu ao criar a física moderna, só conheceremos a numa ordem racional. Dessa maneira, o pitagorismo pôde
natureza se conhecermos sua estrutura matemática. introduzir com todo o rigor a idéia de ordem ou de
kÒsmoj porque determinou o operador da ordenação — o
De acordo com Aristóteles e Estobeu, os
número —, a forma da ordenação — proporção — e o
pitagóricos (e, mais precisamente, Filolau de Crotona)
efeito da ordenação — concordância e harmonia dos
conceberam o Um, ou a unidade primordial, a partir da
contrários governados pelas mesmas leis racionais.
distinção entre ilimitado e limitado, ou entre
indeterminado e determinado, isto é, entre o indivisível e No entanto, o pitagorismo passará por uma crise
o que pode ser indefinidademente dividido. Essa distinção profunda que levará ao desaparecimento de sua Escola,
aparece com a diferença entre o ímpar (limitado, ainda que não ao de seus ensinamentos principais, que
determinado, indivisível) e o par (ilimitado, seriam retomados, dois séculos depois, por Platão. Essa
indeterminado, divisível), que são os elementos crise os dividiu em dois grandes grupos: os acústicos ou
constitutivos de todos os números, e, por isso mesmo, o acusmáticos, de um lado, e os matemáticos, de outro.
Um, fonte dos números, é, em si mesmo, par-ímpar, Acusmáticos foram os que conservaram apenas os
ilimitado-limitado. O Um ou a unidade é, portanto, a ensinamentos orais (ou aprendidos por ouvido) de caráter
totalidade dos números e, por isso mesmo, a totalidade místico e moral da Escola, realizando exercícios
das coisas visíveis e invisíveis. A unidade é o princípio da espirituais silenciosos de purificação da alma, ao som da
permanência ou da identidade de uma coisa e a dualidade lira órfica. Matemáticos foram aqueles que tentaram dar
é o princípio de sua mudança, de seu devir ou vir a ser. prosseguimento à doutrina cosmológica e à geometria,
Dessa maneira, o kÒsmoj é a proporção regulada de pares após a crise.
de opostos, ou a concordância dos discordantes: alto-
Que crise foi essa? O aparecimento de um
baixo, direita-esquerda, macho-fêmea, movimento-
teorema que, justamente, leva o nome de Pitágoras: “num
repouso, quente-frio, seco-úmido, luz-treva, doce-amargo,
triângulo retângulo, a soma dos quadrados dos catetos é
bom-mau, justo-injusto, verdadeiro-falso, grande-
igual ao quadrado da hipotenusa”.
pequeno, novo-velho, reto-curvo. O princípio desses pares
é a oposição fundamental entre limitado e ilimitado, ou Do ponto de vista geométrico, a demonstração do
entre unidade e multiplicidade. teorema é clara e perfeita: o quadrado da hipotenusa é
igual à soma dos quadrados dos catetos. Há, portanto,
Alguns testemunhos doxográficos também
proporção entre os catetos e a hipotenusa.
atribuem a Alcmeão e a Filolau uma teoria do
conhecimento, isto é, uma teoria da alma humana como
capaz de conhecer a estrutura numérica do mundo. O
número seria o princípio do conhecimento porque ordena
e organiza a realidade ao engendrar as coisas como
unidade e diversidade de proporções inteligíveis, pois não
devemos esquecer que, em grego, proporção se diz lÒgoj
(e, em latim, se diz ratio, razão). O número, segundo
Filolau, torna as coisas discerníveis umas com relação às
outras, as torna conhecíveis, ou, em sua linguagem
própria, “torna as coisas concordantes com a alma”,
concórdia ou proporção que decorre do fato de que a alma
também é número. Ou, na liguagem de Filolau, as coisas e
a alma são comensuráveis (proporcionais) porque
possuem a mesma medida comum ou o mesmo lÒgoj,
AULA 42.

PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE IV)

A palavra proporção, como já estudamos, na matemática incomensurabilidade entre a diagonal e o lado do quadrado põe
grega, é lÒgoj e, em latim, é ratio, razão. Quando se diz que há em questão a teoria pitagórica do número como ¢rc».
proporção entre coisas ou entre números ou entre figuras, diz-se Assim, o teorema de Pitágoras, considerado a certidão
que é possível determinar o lÒgoj ou a ratio de uma relação e de nascimento da geometria como ciência e da unidade das
conhecê-la. Assim, por exemplo, se escrevemos 2/4 : 4/8, matemáticas (isto é, da aritmética, da geometria e da música ou
veremos que a proporção, o lÒgoj ou ratio entre esses quatro harmonia) é, simultaneamente, a destruição da cosmologia
números significa determinar quantas vezes 2 está contido em 4 pitagórica. Todavia, é exatamente essa dificuldade que produzirá
e quantas vezes 4 está contido em 8 e por isso o lÒgoj ou ratio os avanços da matemática grega, particularmente os estudos da
entre eles é 2 (2 está contido 2 vezes em 4, assim como 4 está teoria das proporções.
contido 2 vezes em 8).
Ora, o que a demonstração aritmética do teorema (isto é,
não sua demonstração por figuras ou por geometria e sim por
números ou aritmética) irá revelar é que, se tomarmos os dois
triângulos retângulos que formam um quadrado e considerarmos
a hipotenusa como a diagonal do quadrado, não há lÒgoj ou
ratio entre ela e os lados, não há proporção numérica entre eles,
não são comensuráveis, e, não havendo proporção entre eles, há
alguma coisa no mundo que escapa da ordem matemática
universal.
De fato, como se coloca o chamado “problema do
pitagorismo”?
A demonstração geométrica fala em “quadrado da
hipotenusa” e “quadrados dos catetos”. Isso significa que a
demonstração recorre ao quadrado, toma a hipotenusa como
diagonal e os catetos como lados de um quadrado. Na linguagem
aritmética dos pitagóricos está sendo dito que a hipotenusa, a
diagonal, os catetos e os lados estão sendo tomados como
números quadrados, portanto, como números obtidos pelo
acréscimo de pontos ímpares à unidade. São, pois, números
ímpares. Mas se o número quadrado da diagonal for igual à
soma dos números quadrados dos dois lados, será preciso dizer Pitágoras retratado no afresco ‘Scuola di Atene’ (A Escola de
que o quadrado da diagonal é igual a duas vezes o número de Atenas - ilustração representa o conhecimento filosófico 1508-1511) de
um lado. Ora, todo número multiplicado duas vezes (ou Raffaello Sanzio (1483-1520), localizado no Museu do Vaticano (Stanza
della Segnatura). Junto a Michelângelo e da Vinci, Rafael é um dos três
multiplicado por dois) é um número par, e será preciso dizer que
grandes mestres do Alto Renascimento (e o mais jovem entre eles).
a diagonal é, ao mesmo tempo, ímpar e par, se ela e o lado Rafael Sanzio foi discípulo de Perugino e contemporâneo de Leonardo
forem comensuráveis. O que é absurdo. É preciso, portanto, da Vinci, Michelângelo e Fra Bartolommeo. O afresco Escola de Atenas
dizer que não são comensuráveis, que não há um número que é uma das suas mais admiradas obras, pintado a pedido do Papa Júlio II,
possa medi-los ao mesmo tempo. no salão de sua biblioteca particular, no Vaticano. Na Escola de Atenas
Quando, em sua obra sobre a lógica, Aristóteles Rafael dispôs figuras de sábios de diferentes épocas como se fossem
exemplifica como a ciência realiza demonstrações chamadas de colegas de uma mesma academia. Na composição dos personagens
“por redução ao absurdo”, o exemplo escolhido por ele é destaca-se Platão, segurando sua obra Timaeus, e apontando sua mão
direita para cima, talvez referindo-se às causas de todas as coisas.
exatamente este caso. Escreve Aristóteles:
Segundo Fowler [3], pág. ii, o título original do afresco era Causarum
“Prova-se, por exemplo, a incomensurabilidade da Cognitio, e somente após o século XVII passou-se a usar o nome
diagonal pela razão de que os números ímpares se tornariam popular Escola de Atenas. Também no centro da Escola de Atenas, ao
iguais aos números pares, se se pusesse a diagonal lado esquerdo de Platão e portando sua obra Ética, está Aristóteles, seu
comensurável ao lado. Conclui-se [se a diagonal for discípulo, e que viveu até 322 a.C.. Abaixo, no detalhe, Pitágoras e a
comensurável ao lado] que os números ímpares se tornariam ilustração da tetráktys.
iguais aos números pares e prova-se hipoteticamente a
incomensurabilidade da diagonal porque uma conclusão falsa
resulta da proposição contraditória [isto é, a proposição que
afirma a comensurabilidade]. É isso que chamamos de
raciocínio por absurdo: consiste em provar a impossibilidade
de alguma coisa por meio [da impossibilidade] da hipótese
concedida no início”. ARISTÓTELES, Primeiros Analíticos, 1, 23.
Do ponto de vista pitagórico, a incomensurabilidade
entre a diagonal e o lado exige que se conclua que não há um
número (em sentido pitagórico) que possa medir ao mesmo
tempo o lado e a diagonal do quadrado, isto é, um número que
possa determinar a relação entre eles e, portanto, eles são
desproporcionais, não podem ter a mesma medida, sendo por
isso incomensuráveis ou irracionais (sem ratio comum). A
AULA 43.

PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE V)

No estudo de sons musicais em cordas Atualmente, definimos números pares como


esticadas (com a mesma tensão relativa), descobriu- sendo o número que ao ser dividido por dois têm
se as regras que relacionavam a altura da nota resto zero e números ímpares aqueles que ao serem
emitida com o comprimento da corda, concluindo divididos por dois têm resto diferente de zero. Por
que as relações que produziam sons harmoniosos exemplo, 12 dividido por 2 têm resto zero, portanto
seguiam a proporção dos números inteiros simples 12 é par. Já o número 13 ao ser dividido por 2 deixa
do tipo 1/2, 2/3, 3/4, etc.. Assim, Pitágoras concluiu resto 1, portanto, 13 é ímpar.
que havia uma música que representava as relações Dizemos também que dois números são
numéricas da natureza e que constituía sua harmonia amigos se cada um deles é igual à soma dos
interior. divisores próprios do outro.
Os pitagóricos estudaram a natureza dos Os divisores próprios de um número positivo
números e, baseado nesta natureza, criaram sua N são todos os divisores inteiros positivos de N
filosofia e modo de vida. Recordemos como definir exceto o próprio N.
números pares e ímpares de acordo com a concepção Exemplo de números amigos são 220 e 284,
pitagórica: pois os divisores próprios de 220 são 1, 2, 4, 5, 10, 11,
20, 22, 44, 55 e 110. Efetuando a soma destes
PAR é o número que pode ser dividido em números obtemos o resultado 284.
duas partes iguais, sem que uma unidade fique no
meio; 1 + 2 + 4 + 5 + 10 + 11 + 20 + 22 + 44 + 55 + 110 = 284

ÍMPAR é aquele que não pode ser dividido em Os divisores próprios de 284 são 1, 2, 4, 71 e
duas partes iguais, porque sempre há uma unidade 142, efetuando a soma destes números obtemos o
no meio. resultado 220.

1 + 2 + 4 + 71 + 142 = 220
Uma outra caracterização, mostra-nos a
preocupação com a natureza dos números: A descoberta deste par de números é atribuída
Pitágoras.
NÚMERO PAR é aquele que tanto pode ser Houve uma aura mística em torno deste par de
dividido em duas partes iguais como em partes números, e estes representaram papel importante na
desiguais, mas de forma tal que em nenhuma destas magia, feitiçaria, na astrologia e na determinação de
divisões haja uma mistura da natureza par com a horóscopos.
natureza ímpar, nem da ímpar com a par. Isto tem Outros números amigos foram descobertos
uma única exceção, que é o princípio do par, o com o passar do tempo. Pierre Fermat (1601-1665)
número 2, que não admite a divisão em partes anunciou em 1636 um novo par de números amigos
desiguais, porque ele é formado por duas unidades formado por 17296 e 18416, mas na verdade tratou-se
e, se isto pode ser dito, do primeiro número par, 2. de uma redescoberta, pois o árabe Al-Banna (1256-
1321) já havia encontrado este mesmo par de
Para exemplificar o que está acima, considere números no final do século XIII. Leonardo Euler
o número 10, que é par, e pode ser dividido como a (1707-1783), matemático suíço, estudou
soma de 5 e 5, mas também como a soma de 7 e 3 sistematicamente os números amigos e descobriu,
(que são ambos ímpares) ou como a soma de 6 e 4 em 1747, uma lista de trinta pares, e ampliada por ele
(ambos são pares); mas nunca como a soma de um mais tarde para mais de sessenta pares. A título de
número par e outro ímpar. Já o número 11, que é curiosidade, todos os números amigos inferiores a
ímpar, pode ser escrito como soma de 8 e 3, um par e um bilhão já foram encontrados.
um ímpar.
AULA 44.

MEIO AMBIENTE

JOÃO LIXEIRO
João era um lixeiro diferente. Sua presença fazia-se notar já pelas roupas que usava: eram limpas. João, em sua
sabedoria popular, dizia que o externo é o reflexo do interno.
Era de uma família tradicional de lixeiros, onde o pai, “seu” Alvino, orgulhava-se cada vez que nascia um
homem na família, porque naqueles tempos somente os homens poderiam ser lixeiros.
João era um deles. Nas suas andanças pelas ruas da cidade, apresentava-se sempre sorridente, compenetrado e
feliz, pois sabia, por conhecimento tradicional, que alguém deveria sempre recolher o lixo das atitudes humanas.
Considerava honroso esse trabalho, pois sabia que só os evoluídos podem reconhecer o lixo. Os outros são apenas
inocentes fazedores de lixo!
João não se casava, porque as mulheres de sua época não conseguiam ver riquezas em reconhecedores de lixo,
lixeiros, e tão somente nos fazedores de lixo.
Gostava de ficar perto de grupos, pois sabia que mais cedo ou mais tarde entrariam em discussão e, então,
sobrariam muitos pedaços de papéis esvoaçando pelo ar, tal como palavras caluniadoras. Procurava recolher tão
depressa quanto possível estes pedaços e guardá-los em seu silêncio, pois sabia que se não agisse rapidamente o mal se
espalharia.
“LIMPAR, LIMPAR, LIMPAR” era seu lema, pois acreditava em um mundo limpo.
João morreu e foi enterrado em uma esquina suja. Está no ar, pairando até hoje, e sua esperança de que,
conforme ele dizia, “depende de você...”.
“Um grande homem cria um mundo bem melhor para todos”.

Dr. Celso Charuri


PRÊMIO DA ACADEMIA LITERÁRIA

O BICHO

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira.


Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1947.

SUGESTÃO DE FILME: “ILHA DAS FLORES”

http://www.youtube.com/watch?v=Zfo4Uyf5sgg&mode=related&search=
http://www.youtube.com/watch?v=6IrGibVoBME&mode=related&search=

EXERCÍCIO:

1. Das três maneiras de abordar o tema “lixo” visto acima, qual chamou-lhe mais a atenção? Justifique sua resposta.
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AULA 45.

XENÓFANES DE COLOFON (cerca de 570-528 a.C.)

Segundo Apolodoro, Xenófanes nasceu em os aspectos antropomórficos dos deuses míticos,


Colofon, na Jônia, de onde se viu forçado a emigrar, submetidos a paixões e desejos humanos, uma vez que
quando ainda jovem, levando então vida errante. Passou esses deuses eram imaginados com características
parte de sua vida na Sicília. Alguns estudiosos duvidam humanas. Xenófanes afirmou a existência de um deus
de sua ligação com Eléia. Restaram de suas obras alguns único, com poder absoluto, clarividência infalível, isento
fragmentos, sendo que uns são satíricos. Ficou famoso de paixões, absolutamente justo e imóvel. Sem forma
pelos ataques aos poetas Hesíodo e Homero e aos humana ou qualquer outra conhecida por nós, “vê tudo,
pensadores Tales, Pitágoras e Epimênides. Zombou dos pensa tudo e compreende tudo”, governando todas as
atletas, preferindo a sua sabedoria aos feitos atléticos, que coisas pela penetração de seu espírito e habitando sempre
não enchiam celeiros. Sua importância para a filosofia e o mesmo lugar. Não se move, isto é, não sofre mudanças,
para o surgimento da Escola Eleata repousa no fato de não está sujeito ao tempo e ao devir. Imóvel, é sempre
criticar o senso comum que não faz distinção entre a idêntico a si mesmo, eterno, uno e todo. Teve como
experiência sensorial e a razão. Procurou também criticar discípulo Parmênides.

FRAGMENTOS SELECIONADOS:

5. oÙdš ken ™n kÚliki prÒteron ker£seiš tij onon


™gcšaj, ¢ll’ Ûdwr kaˆ kaqÚperqe mšqu.

Ninguém temperaria o vinho vertendo-o primeiro


na taça, mas a água e por cima o vinho puro.

7. nàn aât’ ¥llon œpeimi lÒgon, de…xw d kšleuqon.


ka… potš min stuφelizomšnou skÚlakoj pariÒnta
φasˆn ™poikt‹rai kaˆ tÒde φ£sqai œpoj·
paàsai, mhd ·£piz, ™peˆ à φ…lou ¢nšroj ™stˆn
ψuc», t¾n œgnwn φqegxamšnhj ¢…èn.

Agora passarei de novo a outro assunto e indicarei o caminho.


E uma vez, passando por um cãozinho que espancavam,
apiedou-se, dizem, e falou o seguinte:
Pára! Não batas mais! pois é a alma de um amigo,
reconheci-a ao ouvir sua voz.

14. ¢ll’ oƒ brotoˆ dokšousi genn©sqai qeoÚj,


t¾n sφetšrhn d’ ™sqÁta œcein φwn»n te dšmaj te.

Mas os mortais acreditam que os deuses são gerados,


que como eles se vestem e têm voz e corpo.

15. ¢ll’ e„ ce‹raj œcon bÒej <†ppoi t’> º lšontej


À gr£ψai ce…ressi kaˆ œrga tele‹n ¤per ¥ndrej,
†ppoi mšn q’ †ppoisi bÒej dš te bousˆn Ðmo…aj
ka… <ke> qeîn „dšaj œgraφon kaˆ sèmat’ ™po…oun
toiaàq’ oŒÒn per kaÙtoˆ dšmaj econ <›kastoi>.

Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões


e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens,
os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois,
desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam
tais quais eles próprios têm.
AULA 46.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE XENÓFANES DE COLOFON (PARTE II)

16. A„q…opšj te <qeoÝj sφetšrouj> simoÝj mšlan£j te


QrÁikšj te glaukoÝj kaˆ purroÚj <φasi pšlesqai>.

Os etíopes dizem que os deuses têm nariz chato e são negros,


os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos.

18. oÜtoi ¢p’ ¢rcÁj p£nta qeoˆ qnhto‹s’ Øpšdeixan,


¢ll¦ crÒnwi zhtoàntej ™φeur…skousin ¥meinon.

Não, de início os deuses não desvendaram tudo aos mortais;


mas, com o tempo, procurando, estes descobriram o melhor.

19. doke‹ d kat£ tinaj prîtoj ¢strologÁsai kaˆ ¹liak¦j


™kle…ψeij kaˆ trop¦j proeipe‹n, éj φhsin EÜdhmoj ™n tÁi perˆ
tîn 'Astrologoumšnwn ƒstor…ai, Óqen aÙtÕn kaˆ X. kaˆ `HrÒdotoj qaum£zei.

Parece que [Tales], segundo alguns, foi o primeiro a estudar os astros e a prever
eclipses solares e solstícios, como diz Eudemo em sua investigação sobre
a Astronomia, motivo pelo qual tanto Xenófanes quanto Heródoto o admirar.

23. eŒj qeÒj, œn te qeo‹si kaˆ ¢nqrèpoisi mšgistoj,


oÜti dšmaj qnhto‹sin Ðmo…ioj oÙd nÒhma.

Um único Deus, entre deuses e homens o maior,


em nada no corpo semelhante aos mortais, nem no pensamento.

25. ¢ll’ ¢p£neuqe pÒnoio nÒou φrenˆ p£nta krada…nei.

Mas, sem esforço, tudo estremece com o pensar da mente.

27. ™k ga…hj g¦r p£nta kaˆ e„j gÁn p£nta teleut©i.

Pois tudo vem da terra e na terra tudo termina.

31. ºšliÒj q’ Øperišmenoj ga‹£n t’ ™piq£lpwn.

O sol lançando-se por sobre a terra e aquecendo-a.

33. p£ntej g¦r ga…hj te kaˆ Ûdatoj ™kgenÒmesqa.

Pois todos nascemos da terra e da água.

34. kaˆ tÕ mn oân saφj oÜtij ¢n¾r ‡den oÙdš tij œstai
e„dëj ¢mφˆ qeîn te kaˆ ¤ssa lšgw perˆ p£ntwn·
e„ g¦r kaˆ t¦ m£lista tÚcoi tetelesmšnon e„pèn,
aÙtÕj Ómwj oÙk ode· dÒkoj d’ ™pˆ p©si tštuktai.

E o que é claro, portanto, nenhum homem viu, nem haverá alguém que
conheça sobre os deuses e acerca de tudo o que digo;
pois ainda que no máximo acontecesse dizer o que é perfeito,
ele próprio não saberia; a respeito de tudo existe uma opinião.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 47.

EXERCÍCIOS:

1. A partir do estudo de Pitágoras de Samos, faça um resumo, usando no mínimo 15 linhas, sobre a
vida e obra deste pensador.
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2. Escolha três (3) fragmentos atribuídos a Xenófanes de Colofon e explique o motivo de sua
escolha.
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AULA 48.

HERÁCLITO DE ÉFESO (cerca de 540-470 a.C.)

Heráclito, filho de Blóson, nasceu em Éfeso, na Jônia, oÜte rÚptei ¢ll¦ shma…nei). Com esse fragmento, Heráclito
atual Turquia. Era de família aristocrata (seu pai descendia do nos dá a entender que conhecer é decifrar e interpretar signos e
fundador de Éfeso, o rei Andóclos, que descendia do rei de que a verdade é a ¢l»qeia (alétheia) ou o que se desoculta por
Atenas, Codros) que ainda conservava a prerrogativa de usar meio de sinais. Mas quem nos envia sinais? A resposta encontra-
títulos régios dos fundadores da cidade (isto é, ser chamado de se num outro fragmento (50), onde lemos: “é sábio escutar não a
arconte, usar manto púrpura e carregar um cetro). Seu caráter mim, mas ao lÒgoj que por mim fala e concordar que tudo é
altivo, misantrópico e melancólico ficou proverbial em toda um” (oÙk ™moà, ¢ll¦ toà lÒgou ¢koÚsantaj Ðmologe‹n
antigüidade. Desprezava a plebe. Recusou-se sempre a intervir soφÒn ™stin n p£nta enai). Os sinais da verdade são
na política. Manifestou desprezo pelos antigos poetas, contra os enviados pelo lÒgoj, isto é, pelo pensamento e pela palavra.
filósofos de seu tempo e até contra a religião. Sem ter tido Esse pensamento e essa palavra não são os nossos — não é a
mestre, Heráclito escreveu um livro “Sobre a Natureza”, em mim que se deve escutar, escreve Heráclito — mas são uma
prosa, no dialeto jônico, mas de forma tão concisa que recebeu o razão e uma linguagem universais, a presença do divino na
apelido de skoteinÒj, o Obscuro. Floresceu em 504-500 a.C., natureza e em nós.
por ocasião da 69ª Olimpíada. Heráclito é por muitos Heráclito foi alcunhado de “o fazedor de enigmas” e
considerado o mais eminente pensador pré-socrático, por “o Obscuro”. Essas alcunhas provavelmente vieram de sua
formular o problema da unidade permanente do ser diante da concepção oracular do pensamento e da linguagem como fonte
pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. de sinais que “não manifestam nem ocultam”, mas se oferecem
Estabeleceu a existência de uma lei universal e fixa (o lÒgoj), como algo a ser decifrado e interpretado.
regedora de todos os acontecimentos particulares e fundamento O lÒgoj diz que “tudo é um”. Como, então,
da harmonia universal, harmonia feita de tensões, como do “arco compreender a multiplicidade e diversidade de todas as coisas?
e da lira”. O lÒgoj também ensina que “a guerra é rei e pai de todas as
coisas”. Como, então, compreender que elas formam e são a
unidade? Mas, que é o lÒgoj? É a φÚsij ou o “fogo primordial”
que arde eternamente. Que significa identificar φÚsij e lÒgoj?
Significa afirmar que o mundo é um kÒsmoj ou uma ordem
racional porque seu princípio — sua ¢rc» e sua φÚsij — é a
própria razão — o lÒgoj.
Um exemplo, atribuído ao próprio Heráclito, pode nos
ajudar a compreender o fluxo universal como transformação sob
a aparência da permanência. Quando a vela está acesa, temos a
impressão de que a chama é estável e idêntica a si mesma e que
o que muda é a quantidade de cera da vela, que vai sendo
consumida pela chama. Na verdade, porém, a chama é um
processo de transformação: nela, a cera da vela se torna fogo e
nela o fogo se torna fumaça. Assim, não só a vela se transforma
como também a própria chama que a consome, pois é
consumida pela fumaça.
O fluxo perpétuo do mundo não é caótico nem
arbitrário, mas segue uma lei que Heráclito apresenta num de
seus mais celebres fragmentos (53): “a guerra (pÒlemoj) é o pai
e o rei de todas as coisas”. Contra a tradição dos poemas de
Homero e contra a posição de Anaximandro, nas quais a
discórdia e a guerra são injustiça enquanto a concórdia e a paz
Heráclito é um dos raros pré-socráticos de que são justiça, Heráclito afirma que “a guerra é comunidade”, isto
possuímos fragmentos (ao todo, 132 ou 135), nos quais alguns é, a guerra é o que põe as coisas juntas para formar um mundo
traços podem ser claramente percebidos: o sentimento em comum, e, portanto, a luta dos contrários é harmonia e
aristocrático (“um só é dez mil para mim, se é o melhor”); a justiça. Como as cordas da lira, tendidas ao máximo pelo arco,
ironia contra a polymathie (polumaq…h) de Pitágoras, isto é, a produzem os mais perfeitos acordes e as mais perfeitas
erudição sobre minúcias e detalhes de inúmeras coisas, sem melodias, assim também a harmonia do mundo nasce da tensão
alcançar a unidade e profundidade delas (“o fato de aprender entre os opostos. Lemos no fragmento 51: “o que se opõe a si
muitas coisas não instrui a inteligência: do contrário teria mesmo está em acordo consigo mesmo; harmonia e tensões
instruído Hesíodo e Pitágoras”, lemos no fragmento 40). contrárias como as do arco e da lira” (oÙ xuni©sin Ókwj
Considerado por muitos como o mais importante dos diaφerÒmenon ˜wutîi Ðmologšei· pal…ntropoj ¡rmon…h
pré-socráticos, durante os últimos vinte e cinco séculos Ókwsper tÒxou kaˆ lÚrhj). Enganam-se, pois, os que supõem
Heráclito não cessou de ser lido, citado, comentado e que a realidade é tranqüila e inerte. Ela é inquieta e móvel,
interpretado das mais variadas maneiras. Com Parmênides de tensa, concordante porque discordante, e da guerra nasce a
Eléia, pode ser considerado como o fundador da filosofia: ordem ou o cosmos, equilíbrio dinâmico de forças contrárias que
ambos colocaram os problemas e as soluções, as questões e as coexistem e se sucedem sem cessar. A unidade do mundo é sua
respostas, as interrogações e os impasses que definira, nos multiplicidade. Tudo é um porque o um é tudo ou todas as
séculos seguintes, a reflexão filosófica. coisas.
Heráclito também se refere ao oráculo de Delfos com
respeito: “o senhor, de que é adivinho em Delfos, não diz nem
oculta o seu pensamento, mas o faz ser visto por sinais” (frag.
93: Ð ¥nax, oá tÕ mante‹Òn ™sti tÕ ™n Delφo‹j, oÜte lšgei
AULA 49.

HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)


A multiplicidade móvel e a luta dos contrários não é medida que se apaga, uma outra se acende, eternamente.
uma dispersão sem fundo. O vulgo e o senso comum são Quando a água se evapora, uma medida de úmido se apaga e
incapazes de compreender o sentido de “tudo é um” porque uma medida de quente se acende; quando a água evaporada se
acreditam que cada oposto poderia existir sem o seu oposto e condensa em nuvens, uma medida de quente se apaga e uma
olham as coisas como uma multiplicidade de seres separados medida de úmido se acende. E assim sempre e com todas as
uns dos outros. Em outras palavras, não percebem que a coisas.
multiplicidade é unidade e a unidade, multiplicidade, pois cada Heráclito fala nas medidas como “exalações do fogo”
contrário nasce do seu contrário e faz nascer o seu contrário, isto e as distingue em medidas ou exalações claras e obscuras. O
é, são inseparáveis. A noite traz dentro de si o dia e este traz quente é a mais perfeita expressão das primeiras; o úmido, a
dentro de si a noite; o frio traz dentro de si o quente e o quente mais completa expressão das segundas. São claras ou do “fogo
traz dentro de si o frio; a necessidade traz dentro de si o acaso e ardente”: o sol, a luz, o calor, a vida, a saúde, a beleza, o
o acaso traz dentro de si a necessidade; a saúde traz dentro de si conhecimento. São obscuras ou do “fogo apagado”: a noite, a
a doença e a doença traz dentro de si a saúde; a beleza traz treva, o frio, a morte, a doença, a feiúra, a ignorância. E há a
dentro de si a feiúra e a feiúra traz dentro de si a beleza; a vida guerra entre as medidas, guerra que é ordem e justiça do mundo.
traz dentro de si a morte e a morte traz dentro de si a vida. O um Porque a medida é a moderação dos contrários, a
é múltiplo e o múltiplo é um. Essa afirmação nuclear do guerra das medidas ou dos opostos não é violência e tirania,
pensamento de Heráclito não deve ser entendida como a opulência de uns ao preço da indigência de outros. A natureza,
entendemos nos outros pré-socráticos. De fato, para estes, há sempre justa e moderadora, nunca leva ao excesso ou à carência;
uma unidade primordial (a φÚsij) que, mantendo-se em sua nela, os contrários em luta se compensam uns aos outros. Ou,
unidade eterna, dá origem à multiplicidade das coisas por meio como diz Heráclito, o fogo primordial nunca excede suas
de movimentos de separação e diferenciação. Ou seja, a unidade medidas e é isto sua justiça (d…kh).
primordial não se confunde com a multiplicidade nascida dela. Lemos também no fragmento 83 que o mais sábio dos
Não é o que pensa e diz Heráclito. Para ele, a unidade homens, se comparado ao deus, é apenas um símio. Porém, num
primordial é múltipla, o um existe múltiplo, é múltiplo. “Tudo é outro fragmento, o 82, é dito que o mais belo símio é feio, se
um” significa que a multiplicidade tensa, contraditória ou em comparado ao homem. Heráclito mantém, portanto, a idéia de
luta é a unidade e a comunidade de todas as coisas. que a sabedoria e a verdade plenas pertencem à divindade (ao
Como se dá a unidade do múltiplo e a multiplicidade lÒgoj) e que o homem pode apenas amá-las e procurá-las. Eis
do um? Pela φÚsij. Lemos no fragmento 30: “este mundo, o por que afirma que é sábio escutar “não a mim, mas ao lÒgoj
mesmo e comum para todos, nenhum dos deuses e nenhum que por mim fala”, no fragmento 50. E pelo mesmo motivo, o
homem o fez; mas era, é e será um fogo sempre vivo, “Obscuro” critica o vulgo ou o senso comum, incapaz de ir além
acendendo-se e apagando-se conforme a medida” (kÒsmon do que a experiência sensorial lhe oferece e de compreender que
tÒnde, tÕn aÙtÕn ¡p£ntwn, oÜte tij qeîn oÜte ¢nqrèpwn tudo é um, tudo é múltiplo, tudo flui e que a permanência é
™po…hsen, ¢ll’ Ãn ¢eˆ kaˆ œstin kaˆ œstai pàr ¢e… zwon, mudança.
¡ptÒmenon mštra kaˆ ¢posbennÚmenon mštra). O fragmento 101 recolhido por Plutarco diz: “procurei-
O fogo de que fala Heráclito não é o quente, ou o fogo me a mim mesmo” (™dizhs£mhn ™mewutÒn). Que seria essa
percebido por nossos sentidos, pois o calor já é uma qualidade procura? No fragmento 79 recolhido por Numênio pode sugerir
determinada que, juntamente com o frio, o seco e o úmido, uma resposta: “o homem, como uma criança, escuta o divino, tal
move-se no mundo. O fogo primordial, que ninguém — nem como a criança escuta o homem” (¢n¾r n»pioj ½kouse prÕj
deuses nem homens — fez é a origem sempre viva e eterna de da…monoj Ókwsper pa‹j prÕj ¢ndrÒj). Procurar-se é escutar o
todas as coisas. lÒgoj que ama esconder-se na harmonia do invisível. Que
φÚsij e lÒgoj, o fogo primordial é uma força em ensina o lÒgoj? Não apenas que a guerra é o rei e o pai de todas
movimento, uma ação em que faz de si mesmo todas as coisas e as coisas segundo a medida, mas também, conforme o
todas elas são ele mesmo. Ele é como a chama da vela, mas uma fragmento 89 mencionado por Plutarco, que há “um mundo
chama eterna, acendendo-se e apagando-se sem cessar. único e comum”, conhecido pelos que estão despertos (os
Ora, o fragmento acima citado diz que o fogo sempre sábios) e ignorado pelos que, “adormecidos, revolvem-se no
vivo se acende e se apaga “conforme a medida”. Que pretende próprio leito” (to‹j ™grhgorÒsin ›na kaˆ koinÕn kÒsmon
Heráclito significar com isso? enai, tîn d koimwmšnwn ›kaston e„j ‡dion
A palavra “medida” possui em grego (e também no ¢postršφesqai). Procurar-se a si mesmo — ou conhecer — é
latim) dois sentidos. O verbo “medir” significa mensurar, isto é, colocar-se em consonância com o lÒgoj.
atribuir uma certa quantidade a alguma coisa; mas também Conhecer é decifrar e interpretar a natureza que ama
significa moderar, isto é, impor um limite a alguma coisa e a ocultar-se. O conhecimento é um movimento espiritual da alma
moderação é um ato justo ou de justiça. Quando Heráclito que sabe usar os olhos e os ouvidos quando aprendeu a “pensar
identifica φÚsij e lÒgoj, e declara que o fogo age “conforme a a si mesma”. A alma, mistura de água, ar e fogo, úmida, fria ou
medida”, toma “medida” e “medir” nos dois sentidos, ou seja, o quente, será tanto mais racional quanto mais nela prevalecerem
fogo primordial se distribui quantitativamente em todas as as medidas de fogo sobre as de água e ar. Pela respiração, a alma
coisas em quantidades perfeitamente determinadas e o fogo absorve o fogo e por isso, quando o ritmo da respiração baixa,
primordial delimita todas as coisas para que nelas não haja sua capacidade de conhecimento também baixa: sono, sonho.
excesso nem falta. A φÚsij é lÒgoj porque mede e modera as Também baixa quando a medida da água suplanta a do fogo:
coisas, dá-lhes um ser determinado e conforme à necessidade de embriaguez, doença. O senso comum se parece com o sono e
cada uma delas, ele as faz racionais, proporcionais umas às com a embriaguez, com a alma “bárbara” que não sabe ver,
outras, harmoniosas em suas oposições. O devir, esse acender-se ouvir, falar nem pensar.
e apagar-se contínuo do fogo primordial, assegura a
permanência — a medida de cada coisa — e a lei de sua
mudança — passar de uma medida a outra medida. A cada
AULA 50.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE I)

3. (perˆ megšqouj ¹l…ou) eâroj podÕj ¢nqrwpe…ou.

(Sobre a grandeza do sol) sua largura é a de um pé humano.

6. Ð ¼lioj oÙ mÒnon, kaq£per Ð `H. φhsi, nšoj ™φ’ ¹mšrhi ™st…n, ¢ll’ ¢eˆ nšoj sunecîj.

O sol não apenas, como Heráclito diz, é novo cada dia, mas sempre novo, continuamente.

9. ˜tšra g¦r †ppou ¹don¾ kaˆ kunÕj kaˆ ¢nqrèpou, kaq£per `H. φhsin Ônouj sÚrmat’ ¨n ˜lšsqai
m©llon À crusÒn.

Diverso é o prazer do cavalo, do cão, do homem, tal como Heráclito diz que asnos prefeririam palha a
ouro.

30. kÒsmon tÒnde, tÕn aÙtÕn ¡p£ntwn, oÜte tij qeîn oÜte ¢nqrèpwn ™po…hsen, ¢ll’ Ãn ¢eˆ kaˆ œstin
kaˆ œstai pàr ¢e…zwon, ¡ptÒmenon mštra kaˆ ¢posbennÚmenon mštra.

Este mundo, o mesmo de todos os (seres), nenhum deus; nenhum homem o fez, mas era, é e será um
fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.

33. nÒmoj kaˆ boulÁi pe…qesqai ˜nÒj.

Lei (é) também persuadir-se à vontade um só.

34. ¢xÚnetoi ¢koÚsantej kwφo‹sin ™o…kasi· φ£tij aÙto‹sin marture‹ pareÒntaj ¢pe‹nai.

Ouvindo descompassados assemelham-se a surdos; o ditado lhes concerne: presentes estão ausentes.

38. [Thales] doke‹ d kat£ tinaj prîtoj ¢strologÁsai ... marture‹ d’ aÙtîi kaˆ `H. kaˆ DhmÒkritoj.

(Tales) parece segundo alguns ter sido o primeiro a estudar os astros. A seu respeito atestam Heráclito
e Demócrito.

40. polumaq…h nÒon œcein oÙ did£skei· `Hs…odon g¦r ¨n ™d…daxe kaˆ PuqagÒrhn aât…j te Xenoφ£ne£
te kaˆ `Ekata‹on.

Muita instrução não ensina a ter inteligência; pois teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, Xenófanes e
Hecateu.

45. ψucÁj pe…rata „ën oÙk ¨n ™xeÚroio, p©san ™piporeuÒmenoj ÐdÒn· oÛtw baqÝn lÒgon œcei.

Limites da alma não os encontraria, todo o caminho percorrendo; tão profundo lógos ela tem.

47. m¾ e„kÁ perˆ tîn meg…stwn sumballèmeqa.

Não conjeturemos à toa sobre as coisas supremas.


AULA 51.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)

49. eŒj ™moˆ mÚrioi, ™¦n ¥ristoj Ãi.

Um para mim vale mil, se for o melhor.

49a. potamo‹j to‹j aÙto‹j ™mba…nomšn te kaˆ oÙk ™mba…nomen, emšn te kaˆ oÙk emen.

Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.

51. kaˆ Óti toàto oÙk ‡sasi p£ntej oÙd Ðmologoàsin, ™pimšmφetai ïdš pwj· oÙ xuni©sin Ókwj
diaφerÒmenon ˜wutîi Ðmologšei· pal…ntropoj ¡rmon…h Ókwsper tÒxou kaˆ lÚrhj.

Não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de
arco e lira.

53. pÒlemoj p£ntwn mn pat»r ™sti, p£ntwn d basileÚj, kaˆ toÝj mn qeoÝj œdeixe toÝj d ¢nqrèpouj,
toÝj mn doÚlouj ™po…hse toÝj d ™leuqšrouj.

O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez
escravos, de outros livres.

58. oƒ goàn „atro…, tšmnontej, ka…ontej, p£nthi basan…zontej kakîj toÝj ¢rrwstoàntaj, ™paitšontai
mhdn ¥xioi misqÕn lamb£nein par¦ tîn ¢rrwstoÚntwn, taÙt¦ ™rgazÒmenoi, t¦ ¢gaq¦ kaˆ t¦j
nÒsouj.

Os médicos, quando cortam, queimam e de todo torturam os pacientes, ainda reclamam um salário que não
merecem, por efetuarem o mesmo que as doenças.

61. q£lassa Ûdwr kaqarètaton kaˆ miarètaton, „cqÚsi mn pÒtimon kaˆ swt»rion, ¢nqrèpoij d ¥poton
kaˆ Ñlšqrion.

Mar, água mais pura e mais impura, para os peixes potável e saudável, para os homens impotável e mortal.

70. `H. pa…dwn ¢qÚrmata nenÒmiken enai t¦ ¢nqrèpina dox£smata.

Jogos de criança Heráclito considerou as opiniões humanas.

75. toÝj kaqeÚdontaj omai Ð `H. ™rg£taj enai lšgei kaˆ sunergoÝj tîn ™n tîi kÒsmwi ginomšnwn.

Os que dormem, creio que chama Heráclito de obreiros e colaboradores (das coisas) que no mundo vêm a
ser.

82. PLATÃO, Hípias Maior, 289 a. piq»kwn Ð k£llistoj a„scrÕj ¢nqrèpwn gšnei sumb£llein.

O mais belo símio é feio, a se confrontar com o gênero humano.

83. Idem, ibidem, 289 b. ¢nqrèpwn Ð soφètatoj prÕj qeÕn p…qhkoj φane‹tai kaˆ soφ…ai kaˆ k£llei kaˆ
to‹j ¥lloij p©sin.

O mais sábio dos homens em face de deus se manifestará como um símio, em sabedoria, beleza e tudo o
mais.
AULA 52.

FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE III)

87. bl¦x ¥nqrwpoj ™pˆ pantˆ lÒgwi ™ptoÁsqai φile‹.

Um homem tolo gosta de se empolgar a cada palavra.

89. Ð `H. φhsi to‹j ™grhgorÒsin ›na kaˆ koinÕn kÒsmon enai, tîn d koimwmšnwn ›kaston e„j ‡dion ¢postršφesqai.

Heráclito diz que para os despertos um mundo único e comum é, mas os que estão no leito cada um se revira para o
seu próprio.

90. purÒj te ¢ntamoib¾ t¦ p£nta kaˆ pàr ¡p£ntwn Ókwsper crusoà cr»mata kaˆ crhm£twn crusÒj.

Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas, tal como por ouro mercadorias e por mercadorias ouro.

101. ™dizhs£mhn ™mewutÒn.

Procurei-me a mim mesmo.

101a. Ñφqalmoˆ g¦r tîn êtwn ¢kribšsteroi m£rturej.

Pois os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos.

102. tîi mn qeîi kal¦ p£nta kaˆ ¢gaq¦ kaˆ d…kaia, ¥nqrwpoi d § mn ¥dika Øpeil»φasin § d d…kaia.

Para o deus são belas todas as coisas e boas e justas, mas os homens tomam umas (como) injustas, outras (como)
justas.

104. t…j g¦r aÙtîn nÒoj À φr»n; d»mwn ¢oido‹si pe…qontai kaˆ didask£lwi cre…wntai Ðm…lwi oÙk e„dÒtej Óti “oƒ
polloˆ kako…, Ñl…goi d ¢gaqo…”.

Pois que inteligência ou compreensão é a deles? Em cantores de rua acreditam e por mestre têm a massa, não sabendo
que “a maioria é ruim e poucos são bons”.

105. `H. ™nteàqen ¢strolÒgon φhsˆ tÕn “Omhron kaˆ ™n oŒj φhsi “mo‹ran d’ oÜ tin£ φhmi peφugmšnon œmmenai
¢ndrîn”.

Dessa passagem Heráclito afirma que astrólogo foi Homero, assim como daquela em que o poeta diz “do destino, eu
afirmo, jamais homem algum escapou”.

112. swφrone‹n ¢ret¾ meg…sth, kaˆ soφ…h ¢lhqša lšgein kaˆ poie‹n kat¦ φÚsin ™paontaj.

Pensar sensatamente (é) virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo (a) natureza, escutando.

113. xunÒn ™sti p©si tÕ φronšein.

Comum é a todos o pensar.

116. ¢nqrèpoisi p©si mštesti ginèskein ˜wutoÝj kaˆ swφrone‹n.

A todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmos e pensar sensatamente.

123. φÚsij d kaq’`Hr£kleiton krÚptesqai φile‹.

Natureza, segundo Heráclito, ama esconder-se.


AULA 53.

FILOSOFIA: UM PENSAMENTO SISTEMÁTICO

A filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos
meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e
criar uma propaganda.

As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.

Que significa isso?

Significa que a filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos
entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova,
exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode
fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si
mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”.

O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter


respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar,
que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem
conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.

Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”,
engana-se e não se engana.

Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias
mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou
menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no
plano de um “eu acho” coerente.

Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito
confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma
filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que
a filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a filosofia tem uma vocação para formar um
todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana.
AULA 54.

PARMÊNIDES DE ELÉIA (cerca de 530-460 a.C.)

Parmênides nasceu em Eléia, hoje Vélia, na título original ou o título tardio, sempre dado às obras dos
Itália. Foi discípulo do pitagórico pré-socráticos). A obra se divide em duas partes, após um
Ameinias e mostrou conhecer a doutrina pitagórica. preâmbulo. A primeira ficou conhecida como a Via da
Provavelmente também seguiu as lições do velho Verdade (¢l»qeia) e a segunda como a Via da Opinião
Xenófanes. Em Atenas, com Zenão, combateu a filosofia (dÒxa). Da primeira, há numerosos fragmentos, mas da
dos jônicos. Floresceu por volta de 500 a.C.. Platão segunda restam poucos. Para muitos, a obra ergue-se
afirmou que Parmênides esteve em Atenas, onde se contra o pitagorismo (a dualidade par-ímpar como origem
encontrou com o jovem Sócrates e que, na ocasião, tinha da ordem do mundo) e contra Heráclito (o fluxo perpétuo
65 anos. e a identidade do uno e do múltiplo). É sintomático que o
Enquanto os milésios e Heráclito escreveram em poema fale em duas vias ou dois caminhos que
prosa, Parmênides foi o primeiro filósofo a expor suas correspondem à diferença entre a palavra inspirada
idéias em verso. Seu famoso poema, do qual restam (¢l»qeia), a verdade como não-esquecimento do que foi
alguns fragmentos, está escrito em hexâmetros (influência contemplado no invisível, e a palavra leiga das
provável de Xenófanes) e, nele, o filósofo-poeta se assembléias (dÒxa), a verdade como decisão e opinião
apresenta como o Escolhido, conduzido pelas Filhas do compartilhada nas discussões públicas.
Sol à sua Musa, que, com a permissão da Justiça, revela- Acompanhemos alguns trechos do poema
lhe a Verdade e toda a Verdade. O poema é conhecido parmenidiano:
como “Sobre a Natureza” (não se tem certeza se seria o

FRAG. 1. 31-34
Óte sperco…ato pšmpein
`Hli£dej koàrai, prolipoàsai dèmata NuktÒj,
e„j φ£oj, çs£menai kr£twn ¥po cersˆ kalÚptraj.
œnqa pÚlai NuktÒj te kaˆ ”HmatÒj e„si keleÚqwn,

“quando se apressavam a enviar-me


as filhas do Sol, deixando as moradas da Noite,
para a luz, das cabeças retirando com as mãos os véus.
É lá que estão as portas aos caminhos de Noite e Dia,”

FRAG. 1. 37
tîn d D…kh polÚpoinoj œcei klh‹daj ¢moiboÚj.

“destes Justiça de muitas penas tem chaves alternantes”.

FRAG. 1. 45-49
ka… me qe¦ prÒφrwn Øpedšxato, ce‹ra d ceir…
dexiter¾n ›len, ïde d’ œpoj φ£to ka… me proshÚda·
ð koàr’ ¢qan£toisi sun£oroj ¹niÒcoisin,
†ppoij ta… se φšrousin ƒk£nwn ¹mšteron dî,
ca‹r’

“E a Deusa me acolheu benévola, e na sua a minha


mão direita tomou, e assim dizia e me interpelava:
Ó jovem, companheiro de aurigas imortais,
tu que assim conduzido pelas éguas chegas à nossa morada,
Salve!” ...
AULA 55.

PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE II)

FRAG. 1. 51-53
creë dš se p£nta puqšsqai
ºmn 'Alhqe…hj eÙkuklšoj ¢tremj Ãtor
ºd brotîn dÒxaj, ta‹j oÙk œni p…stij ¢lhq»j.

“é preciso que de tudo te instruas,


do âmago inabalável da verdade ('Alhqe…hj) bem redonda,
e das opiniões (dÒxaj) dos mortais, em que não há fé verdadeira”.

FRAG. 2. 7-34
™gën ™ršw, kÒmisai d sÝ màqon ¢koÚsaj,
a†per Ðdoˆ moànai diz»siÒj e„si noÁsai·
¹ mn Ópwj œstin te kaˆ æj oÙk œsti m¾ enai,
Peiqoàj ™sti kšleuqoj ('Alhqe…hi g¦r Ñphde‹),
¹ d’ æj oÙk œstin te kaˆ æj creèn ™sti m¾ enai,
t¾n d» toi φr£zw panapeuqša œmmen ¢tarpÒn·
oÜte g¦r ¨n gno…hj tÒ ge m¾ ™Õn (oÙ g¦r ¢nustÒn)
oÜte φr£saij.

“eu te direi, e tu, recebe a palavra que ouviste,


os únicos caminhos de inquérito que são a pensar:
o primeiro, que é; e, portanto, que não é não ser,
de Persuasão, é caminho, pois à verdade acompanha.
O outro, que não é; e, portanto, que é preciso não-ser.
Eu te digo que este último é atalho de todo não crível,
pois nem conhecerias o que não é,
nem o dirias...”

FRAG. 3. 7
... tÕ g¦r aÙtÕ noe‹n ™st…n te kaˆ enai.

“pois o mesmo é pensar e, portanto, ser”.

FRAG. 6. 8-9
cr¾ tÕ lšgein te noe‹n t’ ™Õn œmmenai· œsti g¦r enai,
mhdn d’ oÙk œstin· t£ s’ ™gë φr£zesqai ¥nwga.

“Necessário é o dizer e pensar que o ente é; pois é ser.


E nada não é. Isto eu te mando considerar”.

O que é novo neste poema é o fato de que, embora pareça pertencer ao universo da antiga ¢l»qeia
dos magos, poetas e adivinhos, a fala da Deusa já nada tem a ver com a linguagem sagrada dos mistérios.
Pelo contrário, é a razão quem fala, oferecendo argumentos compreensíveis e simples. O poema é filosofia.
Qual é o “âmago inabalável da verdade bem redonda”? Aquilo que é dito no final do fragmento 1, 52
citado e que, conforme estudos filológicos dos helenistas, pode ser assim transcrito: “é necessário pensar e
dizer isto: que o ente é, pois é ser; e que o nada não é, pois [é] não ser”. Ora, logo depois, o poema diz: “é o
mesmo pensar e ser” e podemos concluir que Parmênides tanto afirma que o que pode ser dito e pensado
deve ser (ou existir) como, inversamente, afirma que o ser é o que pode ser pensado e dito. E, por
contraposição, tanto declara que o nada, porque não é (não existe), não pode ser pensado nem dito, como,
inversamente, que o que não pode ser pensado nem dito, não é.
AULA 56.

PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE III)

Não julgue que esse poema é estranho apenas Ontologia é, portanto, o estudo do ser ou o pensamento do
para nossos ouvidos modernos. Ele foi estranho e ser.
enigmático para os próprios gregos contemporâneos de Essas palavras encontram-se em todo o poema de
Parmênides. É que nas fórmulas extremamente Parmênides e nos trechos que foram estudados, e é por
condensadas de seus versos estão colocadas as questões isso que muitos intérpretes consideram que a ontologia
fundamentais que, doravante, ocuparão a filosofia. nasce quando Parmênides afirma que a ¢rc» é o ser ou o
Que está dizendo Parmênides? que é, o ente — o ™Õn — e que o não-ser, o não-ente —
Que o ser é e o nada não é. m» ™Õn — não é. E convém observar a radicalidade de
Que o ser pode ser pensado e dito. Parmênides: ele não considera que podemos pensar e
Que o nada não pode ser pensado nem dito. dizer o que existe e não podemos pensar e dizer o que não
Que pensar e ser são o mesmo. existe, e sim que o que é pensável e dizível existe, e que o
Que, portanto, o nada é não-ser e impensável. que não é pensável nem dizível não existe. Pela primeira
Que dizer e ser são o mesmo. vez é afirmada a identidade entre ser, pensar e dizer, ou
Que, portanto, o nada é não-ser e indizível. entre mundo, pensamento e linguagem. Tal identidade é o
Mas que significa isso que Parmênides está núcleo da ontologia parmenidiana ou a Via da Verdade.
dizendo? E por que afirma ele que isso é o que a Deusa Por que a opinião (dÒxa) é o caminho do não-
lhe mostra na Via da Verdade, oposta à Via da Opinião ser? A que se refere a opinião? Ao que parece ser de um
que os mortais costumam seguir? certo modo, mas nada impede que pudesse ser de outro
Para muitos intérpretes, Parmênides teria, pela para uma outra pessoa, ou em outro momento de nossa
primeira vez, formulado os dois princípios lógicos vida. Nela exprimimos nossas preferências, nossos
fundamentais de todo o pensamento: o princípio da sentimentos e interesses, que variam de pessoa para
identidade — o ser é o ser — e o princípio de não- pessoa e variam numa mesma pessoa, dependendo das
contradição — se o ser é, o seu contrário, não-ser, não é. circunstâncias. A “Opinião” são opiniões instáveis,
Em outros termos, se o ser é e pode ser pensado e dito, mutáveis, efêmeras e por isso no fragmento 1, 53 do
então o ser é ele mesmo, idêntico a si mesmo e será poema de Parmênides diz: “as opiniões dos mortais, em
impossível que seu negativo, o nada ou não-ser, também que não há verdadeira fidelidade”, isto é, em que não
seja e também possa ser pensado e dito. A afirmação do podemos confiar nem nos fiar, pois mudam sempre.
ser exige a negação de seu oposto, o não-ser. Parmênides Referindo-se ao que nos parece ser “assim” mas poderia
teria descoberto a lei fundamental do pensamento ser de outra maneira, a dÒxa depende das variações de
verdadeiro, pela qual é impossível afirmar ao mesmo estados de nossos corpos e das situações de nossas vidas.
tempo uma coisa e seu contrário. Ora, é próprio da dÒxa Porém, não só isso. Sua variação contínua indica que nela
permitir e estimular o confronto de idéias contrárias, não temos conhecimento verdadeiro daquilo que é, do ser,
aceitando igualmente a validade de ambas. Se assim é, mas apenas o conhecimento das aparências das coisas,
então a Via da Opinião é aquela que não respeita a isto é, de como elas aparecem aos nossos órgãos dos
identidade e a não-contradição, e por isso é a via do falso. sentidos. Ora, o que é uma aparência? Aquilo que pode
Para outros intérpretes, porém, o mais importante deixar de aparecer como está aparecendo, aquilo que
na formulação parmenidiana não é seu aspecto lógico poderia não ser tal como aparece. Em outras palavras, se
(este aspecto seria apenas um derivado ou um efeito) e a aparência é o que alguma coisa nos parece ser, mas pode
sim seu aspecto ontológico. Ou melhor, com Parmênides não ser tal como aparece, então ela é o não-ente, o não-
teria nascido o que conhecemos como ontologia. ser.
Por que ontologia? Se o ser é o que permanece sempre idêntico a si
No grego, o particípio presente do verbo ser é mesmo, onde melhor se mostra a aparência enquanto
ên, oâsa, Ôn (masculino, feminino e neutro) e, no dialeto aparência? Na mudança contínua. No deixar de ser uma
jônico, empregado por Parmênides, esse particípio é Ÿwn, maneira para tornar-se de outra. Numa palavra, no devir,
Ÿousa, ™Õn. Esse particípio pode ser usado como no incessante vir a ser em que as coisas se tornam outras,
substantivo singular e plural, no masculino, no feminino e tornando-se o que não são. O devir é movimento — a
no neutro. Os usos substantivados mais freqüentes eram: k…nhsij, mudança qualitativa, quantitativa e local. Por
1) no masculino singular, Ð ên (Ÿwn), o que é ou aquele isso o movimento é o campo principal da aparência e da
que é e, no masculino plural, oƒ Ôntej (Ÿontej), os opinião: as coisas parecem mudar e as opiniões mudam
viventes, os que vivem; 2) no neutro singular, tÒ Ôn (™Õn), com elas. O devir é aparência mutável, é o não-ser.
o ente, o ser; no neutro plural, t£ Ônta (Ÿonta), as coisas
existentes. Usando-se a partícula negativa m», pode-se
dizer: m» Ôn (™Õn), o não-ente, o não-ser; e no plural m»
Ônta (Ÿonta), os não-entes, as não-coisas, os não-seres.
AULA 57.

PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE IV)

No prosseguimento do poema, Parmênides argumentará a partir de uma única premissa, a saber, o ser é o
não-ser não é. Dessa premissa virão, como conseqüência, que o ser é imóvel, uno, eterno, único, indivisível,
indestrutível e pleno ou contínuo.

FRAG. 8. 3-9
æj ¢gšnhton ™Õn kaˆ ¢nèleqrÒn ™stin,
™sti g¦r oÙlomelšj te kaˆ ¢tremj ºd’ ¢tšleston·
oÙdš pot’ Ãn oÙd’ œstai, ™peˆ nàn œstin Ðmoà p©n,
›n, sunecšj· t…na g¦r gšnnan diz»seai aÙtoà;
pÁi pÒqen aÙxhqšn; oÙd’ ™k m¾ ™Òntoj ™£ssw
φ£sqai s’ oÙd noe‹n· oÙ g¦r φatÕn oÙd nohtÒn
œstin Ópwj oÙk œsti.

Que o ser é engendrado, e também é imperecível:


com efeito, é todo inteiro, inabalável e sem fim.
Nem outrora foi, nem será, porque é agora tudo de uma só vez,
uno, contínuo. Que origem buscarás para ele?
Como e onde teria crescido? Do não-ser, não te permito
dizê-lo nem pensá-lo: não é possível dizer nem pensar
o que não é (...)

FRAG. 8. 12-14
oÙdš pot’ ™k m¾ ™Òntoj ™φ»sei p…stioj „scÚj
g…gnesqa… ti par’ aÙtÒ· toà e†neken oÜte genšsqai
oÜt’ Ôllusqai ¢nÁke D…kh

E nem sequer do ser concederá a força da crença veraz


que nasça algo diferente dele mesmo; por esta razão, nem o nascer
nem o morrer lhe concedeu Justiça (...)

FRAG. 8. 19-21
pîj d’ ¨n œpeit’ ¢pÒloito ™Òn; pîj d’ ¥n ke gšnoito;
e„ g¦r œgent’, oÙk œst(i), oÙd’ e‡ pote mšllei œsesqai.
tëj gšnesij mn ¢pšsbestai kaˆ ¥pustoj Ôleqroj.

E como poderia existir o ser no futuro? E como poderia nascer?


Se nasce, não é; e tampouco é, se é para ser no futuro.
E assim se apaga o nascer e desaparece o perecer.

FRAG. 8. 23-25
oÙdš ti tÁi m©llon, tÒ ken e‡rgoi min sunšcesqai,
oÙdš ti ceirÒteron, p©n d’ œmpleÒn ™stin ™Òntoj.
tîi xunecj p©n ™stin.

Nem existe não-ser que lhe impeça alcançar a plenitude


nem pode ser ora mais pleno, ora mais vazio porque é todo inteiro inviolável,
igual a si mesmo em todas as partes.

FRAG. 8. 38-41
tîi p£nt’ Ônom(a) œstai,
Óssa brotoˆ katšqento pepoiqÒtej enai ¢lhqÁ,
g…gnesqa… te kaˆ Ôllusqai, ena… te kaˆ oÙc…,
kaˆ tÒpon ¢ll£ssein di£ te crÒa φanÕn ¢me…bein.

Todas as coisas são meros nomes


dados pelas crenças dos mortais:
nascer e perecer, ser e não ser,
mudar de lugar e mudar de luminosa cor.
AULA 58.

PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE V)

A Deusa sabe que tais palavras são difíceis de ser é infinito. No entanto, para assegurar racionalmente todas
compreender e aceitar e por isso estimula Parmênides a as características que lhe atribuiu (imobilidade, eternidade,
abandonar “o olho que não vê, o ouvido que ensurdece, a indivisibilidade, continuidade e plenitude), Parmênides dirá
língua sonora” — isto é, os sentidos que guiam a opinião — que o ser é a esfera, o volume circular perfeito, sem começo
e, doravante, passar a “julgar apenas com o pensamento a e sem fim, indivisível, contínuo e pleno.
prova oferecida e suas refutações” — isto é, usar apenas a Parmênides dedica a segunda parte do poema não
razão, as demonstrações racionais e as contraprovas só à sua cosmologia, mas também à crítica das cosmologias
racionais. Os órgãos dos sentidos nos enganam, não são anteriores, ou das “crenças dos mortais”. Suas críticas
confiáveis para o conhecimento verdadeiro, pois este é investem menos contra os fisiólogos de Mileto e mais contra
alcançado apenas pelo pensamento puro. os pitagóricos, em sua crença de que o ser é unidade e
A experiência sensorial nos faz perceber que tudo dualidade, identidade e mobilidade, e contra Heráclito, em
está em movimento, isto é, em mudança: nós mudamos, as sua crença de que o ser é unidade e multiplicidade,
coisas surgem e desaparecem, mudam de forma e de eternidade e devir, luta dos contrários. Os mortais tomam o
quantidade (aumentam ou diminuem), passam a qualidades não-ser pelo ser. A via da opinião prende-se à aparência e à
opostas (as quentes esfriam, as frias esquentam, as claras mutabilidade das coisas, em perceber que o pensamento só
escurecem, as escuras clareiam, as duras amolecem, as moles pode pensar e a linguagem só pode dizer o que é e
endurecem, etc.). O pensamento puro se afasta da percepção permanece idêntico a si mesmo. Pluralidade ou
sensorial e opera com argumentos lógicos, isto é, obtém as multiplicidade, mudança ou movimento, oposições e
conseqüências racionais da premissa “o ser é, o não-ser não contrariedades são irreais, impensáveis e indizíveis.
é”. Aceita essas conseqüências embora contrariem a A opinião é a via da experiência sensorial. A via da
experiência sensorial, dizendo: “vemos tudo mudar, mas verdade, a do puro pensamento, do intelecto que se separa
sabemos que o ser é imutável; vemos tudo nascer e perecer, das sensações. Por isso, onde nossos sentidos vêem, tocam,
mas sabemos que o ser é eterno”. Eis como o pensamento sentem coisas mutáveis e opostas entre si, o pensamento diz:
puro argumenta: ilusão. Só há o ser, uno, único, eterno, contínuo, indivisível,
- o ser é imóvel, isto é, imutável, pois, se se imóvel. O ser é a identidade. O ser exclui mudanças e
movesse, mudaria e tornar-se-ia aquilo que ele não é. O que multiplicidade, pois o devir e o múltiplo são o não-ser, o que
ele não é? O não-ser, e este não existe, não pode ser pensado jamais é e jamais permanece idêntico a si mesmo, o
nem dito. impensável e indizível. Ser, pensar e dizer são o mesmo.
- o ser é eterno e indestrutível (não tem origem, não Não-ser, perceber, opinar são o mesmo, isto é, nada são
nasce, não perece, não está no futuro), pois se tivesse perante o pensamento, que exige estabilidade, coerência,
começado, o que havia antes dele? O não-ser, e este não permanência e verdade. Para o pensamento, o múltiplo e o
existe, não pode ser pensado nem dito. E se tivesse um movimento não são.
término, o que viria depois dele? O não-ser, e este não existe, No entanto, somos mortais e àqueles que não
não pode ser pensado nem dito. conseguem percorrer o caminho da verdade cabe oferecer,
- o ser é uno, pois se houvesse outro ser, o que seria pelo menos, um substituto para a ontologia. Esse substituto é
ele? O não-ser do outro ser, mas não-ser não existe, não pode a cosmologia ou física com seus derivados (astronomia,
ser pensado nem dito. fisiologia, geometria, música), graças a que os mortais
- o ser é indivisível ou contínuo, pois se se podem sobreviver. Como a segunda parte do poema — que
dividisse, o que seriam as partes? Outros seres? Não, porque tratava dessas questões — perdeu-se, pouco ou quase nada
o ser é uno. Não-seres? Não, porque o não-ser não existe, sabemos da cosmologia parmenidiana e dos conhecimentos
não pode ser pensado nem dito. dela derivados. Ao que consta, estava mais próxima dos
- o ser é pleno, pois se houvesse intervalos em seu pitagóricos do que dos milésios e de Heráclito.
interior, o que haveria neles? O vazio? Mas o vazio é o não- Escrevendo sobre Parmênides, diz o historiador da
ser, e este não existe, não pode ser pensado nem dito. filosofia Jean Bernhardt: “Permanece o fato de que não
Na segunda parte do poema, dedicada à houve senão um homem, Parmênides, tanto quanto se saiba,
cosmologia, Parmênides demonstra que o ser tem de ser para passar ao limite e ousar julgar inteira e absolutamente o
limitado. Pode soar estranho para nós que Parmênides não Absoluto, quando um pensamento se quer estável,
diga que o ser é infinito. Há, porém, uma razão para isso. experimenta e verifica de maneira perfeitamente clara a
Para os gregos, o infinito é o ¥peiron, o indeterminado. Esse impossibilidade de transgredir as determinações que ele se
indeterminado é o que não tem começo nem fim no espaço e dá, conformemente à sua vontade de estabilidade. Assim é o
no tempo e que por isso pode crescer ou diminuir nascimento da ontologia e, ao mesmo tempo, sua mais alta e
indefinidamente, transformar-se indefinidamente e, por essa pura ilustração, pela qual a exigência de absoluta precisão e
razão, é o que não pode ser pensado nem dito, pois não de rigorosa coerência de pensamento mede e abraça exata e
podemos conhecê-lo inteiramente. É por estes motivos — complexamente a revelação da realidade absoluta” (in
inacabamento, virtualidades, transformações e Châtelet, 1973, 42).
incognoscibilidade — que Parmênides não pode dizer que o
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 59.

EXERCÍCIOS:
1. A partir do estudo de Pitágoras de Samos, faça um resumo, usando no mínimo 15 linhas, sobre a
vida e obra deste pensador.
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2. Escolha três (3) fragmentos atribuídos a Xenófanes de Colofon e explique o motivo de sua
escolha.
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CURSO DE FILOSOFIA

 PRIMEIRO ANO 
 Quarto Bimestre 

AULA 60.

CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA O SURGIMENTO DA FILOSOFIA

O que tornou possível o surgimento da filosofia aos arredores da Grécia no final do século VII e no início
do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que
permitiram o surgimento da filosofia?
Podemos apontar como principais condições históricas:
AS VIAGENS MARÍTIMAS, que permitiram aos povos descobrir que os locais que os mitos diziam
habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos
mares que os mitos diziam habitadas por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres
fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmitificação do mundo, que passou, assim, a exigir
uma explicação sobre a origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
A INVENÇÃO DO CALENDÁRIO, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as
horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou
uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
A INVENÇÃO DA MOEDA, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas
concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo
do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de
generalização;
O SURGIMENTO DA VIDA URBANA, com predomínio do comércio e do artesanato, dando
desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia
proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de
comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da
aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio
pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a filosofia
poderia surgir;
A INVENÇÃO DA ESCRITA ALFABÉTICA, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento
da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de
outras escritas — como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses — supõe que não
se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
A INVENÇÃO DA POLÍTICA, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimentos da filosofia:

1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que
é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade — da pÒlij
— servirá de modelo para a filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como mundo
racional;
2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente
daquele que era proferido pelo mito. Neste, o poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa
Mnemosyne, mãe das Musas que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural,
dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses a que eles deveriam obedecer.
Agora, com a pÒlij, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em
público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que
surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana,
isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou
o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas
dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos,
comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental
para a filosofia.
AULA 61.

ZENÃO DE ELÉIA (cerca de 504-? a.C.)

Zenão floresceu cerca de 646/461 a.C., na 79ª Zenão desenvolve seu método de discussão e
Olimpíada. Nasceu em Eléia, na Itália. Ao contrário de argumentação como um método de prova para defender as
Heráclito, interveio na política, dando leis à sua pátria. teses de Parmênides, que começavam a ser ridicularizadas
Tendo conspirado contra a tirania e o tirano (Nearco?), por outros filósofos e pela opinião pública, fato de que é
acabou preso, torturado e, por não revelar o nome dos testemunha a anedota que fala de Diógenes de Apolônia
comparsas, perdeu a vida. Escreveu várias obras em prosa: andando de um lado para o outro, dizendo ironicamente: “o
Discussões, Contra os Físicos, Sobre a Natureza, Explicação ser é imóvel”. Os argumentos de Zenão se voltam contra os
Crítica de Empédocles. Considerado criador da dialética defensores do múltiplo e do movimento.
(entendida como argumentação combativa ou erística), Como procedia Zenão? Segundo Aristóteles, Zenão
Zenão erigiu-se em defensor de seu mestre, Parmênides, e jamais defendia diretamente as teses de Parmênides, mas
contra as críticas dos adversários, principalmente os tomava as teses adversárias e demonstrava que conduziam a
pitagóricos. Defendeu o ser uno, contínuo e indivisível de conclusões contraditórias e que, portanto, eram falsas,
Parmênides contra o ser múltiplo, descontínuo e divisível dos tornando também falsas as teses que defendiam. Visto serem
pitagóricos. estas contrárias às de Parmênides, ficava provada,
O que sabemos da obra de Zenão encontra-se em implicitamente, a verdade da tese parmenidiana. Foi isso que
passagens do diálogo Parmênides de Platão, na Física e Aristóteles chamou de dialética: partir, não de premissas ou
Refutações Sofísticas de Aristóteles, e na doxografia, postulados verdadeiros para uma demonstração, mas de
sobretudo em Simplício e Diógenes Laércio. Alguns, postulados ou premissas admitidos pela outra parte e,
partindo de uma indicação de Aristóteles, segundo a qual portanto, tomá-los como meras opiniões. Como observou
Zenão, ao escrever, sempre apresentava as teses de seus John Burnet, a teoria parmenidiana chegara a conclusões que
adversários para refutá-las, julgaram que ele escreveu sob a contradiziam as evidências dos sentidos, da experiência
forma de diálogos, mas disso não se tem provas. sensorial; Zenão, em lugar de trazer uma nova teoria, ou
Para Aristóteles, Parmênides, que irá ser estudado provas para a teoria eleata ou parmenidiana, simplesmente
futuramente, foi o iniciador da lógica. Isto é, de um buscava mostrar que as opiniões dos adversários conduziam
pensamento que opera segundo exigências internas de rigor, a conclusões ainda mais contraditórias e absurdas do que as
sem se preocupar se o que é pensado ou dito corresponde ou de Parmênides.
não à experiência imediata que temos das coisas por meio de Justamente porque Parmênides não pretende
nossos sentidos. Lógica, porque Parmênides exigia que o demonstrar a verdade de uma teoria, mas os absurdos das
pensamento obedecesse a dois princípios que, se não foram opiniões adversárias, sua argumentação é formada pelo que
explicitamente formulados por ele, foram implicitamente os gregos chamavam de aporia (¢por…a), uma dificuldade
postos por ele pela primeira vez no pensamento ocidental: o que permanece aberta, insolúvel. O raciocínio de Zenão é
princípio de identidade (o que é, é; o que é, é idêntico a si aporético, criador de dificuldades sem solução. Aporia
mesmo) e o princípio de contradição (o que é, é; o que não é, (¢por…a), é uma palavra composta do prefixo negativo a- e
não é; é impossível que o que é não seja; é impossível que o pelo substantivo pÒroj (passagem, via de comunicação,
que não é seja). caminho, trajeto). pÒroj pertence à família de palavras como
Zenão, porém, segundo Aristóteles, foi o criador da poreÚw, que significa fazer passar, transportar, conduzir a
dialética, isto é, do confronto entre duas teses opostas ou algum lugar, realizar um trajeto; e por…zw: abrir caminho,
contrárias para provar que nenhuma delas é verdadeira ou encontrar passagem, dar passagem a, transmitir. Por
que uma delas é contraditória e, portanto, falsa. Em outras extensão, significam chegar a uma conclusão, deduzir,
palavras, Zenão desenvolve, em filosofia, a arte que existia inferir. Aporia (¢por…a) significa: incapacidade de encontrar
na política: a da argumentação. Arte que decorre da caminho ou trajeto; falta de uma via ou um meio de
importância da retórica no pensamento e do discurso na passagem; impossibilidade de chegar a um lugar; ou seja,
Magna Grécia, isto é, na Itália Meridional. impossibilidade de deduzir, concluir, inferir. A ¢por…a é
uma dificuldade insolúvel.
AULA 62.

ZENÃO DE ELÉIA (PARTE II)

Os doxógrafos registram oito aporias de Zenão, cujo tema é sempre a prova indireta da verdade da
imobilidade e da unidade pela redução ao absurdo das teses do movimento e da multiplicidade: quatro são
registradas por Aristóteles e quatro, por Simplício. Na realidade, as oito aporias são quatro argumentos cujo
conteúdo era o mesmo, variando apenas sua forma.

1. APORIA DA DIVISIBILIDADE (ou a aporia de Aquiles e a tartaruga; ou ainda a aporia do estádio):

estádio s.m. 1 ant. antiga medida de distância grega, equivalente a 125 pés
geométricos, ou seja, 206,25 m <muralha de 200 e.> 2 (1813) DESP campo para jogos e
provas esportivas, circundado por arquibancadas ou outras instalações destinadas ao
público <e. de futebol> 3 m.q. estágio (‘momento ou período específico’) 4 BIO ENT
m.q. estágio 5 exercício de alguma profissão, emprego ou autoridade <resolveu
interromper seu e. de escrevente> ETIM gr. st£dion, tÒ (neutro substv. do adj. st£dioj,
a, on) ‘estádio, medida de comprimento equivalente a 600 pés gregos ou 625 pés romanos,
oitava parte da milha; corrida na extensão de um estádio, o local onde se praticava essa
corrida, anfiteatro’.

a) Se o ser for divisível (múltiplo), Aquiles, “o de pés ligeiros”, o mais veloz dos heróis gregos, não
poderá vencer a corrida contra uma tartaruga, o mais vagaroso dos animais. Aquiles, generoso, dá à tartaruga
uma vantagem. E jamais a alcançará, pois, para alcançá-la, sendo o espaço divisível, deverá, primeiro, vencer
a metade da distância entre ele e a tartaruga; depois, a metade da metade; depois, a metade da metade da
metade, e assim indefinidamente, de modo que jamais alcançará a tartaruga.

b) Se o ser for divisível, um corredor jamais percorrerá um estádio e jamais alcançará a meta de
chegada, pois, para alcançá-la, deve, primeiro, vencer a metade da distância, depois, a metade da metade,
depois, a metade da metade da metade, e assim indefinidamente, de modo que jamais sairá do lugar e jamais
alcançará a meta.
A argumentação tem como pressuposto, no caso de Aquiles e a tartaruga, que, por mais vagaroso que
seja o movimento num espaço divisível, o movimento mais rápido nunca pode alcançá-lo, porque precisa
vencer a distância infinita de pontos. O argumento do estádio pressupõe que não se pode vencer num tempo
finito (o tempo que dura a corrida) uma distância infinita de pontos, a finitude do tempo e a infinitude da
divisibilidade espacial são incompatíveis.

2. APORIA DO MOVIMENTO (ou a aporia do arqueiro; ou a aporia da flecha):

a) Um arqueiro jamais atingirá o alvo com sua flecha. Uma flecha, ao voar, está em repouso, porque
uma coisa está em repouso quando ocupa um lugar idêntico a si mesmo. Assim, a cada instante, a flecha
estará ocupando um espaço idêntico a si mesma e, portanto, estará em repouso. Se atingir o alvo, devemos
concluir que o movimento não é senão a soma dos repousos e que, portanto, o movimento é repouso e o
repouso é movimento, o que é contraditório.

b) Uma flecha em movimento está em repouso e não atinge o alvo. O argumento é o mesmo do
arqueiro.
O argumento consiste em mostrar que a flecha (ou o objeto que se move) possui um comprimento e
que suas posições sucessivas não são pontos, mas linhas espaciais. No entanto, na perspectiva do tempo, são
pontos temporais (ou instantes). Assim, a incompatibilidade entre espaço e tempo, novamente, é posta para
marcar a contradição do movimento. Móvel no espaço, a flecha estará imóvel no tempo; móvel no tempo,
estará imóvel no espaço. O movimento será feito de repouso e o repouso será feito de movimento.
AULA 63.

ZENÃO DE ELÉIA (PARTE III)

3. APORIA DA UNIDADE INDIVISÍVEL E DESCONTÍNUA (ou a aporia do dobro e da metade):

A metade do tempo é igual ao dobro do tempo. Imaginemos três conjuntos de corpos A, B e C, cada
um deles formado pela soma de quatro unidades discretas (ou pontos). Imaginemos que o corpo A está em
repouso enquanto os dois outros — B e C — estão em movimento, movendo-se com a mesma velocidade,
mas em direção opostas. Quando todas as unidades dos três corpos estiverem na mesma posição ou ocupando
a mesma quantidade de espaço, B e C terão percorrido o dobro e a metade da distância no dobro e na metade
do tempo.
A aporia é ilustrada da seguinte maneira:

A ● ● ● ● A ● ● ● ●
B ● ● ● ● → B ● ● ● ●
C ←● ● ● ● C ● ● ● ●

O argumento de Zenão tem um pressuposto, sem o qual se torna incompreensível: o tempo (cada
instante) é igual ao espaço (cada ponto).
O argumento diz que para chegar sob A, B percorreu dois pontos de A e quatro pontos de C, de
modo que o tempo para percorrer 2 é igual ao tempo para percorrer 4, por isso a metade e o dobro da
distância e a metade e o dobro do tempo são iguais, o que é contraditório e absurdo. E o mesmo deve ser dito
de C movendo-se para ficar sob A. Assim, num mesmo tempo, B e C, estariam percorrendo o dobro e a
metade, de sorte que teríamos:

tempo X = espaço X
tempo X e espaço X = A, B, C na mesma posição ou no mesmo espaço
metade do tempo X e metade do espaço X = B passando por 2 pontos de A; C passando por 2 pontos
de A, isto é, cada corpo passando 2 espaços
dobro do tempo X e dobro do espaço X = B e C passando um pelo outro e percorrendo 4 pontos, isto
é, cada corpo passando por 4 espaços
portanto, tempo X = metade e dobro do tempo
espaço X = metade e dobro do espaço

A unidade entre espaço (pontos a percorrer) e tempo (instantes a percorrer) é o que mostra a
contradição, uma vez que está pressuposto que B e C movem-se na mesma velocidade (no mesmo tempo) em
direções opostas. No mesmo tempo percorrem espaços diferentes e, portanto, fazem tempos diferentes.
Há dificuldade para acompanhar o argumento de Zenão porque fomos habituados (pelo pensamento
filosófico-científico do século XVII) a pensar no espaço como um meio neutro, homogêneo e quantitativo,
diferente do tempo. Não é o caso dos gregos. Não falam em espaço, mas em lugar e lugares. Um lugar é
idêntico ao corpo que o ocupa e se desloca com este corpo, de tal modo que o tempo de deslocamento e o
lugar são uma só e mesma coisa. É a identidade entre lugar e instante que Zenão usa em seu argumento. Os
gregos não pensam no tempo como meio homogêneo, mas falam em períodos e instantes qualitativamente
diferentes (ontem, hoje, amanhã, depois, agora, antes, nunca). O caráter qualitativo do instante e do lugar
sustentam a aporia proposta por Zenão.
Os seis primeiros argumentos das três primeiras aporias se referem às contradições do movimento e
têm como condição a identidade entre instante e lugar (ou entre tempo e espaço). Nos quatro primeiros
argumentos das duas aporias iniciais, é demonstrado que, a cada instante, Aquiles, o corredor, e a flecha
estão imóveis no seu espaço porque Zenão enfatiza a divisibilidade do lugar e do instante (a metade da
metade da metade). Na terceira aporia, Zenão conclui da identidade entre instante e lugar que se os corpos
forem formados por unidades indivisíveis descontínuas ou por pontos (à maneira pitagórica, por exemplo) e
se vários corpos se moverem uns com relação aos outros, os tempos e os espaços não coincidirão.
Os dois últimos argumentos, da última aporia, como veremos, referem-se às contradições da
multiplicidade.
AULA 64.

ZENÃO DE ELÉIA (PARTE IV)

4. APORIA DA UNIDADE DIVISÍVEL DESCONTÍNUA E DA UNIDADE INDIVISÍVEL DESCONTÍNUA:

a) Se as coisas forem formadas por unidades divisíveis descontínuas, cada ponto a que se
chega na divisão é um ponto que pode voltar a ser dividido indefinidamente. Ora, cada ponto é uma
unidade e, portanto, será preciso considerá-la, ao mesmo tempo, como limitada ou finita, pois é um
ponto único, e como ilimitada ou infinita, pois pode ser dividida indefinidamente. Será preciso
dizer, portanto, que as coisas são finitas e infinitas ao mesmo tempo, o que é contraditório e
absurdo.

b) se as coisas forem formadas por unidades indivisíveis descontínuas, a divisão termina


quando se chega à unidade final, que não mais poderá ser dividida. Ora, visto que as unidades que
formam uma coisa são descontínuas, é preciso saber o que existe entre uma unidade e outra. Se se
disser que nada há entre elas, diz-se que há um espaço vazio ou o nada, isto é, o não-ser. Todavia,
como o não-ser não é, será preciso admitir que há alguma coisa no intervalo entre duas unidades.
Pode-se tentar evitar o problema diminuindo ao infinito o intervalo, mas para isso é preciso
continuar dividindo os pontos para chegar a unidades cada vez menores e, neste caso, ou nunca
chegaremos à unidade indivisível num espaço descontínuo ou será preciso dizer que uma unidade
indivisível se divide ao infinito, o que é contraditório e absurdo. É contraditório que a unidade seja
indivisível num espaço descontínuo [a argumentação opera com a noção de limite e ilimitado como
qualidades da unidade. Se for limitada, mas divisível ao infinito, torna-se ilimitada (primeira
aporia). Se for limitada, mas indivisível, entre ela e outra há o vazio (segunda aporia)].
As argumentações de Zenão são impecáveis. Ele não nega que nossos sentidos percebem o
movimento, a multiplicidade, a unidade, o tempo e o espaço descontínuos. Não nega nossa
experiência vivida. O que ele faz é outra coisa: submete os dados da percepção e da opinião às
exigências lógicas do pensamento. Usando exclusivamente o pensamento e lançando mão
exclusivamente de raciocínios, ele mostra que a experiência do movimento e da multiplicidade são
irracionais, isto é, contraditórias e absurdas.
Assim, se é verdade que os pitagóricos foram em busca da estrutura invisível das coisas e
que Heráclito contrapôs o pensamento e a experiência sensorial, também é verdade que somente
com os eleatas a filosofia chega à compreensão de que o pensamento não só difere da experiência
sensorial, mas possui leis próprias de operação e tem o poder para refutar o testemunho dos
sentidos.
AULA 65.

FRAGMENTOS DE ZENÃO DE ELÉIA:

1. SIMPLÍCIO, Comentários sobre a Física de Aristóteles, 140, 34. e„ m¾ œcoi mšgeqoj tÕ Ôn,
oÙd’ ¨n e‡h, ™p£gei ‘e„ d œstin, ¢n£gkh ›kaston mšgeqÒj ti œcein kaˆ p£coj kaˆ ¢pšcein
aÙtoà tÕ ›teron ¢pÕ toà ˜tšrou. kaˆ perˆ toà proÚcontoj Ð aÙtÕj lÒgoj. kaˆ g¦r ™ke‹no
›xei mšgeqoj kaˆ prošxei aÙtoà ti. Ómoion d¾ toàto ¤pax te e„pe‹n kaˆ ¢eˆ lšgein· oÙdn
g¦r aÙtoà toioàton œscaton œstai oÜte ›teron prÕj ›teron oÙk œstai. oÛtwj e„ poll£
™stin, ¢n£gkh aÙt¦ mikr£ te enai kaˆ meg£la· mikr¦ mn éste m¾ œcein mšgeqoj, meg£la
d éste ¥peira enai’.

Se o ser não tivesse grandeza, também não poderia existir, ele prossegue: “mas, se existe,
necessariamente cada (parte) tem certa grandeza e espessura, e distância uma da outra. E a respeito
da (parte) que está diante dela o mesmo se diz. Pois esta também terá grandeza e uma outra estará
diante dela. É o mesmo, então, dizer isso uma vez apenas e dizê-lo sempre. Pois nenhuma parte dele
(do ser) será limite extremo, nem estará uma parte sem relação com outra. Assim, se múltiplas são
(as coisas), necessariamente são pequenas e grandes; pequenas a tal ponto que não têm grandeza;
grandes, a tal ponto que são infinitas”.

2. IDEM, ibidem, 139, 5. Óti oá m»te mšgeqoj m»te p£coj m»te Ôgkoj mhqe…j ™stin, oÙd’
¨n e‡h toàto. ‘e„ g¦r ¥llwi Ônti, φhs…, prosgšnoito, oÙdn ¨n me‹zon poi»seien· megšqouj
g¦r mhdenÕj Ôntoj, prosgenomšnou dš, oÙdn oŒÒn te e„j mšgeqoj ™pidoànai. kaˆ oÛtwj ¨n
½dh tÕ prosginÒmenon oÙdn e‡h. e„ d ¢poginomšnou tÕ ›teron mhdn œlatton œsti mhd aâ
prosginomšnou aÙx»setai, dÁlon Óti tÕ prosgenÒmenon oÙdn Ãn oÙd tÕ ¢pogenÒmenon’.

(Diz Zenão) que uma coisa que não tem grandeza e espessura, nem massa, não poderia
existir. “Pois”, ele diz, “se fosse acrescentada a uma outra coisa, em nada a aumentaria; pois, se
uma grandeza que nada é (a uma outra) se acrescenta, nada pode ganhar em grandeza (esta última).
E assim já o acrescentado nada seria. Mas se, subtraída (uma grandeza), a outra em nada diminuir,
e, ao contrário, acrescenta (uma), (a outra) não aumentar, é evidente que o acrescentado nada era,
nem o subtraído”.

3. IDEM, ibidem, 140, 27. ‘e„ poll£ ™stin, ¢n£gkh tosaàta enai Ósa ™stˆ kaˆ oÜte
ple…ona aÙtîn oÜte ™l£ttona. e„ d tosaàt£ ™stin Ósa ™st…, peperasmšna ¨n e‡h.
e„ poll£ ™stin, ¥peira t¦ Ônta ™st…n· ¢eˆ g¦r ›tera metaxÝ tîn Ôntwn ™st…, kaˆ
p£lin ™ke…nwn ›tera metaxÚ. kaˆ oÛtwj ¥peira t¦ Ônta ™st…’.

“Se múltiplas são (as coisas), necessariamente são tantas quantas são, nem mais nem menos.
Mas, se são tantas quantas são, devem ser limitadas (em número).
Se são múltiplas, ilimitadas (em número) são as coisas; pois entre elas sempre há outras, e
entre estas novamente outras. Assim, ilimitadas (em número) são as coisas”.

4. DIÓGENES LAÉRCIO, IX, 72. ‘tÕ kinoÚmenon oÜt’ ™n ïi œsti tÒpwi kine‹tai oÜt’ ™n ïi
m¾ œsti’.

“O móvel nem no espaço em que está se move, nem naquele em que não está”.
AULA 66.

EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (cerca de 490-435 a.C.)

Empédocles era natural da colônia dórica de preciso que exista a pluralidade de seres que agem e sofrem
Agrigento, na Sicília. Apolodoro fixa sua akmé por volta da ações entre si. Além disso, para que o médico aja, isto é, para
84ª Olimpíada, portanto, em 444-443 a.C.. Teria nascido, que opere a cura, precisa introduzir no corpo do paciente o
assim, por volta de 490/2 a.C.. Seu pai tinha um lugar que lhe está faltando ou retirar do corpo do paciente aquilo
importante no governo democrático da cidade e ele próprio que ali está em excesso. A saúde é um estado de equilíbrio
participou da vida política de Agrigento, tendo combatido a entre os múltiplos componentes do corpo, e a doença, a
tirania que ali tentara se instalar e, quando ela se tornou ruptura desse equilíbrio pela falta ou pelo excesso de um dos
vitoriosa, foi desterrado pelo tirano. Além de político, componentes sobre os demais; é a perda da proporção, da
Empédocles foi poeta, dramaturgo, homem de ciência, medida ou equilíbrio interno que o médico deve restaurar,
médico e cosmólogo, místico e inventor da eloqüência. seja retirando coisas do interior do paciente, seja
Expulso de Agrigento, Empédocles se torna um introduzindo outras no corpo doente. O médico, portanto,
errante que percorre a Grécia, tendo mesmo ido a Olímpia, também precisa admitir a pluralidade diferenciada dos seres
durante a Olimpíada, ler seu poema religioso para os para realizar a cura. O eleatismo, assim, é inaceitável para a
helenos. Impedido de regressar à Sicília, parece ter morrido medicina.
no Peloponeso, embora a lenda diga que morreu atirando-se Dois outros aspectos da medicina também são
no fogo do vulcão Etna, para provar-se imortal ou um deus. importantes aqui. O primeiro deles é que a saúde e a doença
Empédocles sofreu a influência da religiosidade são formas de relação entre nosso corpo e o meio ambiente
órfica e parece ter sido discípulo dos pitagóricos, assim como (por isso o médico grego estuda o mundo onde está e onde
ter seguido, durante certo tempo, as idéias de Parmênides e vive nosso corpo, isto é, as águas, os ventos, os terrenos, os
Zenão, com quem teria convivido. Como Xenófanes e lugares, os astros, os alimentos, as horas do dia e da noite, as
Parmênides, escreveu em versos (foi o último filósofo a estações do ano, etc.). Assim, é preciso haver, no mínimo, a
escrever dessa maneira) e dele resta o maior número de dualidade homem-mundo para que haja medicina. O segundo
fragmentos deixados pelos pré-socráticos. Dos poemas, aspecto é a maneira como o médico antigo define a doença:
conhecemos fragmentos de dois: um, de cosmologia, ela é um ente visível — um edoj, uma forma — que se
intitulado Sobre a Natureza, e um outro, religioso, intitulado mostra ou se manifesta por meio de sinais: os sintomas. O
Purificações. Pelo modo como escreveu, invocando as médico, atuando sobre esses sinais (pelo diagnóstico e pelo
emoções dos ouvintes e leitores, fazendo da emoção uma prognóstico), usando a observação e a experiência, atua
forma de argumentação e de purificação, Aristóteles o teria sobre ela e a faz desaparecer. Se, portanto, a doença é uma
considerado fundador da retórica, isto é, da arte de persuadir forma visível (edoj) e se há diferentes doenças, então é
por meio das paixões ou emoções do ouvinte. Sua doutrina preciso haver pluralidade, e a pluralidade percebida pela
pode ser vista como uma primeira síntese filosófica. experiência deve ser real. Em resumo, a medicina não
Substitui a busca dos jônicos de um único princípio das dispensa a experiência sensorial, a percepção e a memória.
coisas pelos quatro elementos: fogo, terra, água e ar; Empédocles (como também Anaxágoras) era
combina ao mesmo tempo o ser imóvel de Parmênides e o médico e, certamente, as idéias médicas e a prática médica
ser em perpétua transformação de Heráclito, salvando ainda tiveram papel fundamental em sua cosmologia, explicando
a unidade e a pluralidade dos seres particulares. não só a introdução da pluralidade da φÚsij, mas ainda
Em geral, os historiadores da filosofia mencionam o afirmando que a φÚsij são quatro raízes (·…zwma)
fato de Empédocles ter sido médico, e os historiadores da perpassadas por duas forças corpóreas que unem — amor ou
medicina falam da influência filosófica de Empédocles sobre amizade, φil…a — ou separam — ódio ou discórdia, neikÒj
a medicina grega. Mas todos deixam de mencionar que o fato — todas as coisas. É que a medicina antiga concebia o corpo
de Empédocles ter sido médico a causa da introdução da humano, ou o homem, formado por quatro líquidos,
pluralidade da φÚsij na cosmologia grega. Examinaremos chamados humores (sangue, fleuma, bílis amarela ou cólera e
como a medicina pode ter sido a origem do distanciamento bílis negra ou atrabílis) dotados de quatro qualidades (seco,
entre Empédocles e os eleatas, dos quais fora discípulo. úmido, frio e quente) cuja mistura ou combinação formava o
Do ponto de vista dos eleatas, a unidade-identidade temperamento ou caráter ou natureza de cada um de nós. A
do ser faz com que as coisas individuais e singulares sejam combinação dos humores em equilíbrio ou sua amizade era a
meras aparências, opiniões, não-ser. Assim sendo, o homem, saúde; em desequilíbrio ou sua discórdia, a doença. A união
enquanto uma entidade individualizada ou singular, não dos humores é a vida; a separação dos humores, a morte.
existe, rigorosamente falando. Mas, supondo-se que exista,
não adoeceria nunca, não sofreria dores nunca. ·…zwma: tufo de raízes, no plural, ·izèmata. Em
De fato, a dor e a doença pressupõem uma relação sentido figurado significa fundamento ou elemento
entre os diferentes. A dor e a doença, para os gregos, são de todas as coisas. A palavra ·…za significa raiz,
uma forma de passividade, algo que nos acontece por ação fonte de alguma coisa, origem, cepa. É a φÚsij de
de um outro ser sobre o nosso. Resultam da hostilidade de Empédocles.
alguma coisa (alimento, bebida, vento, umidade, etc.) contra
o ser de alguém. Se, portanto, a dor e a doença existem, é
AULA 67.

EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE II)

No início do poema Sobre a Natureza, teleut»,/ ¢ll¦ mÒnon m…xij te di£llax…j te


Empédocles critica seus antecessores que, tendo uma vida migšntwn/ œsti, φÚsij d’ ™pˆ to‹j Ñnom£zetai
breve e tido uma experiência e um conhecimento parciais ¢nqrèpoisin).
das coisas, vangloriavam-se de conhecer tudo e de Assim, a vida é mistura dos elementos e a morte,
conhecer o todo. São frívolos, e não reconhecem como é separação. Cada raiz, portanto, mantém-se sempre
difícil conhecer, imaginando que basta dizer que a idêntica a si mesma, una e imutável, perene, e os seres se
verdade não pode ser alcançada pelos olhos e pelos formam pela reunião das raízes, desaparecendo quando
ouvidos, para supor que será inteiramente conhecida pelo elas se separam. Os seres se transformam, isto é, há
espírito. São loucos. E o poeta-filósofo pede às Musas que movimento ou devir para todas as coisas. O devir é a
“afastem de meus lábios tais loucuras” (¢ll¦ qeoˆ tîn mudança na forma da composição das coisas, isto é, na
mn man…hn ¢potršψate glèsshj) no frag. 3, verso 1, quantidade de raízes que formam um ser (uma coisa
que “santifiquem os meus lábios para que deles corra um composta de água e terra se transforma se nela entrar
rio puro” (™k d’ Ðs…wn stom£twn kaqar¾n ÑceteÚsate também o fogo como componente; uma coisa composta
phg»n) no frag. 3, v. 2, e suplica que o façam “entender o de fogo, água e ar se transforma se dela o ar se retirar, e
que é permitido aos homens efêmeros” (¥ntomai, ïn assim por diante), e a proporção com que cada raiz entra
qšmij ™stˆn ™φhmer…oisin ¢koÚein) no frag. 3, verso 4. ou sai na composição de um ser (aumento ou diminuição
Aconselhado pelas Musas, o filósofo-poeta, como o de fogo, ar, água ou terra) altera esse ser.
médico, valoriza a experiência perceptiva, considerando Mas, o que faz as raízes se unirem para formar
os cinco sentidos como a via de acesso ao pensamento. um ser? O que as faz se separar? No princípio, as raízes
Por isso, aconselha os outros mortais no frag. 3, versos 9- estão inteiramente misturadas, são indiscerníveis e
13: “e agora, considera com todos os teus sentidos como formam o uno. Uma força corpórea, mas externa a elas, as
cada coisa é clara. Não dês maior confiança ao olhar do invade e as separa: o Ódio (neikÒj), que separa o que
que a que corresponde ao ouvido; e não estimes o ruidoso estava misturado e faz surgir o múltiplo, as quatro raízes
ouvido acima das claras instruções da língua; e não diferenciadas. Dessa diferença, porém, nada poderia
recuses confiança às outras partes do teu corpo, pelas surgir, pois tudo está separado de tudo. Uma outra força
quais há acesso à inteligência; conhece como cada coisa é corpórea, externa e oposta à primeira, se introduz no seio
manifesta [...] guarda dentro do teu silencioso coração” do múltiplo e faz com que as raízes se misturem e se
(¢ll’ ¥g’ ¥qrei p£shi pal£mhi, pÁi dÁlon ›kaston,/ combinem: o Amor (φil…a), gerador de todas as coisas.
m»te tin’ Ôψin œcwn p…stei plšon À kat’ ¢kou»n/ No fragmento 17, vv. 16-20, lemos: “a um dado
À ¢ko¾n ™r…doupon Øpr tranèmata glèsshj,/ m»te momento, do uno saiu o múltiplo, vindo de muitos; outra,
ti tîn ¥llwn, ÐpÒshi pÒroj ™stˆ noÁsai,/ gu…wn dividiram-se para serem muitos de um que eram — fogo,
p…stin œruke, nÒei d’ Âi dÁlon ›kaston. SEXTO água, terra e o ar altaneiro. E o Ódio, temível, de peso
EMPÍRICO, Contra os Matemáticos, VII, 124). igual a cada um, deles separado; e o Amor entre eles,
Que ensina Empédocles? igual em comprimento e largura” (tot mn g¦r n
Em primeiro lugar, que Parmênides tem razão hÙx»qh mÒnon enai/ ™k pleÒnwn, tot d’ aâ dišφu
em considerar o ser como esférico, isto é, sem princípio plšon’ ™x ˜nÕj enai,/ pàr kaˆ Ûdwr kaˆ ga‹a kaˆ
nem fim (perene ou eterno) e pleno, isto é, sem vazio ou ºšroj ¥pleton Ûψoj,/ Ne‹kÒj t’ oÙlÒmenon d…ca tîn,
vácuo. Mas não tem razão ao supor que o ser deveria ser ¢t£lanton ¡p£nthi,/ kaˆ FilÒthj ™n to‹sin, ‡sh
uno, imóvel e homogêneo, pois é múltiplo, móvel e mÁkÒj te pl£toj te· SIMPLÍCIO, Comentário sobre a
heterogêneo. São as quatro raízes (·izèmata) de todas as Física de Aristóteles, 157).
coisas: fogo, terra, água e éter (ou ar). São elas a φÚsij. Ódio e Amor, de força igual, imperecíveis como
Eternas como o ser de Parmênides, cada uma é idêntica a as raízes, impõem o conflito como lei do mundo: o Amor
si mesma, indestrutível, sem nascimento nem faz a “vida florescente” e o Ódio, cruel, faz a separação
perecimento. “São o que são” (œsti), lemos no frag. 8, dos seres errantes. O Amor cria o impulso de todos os
verso 4. “Sempre são iguais e de mesma idade, embora seres semelhantes a se unir; o Ódio, o impulso de todos os
com missões diferentes”, (taàta g¦r s£ te p£nta kaˆ seres diferentes a se separar. Os quatro elementos ou as
¼lika gšnnan œasi,/ timÁj d’ ¥llhj ¥llo mšdei, p£ra quatro raízes correm umas por dentro das outras, isto é,
d’ Ãqoj ˜k£stwi) lemos no frag. 17, vv. 27-8. E dão conta são porosas e é essa porosidade que permite ao Amor e ao
de todas as coisas existentes no mundo. Assim, em vez de Ódio penetrar nelas para uni-las ou separá-las. “Todas as
haver, como na tradição, um só elemento ou uma só coisas inspiram e expiram, providas de canais,
qualidade que se transforma nas outras, há a diferença de inumeráveis poros” (ïde d’ ¢napne‹ p£nta kaˆ ™kpne‹·
qualidades e dos elementos das coisas como diferença p©si l…φaimoi/ sarkîn sÚriggej pÚmaton kat¦ sîma
originária. A φÚsij é múltipla. tštantai,/ ka… sφin ™pˆ stom…oij pukina‹j tštrhntai
No fragmento 8, lemos: “não há nascimento para ¥loxin), lemos no frag. 100, vv. 1-3.
nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte
funesta, mas somente composição e separação, mistura e
dissociação dos elementos” (φÚsij oÙdenÕj œstin
¡p£ntwn/ qnhtîn, oÙdš tij oÙlomšnou qan£toio
AULA 68.

EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE III)

O mundo percorre quatro ciclos: no primeiro, tudo pelos demais corpos. Assim, a audição é produzida pelo som
está misturado com tudo, na indiferenciação do uno; no exterior, por um movimento no ar que chega aos ouvidos,
segundo, o Ódio separa tudo de tudo, na diferenciação total que são como um sino que ressoa dentro de nós. O olfato é
do múltiplo; no terceiro, o Amor se introduz, unindo os produzido pela respiração, sendo mais forte quando vem de
semelhantes e organizando o mundo, o kÒsmoj, mas, corpos mais sutis e leves. É por isso que, quando estamos
prosseguindo na união, pouco a pouco o Amor vence o Ódio resfriados, não sentimos cheiro, pois não conseguimos
e começa a misturar tudo com tudo novamente, na respirar de modo adequado. O prazer e a dor são produzidos
indiferenciação de todos os seres; no quarto, o Ódio vai pelo toque de outros corpos através dos poros da nossa pele,
separando tudo (num fragmento, Empédocles fala de mãos e e dos nossos sentidos — o prazer, pelo que é semelhante a
pés soltos à procura de braços e pernas, de olhos à procura da nós; e a dor, pelo que discorda de nós ou é diferente.
cabeça), até que o Amor retorne e, novamente, organize o O ponto alto da teoria de Empédocles refere-se à
mundo. Neste processo dinâmico perene, surgem o céu, os visão. O interior do olho é de fogo ou luz e seu exterior é
astros, a luz (sol, estrelas, fogo), o mar, a terra, as plantas, os feito de água e de terra ou úmido e seco. A terra forma uma
animais e os homens. “Das misturas derramam-se as película fina, através da qual passa o fogo. O olho é como
inúmeras raças dos seres mortais” (tîn dš te misgomšnwn uma lanterna em noite de chuva, o fogo protegido da água
ce‹t’ œqnea mur…a qnhtîn), lemos no frag. 35, v. 16. por uma película ou membrana fina. Através do fogo, vemos
A partir dessa teoria, Empédocles elaborou uma os objetos brilhantes e através da água, os objetos opacos e
astronomia (origem, forma, natureza e movimentos do céu, sombrios, isto é, o semelhante vê o semelhante. A visão é
eclipses, meteoros, noite, dia), uma teoria dos ventos (pelos produzida pelo fogo interior que sai ao encontro dos objetos
movimentos opostos do ar e do fogo) e das chuvas brilhantes e pela água interior que sai ao encontro dos
(compreensão do ar impregnado de água que a deixa escapar objetos opacos e sombrios. Ver é sair de si. Os olhos são
por seus poros), uma biologia (origem, forma e movimento como dardos lançados para as coisas, capturando-as. A
dos animais e das plantas), uma fisiologia dos animais e do variação das cores, dos tons, da transparência e da opacidade
homem, decisiva em sua medicina e na qual a diferença dos depende do tamanho dos poros das coisas vistas.
sexos é central (o quente é princípio do masculino e o frio, Eis uma passagem, o frag. 84, de Empédocles sobre
princípio do feminino; a semente masculina é atraída pela os olhos: “e assim como quando um homem que se propõe a
semente feminina, essa atração se torna desejo e do desejo sair numa noite tempestuosa se mune de uma lanterna de
nasce o feto, pela passagem da semente masculina pelos chama viva, protegendo-a contra os ventos uivantes, e a luz
poros da semente feminina). O semelhante atrai o semelhante projeta-se para fora das membranas protetoras, passando por
e o diferente repele o diferente: isso será uma lei na biologia, seus poros, por ser muito mais sutil e fina, assim também o
na fisiologia e na medicina gregos. fogo primitivo escondeu-se em membranas finas e tecidos,
Uma vez que o médico-filósofo Empédocles atrás das redondas meninas-dos-olhos, varadas de passagens
valoriza a experiência sensorial ou percepção, escreve uma maravilhosas. Afastam as águas profundas que as cercam e
teoria sobre ela. Não sabemos se outros pré-socráticos deixam passar o fogo, por ser mais fino e sutil” (æj d’ Óte
tiveram teorias sobre o assunto; no caso de Empédocles tij prÒodon nošwn æpl…ssato lÚcnon/ ceimer…hn di¦
sabemos que há porque existem fragmentos sobre o tema. A nÚkata, purÕj sšlaj a„qomšnoio,/ ¤ψaj panto…wn
transcrição mais completa dessa teoria foi feita pelo ¢nšmwn lamptÁraj ¢morgoÚj,/ o† t’ ¢nšmwn mn pneàma
discípulo de Aristóteles, Teofrasto. diaskidn©sin ¢šntwn,/ pàr d’ œxw diaqrùskon, Óson
Como tudo no kÒsmoj, a percepção também é tanaèteron Ãen,/ l£mpesken kat¦ bhlÕn ¢teiršsin
regida pela lei dos semelhantes e dos diferentes. Ela é o ¢kt…nessin·/ ìj d tÒt’ ™n m»nigxin ™ergmšnon çgÚgion
encontro de um elemento que é semelhante em nós e fora de pàr/ leptÍsin t’ ÑqÒnVsi loceÚsato kÚklopa koÚrhn·
nós e se produz através dos poros dos órgãos dos sentidos, ARISTÓTELES, De Sensu, 2, 437 b 26-438 b 1).
que emitem e recebem os eflúvios enviados continuamente
AULA 69.

EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE IV)

Como médico, Empédocles também formula emana eflúvios para outro cujos poros, se forem
uma teoria sobre a origem corporal do pensamento. adequados ao emitido, os recebe e os faz circular
O pensamento e a ignorância seguem o dentro de si, produzindo novos eflúvios ou
mesmo princípio de semelhança e diferença. Ou emanações que envia aos outros. Como o
seja, o semelhante conhece o semelhante e ignora ou conhecimento se faz por relação do semelhante com
desconhece o diferente. Assim, o que é mais o semelhante, aqueles que possuem em seu corpo a
misturado, isto é, o que contém todas as raízes e as maior quantidade e a melhor proporção de misturas
várias combinações delas, deve ser o órgão do são os que melhor podem conhecer; quanto menor a
pensamento, pois senão este não poderia conhecer dimensão dos elementos (isto é, quanto menores as
tantas coisas. Em nós, de todos os elementos que nos partículas com que entram numa mistura) e quanto
compõem, o que tem maior dose de mistura é o mais finos os poros, mais alta é a capacidade de
sangue e por isso o coração, que recebe e espalha o conhecimento. Assim, “os elementos quando em
sangue, é a sede do pensamento. Eis por que a partículas grosseiras e espaçadas fazem os homens
qualidade de nosso pensamento varia com a lerdos e desajeitados; se são, ao contrário,
qualidade de nosso sangue, variação determinada condensados e reduzidos a partículas muito
pelo modo como ele se mistura com os outros três diminutas, os movimentos de sangue são mais vivos
humores, e pela quantidade-qualidade dos quatro e o próprio homem será mais disposto e ágil,
elementos que o constituem (fogo, água, terra e ar). empreendendo muitas coisas, mas sem chegar ao
E o mesmo vale para todos os órgãos dos sentidos, fim. Aqueles para os quais, enfim, a mistura é
que variam em acuidade pela qualidade de mistura conveniente numa parte do corpo são os sábios; daí
dos humores e dos elementos, pela espessura e os bons oradores (melhor mistura na língua), os
largura dos poros, pelo equilíbrio dos elementos artistas (melhor mistura nos olhos e nas mãos), os
componentes, de sorte que a diferença entre sábios e sábios (melhor mistura no sangue); e o mesmo se dá
ignorantes, sábios e loucos depende de nosso corpo, com as outras capacidades” (kaˆ ïn mn man¦ kaˆ
sede dos conhecimentos. ¢rai¦ ke‹tai t¦ stoice‹a, nwqroÝj/ kaˆ
Lemos no testemunho doxográfico de ™pipÒnouj· ïn d pukn¦ kaˆ kat¦ mikr¦
Teofrasto: “e acerca do pensamento e da ignorância teqrausmšna, toÝj d toioÚtouj Ñxe‹j/
a sua teoria é a mesma. Pensar é do semelhante pelo φeromšnouj kaˆ poll¦ ™piballomšnouj Ñl…ga
semelhante, ignorância, do dessemelhante pelo ™pitele‹n di¦ t¾n ÑxÚthta tÁj toà/ a†matoj
dessemelhante, sendo o pensamento ou idêntico ou φor©j· oŒj d kaq’ ›n ti mÒrion ¹ mšsh kr©s…j
aparentado com a percepção. É que, depois de ter ™sti, taÚthi soφoÝj ˜k£stouj/ enai· diÕ toÝj
enumerado como se conhece cada coisa por mn ·»toraj ¢gaqoÚj, toÝj d tecn…taj, æj to‹j
intermédio do seu equivalente, acrescentou no final mn ™n ta‹j cers…,/ to‹j d ™n tÁi glètthi t¾n
que ‘foi a partir destas coisas que todas as coisas se kr©sin oâsan· Ðmo…wj d’ œcein kaˆ kat¦ t¦j
harmonizaram umas com as outras e se constituíram, ¥llaj/ dun£meij. TEOFRASTO, Da Sensação § 11).
e é por seu intermédio que elas pensam e sentem Observamos que Empédocles procura
prazer e dor’. Por isso, é sobretudo com o sangue formular uma cosmologia completa, na qual, além
que elas pensam; já que é no sangue, mais do que do mundo, também o homem é explicado. Como
nas demais partes, que os elementos estão parte da natureza, o homem é formado pelos
misturados” (æsaÚtwj d lšgei kaˆ perˆ mesmos elementos que ela, seguindo como ela as
φron»sewj kaˆ ¢gno…aj. [10] tÕ mn g¦r φrone‹n mesmas leis. E assim como há coisas diferentes no
enai to‹j Ðmo…oij, tÕ d’ ¢gnoe‹n to‹j ¢nomo…oij, mundo, há homens diferentes por natureza.
æj À taÙtÕn À parapl»sion ×n tÍ a„sq»sei t¾n Empédocles é o primeiro a formular uma
φrÒnhsin. diariqmhs£menoj g¦r æj ›kaston teoria do conhecimento em que, além da diferença
˜k£stJ gnwr…zomen ™pˆ tšlei prosšqhken æj entre aparência e realidade (já feita pelos
(frag. 107) ™k toÚtwn <g¦r> p£nta pep»gasin antecessores), graças aos conhecimentos médicos, os
¡rmosqšnta/ kaˆ toÚtoij φronšousi kaˆ ¼dont’ mecanismos ou operações do corpo são descritos
ºd’ ¢niîntai./ diÕ kaˆ tù a†mati m£lista para explicar como e por que podemos conhecer as
φrone‹n· ™n toÚtJ g¦r m£lista kekr©sqa… coisas.
[™sti] t¦ stoice‹a tîn merîn. TEOFRASTO, Da
Sensação § 9).
A sensação ou percepção e o pensamento ou
inteligência são um encontro: um ser envia ou
AULA 70.

ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (cerca de 500-428 a.C.)

Natural de Clazômenas, na Jônia (Ásia Menor), correta do nascimento e da destruição. Pois nada nasce ou
Anaxágoras pertencia a uma família aristocrática, mas renunciou perece, mas há mistura e separação das coisas que são. E, assim,
aos títulos políticos e aos bens para dedicar-se à filosofia, tendo deveriam chamar corretamente o nascimento de mistura e a
feito seus primeiros estudos com os discípulos de Anaxímenes. destruição de separação” (tÕ d g…nesqai kaˆ ¢pÒllusqai
Passou aproximadamente trinta anos em Atenas, fundando a oÙk Ñrqîj nom…zousin oƒ “Ellhnej· oÙdn g¦r crÁma
primeira escola filosófica desta cidade, sob o apoio de Péricles, g…netai oÙd ¢pÒllutai, ¢ll’ ¢pÕ ™Òntwn crhm£twn
seu protetor e discípulo. Em Atenas mesmo, Anaxágoras teve summ…sgeta… te kaˆ diakr…netai. kaˆ oÛtwj ¨n Ñrqîj
destino semelhante ao de Sócrates e ao de Aristóteles, isto é, kalo‹en tÒ te g…nesqai summ…sgesqai kaˆ tÕ ¢pÒllusqai
suas idéias foram consideradas perigosas para o Estado, e, como diakr…nesqai. SIMPLÍCIO, Comentário sobre a Física de
Sócrates, foi submetido ao tribunal e condenado, em 431 a.C., Aristóteles, 163, 18).
por impiedade ao negar a divindade do Sol (para ele, uma pedra O princípio fundamental do pensamento de
incandescente) e da Lua (para ele, uma Terra). Pouco se sabe Anaxágoras é por ele expresso com a afirmação: “há em cada
sobre o processo e há versões contraditórias sobre o assunto. De coisa uma porção de cada coisa” ou “todas as coisas estão
todo modo — quer tenha sido condenado à morte ou condenado juntas”.
ao ostracismo, isto é, ao exílio — o certo é que Anaxágoras foi Essa afirmação possui dois sentidos principais: em
encarcerado mas conseguiu fugir, refugiando-se em Lâmpsaco primeiro lugar, significa que, por menor que seja uma porção de
(Jônia), onde fundou outra escola. Mereceu alta estima entre os matéria, nela encontraremos sempre os mesmos e todos os
lampsacenses que cunharam moedas com sua efígie — elementos que a constituem como diferente de todas as outras,
representação plástica da imagem de um personagem real ou ou seja, a divisão pode ir ao infinito, mas sempre encontraremos
simbólico, retrato, imagem, figura de um indivíduo — e a mesma mistura ou composição na menor partícula encontrada.
puseram elogioso epitáfio — inscrição sobre lápides tumulares Em segundo lugar, significa que a multiplicidade ou a
ou monumentos funerários; enaltecimento, elogio breve a um pluralidade é originária, e mais profunda do que havia afirmado
morto; tipo de poesia, nem sempre de inscrição lapidar, que Empédocles. De fato, este havia afirmado que a diferença
encerra um lamento pela morte de outrem, ou com notada originária encontrava-se nas quatro raízes, que, sendo φÚsij, são
intenção satírica, que trata de um vivo como se estivesse morto a realidade última, cada qual plenamente separada e diferente
— em seu túmulo. Os tratados (um de perspectiva, outro sobre a das demais. Anaxágoras, porém, afirma que, por minúscula que
quadratura do círculo, e um livro de problemas) atribuídos por seja a porção de matéria, nela encontraremos mistura,
autores tardios a Anaxágoras não parecem obras genuínas suas. pluralidade ou multiplicidade, isto é, nunca encontraremos
“Sobre a Natureza”, de que nos restam vinte e dois (22) qualidades separadas. Só há mistura.
fragmentos, parece ter sido um tratado pequeno, dando-nos Que mistura é essa? A das qualidades opostas que,
porém toda a base do sistema de Anaxágoras, que obteve grande agora, não se reduzem aos quatro elementos, mas incluem todas
reputação como físico, matemático, astrônomo e meteorologista. as oposições qualitativas: quente-frio, úmido-seco, denso-sutil,
Anaxágoras foi o filósofo pré-socrático que deu origem a maior grande-pequeno, branco-preto, grosso-fino, luminoso-obscuro,
número de discussões ou a interpretações as mais variadas. duro-mole, liso-rugoso, amargo-doce, etc.. O que diferencia um
De acordo com Diógenes Laércio, Anaxágoras ser de outro é a proporção das qualidades misturadas e a
escreveu um único livro, que poderia ter sido lido pelos predominância de uma delas sobre as outras. Assim, pode-se
contemporâneos de Sócrates e de Platão e que um exemplar dizer que o ar é a mistura onde predomina o que há de mais frio,
talvez existisse na biblioteca da Academia platônica, onde foi o fogo é a mistura onde predomina o que há de mais quente, a
consultado por Simplício, de quem nos transmitiu a maior parte terra a mistura onde predomina o que há de mais seco, a água
dos fragmentos. A doxografia mais importante vem de onde predomina o que há de mais úmido, o osso ou a pedra onde
Aristóteles e Teofrasto. predomina o que há de mais duro, a carne onde predomina o
Como Empédocles, Anaxágoras pretende resolver a mais mole, e assim sempre. Mas o ar será sempre ar, em sua
crise do eleatismo e do heraclitismo, isto é, afirmar menor partícula, do mesmo modo que um osso será osso em sua
simultaneamente a existência do ser imutável e a do mundo menor partícula, ou seja, a composição ou mistura será sempre a
plural e mutável. Por isso, como Empédocles, Anaxágoras mesma em cada coisa, seja qual for a dimensão a que a
afirma que nada é criado nem destruído, que o todo é completo e reduzamos numa divisão. A parte e o todo possuem a mesma
nada lhe pode ser acrescentado, sendo sempre igual a si mesmo. mistura.
Assim, no frag. 17, lemos: “os helenos não têm uma opinião
AULA 71.

ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE II)

Cada tipo de matéria provém de uma mistura Encontramos, assim, em Anaxágoras, a


originária e a tal mistura Anaxágoras chama de continuação da perspectiva de Parmênides e de
sementes (spšrmata). São elas a φÚsij. Na Heráclito, isto é, somente a razão ou a inteligência,
cosmologia de Anaxágoras, as sementes que saem da somente o pensamento alcança a realidade última e
φÚsij (que é uma mistura primordial) pela ação do originária. No entanto, também há em Anaxágoras a
noàj contêm, em cada uma delas, todos os elementos presença da medicina e das artes: a experiência e as
que estão presentes no universo. São germes ou grãos técnicas nos ajudam a suprir deficiências dos sentidos.
de todas as coisas. Quando dividimos um coração, não E encontramos, ainda, a tradição antiga da ¢l»qeia,
encontramos corações menores, mas carne, e esta, isto é, do não-esquecido, pois Anaxágoras atribui um
dividida, sempre será a mesma carne. Ou seja, a grande papel à memória no conhecimento verdadeiro.
semente da carne do coração será a mesma na menor A razão ou inteligência, auxiliada pela
partícula em que for dividida. Por esse motivo, experiência, pela memória e pelas técnicas ou artes,
Aristóteles designou as sementes de Anaxágoras com o nos ensina que o verdadeiro é invisível. Porém nos
nome com que ficaram conhecidas na história da ensina algo mais, que também é invisível: a causa das
filosofia: homeomerias (Ðmoiomšreia), partículas misturas e separações das sementes.
semelhantes ou iguais. Esta palavra é composta de O primeiro fragmento atribuído a Anaxágoras
Ðmo-, que vem de Ómoioj (semelhante, igual, de mesma diz: “todas as coisas estavam juntas, ilimitadas em
natureza, de mesmo gênero, comum a todos, que número e pequenez, pois o pequeno é ilimitado. E
convém à natureza de, igual a) e mšroj (parte, porção, enquanto todas as coisas estavam juntas, nenhuma
pedaço). Significa um todo formado de partes ou delas podia ser reconhecida devido à sua pequeneza. O
porções iguais ou análogas. O semelhante provém do ar e o éter prevaleciam sobre as demais, ambos
semelhante, pois, pergunta o filósofo no frag. 10, ilimitados, pois no conjunto de todas as coisas, estas (o
“como o cabelo viria do não-cabelo e a carne da não- ar e o éter) são as maiores tanto em quantidade quanto
carne?” (pîj g¦r ¥n, φhs…n, ™k m¾ tricÕj gšnoito em grandeza” (Ðmoà p£nta cr»mata Ãn, ¥peira kaˆ
qrˆx kaˆ s¦rx ™k m¾ sarkÒj; Schol. In Gregor. plÁqoj kaˆ smikrÒthta· kaˆ g¦r tÕ smikrÕn
XXXVI, 911). Sementes de cabelo serão cabelo, ¥peiron Ãn. kaˆ p£ntwn Ðmoà ™Òntwn oÙdn
sementes de carne serão carne. Reunidas, as sementes œndhlon Ãn ØpÕ smikrÒthtoj· p£nta g¦r ¢»r te
semelhantes formam uma realidade que é de mesma kaˆ a„q¾r kate‹cen, ¢mφÒtera ¥peira ™Ònta·
natureza ou de mesma composição ou de mesma taàta g¦r mšgista œnestin ™n to‹j sÚmpasi kaˆ
mistura que elas. Tomando a nutrição como exemplo, pl»qei kaˆ megšqei. SIMPLÍCIO, Comentário sobre a
Anaxágoras dizia que se o pão e a água podem nutrir Física de Aristóteles, 155, 23).
todo o nosso corpo (cabelos, sangue, carne, nervos, E no final do quarto fragmento está escrito:
ossos) é porque em ambos encontraremos os elementos “antes, contudo, de se separarem, quando todas as
ou sementes de todas as partes do corpo que podem ser coisas ainda estavam juntas, nenhuma cor se podia
por eles alimentadas. “Tudo está em tudo”, é a lei da distinguir, nem uma única. Pois a mistura de todas as
natureza. coisas o impedia — a do úmido e do seco, do quente e
As sementes — spšrmata ou Ðmoiomereiai do frio, do luminoso e do escuro, assim como também
— são invisíveis. Como sabemos de sua existência? pela muita terra que nela se encontrava e pelas
Como sabemos que são a φÚsij ou o ser? Como sementes em quantidade infinita, sem semelhança
sabemos que são eternas, imutáveis, imóveis, idênticas umas com as outras. Pois também nas outras coisas,
a si mesmas, totalidades plenas, como o ser de nenhuma é semelhante às outras. E se isto é assim,
Parmênides? Pelo pensamento. No frag. 21, lemos: devemos supor que todas as coisas estão no todo”
“por causa da fraqueza deles (os sentidos) não somos (prˆn d ¢pokriqÁnai taàta p£ntwn Ðmoà ™Òntwn
capazes de discernir a verdade. Mas podemos valer-nos oÙd croi¾ œndhloj Ãn oÙdem…a· ¢pekèlue g¦r ¹
da experiência, da memória, da sabedoria e das sÚmmixij p£ntwn crhm£twn, toà te dieroà kaˆ toà
técnicas. Pois o que aparece é uma visão do invisível” xhroà kaˆ toà qermoà kaˆ toà ψucroà kaˆ toà
(“Øp’ ¢φaurÒthtoj aÙtîn, φhs…n, oÙ dunato… lamproà kaˆ toà zoφeroà, kaˆ gÁj pollÁj
™smen kr…nein t¢lhqšj”, t…qhs… te p…stin aÙtîn ™neoÚshj kaˆ sperm£twn ¢pe…rwn plÁqoj oÙdn
tÁj ¢pist…aj t¾n par¦ mikrÕn tîn crwm£twn ™oikÒtwn ¢ll»loij. oÙd g¦r tîn ¥llwn oÙdn
™xallag»n. e„ g¦r dÚo l£boimen crèmata, mšlan œoike tÕ ›teron tîi ˜tšrwi. toÚtwn d oÛtwj
kaˆ leukÒn, eta ™k qatšrou e„j q£teron kat¦ ™cÒntwn ™n tîi sÚmpanti cr¾ doke‹n ™ne‹nai
stagÒna parekcšoimen, oÙ dun»setai ¹ Ôψij p£nta cr»mata. SIMPLÍCIO, Comentário sobre a
Física de Aristóteles, 34, 28).
diakr…nein t¦j par¦ mikrÕn metabol£j, ka…per
prÕj t¾n φÚsin Øpokeimšnaj. SEXTO EMPÍRICO,
Contra os Matemáticos, VII, 90).
AULA 72.

ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE III)

No princípio havia um magma (m…gma) O mundo se forma a partir de um


indiscernível onde tudo estava misturado com movimento rotatório ou turbilhonante que o noàj
tudo, onde nada podia ser discernido por causa da realiza no magma primitivo, ampliando-se e
pequeneza de cada semente, onde o ar e o éter estendendo-se até alcançar o todo. Sua rapidez
prevaleciam sobre o restante (isto é, uma bruma separa o rarefeito e o denso, o frio e o quente, o
recobria tudo, não permitindo que coisa alguma úmido e o seco, o luminoso e o obscuro. Formam-
pudesse ser distinta de outras) e onde tudo se, inicialmente, duas grandes massas, uma de
participava de tudo. Desse magma, feito das fogo (na parte exterior) e outra de ar (na parte
sementes indiscerníveis, surge a separação, inferior). A seguir, o ar se separa em nuvens,
surgem as coisas e o kÒsmoj. De onde vem a água, terra e pedras; depois, separa-se o fogo e
separação ordenadora do mundo? Como para surge o mundo que conhecemos (e que, segundo
Empédocles, também para Anaxágoras a força Anaxágoras, não é o único mundo existente, mas
separadora e unificadora, organizadora do um dentre os inúmeros mundos formados pelo
kÒsmoj, é diferente do magma dos elementos, noàj). Como o fogo de Heráclito, o noàj é
embora eterna e imutável como eles. Essa força, inteligência e poder, porém, diferentemente do
diferente do magma de sementes e separada dele, fogo heraclitiano, não participa do processo que
Anaxágoras denomina noàj, a força inteligente ou realiza, mas permanece separado do mundo e do
pensante. Não é incorpórea, pois só existe o magma primitivo, movendo-os de fora. Não é pura
corporal. Mas é diáfana, ou seja, permite a espiritualidade, mas matéria diáfana incorruptível.
passagem da luz, transparente, sutil, invisível. Não é uma força sagrada ou sacralizada, mas
Essa força inteligente introduz o movimento na natural, um motor cósmico responsável pela vida
massa primitiva das sementes, produzindo a universal e sua ordem (compreende-se que o
separação dos diferentes e a reunião dos tribunal ateniense o tivesse acusado de ateísmo ou
semelhantes, a composição e a dissociação, o impiedade, pois o noàj torna os deuses
devir. O noàj é a força que sabe ou reconhece desnecessários).
todas as coisas, que move todas as coisas, e que Médico adepto de uma outra concepção da
tem esse poder porque “não está misturado com medicina, Anaxágoras oferece uma teoria da
nenhuma coisa, mas se encontra sozinho e em si percepção oposta à de Empédocles. Para a
mesmo”. Como Deus, o noàj ou Inteligência está medicina adotada por este último, o semelhante
fora e separado do mundo. No frag. 12, lemos: “a age sobre o semelhante e o semelhante conhece o
inteligência é ilimitada, independente e não semelhante. Para a medicina adotada por
misturada com outra coisa, mas está sozinha em si Anaxágoras, os contrários é que agem uns sobre
mesma [...] É a mais sutil e mais pura de todas as os outros, pois, como relata Teofrasto, “as coisas
coisas e possui pleno conhecimento de tudo e tem semelhantes não podem ser afetadas por outras
grandíssima força; e sobre quantas coisas têm semelhantes”. Conseqüentemente, para que a
alma, das maiores às menores ele tem poder” vista, a audição, o olfato possam discernir as
(noàj dš ™stin ¥peiron kaˆ aÙtokratj kaˆ coisas é preciso que os órgãos dos sentidos sejam
mšmeiktai oÙdenˆ cr»mati, ¢ll¦ mÒnoj aÙtÕj afetados pelo diferente, pelo contrário, pelo
™p’ ™wutoà ™stin. [...] œsti g¦r leptÒtatÒn te oposto. Não posso sentir o frio, senão porque sou
p£ntwn crhm£twn kaˆ kaqarètaton, kaˆ quente; não posso sentir o quente, senão porque
gnèmhn ge perˆ pantÕj p©san ‡scei kaˆ sou mais frio do que o objeto que me toca. A
„scÚei mšgiston· kaˆ Ósa ge ψuc¾n œcei kaˆ sensação é uma espécie de dor e não de prazer
t¦ me…zw kaˆ t¦ ™l£ssw, p£ntwn noàj krate‹. (porque o prazer é trazido pelos semelhantes). A
SIMPLÍCIO, Comentário sobre a Física de percepção é um choque entre diferentes.
Aristóteles, 164, 12).
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.

DATA: _____/_____/_____.

AULA 73.

EXERCÍCIOS:

1. Durante o curso foram estudados alguns autores da filosofia. Qual desses autores chamou-lhe
mais a atenção? Por quê?
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2. É possível assinalar diferenças entre a filosofia e as outras disciplinas? Quais são as diferenças?
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3. O que você espera de um curso de filosofia? O curso assistido contribuiu para a sua formação?
Justifique sua resposta.
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AULA 74.

FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900)

A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a se sublima em abstrações, entre eles o mais abstrato sempre confluía de novo
proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo em uma pessoa. Mas Tales dizia: “Não é o homem, mas a água, a realidade
necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em das coisas”; ele começa a acreditar na natureza, na medida em que, pelo
primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das menos, acredita na água. Como matemático e astrônomo, ele se havia tornado
coisas; em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em frio e insensível a todo o místico e o alegórico e, se não logrou alcançar a
terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está sobriedade da pura proposição “Tudo é um” e se deteve em uma expressão
contido o pensamento: “Tudo é um”. A razão citada em primeiro lugar deixa física, ele era, contudo, entre os gregos de seu tempo, uma estranha raridade.
Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o Talvez os admiráveis órficos possuíssem a capacidade de captar abstrações e
tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em de pensar sem imagens, em um grau ainda superior a ele: mas estes só
virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se tivesse dito: chegaram a exprimi-lo na forma da alegoria. Também Ferécides de Siros, que
“Da água provém a terra”, teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, está próximo de Tales no tempo e em muitas das concepções físicas, oscila,
mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa ao exprimi-Ias, naquela região intermediária em que o mito se casa com a
representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o alegoria: de tal modo que, por exemplo, se aventura a comparar a Terra com
estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por um carvalho alado, suspenso no ar com as asas abertas, e que Zeus, depois de
sobre ele. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que sobrepujar Kronos, reveste de um faustoso manto de honra, onde bordou,
Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais com sua própria mão, as terras, águas e rios. Contraposto a esse filosofar
exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia obscuramente alegórico, que mal se deixa traduzir em imagens visuais, Tales
tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado é um mestre criador, que, sem fabulação fantástica, começou a ver a natureza
metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que em suas profundezas. Se para isso se serviu, sem dúvida, da ciência e do
encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados demonstrável, mas logo saltou por sobre eles, isso é igualmente um caráter
para exprimi-la melhor  a proposição: “Tudo é um”. típico da cabeça filosófica. A palavra grega que designa o “sábio” se prende,
É notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o
empiria: exatamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, homem do gosto mais apurado; um apurado degustar e distinguir, um
em todos os tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente significativo discernimento, constitui, pois, segundo a consciência do povo, a
atraente, transpondo as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta arte peculiar do filósofo. Este não é prudente, se chamamos de prudente
para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. àquele que, em seus assuntos próprios, sabe descobrir o bem. Aristóteles diz
Pesadamente, o entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito,
esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não se importavam com
companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de os bens humanos”. Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso,
um regato selvagem, que corre rodopiando pedras; o primeiro, com pés difícil, divino, a filosofia marca o limite que a separa da ciência, do mesmo
ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar- modo que, ao preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudência. A
se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre
O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer
fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de
dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato. serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes.
O que, então, leva o pensamento filosófico tão rapidamente a seu Mas o conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral
alvo? Acaso ele se distingue do pensamento calculador e mediador por seu quanto no estético: assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a
vôo mais veloz através de grandes espaços? Não, pois seu pé é alçado por ela se prende uma doação de nomes. “Isto é grande”, diz ela, e com isso eleva
uma potência alheia, lógica, a fantasia. Alçado por esta, ele salta adiante, de o homem acima da avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao
possibilidade em possibilidade, que por um momento são tomadas por conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso: ainda
certezas; aqui e ali, ele mesmo apanha certezas em vôo. Um pressentimento mais por considerar o conhecimento máximo, da essência e do núcleo das
genial as mostra a ele e adivinha de longe que nesse ponto há certezas coisas, como alcançável e alcançado. Quando Tales diz: “Tudo é água”, o
demonstráveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e homem estremece e se ergue do tatear e rastejar vermiformes das ciências
iluminar como um relâmpago as semelhanças: mais tarde, a reflexão vem isoladas, pressente a solução última das coisas e vence, com esse
trazer seus critérios e padrões e procura substituir as semelhanças por pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do conhecimento. O
igualdades, as contigüidades por causalidades. Mas, mesmo que isso nunca filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo,
seja possível, mesmo no caso de Tales, o filosofar indemonstrável tem ainda expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o artista plástico,
um valor; mesmo que estejam rompidos todos os esteios quando a lógica e a compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o
rigidez da empiria quiseram chegar até a proposição “Tudo é água”, fica homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do
ainda, sempre, depois de destroçado o edifício científico, um resto; e macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o reflexo
precisamente nesse resto há uma força propulsora e como que a esperança de do mundo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se transforma em
uma futura fecundidade. outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa transformação
Naturalmente não quero dizer que o pensamento, em alguma para o exterior, em versos escritos. O que é o verso para o poeta, aqui, é para
limitação ou enfraquecimento, ou como alegoria, conserva ainda, talvez, uma o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-se em seu
espécie de “verdade”: assim como, por exemplo, quando se pensa em um enfeitiçamento, para petrificá-la. E assim como, para o dramaturgo, palavra e
artista plástico diante de uma queda d’água, e ele vê, nas formas que saltam verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira, para dizer nela o que
ao seu encontro, um jogo artístico e prefigurador da água, com corpos de viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia anunciar pelos gestos e
homens e de animais, máscaras, plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, pela música, assim a expressão daquela intuição filosófica profunda pela
com todos os protótipos possíveis: de tal modo que, para ele, a proposição dialética e pela reflexão científica é, decerto, por um lado, o único meio de
“Tudo é água” estaria confirmada. O pensamento de Tales, ao contrário, tem comunicar o contemplado, mas um meio raquítico, no fundo uma
seu valor  mesmo depois do conhecimento de que é indemonstrável  em transposição metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua diferentes.
pretender ser, em todo caso, não-místico e não-alegórico. Os gregos, entre os Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis
quais Tales subitamente destacou tanto, eram o oposto de todos os realistas, comunicar-se, falou da água!
pois propriamente só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses e
consideravam a natureza inteira como que apenas um disfarce, mascaramento Nietzsche, Friedrich. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos. §3, Ed.
e metamorfose desses homens-deuses. O homem era para eles a verdade e o Kröner, 1873.
núcleo das coisas, todo o resto apenas aparência e jogo ilusório. Justamente Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho
por isso era tão incrivelmente difícil para eles captar os conceitos como
conceitos: e, ao inverso dos modernos, entre os quais mesmo o mais pessoal
Humberto Zanardo Petrelli
petrelli@hotmail.com
Limeira, 6 de março de 2007.

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