Você está na página 1de 54

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Verítatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confisca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
índice

Png

NINGUÉM É JOAO-NINGUÉM! 465

O grande problema da nova geragáo:


46/
SEXO ANTES DO CASAMENTO: SIM OU NAO?

Obscurantismo ou heroísmo?

CRUZADAS MEDIEVAIS E ESPIRITO CRISTÁO ^

Aínda o simbolismo popula :

E A MENSAGEM DO GALO? 503

RESENHA DE LIVROS 511

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO:
1975: Jubileu e Ano Santo. — cCanonizacao» do Padi.-.i
C¡co. O Templo de Jerusalém será leconsiruído? —
índice Gemí de 1973.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual «5 40.00


Número avulso üc qualqucr mes C|5 5ou
Volumes encadurnados de 1933 o I9I/J (preco unitariot ... CiS 35,00
índice Gcral de 1957 a 19G1 ClS 1O'°"

EDITORA LAUDES S . A .
DE Plt ADMINISTRACAO
? 2.8BÜ
w
K«a S5o Rafael, S8. /(>»)«
20()00 R¡o dc Ja|le|ro
(GB,

S..000 Rio ,lc Janeiro (GB- Tels. : 2G8-998L e 268-270.!


NINGUÉM É JOÁO-NINGUÉM!
Novembro... O fim do ano se aproxima. Mais urna voz
saira um ano e entrará outro ano. A existencia, marcada pelo
constante repetitório das mesmas ocasióes, a muitas pessoas
poderá parecer insípida e monótona. Nao dá a muita gente a
impressáo de ser um colar de decepcóes e cansagos sem resul
tados sensíveis? «Onde está a realizagáo de meus sonhos?...
de minhas grandes aspiragóes?», perguntam muitos daqueles
que param para pensar um pouco.

As aparéncias enganam... O valor de urna vida humana


nao se mede sempre e necessariamente pelas faganhas notáveis
que alguém realize. Pode-se dizer que relativamente poucos
sao aqueles que conseguem levar a termo iniciativas que a oplni-
áo pública reconhega como obras grandes e dignas de elogio.
A maioria dos homens talvez se debata com a impressáo de nao
poder fazer tudo aquilo que de grande desejaria executar.
Positivamente falando, o que dá valor a urna vida humana
é a fidelidade á realidade de cada dia, por mais monótona ou
decepcionante que parega; é a presenga fiel ao dever cotidiano
ou á vontade do Pai. Quem realiza essa presenga, é sempre
grande e importante. Ao contrario, quem foge a fidelidade,
vencido pela aparéncia «desanimadora» de seu quadro de vida,
prejudica a si e a urna multidáo de semelhantes. — Esta ver-
dade é ilustrada pelos brilhantes dizeres de um poeta, que as-
sim escreve:

SE A VIDA TE PARECE PESADA,

PENSA NOS OUTROS

Se. atrasas, «les param ;


Se hesitas, eles recuam ;
Se te arrastas, eles sucumbem;
Se desanimas, eles desmaiam;
Se te assentas, eles se deitam;
Se te irritas, eles exptodem;
Se criticas, eles condenara ;
Se te queixas, eles se revoltam.

MAS,

Se lu rezas, eles se santificar»;


Se prestas servicos, eles se enríquccem ;

— 465 —
Se te sacrificas, eles se robustecen);
Se tu sorris, eles se alegram;
Se choras com eles, eles se consolam;
Se terts paciencia, eles se ocalmam;
Se tu os amas, eles revivem ;
Se cooperas com Cristo,

TU SALVAS O MUNDO!

Estes versos nos lembram verdades capitais:

Ninguém vive para si, mas todos nos estamos envolvidos


em urna grande comunháo: comunháo de homens, comunháo de
cristáos... Nessa comunháo, cada um de nossos atos é impor
tante talvez até muito mais importante para nosso próximo
do que para nos mesmos. Cada um de nossos atos é, sim,
misteriosamente ampliado; o «pequeño bem» que nos fagamos,
se irradia em ondas concéntricas, á semelhanga daquelas
ondas que se váo abrindo e dilatando em torno de um pedre-
gülho lancado na agua. De forma paralela, o «pequeño mal»
que nos cometamos, vai prejudicar o próximo, muito mais
larga e profundamente do que conjeturamos. Com efeito,
quando me atraso, os outros nao se atrasam simplesmente,
mas chegam a parar; quando me sentó fora de propósito, os
outros nao se sentam apenas, mas se deitam prostrados; quan
do desanimo, os outros nao somente desanimam, mas chegam
a perder consciéncia e desmaiar. Em compensacáo, porém, quan
do esboco um sorriso (ainda que me forcé), os outros nao fazem
simplesmente o mesmo, mas se alegram também em seu intimo;
quando testemunho o meu amor ao próximo, este se levanta de
sua morte espiritual e recupera vida. Se, enfim, coopero com
Cristo pela oragáo e pelo trabalho fiel de cada dia, sustentando
o aparente peso da vida, como Cristo sustentou a sua cruz, con-
fíguro-me mais e mais a Ele e com Ele salvo o mundo.
O poeta assim nos diz que ninguém é Joáo-ninguém ou
destituido de importancia, mas que cada um é responsável poi
muitos e muitos, e carrega urna boa parte das sortes de seus
semelhantes. Mais ainda: cada um se desempenha das suas
responsabilidades fugindo ao sentimento de desánimo e abati-
mento, para dizer a todo momento, por mais insípido que este
pareca, um SIM magnánimo e generoso á Vontade do Pai. Ele,
o Senhor Deus, sabe fazer dos pequeños valores, das ninharias
que geralmente tecem a trama de urna vida fiel, imensos valo
res em prol de nos mesmos e de nossos semelhantes!

E. B.

— 466 —
«PEROUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XIV — N' 167 — Novembro de 1973

O grande problema da nova geracáo:

sexo antes do casamento: sim ou nao ?


Em síntese: As relagdes sexuais anteriores ao casamento tornam-se
praxe cada vez mals comum entre os jovens de hoje, como demonstram
pesquisas e estatístícas.

Em vista disto, numerosos pensadores vém estudando o assunto, e


procuram legitimar esse costume, que parece dltado por necessidades im
periosas da vfda contemporánea (hoje em día o casamento so pode ser
tranquilamente contraído depois que os jovens tenham adquirido certa esta-
billdade profesional e económica). As diversas fórmulas, porém, concebi
das em vista de justificar o uso do sexo antes do casamento seo de todo
insuficientes. — Autores católicos de renome lembram que

— as relacñes sexuais sao, por sua índole, a expressáo de um amor


que chega á mals Intima e extrema doacáo de si. Por Isto, requerem a
totalidade e a estabilidade que só o contrato matrimonial Ihes pode dar.
Antes do casamento, as relacaes sexuais vém a ser urna expressSo sem
conteúdo; sao, em grande parte, movidas pelo egoísmo e pela coblca cega,
mais do que pelo genuino amor-doaofio. Multas veres equivalen» a indigna
manlpulacSo do corpo humano;

— o casamento tem sempre um aspecto social e urna dimensSo pú


blica, institucional; a vida conjugal nSo interessa apenas aos nubentes, mas
a toda a socledade. Por isto, desde que dois jovens queiram viver conju-
galmente, a sociedade tem o direlto de Ihes pedir que oflclallzem esse seu
propósito mediante um ato público que é o casamento legítimamente con
traído. O casamento clandestino, nSo oficializado, vem a ser burla do
próprlo casamento; antigamente admitido pela jurisprudencia, foi definitiva
mente rejeltado pelo Concillo de Trento no séc. XVI, por dar margem a
copiosos abusos.

Em suma, o problema das relacoes pré-matrimoniais nao pode ser


isolado do contexto do comportamento sexual do homem moderno. Este é
mal orientado por falsos conceitos de amor, sexo e casamento, que a ética
da situacáo tem relativízado e a onda de erotismo moderno tem deturpado.
Por isto a solucáo que se deve dar ao problema, está ligada á renovacao
das nocSes fundamentáis de amor, sexo e matrimonio. Seja o jovem de
hoje preparado a se libertar dos sugestionamentos que a socledade de con-

— 467 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 167/1973

sumo Ihe incute; assim compreenderá que a continencia pré-nupcial nao é


Irustragáo nem castracSo, mas condigáo de cresclmento do auténtico amor-
-doacSo.

Comentario: Está cada vez mais propagada entre os jo-


vens a prática de relagóes sexuais antes do casamento. Tempos
havia em que tal costume chamava a atengáo e suscitava repu
dio; atuaimente, porém, a praxe tende a se generalizar com
foros de legitimidade. As mais variadas razóes sao aduzidas,
para tentar justificá-las, de sorte que se registra perplexidade
entre os que observam o fenómeno. Ora, a fim de ajudar os
interessados a refletir sobre o assunto, vamos propor ñas pá
ginas seguintes alguns dados concretos e certos principios que
projetem luz sobre a espinhosa questáo.

1. A situagáo : números

A liberdade sexual, cada vez mais notoria no mundo intel-


ro, se reflete também no período que precede o casamento.
Desde que o queiram, muitos jovens fazem tranquilamente suas
experiencias de vida conjugal, encontrando para isto o apoio de
teorías psicológicas, pedagógicas, filosóficas...: o uso de anti-
concepcionais e o recurso ao aborto contribuem fortemente para
remover o receio de conseqüéncias desagradáveis de tal costume.

Certos inquéritos realizados nos últimos tempos dáo a ver


quáo disseminada está a prática de relagóes sexuais antes do
casamento:1

Nos Estados Unidos, o relatório de Kinsey indica que 90%


dos rapazes e aproximadamente 50% das mogas tém relagóejs
sexuais pré-matrimoniais.

Nos países escandinavos, a praxe já tem sua antiga tradi-


cáo, de modo que é geralmente tida como normal. Na Dina
marca, por exemplo, recente pesquisa evidenciou que, entre ra
pazes de 18/19 anos de idade, 63% tinham tido relagóes sexuais
pré-matrimoniais; 97% dos mesmos as julgavam normáis, e
93% as tinham mesmo como obrigatórias. Na Suécia, a Um-

i Os números que, a seguir, citaremos, sao tirados do livro de Mar


ciano Vidal: "I rapportl prematrimoniall", Assis 1973 (traducao do espannol
"Moral y sexualidad prematrimonial". Madrid).

— 468 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO

versidade de Upsália em 1965 averigüou que, entre estudantes


de 17 a 23 anos, 81% dos rapazes e 65% das mogas tinham
feito a mesma experiencia pré-conjugal.

Na Franga, estatísticas de 1963 davam a ver que, aos 20


anos de idade, 80% dos rapazes e 50% das mogas haviam tido
suas relagóes pré-matrimoniais.

Na Alemanha, um inquérito de 1953 forneceu os seguintes


resultados: 70% das mulheres e 98% dos homens interrogados
tinham tido relagóes sexuais antes do casamento. Interrogados
quanto á moralidade dessa praxe, 18% dos homens e 28/29%
das mulheres a desaprovaram.

No Brasil, a imprensa tem noticiado o surto espantoso de


doengas venéreas entre universitarios.

As condigóes da vida moderna inspiram e fomentam a no


va praxe. A sociedade, através dos seus meios de comunicagáo
(imprensa escrita, falada e televisionada), através dos cartazes
das rúas, mediante também o cinema c o teatro, oferece aos
jovens urna serie de estimulantes da vida sexual. O casamento,
porém, só pode ser realizado quando os jovens tenham habilita-
cáo, emprego estavel, salario compensador, etc. Conseqüente-
mente, a tentagáo se torna forte... De modo especial, o auto-
móvel tem sido o grande instrumento da revolugáo dos costu-
mes sociais, repercutindo notavelmente sobre as relacóes entre
namorados e noivos. Segundo recente estatística norte-ameri
cana, 67% dos jovens consideram o automóvel essencial para
o periodo de noivado. Nos Estados Unidos, a maioria dos filhos
ilegítimos foi concebida dentro de um carro.

É a realidade proposta por tais dados numéricos e fatos


que leva os estudiosos a encarar o assunto em conferencias,
mesas-redondas, debates, etc.

Vejamos, pois, quais os argumentos que mais freqüente-


mente se propóem em favor das relagóes pré-matrimoniais.

2. Em prol de nova moralidade

Na bibliografía que vem sendo publicada sobre o assunto,


encontramos a apresentagáo de um principio geral, de fatores
concretos e de fórmulas de canonistas que tendem a fundamen-

— 469 —
G -PERGUNTE E RESPONDEREMOS,» 1()7/1973

tar urna revisáo do clássico modo de julgar as relagóes pré-


-matrimoniais.

2.1. Um principio geral

Dentro as correntes ¡novadoras em questóes de Moral, des-


taca-se a «New Morality» (Nova Moralidade) na Inglaterra,
de inspiracáo anglicana (nao católica). Apela para a ótica da
situacáo ou para o principio de que nenhum ato por si mesmo
é moralmente bom ou mau; mas o que, em determinadas cir
cunstancias, seria condenável, em outras seria mesmo louvável;
o amor — amor subjetivo, concebido pela pessoa que age — é
o único preceito sempre válido. Como principáis representantes
dessa tendencia, citam-se J. Fletcher e J. A. T. Robinson, que
apelam para principios langados por E. Brunner, H. R. Niebuhr,
D. Bonhoeffer, R. Bultmann, P. Tillich.

Foi principalmente no campo sexual que a nova Moral en-


controu aplicagáo. Robinson, por exemplo, assim exprime o seu
pensamento no tocante as relagóes pré-matrimoniais:

"Nada pode, em si mesmo, ser sempre qualilicado de mau. Por exem


plo, nao se pode partir da tese de que as retardes sexuais antes do ma
trimonio ou o divorcio sao coisas más ou pecaminosas em si mesmas.
Podem sé-lo em 99% ou mesmo em 100% dos casos, mas nao o sao intrín
secamente, porque o único mal intrínseco é a falta de amor".

Todavia com este principio Robinson nao tenciona abrir a


via ao relaxamento ou ao desmando dos costumes; ó ele quem
diz ainda:

"A porta do amor é estreita c rigorosa, e as suas exigencias muito


mais profundas e penetrantes. A um rapaz que pergunta a propósito das
suas relacSes com urna jovem: 'Por que nao o devo fazer?', ó relativa
mente fácil responder: 'Porque é mau' ou 'Porque é pecado' e depois con-
dená-lo... É multo mais exigente responder-lhe com a pergunta: 'Será que
tu a amas realmente?" ou 'Até que ponto a amas?" e aiudá-lo entáo a veri
ficar por sí mesmo que, se nSo a ama ou nao a ama profundamente, o seu
ato é imoral, ou Que, se a ama, deve respeitá-la a tal ponto que nao Ihe
será oossível abusar déla ou tratá-la libertinamente" ("Um Deus diferente".
Sao Paulo 1967, pp. 152s).

Aqui ainda merece especial mengáo o parecer de urna co-


missáo de moralistas anelicanos nomeada pelo chamado «Con-
selho Británico das Igrejas» para estudar o problema das rela-
cóes pré-matrimoniais e informar a respeito a assembléia res
pectiva que se realizou em Lambeth nos dias 25 e 26 de outubro
de 1966 (versamos em ambiente nao católico).

— 470 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO

Os autores do relatório se movem no clima da «New Mora-


lity», que é de relativismo moral. Nao afirmam que as relagóes
pré-matrimoniais sejam intrínsecamente ou por si más, como
se depreende da seguinte passagem do relatório:

"Toda norma por si mesma é base ¡nadequada para a Moral. Nenhuma


regra pode compreender o grande número de variedades e situacdes com
plexas em que se acham os homens e as mulheres. Além disto, um ato
que seja exterlormente conforme a urna regra, pode ser imoral por ser*
inspirado por má ¡ntencáo. A nossa recusa de apresentar o significado da
castidade em fungáo de regras básicas nfio se deve a falta de conviccao
sobre o valor da castidade, mas, antes, ao desejo de dar um conteúdo.
adequado a este vocábulo" (o texto original inglés foi traduzldo para o
espanhol com o titulo "Sexo y moralidad. Informe para el Consejo Britá
nico de las Iglesias". Madrid 1968; cf. pp. 104s).

Na prática, porém, os relatores tendem a desaprovar as


relagóes pré-matrimoniais. Justificam esta posigáo lembrando
que ninguém pode usufruir do sexo sem assim se comprometérl
definitivamente e sem vulnerar a outrem e ser vulnerado por¡
outrem. Mais: afirmam também que relagóes sexuais destina
das a provar o companheiro e averiguar se ele (ou ela) é o
consorte conveniente pecam contra urna das condigóes esserv
ciáis do auténtico amor, que é a doagáo irrevogável.

Faz-se mister agora examinar quais as razóes concretamen


te apresentadas em favor da legitimagáo do relacionamento
sexual pré-conjugal.

2.2. Os fotores concretos

Recensearemos quatro motivos que a alguns autores pare-


cem exigir revisáo da Moral das relagóes pré-matrimoniais:

a) A saúde física e psíquica dos jovens, principalmente


dos rapazes, só pode ser preservada e auténticamente desenvol
vida caso o jovem dé livre expansáo á sua sexualidade; as res-
tríeles feitas ao uso do sexo, quando este faz sentir suas ten
dencias, vém a ser nocivas. Daí a necessidade de nao se impedir
a juventude de ter relagóes sexuais mesmo antes do matrimonio.

b) A vida sexual pré-matrimonial servirá de teste ou de


experiencia que preparará o contato conjugal posterior. As re
lagóes sexuais, dizem, sao urna arte que é preciso aprender
oportunamente a fim de que os esposos nao passem pela frus-
tragáo de muitos casáis decepcionados. Além do mais, a expe-

— 471 — .
tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1(17/1973

riéncia anterior ao matrimonio ajudará a se descobrir qualquer


incompatibilidade que mais tarde seria difícil remediar.

c) O amor auténtico exige comunháo plena entre aqueles


que se amam, comunháo tal que deve atingir mesmo a uniáo
lisica. Esta vem a ser decorréncia natural do verdadeiro amor,
de modo que onde liaja amor, mesmo íora do casamento, deve.
haver liberdade de cópula carnal. A uniáo sexual inspirada por
amor fora do casamento é preferível as relacóes sexuais de
cónjuges que vivem o matrimonio sem amor.

d) Como dito, as circunstancias da vida moderna exigem


que o casamento seja diferido até a idade em que o casal possa
ter sua estabilidade habitacional e económica. Sendo assim, nao
se vé como condenar o uso do sexo anteriormente ao matrimo
nio, ... matrimonio que os jovens interessados tém que adiar
acontragosto. Já que em muitos casos é recomendável o adia-
mento das nupcias, por que nao permitir a um estudante ou a
um jovem profissional que satisfaga á sua vida sexual antes
do casamento?

Colocados diante dcstas reivindicagóes da juvcntude c de


muitos dos seus mentores, os moralistas (protestantes e cató
licos) tém encarado o problema, no intuito de encontrar, em
consciéncia honesta ou diante de Deus, alguma fórmula que
possa de certo modo ou em certas circunstancias legitimar uma
rcalidade que parece imperiosamente acarretada pelo ritmo da
vida contemporánea.

Consideremos, pois, algumas teses esbogadas por estudio


sos como possíveis solugóes á problemática que acabamos de
expor.

2.3. As fórmulas de canonistas

Distinguiremos tres tentativas concebidas a fim de legiti


mar as relagóes sexuais prétfnatrimoniais.

a) A revalorizajáo do contrato de noivado

Um dos principáis arautos desta tese é o Dr. Geoffrey;


Fisher, que foi arcebispo primaz da Igreja anglicana até 1961.
A sua fórmula afirma que, no caso de dois jovens se amarem,

— 472 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO

mas nao se poderem casar em tempos próximos, se pode revi-


gorar a praxe antiga dos esponsais ou do noivado como contrato
de casamento. Tendo contraído noivado entre si, tais jovens
gozariam da liberdade de se unir sexualmente, sem que isto
pudesse ser tido como fornicacáo.

A propósito, pode-se lembrar que os povos antigos da Mé-


sopotámia, de Israel e do Imperio greco-romano praticavam os
esponsais; estes equivaliam a verdadeiro contrato cujo objeto
era o casamento futuro. Esse contrato, quanto aos seus efeitos
jurídicos, podia ser equiparado ao próprio casamento; era auto-
ritativamente estipulado pelos genitores dos futuros nubentes,
as vezes quando estes ainda eram criangas; a jovem tinha a
obrigagáo de se casar com a pessoa a quem fora prometió^.
Entre os babilonios (que praticavam os esponsais), o ato
sexual podia ser consumado pelos dois noivos, embora isto nao
fosse bem visto pela respectiva sociedade. Em caso de infideli-
dade ao noivo, a noiva israelita era apedrejada como adúltera¡;
cf. Éx 22,15; Dt 22,23-29.

Entre os cristáos, os esponsais tiveram voga e grande valor


até o séc XVI. O Concilio de Trente (1545 1563), porém, re-
formulando a legislagáo sobre o casamento, fez indiretamente
que os esponsais (no sentido de promessa redigida por escrito
e dotada de rigorosos efeitos jurídicos) perdessem a sua impor
tancia e o seu rigor; o noivado é reconheddo como promessa
de casamento no Código de Direito Canónico (can. 1017), mas
o «Ritual Romano» nao apresenta rito nem ato litúrgico que
acompanhe a promessa prevista pelo can. 1017.

Se os moralistas católicos quisessem adotar a sentenga do


Dr. Geoffrey Fisher, deveriam reva'orizar os esponsais (noiva
do) e dar-lhes um efeito que nunca tiveram em ambientes ca
tólicos, ou seja, o efeito de legitimar relagóes sexuais pré-
-matrimoniais.

Passemos a outra via aberta pelos estudiosos.

b) O casamento em realizado gradativa («in fieri»)

Assim argumenta o Pe. Jaime Snoek no artigo «Matrimo


nio e istituzionalizzazione delle relazioni sessuali», da revista
«Concilium» n* 55 (1970):

— 473 —
JO «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 167/1973

O conceito tradicional de casamento apresenta tres ele


mentos distintos: o Sim dos nubentes (no noivado), o Sim da
Igreja (ñas nupcias) e a consumado (na cópula carnal). Ora
esta dinámica pode ser interrompida após a primeira fase (o
noivado pode ser dissolvido) e, também, após a segunda (o
casamento sacramental contraído, mas nao consumado pela
uniáo dos corpos, ainda pode ser dispensado pelo Sumo Pontí
fice) . Nao se poderia levar em conta a continuidade que
vai entre o noivado e o matrimonio e, conseqüentemente, per
mitir aos noivos que em determinadas circunstancias antecipem
a consumagáo, praticando-a antes do Sim da Igreja?

O Pe. Snoek apela para os mestres Juan Sánchez (t 1624)


e Caetano (f 1534) como predecessores seus na formulacáo de
tal tese. Afirma também que tal era a praxe em certos ambi
entes do judaismo contemporáneo a Cristo.

K. Kriech, a seu turno, parte do principio de que a forma


da celebracáo do sacramento do matrimonio depende de lei
positiva da Igreja e nao do Direito natural. Em conseqüéncia,
diz ele, leve-se em conta que «a lei positiva nao obriga quando
acarreta grave incómodo para quem a queira observar». Por
conseguinte, as relagóes sexuais entre noivos que se amam e
nao se podem casar, deveráo ser consideradas como matrimo
niáis e legítimas, ainda que formal e jurídicamente sejam tidas
como pré-matrimoniais. — Cf. K. Kriech, «Vorehelicher
Geschlechtsverkehr in moraltheologischer Sicht. Ein Zwischen-
bilanz», em «Schweizerische Kirchenzeitung» 19 (1970) pp.
274-278.

c) O matrimonio de emergencia

F. Bóckle, em diversos escritos seus, mostra-se contrario


ao consorcio marital fora do sacramento do matrimonio. Nao
aprova, portante, relagóes sexuais pré-matrimoniais, pois julga
que o relacionamento sexual supóe e exige doacáo total dos
consortes entre si, doa;-áo que só tem suas garantías quando
há casamento entre ambos.

Todavía Bóclcle lembra que existe no Código de Direito


da Igreja o canon 1098, o qual diz:

"Se nao se pode obler ou n3o se pode recorrer, sem incómodo grave,
a algum pároco ou Ordinario ou sacerdote delegado, que assista ao casa
mento, de acordó com os cánones 1095 e 1036,

— 474 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO 11

— em perigo de morte, é válido e lícito o casamento contraído diante


de testemunhas apenas. Fora do perigo de morte, o casamento em tais»
circunstancias também é válido e licito, se com prudencia se prevé que
tal estado de coisas há de protrair-se por um mes.

— Em ambos os casos, se há outro sacerdote que possa assistir ao


casamento, é preciso chamá-lo, e ele deve, juntamente com as testemuníias,
assistir ao casamento. Este, porém, será válido, ainda que se celebre ape
nas diante das testemunhas".

Ora Bockler propóe uma interpretado larga deste canon,


que prevé o chamado «casamento de emergencia». Segundo
o autor, há jovens que desejam viver conjugalmente, mas nao
se podem casar em presenga de um sacerdote; por que entáo
nao lhes seria permitido fazé-lo de maneira válida e licita dian
te de testemunhas apenas? Esta posicáo de Bockle teve grande
repercussáo e influencia em ambientes católicos.'

V. Schurr faz eco á sentenga de Bockle. Rejeita, sem


dúvida, as relagóes pré-matrimoniais, pois diz que o ato sexual
é de tanta profundidade e intimidade e exige doagáo tal do
homem e da mulher entre si que ele só pode ser realizado no
ámbito do casamento devidamente contraído. Schurr chega a
rejeitar, pelo mesmo motivo, o casamento de experiencia ou
«por algum tempo» («Ehe auf Zeit»). Doutro lado, porém,
aceita a interpretagáo que Bockle dá ao can. 1098 e — mais
ainda exprime o desejo de que a forma canónica prescrita,
para o sacramento do matrimonio nao seja necessária para a
validade, mas apenas para a liceidade do enlace. -

Estáo assim expostas as diversas posigóes de pensadores


nao católicos e católicos que de algum modo apregoam a re-
formulagáo da ética do consorcio sexual pré-matrimonial. Pro
curemos agora refletir sobre tais teses e confrontá-las com os
mais sólidos e básicos principios da Moral católica.

3. Que pensar?

As sentengas dos autores que, embora com timidez em


alguns casos, deixam entrever que as relagóes pré-matrimoniais

i Cf. F. Bockle e J. Kohne, "Geschlechtliche Bezishungen vor der Ehe".


Mainz 1967. "Sexualitat und sittliche Norma", em "Stimmen der Zeit" 180
(1967) pp. 249-267; "Sexualidad y norma moral", em "Selecciones de Teo
logía"'? (1968), pp. 229-236.
-' Cf. H. G. Pohlmann e V. Sehurr, "voreheiicher Sexualverkehr? , em
"Theologie der Gegenwart" 11 (1968), pp. 207-216.

— 475 —
Y¿ cPERGUNTE E RESPONDEREMOS. 107/1973

poderiam ser legitimadas pela consciéncia crista e pelo Direito


da Igreja, nao fazem parte do ensinamento oficial da Igreja.
Deve-se mesmo notar que suscitaram, da parte de teólogos ca
tólicos de nomeada, estudos que reafirmam o constante e atual
pensamento da Igreja a respeito: as relagóes sexuais antes ou
íora do matrimonio legitimo e publicamente contraído nao en-
conlram justificativa; nao de ser consideradas como ofensa ao
conceito de amor total e á índole do próprio casamento. Um
dos maiores valores da humanidade que é o amor entre esposo
e esposa, vem a ser assim vilipendiado e posto em xeque. Com
efeito, duas notas características se prendem ao uso do consor
cio sexual: amor total o tomada de posicáo na sociedade.

1) Amor total

De 13 a 17 de Janeiro de 1967, realizou-se em Madrid um


Congresso de Teología Moral, de cujo programa constou urna
mesa redonda sobre o problema das relacóes pré-matxúmoniais.
O estudo assim realizado terminou-se com a apresentacáo de
pareceres de abalizados teólogos, entre os quais vem a propó
sito aqui o do Pe. Bernardo Háring:

"Rejeito firmemente as relacóes sexuais pré-matrlmonials proprlamente


ditas... O amor é um encontró de todo o ser humano, de toda a perso-
nalidade, que passa a constituir urna só carne, no sentido bíblico desta
expressáo, sentido que é total e definitivo. Esta sinceridade pode realizar
le de modo gradativo. Na prostituicio, por exemplo, ola nao existe ds
modo nenhum, porque entáo a mulher se torna Instrumento, instrumento ás
vezes mesmo anónimo.

No amor livre, há maior sincoridade, porque a pessoa em foco tem


seu nome; todavía nao se dá, no amor llvre, a integraeño total e definitiva
das pessoas.

Ñas relacSes entre noivos, aproximamo-nos mais de urna sinceridade


total; todavía nfio chegamos á sinceridade total, porque, embora os noivos
se digam comprometidos, eles se sentem ainda livres para recuar.

Em suma, os jovens, que hoje em dia sSo tio sinceros, devem ser
sinceros também neste setor das relasoes pré-matrlmoniais" ("Moral y
hombie nuevo". Madrid 1969, pp. 266s).

Pouco depois desta declaracáo, o mesmo autor concedeu


entrevista ao jornal alemáo «Der Spiege'», em que de novo ex-
primiu a mesma posicáo frente ao problema: as relacóes sexuais
exigem doacáo mutua total e plena, que só existe no casamento
contraído legítimamente. Afirmava também algo que adiante

— 476 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO 13

será estudado explícitamente: o relacionamento sexual nao pode


ser considerado como algo de interesse particular ou exclusivo
de duas pessoas, mas, por sua índole mesma, interessa a toda
a sociedade e deve ser integrado dentro da comunidade (o que
quer dizer: supóe o compromisso matrimonial publicamente
assumido pelos cónjuges).'

Em suma, o casamento nao implica apenas leito comum,


mas também convivencia, comunháo de ideal, de bens pessoais
e humanos, ou seja, um «dar e receber» de todos os días, que
se faz sob o mesmo teto ou no lar, em presenca dos filhos, que»
sao a expressáo do amor ou da mutua doagáo dos pais. Enquan-
to nao é possível a dois jovens constituir tal comunháo de vida,
o consorcio sexual vem a ser burla do amor auténtico ou da
doagáo total que ele deveria exprimir; é expressáo de egoísmo,
e nao de amor; significa, antes, a degradagáo da sexualidade.:
Quem se dá soxualmente, se dá da maneira mais íntima e plena,
numa atitude de amor total, exclusivo e definitivo. Ora nem
os namorados nem os noivos professam esse amor total e defi
nitivo, mas guardam legitimamente a liberdade de voltar atrás.
Ainda em outros termos: os atos do homem devem ter um
significado humano ou devem ser expressóes de urna personali-
dade. De modo particular, a vida sexual nao pode ser tida
como mera expressáo das funcóes biológicas ou da fisiología
que o ser humano tem em comum com os demais animáis. Por
isto também o consorcio sexual nao há de ser procurado por
mero deleite. Toda relagáo sexual que seja mero desejo de pra-
zer sensivel, deixa de ser auténtica; já nao exprime urna per-
sonalidade formada, capaz de amor e de doacáo, mas, sim,
um ser movido por concupiscencia um tanto egoísta; é a redu-
gáo da pessoa humana á categoría de instrumento do prazer?
tanto a pessoa que toma a iniciativa de tal relacionamento
como aquela que voluntariamente se deixa manipular, decaem
da sua dignidade (nao raro, inconscientes e «anestesiadas» pe
la propaganda do erotismo).

2) Compromisso público

Nos últimos tempos, a cultura ocidental descobriu a dimen-


sáo personalista do sexo. Tal modo de valorizar o sexo é

i Cf B Harina, "Mein Interview mit dem 'Spiegef. Sittliche Beurtellung


des vorehellchen Sexualverkehrs", em "Theologie der Gegenwart" 13 (1970),
pp. 123-125.

— 477 —
34 <PERGUNTE E RESPONDEREMOS.* 167/1973

auténtico: este existe em funcáo de urna pessoa e para a cons-


trugáo de uma personalidade. Todavía valorizacáo personalista
nao ó o mesmo que valorizacáb individualista.

Com efeito. A sexuaüdade nao diz respeito somente a um


individuo, nem mesmo a duas pessoas apenas. Ela constituí um
tiós — o nos do casal — que se abre para o nos da sociedade,.
Nao se pode viver um relacíonamento sexual plenamente hu
mano em um ambiente puramente privado e individualista. É
no nos da sociedade que o casal se realiza plenamente e que o
amor se consuma. Sim; o nos da sociedade acolhe o casal; dá-
-lhe o apoio com que ele pode e deve contar parv. se consolidar
em seus diversos aspectos. Por isto também a sociedade está
interessada na regulamentacáo ética e jurídica do comporta-
menío sexual; se este nao se orienta segundo certas normas de
respeito mutuo e de autodominio, o bem comum da sociedade
vem a sofrer graves danos. Em conseqüéncia, é indispensável
a «instituciona'izagáo» da vida conjugal, sem a qual o uso do
sexo se pode tornar um fator de desintegrado da comunidade
c de destruicáo dos membros desta.

Observa o grande teólogo J. Ratzinger:

"é preciso reconhecer que a interpretado do casamento a partir do


amor pessoal é um tanto unilateral. Jó os bispos africanos no Concilio,
acharam essa teología do matrimonio muito bela, mas irreal... O ou e o
tu só se realizan) em conjugagSo com o nos... A pessoa nao se realiza
plenamente se se confina no ehcontro eu-tu... O individualismo esquece
a profunda vinculagáo de todas as pessoas no complexo da sociedade; é
nesta que se torna possivel o ser pessoa... Eros e sexo sao, ao mesmo
tempo, o que há de mais público e o que hé de mais intimo. Oeles de-
pendem a vida e a morto de toda a sociedade. Toda sociedade depende
dos seus membro9 individuáis, como todo Individuo dependa da sociedade"
("Zur Theologie der Ene", em "Tübinger theologische Quartalschrift" 1949
11969] pp. 53-74).

É por isto que, por sua própria índole, o amor c o sexo


estáo sujeitos a ser integrados na boa ordem da sociedade.
Todas as culturas humanas e todos os povos dáo testemunho
disto. Nao se conhece sociedade que nao tenha instituido nor
mas para regulamentar e harmonizar o comportamento sexual
dos seus membros. Verdade é que Bachofen propós a tese de
que os povos primitivos viviam em promiscuidade sexual; to-
davia tal posicáo carece de base científica; cf. PR 13/1959,
pp. 3-9.

Estas considerares projetam luz sobre o que as relagóes


sexuais fora ou antes do matrimonio tém de abusivo e de pre-'

— 478 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO 15

judicial tanto para os individuos quanto para a sociedade. É


de interesse comum a instituido que se chama casamento.
Mesmo relacoes sexuais pré-matrimoniais empreendidas de ma-
neira esporádica, e nao habitual, nao encontram justificativa,
ainda que parecam ser manifestagáo de auténtico amor entre
dois seres humanos. Com cfeito, diz a «Informacáo ao Conse-
lho Británico das Igrejas»:

"Julgamos que relajóos esporádicas criariam provavelmente problemas


mais numerosos do que aqueles que elas'deveriam resolver, pois as retardes
sexuais nao sao algo que se possa separar adequadamente do contexto de
um relacionamento permanente" ("Sexo e moralidade", p. 103).

Com outras palavras: as relaqóes sexuais vinculam as


pessoas ou estabelecem entre e'as liames que nao podem ser
esquecidos ou cancelados segundo o arbitrio dos interessados.

A palavra «institucionalizagáo» nao é sempre agradável


nem aceita pelo homem de hoje, que muito apregoa liberdade e
criatividade. Nao se poderiam, porém, ignorar os beneficios
que toda justa legislagáo traz á sociedade; sem estipulagáo de
direitos e deveres entre os membros de urna comunidade, esta
se esfacela. A lei tem por finalidade nao a sufocacáo da vida
e dos seus valores, mas, ao contrario, visa a preservar r garan
tir o auténtico desabrochar dos mesmos. Isto se aplica tápv-'
bém ao valor que se chama amor, existente entre o homem e
a mumer e tendente a se exprimir em relacionamento sexual.

Compreende-se, porém, que, para nao se sentirem sufoca


dos pela institucionalizagáo do matrimonio, se requer que os
interessados se certifiquem previamente de que nutrem autén
tico amor que seja doagáo generosa, e nao cobiga egoísta. Esta
certeza so poderá ser adquirida paulatinamente, ou seja, se o
amor que desperta nos jovens (com índole um tanto instintiva:
e cega) for submetido a delicada e prolongada educagáo, em
vez de ser prematuramente exercitado em relagóes sexuais. O
amor e a arte de amar sao algo que se aprende mediante es-
forgo e magnanimidade — esforgo que é, ao mesmo tempo,
maravilhosa descoberta.

Enquanto o amor nao se torna suficientemente adulto e


amadurecido para ser institucionalizado, a conduta do jovem

— 479 —
H5 .PERPUNTE E RESPONDEREMOS:- 167/1973

c a da continencia pré-matrimonial. Esta nao se deriva de


mentalidade antiquada, marcada por tabus moráis e desuma-
nos, mas, sim, pela própria índole do amor auténticamente
concebido.

Faz-se mister agora voltar aos argumentos apresentados


om favor de urna revisáo destes conceitos de amor e casamento.

4. E as razoes em favor da nova posicáo ?

Examinaremos primeiramente os argumentos de índole ge-


ral; depois, passaremos aos que teólogos e canonistas propóem
em prol de abrandamento da sentenca tradicional.

4.1. Argumentos de índole gerctl

1) Saúde física e psíquica

Já PR 36/1960, pp. 506-514 publicou um artigo sobre a


continencia pré-matrimonial. Esta, longe de prejudicar o de-
senvolvimento normal do organismo, é mesmo penhor de saúde
e vigor. Seja recordado aqui, por exemplo, que as glándulas
humanas funcionam todas em estreita correlacáo entre si; em
particular, as que segregam os hormónios das fungóes genitais
nao servem somente a estas fungóes, mas beneficiam outras
atividades do organismo humano. Em conseqüéncia, a continen
cia sexual permitirá que as glándulas hormónicas favoregam
com mais intensidade outras fungóes vitáis do organismo.
Pode-se dizer que o preconceito e o condicionamento psicológico
{devidos, em grande parte, ao ambiente de erotismo em que
vivem) é que levam muitos jovens a crer que nao lhes é possível
observar a continencia sexual; assim pensando, nao conseguem
realmente guardá-la.

2) Aprendizagem e experiencia

As relagóes pré-matrimoniais preparam os jovens para a


vida matrimonial experimentada e tranquila?

— O uso do sexo antes do matrimonio prova pouca coisa.


Caso seja bem sucedido, daí nao se segué que a vida conjugal

— 480 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO 17

será feliz; paralelamente, no caso de deixar o jovem psicoló


gicamente frustrado, pode-se crer que nem por isto o jovem
nao conseguirá comportar-se devidamente no plano sexual após
o casamento. Segundo um inquérito realizado por P. Le Moal,
nao se pode provar que haja relagáo entre «aprendizagem
sexual antes do casamento» e subseqüente felicidade conjugal.
Será que realmente o amor — dinamo e segredo da felicidade
conjugal — pode ser avaliado ou testado mediante experiencias
sexuais? Admitir isto nao seria equivocar-se sobre a realidade
do amor? Quem entra em relagóes sexuais para provar o seu,
companheiro, já nao observa a condigáo básica do amor, que
é a de ser urna doacáo irrevogável e absoluta.

3) Amor pede comunhao física

É evidente que o amor estabelece comunhao entre duas


pessoas que se amem mutuamente. Todavía o dar e receber
que o amor suscita, pode estar sujeito a ilusóes; o egoísmo e a
procura de auto-satisfagáo podem provocar a comunhao física.
O auténtico amor sabe que nem sempre a uniáo sexual contribuí
para o bem comum. O organismo humano se torna capaz de
ter relagóes sexuais e de experimentar atracáo por estas antes
mesmo que a pessoa tenha a possibilidade de arcar com os
compromissos e responsabilidades da cópula sexual. Por isto
é que, antes de ter condigóes de contrair casamento, o jovem
é incitado a se abster do sexo, aínda que deva exercer corajoso
autodominio sobre si mesmo.

4) Adiamento forjado do matrimonio

É certo que as circunstancias da vida moderna dificultam


ou impossibilitam aos jovens o casamento sem base profissional
e financeira. Daí, porém, nao se segué que as relagSes sexuais
pré-matrimoniais se tornam legitimas ou recomendáveis. A
propósito, deve-se lembrar ainda o seguinte: o diferimento do
enlace matrimonial dá ocasiáo a que os jovens se preparem
nao só no plano económico e profissional, mas também no pla
no da formagáo humana e moral. Se os jovens, antes do ca
samento, nao adquirem o hábito de dizer Nao a si mesmos se
gundo as diversas oportunidades que o possam exigir, difícil
mente saberáo contrariar a seus instintos depois do matrimonio.

— 481 —
lü <PE1ÍGUNTE E RESPONDEREMOS» _ 107/1973 _

4.2. Argumentos teológicos e jurídicos

1) Revaloríza(óo do noivado

Na jurisprudencia crista, o noivado nunca teve a quali-


Hcacao de contrato que empenhasse definitivamente. Com o
passar dos tempos, o noivado se tornou, tanto no foro eclesiás
tico como no civil, urna praxe sem .conseqüéncias de grande
peso para os noivos. Donde se vé que seria artificial pretender
í-eva.orizar o noivado hoje em dia, dando-se-lhe mesmo impor
tancia e realce que ele nunca teve, ou seja, a característica de
tornar lícitas as relagóes pré-matrimoniais.

2) Casamento em realiza;áo gradativa («in fien»)

Os noivos que entrassem em relagóes sexuais, já estariam


iniciando o seu casamento pelo fato mesmo de assim procede-
rem, antes de tornaron oficial e público o seu amer mutuo.
Tal sentenga que, á primeira vista, parece significar um pro-
gresso da Moral constituí, na realidade, um retrocesso a fases
superadas na historia e na teología do casamento.

Com efeito. A sentenga volta a tornar legitimo o que se


chama «casamento clandestino». Dados os abusos que tal con-
ceito facilitava, o Concilio de Trento recuspu reconhecer para
o futuro a validade de casamentes clandestinos (nao públicos)
e estipulou urna forma jurídica pública e necessária para a va
lidade do casamento: duas testemunhas e presenga de sacerdote
se requerem para que os nubentes profiram publicamente o
seu consentimento matrimonial.

Mais: já foi dito atrás que todo casamento tem urna di-
mensáo social, que deve ser absolutamente respeitada e salva
guardada .

Note-se ainda: o principio segundo o qual a lei positiva


nao obriga quando acarreta graves incómodos, nao encontra
aplicacáo no caso de pessoas que nao queiram (ou julguem*
nao poder) observar a castidade pré-matrimonial. Pois há cer-
tos incómodos que nao podem ser evitados sem que com isto
a pessoa e a sociedade sofram serios danos. Ademáis a expres-
sáo «graves incómodos», genérica e indeterminada como é, nao
deveria ser adaptada a satisfagáo de veleidades. O espirito da
legislagáo matrimonial é o de preservar e fomentar o bem co-

— 482 —
SEXO ANTES DO CASAMENTO 19

mum, nunca o de abrir brechas para males envernizados por


falsa lcgalidade.

Por último, a tese de que as relacóes sexuais já constituem


casamento entre os dois interessados, tem sua sutileza. Com
efeito, as relacóes sexuais contraidas dentro de um matrimonio
implícito ou gradatiyo já nao sao relacóes préitnatrimoniais,
mas intra-matrimoniais. Donde se vé que mesmo os autores
que defendem a tese do matrimonio gradativo, nao estáo de-
fendendo a legitimidade de relacóes pré-matrimoniais; repu-
diam-nas como os clássicos moralistas. Todavía nem por isto
a idéia de «casamento implícito ou gradativo» é válida e satis-
fatória, como acabamos de ver.

3) Matrrmónio de emergencia

Quando nao é possível o recurso a um sacerdote pelo pra-


zo de trinta dias, o Código de Direito Canónico reconhece a va-
lidade e legitimidade do casamento celebrado perante duas tes-
temunhas apenas. Cf. can. 1098.

É de notar que esta norma do Código se aplica a situacóes


ditas «de emergencia» ou extraordinarias; supóem penuria de
sacerdotes em determinado lugar e certa urgencia por parte
dos noivos interessados. Tais nao sao os casos de jovens soltei-
ros que queiram ter ou já tenham tido relagdes sexuais entre
si e resolvam fazer um casamento «facilitado» e precipitado
que legitime tais relacóes.

Veja-se também o que foi dito sob os títulos 1) o 2) ime-


diatamente anteriores.

5. Reflexáo final

Em conclusáo, verifica-se que a iegitimagáo das relagdes


pré-matrimoniais nao é a resposta da Moral crista para quem
se sinta atraído pelo sexo.

Com efeito. O problema das relagóes pré-matrimoniaisj


nao é problema autónomo, que se possa formular e resolver
dentro dos seus próprios limites. Deve, antes, ser inserido no
vasto contexto de todo o comportamento sexual humano. O
que hoje parece faltar, sao nogóes claras a respeito dos valores

— 483 —
20 .PERPUNTE E RESPONDEREMOS^ 157/1973

do amor humano, do corpo, da sexualidade o do casamento. A


ética da situacáo, relativizando tais valores, tem dado ensejo i.
uso e abuso dos mesmos.

Por conseguirle, o que se deve preconizar, hoje em dia, n


u renovagáo dos conceitos relativos ao sexo. Sejam os jovens
e os adultos em gcral despertados para a nobreza c a dignidade
do amor que se sabe dar em vista do bem de outrem, sem pro
curar nccessariamente compcnsacjio sexual. Sejam preparados
a se emancipar do sugestionamento e da pressáo que a socie-
dade de consumo, os anuncios da publicidade, o cinema, o tea
tro e a pornografía tentam impor aos cidadáos contemporáneos,
fazendo-lhes crer que o uso iivre do sexo é sinal de mentali-
dade ovoluida ou condigno de saúde física o psíquica! Este mo
do de pensar constituí os novos tabus, de que é vítima a ju-
vcntude. A continencia pré-matrimonial está longe de ser re-
pressáo, frustrncüo ou castracáo; ó, ao contrario, condiqáo do
auténtico crescimento no amor o de libertacáo frente ao egoís
mo.

Bibliografía:

M. Vidal, "I rapporti prematrimoniali". Assis 1973.

L. Évely, "Amor y matrimonio". Barcelona 1970.

E. Schillebeeckx, "El matrimonio, realidad terrena y misterio de salva


ción". Salamanca 1968.

J Snoek, "Matrimonio e istituzionalizzazione delle relazioni sessuali",


sm "Concilium" 55 (1970).

K. Kriech, "Vorehelicher Geschlechtsverkehr in moraltheologischer


Sicht Ein Zwischenbilanz", em "Schweizerische Kirchenzeitung" 19 (1970).
pp. 274-278.

V Schurr, "Wieder kiandestinische Ehen?", em "Theologie der Ge-


genwa'rT 13 (1970), pp. 172-174.
H. G. Pohlmann und V. Schurr, '•Vorerelicher Sexualverkehr?", em
'■Theologie der Gegenwarf 11 (1968), pp. 207-216.

F. BSckle und J. Kohne, "Geschlechtliche Bezlehungen vor der Ene".


Mainz 1967.

— 484 —
Obscurantismo ou heroísmo?

cruzadas medievais e espirito cristáo

Ein sintese: Este artigo, além de apresenlar breve rosenha das oito
principáis Cruzadas medievais (séc. XII e XIII), propóo algumas pondcra-
cóea sobre o significado do tal episodio da historia medieval.

Nao se podem entender as Cruzadas, se nao se levam em conía alguns


dados característicos da sociedade medieval:

— A (é crista viva e concreta que todos os individuos, desdo os reís


alé os mais simples camponeses, professavam (com raías excecSes).

— L-ssa (6, dosdo tsmpou tintigos, tovava os crlat3o3 a porogrinar aos


lugares sanios da Palestina. As peregrinajes tém seu fundamento na
próprla Biblia e sempre íoram cariñosamente praticadas pelos crlstios.
A piedade medieval nuiria particular estima para com o S. Sepulcro do
Cristo.

— A sociedade medieval era multo marcada pelo ideal do cavalelro,


tal como os francos, germanos e celtas o podiam conceber. O amor a
Deus era assim freqüentemente assoclado aos predicados de bravura e
magnanimidade do cavaleiro.

No séc. XI, noticias slnlstras chegaram ao Ocidente a respeito dos


vexameó que os crlstSos padeciam na Térra Santa por parte dos mucul-
manos. Desportou-se enláo o zelo dos cavaleiros, dos monarcas e dos plo-
bleus crlstSos, Incitados pelos Pontífices e doutores, om prol da liberta-
cáo dos lugares santos. Tal zolo exprimiu-se segundo as categorías da
época, ou seja, no empreendimento de expedicóes bélicas. Por corto, es
tas exigiram heroísmo e abnegaefio por parte dos povos ocidentais.

O entusiasmo valioso dos cruzados era demasiado idealista o Inex-


periente. A larefa ingente que os mesmos se propunham, foi exigindo o
recurso a mercenáiios, a reis o príncipes movidos por internases políti
cos e nacionalistas, a comerciantes, que desvirtuaran! a figura brilhante
do cavaleiro medieval e solaparam o éxito do generosas Iniciativas mi
litares dos cruzados.

Alcm disto, já na Idade Media o Concilio de Liio I (1245) e prega-


dotes diversos censuiavam abusos moráis dos cruzados. Estes, embora re-
prováveis, conslituem sempre o perlgo e a tentacáo das expedicóes mi
litares. Nota-se, alias, que os medievais associavam por vezes violencia e
paixóes a fó entusiástica e magnánima; este fenómeno de contrastes, cho
cante para o observador moderno, talvez se deva á heranca dos povos
que invadiram a Europa nos séc. IV-VI; aos poucos seria superado pelo
amadurccimenlo das consciéncias.

— 485 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS:» 167/1973

Em suma, as Cruzadas em seu conjunto representar?) genuínos valores,


que, apesar das falhas dos homens que as emprcenderam, devem pairar
claramente na primeira tlnha de horizonte do observador.

Comentarios: Por «Cruzadas medievais» entendemos, nes-


tas páginas, as expedigóes empreendidas pelos cristáos do Oci-
dente para libertar do dominio mugulmano o S. Sepulcro de
Cristo em Jerusalém. Tém inicio em fins do séc. XI (1095) e
terminam em 1291, quando os últimos bastióes dos cruzados
no Mediterráneo oriental sucumbiram sob os ataques dos tur
cos. Recobrem, pois, os sáculos XII e XIII. Verdade é que se
falou de expedicóes bélicas para libertar a Térra Santa ou o
Oriente da Europa ameagado pelo turcos também nos séc. XIV
e XV, como antes de 1095 se falava de reconquistar a Espanha
ocupada pelos árabes... Todavía interessar-nos-áo aqui ape
nas as expedigóes dos séc. XII e XIII, classicamente chamadas
«Cruzadas».

Estas constituem um tema espinhoso, pois, para varios es


tudiosos, signifícam intolerancia, crueldade, falso conúbio de
motivos religiosos e interesses politicos. Muitos escritores sobre
o assunto tém explorado negativamente as Cruzadas, principal
mente a partir do séc. XVm, quando Voltaire langou urna obra
assaz imbuida de preconceitos e sátira: «Histoire des Croisades
de M. Voltaire» (1753). Este e outros livros tém concorrido
para que as Cruzadas e, com elas, a S. Igreja na Idade Media
hajam sido marcadas com as notas de obscurantismo e barbarie.

Recentemente o autor destas linhas, estando na Térra


Santa, teve ocasiáo de tomar contato com muitos grandiosos ves
tigios arquitetónicos lá deixados pelos Cruzados. Este encon
tró foi-lhe estimulo para refletir mais urna vez sobre tal episo
dio da historia e procurar entendé-lo melhor a partir de fontes
auténticas. É desse estudo que resulta o presente artigo, o qual,
alias, já de há muito estava para ser elaborado, a pedido de lei-
tores da revista; dada, porém, a índole complexa do assunto,
vinha sendo postergado.

Antes de entrarmos no tema propriamente dito, importan


te observacáo deve ser feita, a saber: nao se pode entender um
episodio do passado sem se reconstituirem previamente o qua-
dro geral respectivo e as categorías de pensamento dos atores

— 486 —
AS CRUZADAS MEDIEVAIS 23

desse episodio. A propósito damos a palavra á Prof» Régine


Pernoud no seu livro «Les Croisades» (París 1960, p.7):

"É de notar quanto a historiografía nos tempos modernos se tornou


moralizante e quio poucos historiadores resistem á tentacáo de se trans
formar em juizes e censores dos acontecimentos que eles reíerem. Ora
os julgamentos que os historiadores possam proferir sobre o passado, ar-
riscam-se multas vezes a ser Inadequados ou injustos, porque, sem que o
próprlo estudioso tenha sempre consciencia disto, ele julga segundo cri
terios que datam da sua época, e nSo da época analisada. Especialmente
estranho é o fato de que esse morallsmo histórico se tenha propagado pre
cisamente nos séc. XIX e XX, quando se registra admlrável esforco em
prol da historiografía objetiva, Imparclal, configurada ás ciencias exatas,
que seguem métodos rigorosos. Os julgamentos dos historiadores acarretam
o inconveniente de introduzir um dos elementos mais subjetivos, ou seja,
as opinioes políticas ou religiosas abracadas pelo estudioso...

Essas sentencas arbitrarias, simplistas demais para poder ser verídi


cas, nao provém do fato de que em geral o estudioso está mais apressado
para julgar do que para compreender?"

Conscientes do valor destas advertencias, procuraremos,


ñas páginas que se seguem, antes do mais compreender — o
que nao significa legitimar indistintamente — os fatos narra
dos.

1. Ocastao e causas da «vragem da Cruz»

1.1. O fundo de cena histórico

1. O termo «Cruzada» mesmo nunca ocorre nos docu


mentos medievais; é vocábulo posterior, como também moder
no é o vocábulo corporac/áo, utilizado de maneira um tanto
inadequada quando se fala de instituigóes medievais. Na Idade
Media falava-se de «caminho de Jerusalém, passagem, vlagem,
via da cruz, peregrinacáo».

É, pois, a partir deste vocabulario que havemos de come-


car o estudo do que posteriormente foi chamado «Cruzadas».

«Peregrinacjio» é urna das práticas mais ancoradas na


Biblia ou — ainda — na tradicáo judaica, na tradigáo crista e
na tradicáo muculmana.

Em particular, a peregrinacáo a Jerusalém e aos lugares


santos da Redencáo do género humano foi sempre urna das ex-
pressóes de fé mais caras aos cristáos. No séc. IV, após a era

— 487 —
21 ";PERGUNTE_E_RESPONDER.EMOS¡> 167/1973_

das perseguigóes, quando o Cristianismo comegou a usufruir


de liberdade no Imperio Romano, vé-se a Imperatriz Helena,
máe de Constantino, ir á Palestina para descobrir e restaurar
os testemunhos da vida, da morte e da ressurreigáo de Cristo,
que haviam sido sufocados pela ocupagáo romana a partir de
■fO e, máxime, após 135 d.C.

Pouco depois de Helena, máe de Constantino, tem-se a fi


gura de S. Jerónimo (f 421), que resolveu estudar a Biblia na
Térra Santa, estabelecendo-se na gruta de Beiém. Aos poucos,
no país bíblico foram-se constituindo numerosos mosteiros de
homens e mulheres, que queriam beneficiar-se do contato
com os lugares sagrados.

Do séc. IV em diante, o movimento de peregrinagóes á


Térra Santa nao cessou entre os cristáos: Jerusalém, Roma e
Compostela eram os principáis pontos de atra^áo da piedade.
Tém-se mesmo aínda hoje numerosos «Itinerarios» de Térra
Santa escritos em latim através dos séculos por cristáos de
nomeada, como o peregrino de Piacéncia, Silvia, Etéria...

Na Idade Media táo arraigado era o habito de peregri


nar que até mesmo o servo da gleba (o homem estático por
excelencia, porque ligado ao campo, que ele nao podia deixar
e que ninguém tinha o direito de lhe tirar) gozava do direito
de sair da sua térra para realizar urna peregrinagáo, sem que
ninguém se lhe opusesse.

2. No séc. VII a expansáo fez perecer as numerosas co


munidades cristas esparsas pela Siria, a Palestina, o Egito,
o norte da África. Jerusalém em 638 foi ocupada e, em parte,
transformada em cidade árabe mugulmana. As condigóes dos
cristáos que lá viviam ou que lá iam ter a fim de visitar os luga
res santos, tornaram-se dificeis, embora oscilantes segundo as
épocas; a tensáo do ambiente foi as vezes abrandada por acor-
dos, como, por exemplo, os de Carlos Magno (¡' 814) com o
califa Haroun al-Rachid; esses pactos, porém, nem sempre fo-
ram respeitados, como no caso do califa Hakim, fundador da
religiáo drusa, que em 1009 mandou destruir a basílica do S.
Sepulcro em Jerusalém e durante dez anos moveu perseguigao
a cristáos e judeos.

Pouco depois, ou seja, a partir de 1055, os Turcos seldju-


citas entraram no próximo Oriente. Em 1071, Jerusalém caía
em suas máos. Os cristáos, em conseqüéncia, sofreram opres-
sáo. Os peregrinos que voltavam da Térra Santa, narravam

— 4S3 —
AS CRUZADAS MEDIEVAIS 25

no Ocidente a ingrata situagáo em que se achavam os irmáos.


e os santuarios na Térra Santa de Cristo. As condigóes de pe-
regrinacáo eram extremamente penosas. Os relatos falam de
peregrinos colocados no cárcere, seqüestrados em troca de di-
nheiro, torturados, durante a viagem para a Térra Santa, Urna
das crónicas mais impressionantes era a da peregrinacáo de
Bünther, bispo de Bamberga (Alemanha), que, com milhares
de companheiros, a pequeña distancia de Jerusalém, sofreu.
duro ataque dos beduinos da regiáo durante tres dias.

Certamente muitos episodios e casos particulares circula-


vam de boca em boca na Europa a respeito do que ocorria em
Jerusalém e nos arredores; tais episodios constituiam o teor
do que o cristáo podia conhecer a respeito da Térra Santa.
Dessas informacóes temos um espécimen ainda hoje numa cró
nica de Guilherme de Tiro, historiador do século XII:
"Aconteceu, por permlssSo de Nosso Senhor e para provacáo do
povo, que um homem desleal e cruel se tornou senhor e califa do Eglto.
Tlnha por nome Haklm e quls ultrapassar toda a malicia e a crueldade que
tinham estado em seus ancestrals. Ele foi tal que os homens da sua leí o
tinham também na conta de elvado de orgulho, de furor e de deslealdade.
Entre outras deslealdades, mandou abater a santa Igreja do Sepulcro de
Jesús Cristo, que fora construida anteriormente por ordem de Constantino
Imperador, pelo patriarca de Jerusalém chamado Máximo e que fora re-
felta por Modesto, outro patriarca do tempo de Herácllo.1

Entáo comecou a situacáo de nossa gente a ser multo mais dura e


dolorosa do que fora, pols grande luta Ihes entrara no coracSo por causa,
da Igreja da RessurrelcSo de Nosso Senhor, que eles vlam asslm destrui
da. Doutra parte, eram dolorosamente sobrecarregados de Impostos e ta-
refas, contra os costumes e os privilegios que eles havlam recebldo dos
príncipes incrédulos. Até mesmo o que |amals Ihes fora imposto, chegou.
a ser-lhes proibidos: a celebracfio das suas testas. No dia que soubessem
ser a malor festa dos cristaos, eles (os drusos) os obrigavam a trabalhar
mais sob o jugo e a torca; proiblam-lhes (aos cristaos) salr das portas da
suas casas, em que eles eram encerrados para que n8o pudessem cele
brar festa alguma. Em suas casas mesmas nao gozavam de paz nem segu-
ranca, pols se atiravam sobre elas grandes pedras e pelas )anelas lanca-
i/am excrementos, lama e toda especie de llxo. Se acontecesse que al-
gum cristáo dissesse urna só palavra capaz de desagradar a esses Incré
dulos, logo, como se tlvesse cometido um morticinio, era arrestado a prl-
sáo e Ihe cortavam o pé ou a mSo, ou podlam todos os seus bens ser con
fiscados pelo califa... Multas vezes, os Incrédulos tomavam os fimos e
as fllhas dos crlstSos em suas casas e com eles fazlam o que querlam;
ora mediante golpes, ora mediante adulacáo, os incrédulos constranglam
mullos Jovens a renegar a fó... Os bons cristaos esforcavam-se por
sustentar tanto mais firmemente a sua fé quanto mais eram maltratados.

i Trata-se aqui da reconstrucño da basílica do Santo Sepulcro após a


destrui?8o de Jerusalém pelos persas em 614.

— 489 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 167/1973

Seria longo contar todos os vexames e as desgranas em que o povo


de Nosso Senhor se encontrava entáo. Eu vos contarei um episodio, para
que mediante esse possais compreender mullos outros. Um dos incrédu
los, malicioso e desleal, que odiava cruelmente os cristSos, procurava
certa vez um meló de os fazer mor re r. Viu que a cidade inteira (Jerusa-
lem) tinha grande honra e reverencia pelo Templo que fora refeito1...
üiante do Templo há uma praga que se chama a esplanada do Templo, que
oles (os muculmanos) guardavam e manlinham limpa, como os cristáos man-
iém limpas as suas igrejas e os seus altares. Esse incrédulo desleal tomou
de noite, sem que alguém o visse, um cao morto, pútrido e fétido, e colo-
cou-o nessa esplanada, diante do Templo. Oe manhá, quando os homens da
cidade foram ao Templo para orar, encontraran) esse cao. Fez-se entáo um
giande grito, rumor e clamor por toda a cidade, a ponto que so se falava
do ocorrido. Reunlram-se e nao tiveram dúvida em dizer que os cristáos
haviam feito isso. Todos concordaram em passar ao fio da espada todos os
cristáos; já estavam mesmo desembainhadas as espadas que a todos deviam
'cortar a cabeca.

Entre os cristSos havia um jovem de coracáo generoso e de grande


piedade. Falou ao povo e dlsse: 'Meus senhores, verdade é que nao tenho
culpa alguma no que aconteceu, como atlas nenhum de nos a tem; Isto,
eu o dou por cedo. Mas será extremamente doloroso se morrerdes todos
assim e se todo o Cristianismo se extinguir nesta térra. Por isto pense! em
vos libertar a todos com o auxilio de Nosso Senhor. Apenas vos peco duas
coisas pelo, amor de Deus: que oréis por mlnha alma em vossas preces e
que toméis sob os vossos cuidados e reverencia a minha pobre familia.
Pols eu assumirel a causa sobre mlm e dlrei que fui eu que fiz aqullo de
que acusam a todos nos I'

03 que lamentavam morrer, tiveram grande alegría entio e promete-


ram ao jovem fazer oracSes e honrar os seus familiares de tal modo que
estes, no domingo de Ramos, trouxessem sempre a ollvelra, que signifi
ca o Cristo, e a colocassem em Jerusalém. — O jovem, portante, foi ao
encontró dos injustos e disse que os outros cristáos nao tinham culpa
alguma no ocorrido e que ele era o autor da facanha. Quando os Incrédu
los ouviram isto, puseram em liberdade todos os outros ,e somente ele teve
a cabeca tal hada.

Faga-se o descontó devido possivelmente ao estilo pane


girista do cronista... É certo, porém, que aínda no séc. XII
havia em Jerusalém uma familia encarregada de fornecer aos
fiéis as palmas para o domingo de Ramos, em memoria (di-
ziam) da dedicacáo desse antepassado generoso, que se te-
•ria sacrificado em prol da comunidade.

1.2. Concepsóes e características msdievais

1. Note-se agora que os relatos concernentes aos vexa-

JAlusao ao antlgo templo de Salomao, transformado pelos árabes em


.mesqulta de Ornar.

— 490 —
AS CRUZADAS MEDIEVAIS 27

mes da Térra Santa ecoavam nos ouvidos de sociedades e


povos caracterizados por dois tragos profundamente marcan
tes:

a) Eram populagóes ñas quais todos os individuos (com


raras excegóes, que confirmam a regra) tinham — ou ao me
nos julgavam ter e professavam — a fé cristal Essa fé nao
procedía de urna autoridade exterior (do Papa ou do Impera
dor), mas era urna conviegáo profundamente ancorada no
coracáo de todos. Os valores da fé eram, para esses homens,
o que fazia que a vida valesse a pena de ser vivida. O calen
dario da vida pública, as catedrais románicas e góticas, os
nomes de acidentes geográficos e instituigóes, além de nume
rosos outros dados, atestam o profundo impacto que a men-
sagem da fé causava sobre os povos medievais, ritmando as
minucias da vida cotidiana.

Nao há dúvida, a fé dos medievais era muito propensa


a demonstragóes exuberantes, como também a dar crédito a
visees, aparigóes, feitos extraordinarios, sinais retumbantes de
Deus... Ao lado das grandes Universidades de París, Oxford,
Bolonha, Ñapóles, havia também muita simploriedade e infan-
tilidade na piedade crista. Mas inegavelmente tudo que se ligas-
se com a fé, revestia-se de grande significado para os medie
vais.

b) A sociedade na Idade Media estava toda impregnada


do espirito e da realidade dos cavaleiros. Efetivamente, a espi-
ritualidade germánica, franca, celta, goda legou a civilizacáo
medieval o ideal do cavaleiro. Este aspirava a servir a Deus na
bravura destemida, magnánima, e até mesmo na guerra (caso
julgasse que a honra de Deus exigia a intervencáo da espada).
A espiritualidade do cavaleiro retratada ñas cangóes e trovas da
Idade Media era apta a suscitar faganhas heroicas em nome
da fe.

Mais: deve-se lembrar que na Idade Media também os


monges desenvolverán! papel importante, professando, porém,
urna espiritualidade assaz diversa da do cavaleiro. Enquanto
o cavaleiro procurava intensificar suas atividades no mundo,
aspirando assim a unir-se a Deus e chegar á vida eterna, o
monge se separava do mundo secular para penetrar direta-
mente em Deus e na contemplagáo. Enquanto o cavaleiro apli-
cava os instrumentos da sua profissáo, isto é, as armas, para
servir ao seu Senhor, o monge, professando pobreza e silencio,
recusava o recurso a tais expedientes.

— 491 —
28 vPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1Ü7/1973

Ora os medicvais haviam de conseguir fazer a sintesc desses


dois tipos de ideal cristáo — o do cavaleiro e o do mongo —,
criando no século XII as chamadas «Ordens Militares». Nestas
o cavaleiro se consagrava a Deus para O servir com destemor e
galhardia num quadro de pobreza, castidade e obediencia.
Referindose aos Templarios, dizia S. Bernardo (| 1153):
"Nao sel se os davo chamar mongos ou cavaleiros; talvez seja neces-
sário dar-lhes um e outro nome, pois eles unem á brandura do monge a
coragem do cavaleiro" ("De laude novae militiae" IV 8).

2. É, portanto, ñas populagóes medievais, caracterizadas


por tais tragos, que ccoaram os relatos, de estilo simples e pun
gente, dos peregrinos da Térra Santa, no séc. XI. Compreen-
de-se que tenham desencadeado reagáo espontánea e decidida
da parte dos seus ouvintes. Somonte o entusiasmo e o vigor
comunicados pela fé (e que só a fe pode comunicar) explicam
tal resposta: multidóes se abalaram, prontificando-se a partir
para térras longínquas, desconhecidas, sujeitas a surpresas e
ciladas, sem reabasteeimento seguro, sem guias peritos, sem
planos de viagem muito definidos, mas conscientes (ao menos
nos primeiros tenipos) de que Deus o quería; «Deus lo volt»,
eis o brado que em Clermont, no ano de 1095, impressionou
os primeiros expedicionarios e impulsionou a tantos outros que
lhes seguiram o exemplo. Coziam urna cruz de paño vermelho
ao ombro direito; donde as expressóes que se tornaram técni
cas: «assumir a cruz» e «fazer a cruzada». O ímpeto inicial
teve suas repercussóes durante os dois sáculos de duragáo do
movimento de Cruzadas.

Alias, os medievais dedicavam grande devocáo ao Santo


Sepulcro do Senhor que os cronistas lhes apresentavam sujei-
to a vcxames. Era tido como o maior santuario do mundo
cristáo, como o centro do universo, segundo os sermóes e os
noticiarios da época. Tenha-se em vista, por exemplo, a pré
dica de Pedro Venerável «Em louvor do Sepulcro do Senhor»
(Sermo in laudexn Stipulcri Doniini) na «Patrología Latina»,
ed. Migne, t. 189, col. 973. Um documentário assaz ampio a
respeito foi publicado por R. Bauerreis: «Sepulcrum Domini.
Sludien zur Entstehunc? der christlichen Wallfahrt auf deut-
schem Boden. Abhandlungen der bayerischen Benediktiner-
-Akademie» 1 (193G), pp. 34-36.

É someníe a partir de tais concepgóes, muito vivas c signi


ficativas para os medicvais, que se podcm entender as Cruza
das. Nenhum tipo de guerra moderna, nem mosmo a chama
da «guerra santa» (jihad) dos mugulmanos, pode sei"vir de pon-

— 492 —
AS CRUZADAS MEÜIEVAIS 29

lo de referencia para se entenderem a inspiragáo e a forga


motriz dos cruzados.

É mister, porém, reconhecer que as idéias religiosas dos


primeiros expedicionarios foram sendo, aos poucos, no decor-
rer de dois scculos, solapadas, de sorte que a imagem do cava-
leiro que em seu fervor tomava sobre si a cruz para ir liber
tar o S. Sepulcro do Senhor, se foi modificando. É essa ima-
gcrn posterior que muitas vezes predomina em certos tratados
sobre as Cruzadas.

Procuraremos ncslas páginas abordar os motivos da des-


flguragüo do ideal dos primeiros cruzados. A fim de o fazer-
mos com base concreta nos fatos, tragaremos previamente um
bosquejo das Cruzadas, desde a primeira até a última. Feito
este rápido percurso, voitaremos a analisar as idéias o os fato-
res que moveram a historia dos cruzados.

2. As Cruzadas em resenha

Foi o Papa Urbano II quem, no Concilio de Clermont


(Franca) em 1095, lan?ou o programa de oxpedigóes destina
das a reconquistar o S. Sepulcro em Jerusalém. O ambiente,
como vimos, estava assaz motivado para receber tal apelo.
Conseqüentemente, o brado de Urbano II suscitou entusiasmo
delirante; muitos pregadores puseram-se a percorrer a Euro
pa, incitando os homens a cerrar fileiras. Grande multidao de
ouvintes, de origem social diversa, assumiu entáo a cruz, em
blema da campanha. Os expedicionarios, provenientes da
Franga, da Inglaterra, da Italia, eram dotados de beneficios es-
pirituais pelo Papa; a quem ousasse violar ou roubar as suas
propriedades durante a respectiva ausencia, tocaría a pena de
oxcomunháo.

Em resposta imediata ao apelo e sem esperar a organiza-


cáo de exércitos devidamente constituidos (coisa que levaría
tempo), grande número de simples fiéis pós-se logo em mar
cha para o Oriente sem o equipamiento necessário. Essa Cru
zada Popular, chefiada por Pedro o Eremita e Gualtero «sem
Haveres» (Gauthier sans Avoir), fracassou, pois os seus mem-
bros ou pereceram na estrada ou foram exterminados pelos
turcos.

1* Cruzada: Em fins de 1096, quatro exércitos de senho-


res feudais chegavam a Constantinopla: 1) os lorenos e ale-

— 493 —
30 ..PERGUNTE E RESPONDEREMOS^ 1(37/1973

máes, com Balduino de Hainaut e Godofredo de Bouillon; 2)


os franceses do norte, sob o conde de Vermandois e o duque
de Normandia; 3) os provengáis, com o conde de Tolosa e o
legado Ademar de Monteil; 4) os normandos da Italia, com
Bocmundo de Taranto e Tancredo. Nenhum rei os acompanha-
va, nem esses exércitos cuidaram de instituir um Chefe geral
para todos. O Imperador bizantino Alexis Comnene, em Cons
tantinopla, esperava servir-se desses guerreiros para reconquis
tar parte da Asia Menor, que fóra arrebatada pelos turcos.
A ciUade de Nicéia perto de Constantinopla foi entáo realmen
te reconquistada, mas, em vez de ser atribuida aos ocidentais,
voltou a ser dominio do Imperador bizantino. Este fato frus-
trou os latinos e concorreu para que doravante latinos e bi
zantinos concebessem desconfianca mutua! — Após doís anos
e meio de lutas e sofrimentos atrozes, os cruzados, tendo ven
cido o exército de Solimüo em Doriléia, havendo tomado Edes-
sa (1097) e Antioquia (1098), chegaram finalmente a Jerusa-
lém e déla se apoderaram (1099). Essa sangrenta expedigáo,
que custara a vida a cerca de meio-milháo de homens, termi'
nou com a fundagáo de quatro centros latinos: o reino de Je-
rusalém, o principado de Antioquia, os condados de Edessa e
de Trípolis, aos quais foram atribuidos govemantes latinos.
As grandes cidades da costa palestinense foram ocupadas por
navegantes e comerciantes ocidentais. Os peregrinos recome-
caram a afluir á Térra Santa. Para protegé-los e defendé-losr
foram criadas as Ordens de Cavaleiros Militares (Hospitala
rios, Templarios, etc.).

Como se compreende, os territorios latinos no Oriente


eram constantemente ameacados e só podiam subsistir com
o auxilio de reforcos vindos do Ocidente. É o que explica urna
serie de expedicóes, ora mais, ora menos vultosas, colocadas
entre as grandes Cruzadas. Somente estas, em número de oito,
seráo aqui recenseadas.

2* Cruzada: Os turcos tendo reconquistado e destruido


Edessa, preparou-se nova Cruzada, que partiu do Ocidente em
1147. Exortados por S. Bernardo, o rei de Franca, Luís VII,
e o da Germánia, Conrado III, tomaram a cruz sobre si e fun-
diram suas tropas num só exército. Mas nao conseguiram to
mar nem mesmo Damasco, e regressaram sem éxito em 1149.

3* Cruzada: O sultáo Saladillo apoderou-se de Jerusalém


em 1187. Respondendo entáo a um apelo do Papa Urbano III,
Filipe Augusto da Franca, Frederico Barbarroxa da Alemanha,

— 494 —
AS CRUZADAS MEDIEVAIS 31

e Ricardo Coragáo de Leáo, da Inglaterra, apresentaram-se


para partir. Os alemáes, tendo seguido por térra, chegaram
até a Asia Menor; mas a morte de Frederico, afogado ñas.
aguas do rio Cydnus (Cilicia), p_rovocou a dispersáo do seu
exército (1190). Os reis da Franga e da Inglaterra dirigiram-se
por mar a S. Joáo de Acre, que conseguiram ocupar (julho de
1191). Embora lutassem juntos, os dois monarcas nutriam des-
confianga mutua. Filipe Augusto, tendo caído doente, voltou á
Europa, e, apesar da palavra dada, pós-se a tramar com Joáo
sem Térra a invasáo dos dominios do rei da Inglaterra. Ricar
do viu-se assim compelido a voltar (1192).

Naquela época, os cristáos já nao possuíam senáo o lito


ral desde Tiro até Jafa, com S. Joáo de Acre como capitel,
além do principado de Antioquia, assaz reduzido. Todavía Ri
cardo Coragáo de Leáo havia conquistado Chipre, que se tor-
nou um reino latino próspero.

4* Cruzada: O Papa Inocencio ni (1198-1216) aspirava


ardentemente a libertagáo de Jerusalém. Suscitou nova expe-
dicáo a qual, porém, se afastou da sua orientagao, sob a in
fluencia de Filipe da Suábia, de Veneza e dos gregos. Os cru
zados empreenderam a conquista de Constantinopla O), que
eles saquearam, fazendo da mesma a capital de um Imperio
latino Esse Imperio, que compreendia a península dos Baleas,
durou até 1261, quando Miguel o Paleólogo retomou Constan
tinopla.

5» Cruzada: Entre 1219 e 1221, alemáes e húngaros assu-


miram a cruz. Dirigiram-se para o Egito; mas a cheia do Nilo,
que os cristáos nao previam, obrigou-os a retirar-se.

6« Cruzada: É também chamada «peregrinagáo sem fé»


(1228-1229). Excomungado pelo Papa, Frederico II resolveu
empreender urna Cruzada, nao tanto para libertar o S. Sepul
cro, quanto para unir em sua pessoa os títulos de Imperador
da Alemanha e rei de Jerusalém; amigo da ciencia e da cultu
ra árabes, Frederico II aparentava amizade com os árabes, de
sorte que obteve do sultáo do Egito, por dez anos, o dominio
sobre Jerusalém, Belém e Nazaré. Terminado esse prazo, Je
rusalém recaiu ñas máos dos árabes.

7* e 8* Cruzadas: Sao Luis IX, rei da Franga, resolveu re


conquistar a Cidade Santa. Em 1248, atacou o sultáo Eyoub,

— 495 —
-PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 167/1973

nao na Siria, mas no Egito. Como em 1221, também dessa voz


os cristáos tomaram Damieta, mas cairam diante de Mansou-
rah. Foram todos encarcerados, só conseguindo a liberdade
mediante enorme prego de resgate.

Em 1270, S. Luis renovou seus estorbos, conseguindo a


mullo custo constituir um exército para empreender nova ex-
pcdicáo. O irmáo do rei, Carlos de Anjou, pcrsuadiu-o de ir
primeiramente a Túnis; diante desta cidade, o monarca, aco
metido de peste, veio a falecer aos 25 de agosto de 1270.

Após estes fatos, a pressáo dos exércitos turcos se inten-


sificou, visando aos últimos redutos cristáos da Asia. Em 1291,
estes sucumbiram, encerrando-se assim a era das Cruzadas pro-
priamente ditas.

Ainda, a titulo de iiustragáo, mencionamos as Cruzadas das


crianzas, pois sao significativas do espirito da época.

Em 1212, um jovem pastor, chamado Estéváo, dizendo-se


enviado por Deus, convocou as enancas da Franca para em-
preenderem urna Cruzada. O exército de 30.000 jovens que as
sim se formou, embarcou em Marselha. Dois condutores de'
frota haviam-se comprometido a transportá-los ao Oriente
gratuitamente; todavía venderam-nos aos mercadores de es-
cravos no Egito. A maioria dos participantes pereceu; um pe
queño número recuperou mais tarde a liberdade.

Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episodio se-


melhante. Vinte mil jovens, dirigidos por certo Alexandre, táo
imperito quanto os seus seguidores, atravessaram os Alpes
para embarcar em Genova. Todavía, frustrados, dispersaram-
se sem éxito algum.

Depois desta visáo panorámica do que foram concreta


mente as Cruzadas, importa agora procurar compreender os
fatores que provocaram o seu estranho desenrolar.

3. Cruzadas: idealismo ou decadencia?

Procederemos por etapas, tentando penetrar táo fielmen


te quanto possível no fenómeno «Cruzadas»!

— 496 —
AS CRUZADAS MEDIEVAIS 33

3.1. Os motivos de duvidar

Quem leva em conta a historia das Cruzadas, á piúmeira.


vista é levado a dizer que constituiram um fracasso ou até
mesmo um contra-testemunho dos cristáos. Como sabemos»
tém-se catalogado varios capítulos de censura aos cruzados:
ambiguo, traigáo, vileza de costumes...

É interessante notar que nao somente historiadores mo


dernos denunciam fainas tais, mas também pregadores e cro
nistas medievais. Com efeito, no decorrer dos séc. XII e XIII,
perguntavam por que Deus havia permitido a derrota deste
ou daquele exército de seus servidores ou por que consentirá
na perda da Cidade Santa Jerusalém. — Em resposta, julga-
vam que o pecado devia ser a causa de tais insucessos; em con-
seqüéncia, apontavam urna serie de faltas moráis dos cruzados.
Tenham-se em vista, por exemplo, Pedro de Blois (t 1212) em
um sermáo da «Patrología Latina» de Migne, vol. 207, col. 294;
Tiago de Vitry, em sermáo publicado por R. Rohricht, em
«Zeitschrift für Kirchengeschichte» 6 (1884), pp. 571s. O Con
cilio de Liáo I em 1245 também fez advertencias a procedimen-
tos indignos dos cruzados; cf. Mansi, «Conciliorum amplissi-
ma collectio» XXIII, p. 628.

Á vista destes dados, dir-se-á que as Cruzadas represen-


tam um ponto negro da historia medieval?... Ou que signifi-
cam fracasso e degenerescencia dos cristáos?

Quem assim julgasse em bloco, seria unilateral ou mesmo


injusto. É necessário, pois, voltemos sucessivamente nosso
olhar para os diversos aspectos da temática. É o que vamos
fazer.

3.2. Quadro gemí : opreciajáo

Nao se pode deixar de sublinhar em primeiro lugar o que


de positivo as Cruzadas representam nao somente aos olhos
do cristáo, mas também aos do estudioso como tal.

Abstragáo feita de pessoas e episodios particulares, as


Cruzadas tém sua inspiracáo fundamental na fé dos homens da
Idade Media, no seu amor aos valores sagrados e no seu espi
rito cavaleiresco, corajoso e magnánimo. O fato «Cruzadas*-
nunca se teria verificado, se nao tivesse sido inspirado e dina-
mizado por estes motivos, que sao altamente valiosos.

— 497 —
PKRGUNTI-; E RESPONDEREMOS.- K.7/1973

A fé e o amor dos cristáos, na Idade Media, recorreram as


armas para se exprimir concretamente... Hoje muitos cris
táos hesitariam diante de tal expressáo; seriam até propensos
a condená-la. Atualmente os homens tém meios de discutir seus
problemas e confrontar suas divergencias mediante reunióes,
assembléias, concordatas; por isto rejeitam (ao menos em teo
ría...) as solugóes violentas (na prática, porém, nao faltam
as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais di
versos motivos). Contudo na Idade Media as distancias geo
gráficas, culturáis, filosóficas constituiam barreiras quase in-
transponiveis, que dificultavam aos homens a aproximagao fí
sica e a superagáo de suas divergencias; julgavam em muitos
casos ter que recorrer as armas para preservar seus valores e
garantir o bem comum. Assumir as armas em tais circunstan
cias era tido como louvável; fugir délas merecería censura.

Verdade é que o movimento das Cruzadas nao conseguiu


devolver aos cristáos, de maneira duradoura, a posse da ci-
dade de Jerusalém e da Térra Santa em geral. Todavía ele
se prolongou por dois sáculos, á custa de ingentes sacrificios,
que revelam notável espirito de heroísmo. Sucessiva e tenaz
mente, as geragóes de cristáos despertaram as suas energías
para recomegar a grande faganha que outros nao haviam con
seguido realizar plenamente. Se nao nos deixaram um reino
ou urna república de Jerusalém, deixaram ao menos o'teste-
munho de sua fé e de seu entusiasmo — valores estes que até
hoje estáo documentados e expressos pelas numerosas igrejas
e outros monumentos aínda existentes em Jerusalém e era toda
a Térra Santa. Deus, Cristo e a Igreja eram valores indiscu-
tíveis para esses fiéis, que estavam dispostos a grandes sacri
ficios para afirmá-los ou defendé-los. Semelhante coragem é
desejável aos fiéis dos dias atuais, para que, dentro das cate
gorías do séc. "XX, professem e vivam concretamente a sua
fé (a ligáo dos cruzados aínda é eloqüente, sob este ponto de
tfista).

Nao se poderiam silenciar outrossim os vultosos benefi


cios acarretados pelas Cruzadas no plano cultural e científico.
O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes ocasio-
nou incremento para a matemática, a medicina, a industria, o
comercio e outros ramos das atividades humanas; desenvolveu
a navegagáo e modificou as condigóes económicas da sociedade
feudal. Em suma, preparou o grande surto das artes e das
■ciencias ditas «exatas» nos séc. XV/XVL

— 498 —
AS CRUZADAS MKDIEVAIS 33

Sao estas reflexóes que impedem de dizer que as Cruza


das em seu conjunto foram um fracasso ou um contra-teste-
munho do espirito cristáo. Ao contrario, elas atestam, em pri-
meira linha, valores positivos da Idade Media, embora expres-
sos de maneira que em nossos tempos já nao seria preconizada
nem imitável.

Deseamos agora a consideragóes mais particulares.

3.3. Fatores negativos

O entusiasmo que desencadeou as Cruzadas era mais idea


lista do que realista; os seus arautos nao mediam a amplidáo
dos encargos e problemas que a execugáo concreta do progra
ma apregoado devia acarretar. É o que explica que os cruza
dos, após haver obtido os seus primeiros resultados, tenham
experimentado sucessivos reveses. Estes se devem a fatores
varios, que podem ser assim enunciados:

1) A amplidáo da tarfa empreendida pelos cruzados exi-


giu, com o passar do tempo, o recurso a subsidios novos e ne-
cessariamente heterogéneos, a saber:

os cavaleiros e outros cristáos que espontánea e entu


siásticamente se ofereciam para assumir a cruz, já nao basta-
vam para o objetivo. Foi preciso recrutar soldados mercena
rios, que pugnariam nao tanto por ideal cristáo universal, mas,
sim, por interesses pessoais, íis vezes mesquinhos. Muitos desses
mercenarios eram antigos criminosos detentes, a quem se dava
a liberdade á condicáo de que fossem lutar no Oriente. Ora
compreender 'se que tais soldados, •endo-se livres, fácilmente
voltavam aos maus hábitos e prejudicavam o conjunto da tropa.
Assim foi sendo cada vez mais diluida a imagem do cavaleiro
<jue galhardamente partia para a Térra Santa as próprias cus-
tas, porque amava o Senhor Jesús.

As despesas com os soldados mercenarios e seus equi-


pamentos eram ingentes, exigindo dos responsáveis que pro-
curassem angariar quantias de dinheiro jamáis suficientes.

Ora onde entra dinheiro, fácilmente é excitada a cobic.a do


ser humano com suas paixóes, que levam a abusos e desatinos.

Infelizmente nao se tem documentacáo precisa sobre o


montante das despesas exigidas por urna expedigáo de cruza
dos. Desejar-se-ia saber quanto cada soldado em media perce-

— 499 —
3Ü «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» Ki7/1i)73

bia, quanto os reis davam do seu erario e quanto o Papa em-


penhava ñas sucessivas Cruzadas. Existem, sem dúvida, noti
cias a respeito. Todavía os diversos dados supóem épocas di
versas, as quantias sao expressas cm moedas heterogéneas, as
noticias sao parceladas, de sorte que é difícil ter idéias claras
do conjunto. Apenas as duas Cruzadas de S. Luís IX tém cer
ta contabilidade escrita em livros; sabo-se, pois, que o total
das despesas da campanha de 1247 a 1256 comportou 1.537.570
libras de Tours. Mesmo assim há dúvidas: outra documcntacjio
refere que somente nos anos de 1250 a 1253 a Cruzada consumiu
1.053.476 librar, de Tours!

— De modo particular, criou problemas o transporte das


tropas para o Oriente. O meio mais indicado e preferido eram
as embarcasóes, que atravessavam o Mediteráneo. Ora até a
quinta Cruzada os expedicionarios nao possuiam frota própria.
Justamente a quarta Cruzada foi desviada para Constantino-
pla, porque, nao tendo naves próprias, foi obrigada a valer-se
das de Veneza, que procuraram servir aos seus interesses co
merciáis, e nao aos dos cruzados. Tardíamente, sob Frederico II
e Luís IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo
próprio. Anteriormente, porém, tinham que utilizar os navios
das cidades comerciantes da Italia ou da Franca (Veneza, Ge
nova, Pisa, Marselha...), que, em troca, exigiam para si di;
reitos e privilegios nos portos da Palestina.
— O vulto crescente das Cruzadas exigiu que a direcáo
das mesmas fosse confiada a reis, príncipes e grandes senhores
de térras, pois estes poderiam, mais fácilmente do que os cava-
leiros, organizar e sustentar exércitos de mercenarios. Ora os
reis e grandes senhores nem sempre se entendiam entre si; obje
tivos políticos e nacionalistas fácilmente afrouxavam ou so-
lapavam alian vas previamente contraidas (levem-se em conta a
primeira e a terceira Cruzadas). — Notorio é o caso de Fre
derico II da Alemanha, orientalista e diletante, do qual refere
o cronista Maqrizi os seguintes dizeres (auténticos?): «Meu
objetivo principal, vindo a Jerusalém, era ouvir os muculmanos
na hora da oragáo invocar Alá durante a noite». A crónica
árabe também refere a seguinte confidencia do Imperador ao
emir Fakhr ed-Din: «Se eu nao tivesse receado perder o meu
prestigio aos olhos dos francos, nunca teria imposto ao sultáo
a restituido de Jerusalém!»

2) Também se apontam falhas moráis no procedimento


dos cruzados: rapiña, abuso de mulheres e outros males, que
já os pregadores e o Concilio de Liáo I censuravam.. .

— 500 —
O historiador sincero há de reconhecer tais erros, que o
cstudo objetivo manifesta. Todavía nao se deveria fazer des-
sas fallías a nota característica ou uma das notas característi
cas das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados como ge-
ralmente ocorrem ñas expedigóes militares. Todo soldado é
sujeito a procurar suas «compensagóes» depois de haver so-
frido os rigores da fome, da sede, do frió e de severa discipli
na durante a respectiva campanha. Nao poucos cruzados che-
gavam finalmente a costa da Palestina doentes, vítimas de fe-
bres, e fácilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza,
bem-cstar o gozo.

Nem por isto tais «compensagóes» sao legítimas. Alias,


refere-se que Ricardo Coragáo de Leao, após haver tomado a
cidade de S. Joáo de Acre, percebeu o desleixo moral da sua
ícente; ordenou entáo que a tropa se retirasse da cidade; os mi
licianos, porém, só o seguiram a contragosto e com hesitacao,
principalmente porque o monarca mandara que as mulheres
de baixa vida ficassem em Acre.

De resto, com os medievais acontecía freqüentemente um


estranho fenómeno de contraste: associavam, com simplorie-
dade ou naturalidade quase infantil, graves abusos moráis e
eloqüentes manifestagóes de entusiasmo religioso. Seria isto
uma heranca dos costumes bárbaros dos povos que invadi-
ram a Europa nos séc. IV-VI? Seria a expressáo de mentali-
dade aincia nao plenamente amadurecida e aprimorada? — É
de crer.

Para ilustrar o fenómeno, pode-se citar um episodio ocor-


rido na terceira Cruzada: em 1192, Ricardo Coragáo de Leao
da Inglaterra resolveu encerrar a expedí cao e voltar para o
Ociderite; as suas tropas, porém, declararam, num^ clima de
alegría e entusiasmo, que, com o rei ou sem o reí Ricardo,
continuariam a lutar para chegar a Jerusalém!

Numerosos outros episodios se poderiam aínda propor para


analisar e comentar as Cruzadas. Em síntese, porém, parece
que os principáis tragos das mesmas e do respectivo fundo de
cena foram indicados nestas páginas.

Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as


Cruzadas nao sao mancha negra; mas, ao contrario, atestam
(naturalmente segundo as categorías e possibilidades da Idade
Media) a unidade e a homogeneidade dos povos da Alta Idade

— SO i —
38 PKRGUNTK K RESPONDEREMOS* 1(57/1073

Media, que encontraran! na sua fé — valor que eles nao dis-


cutiam — o estímulo e o dinamismo para realizar faganhas he
roicas, ao mesmo tempo marcadas pela virilidade, pela poesía
e pelas limitagóes humanas...!
A respeito das Cruzadas a bibliografía é vasta. Sejam destacadas as
seguintes obras:

A. Waag, "Geschichto der Kreuzzüge. I. und ll.Band". Freiburg i./Br.


1956 (estudo ricamente documentado, donde extralmos grande número de
episodios e observacóees contidos ñas crónicas modievais, que o autor ul¡-
lizou copiosamente).

R. Pernoud, "Les croisades". París 1960 (coletánea de documentos e


relatos medievaís, traduzidos para o francés e comentados).

R. Grousset, "L'épopée des Croisades". París 1939.

ídem, "Histoire des Croisades et du royaume franc de Jérusalem". 3 vols.


París 1936.

R. C. Small, "Crusading Warfare" (1097-1193). Cambridge 1967."


St. Runcíman, "A history of the Crusades". 3 vols. Cambridge 1954s.

G. G. Coulton, "Crusades, Commerce and Adventure". London 1930.

J. Richard, "Le royaume latín de Jérusalem". 6 vols. Paris 1953.

M. Michaud, "Histoíre des Croísades". 6 vols. Paris 1829.

"Hisloire des Croisades par Michaud... Nouvelle édition augmentée


d'un Appendice par M. Hulllard Brebolles". 4 vols. Paris 1862.

P. Alphandéry, "La Chrélienté et l'idée de Croisade". 2 vols. Paris


1S54.

Aos iiossos leitores comunicamos fine oxistem can estoque os


fascículos de PR:

1967 e 19(58 — colee»1'» completas nao cncadernmlnK

1969 — falfci apenas o n? 113 (malo)

1970 — há os n? 128 (agosto), 129 (seteiríbro), 132 (cle/.cmbro)

1071 — há os n? 136 (abril), 137 (muta), 111 (setembro), 142

(outubro), 143 (novembro), 144 (dfizcmbvo)

]<)72 — jift. todos os fascículos de maio (140) a dezemhr» (150)

1973 — h& todos os fascículos a partir de maio (161)


Pedidos a Editora Caudas, Ritu S. Rafael, 38 — RIO (GH) ZC-Of)

— 502 —
Ainda o simbolismo popular:

e a mensagem do salo?

Em síntese : Desde remotos lempos, o galo é lido como símbolo re


ligioso. Na qualidade de re! dos galináceos, designa a vlrilldade, a fecun-
didade e, por associacSo, a perenidade da vida ou a vitória da vida sobre
a morte.

No Cristianismo, o galo, que anuncia o novo surto da luz e da vida


após o período tenebroso da noite, é classicamente considerado como
arauto do Cristo que ressuscitou dentre os mortos e como mensageiro da
ressurreicSo de todos os homens. Foi colocado no campanario de multas
¡grojas para lembrar aos fiéis a necessidade da vigilancia e o encontró
final com o Cristo Juiz. A expressao "Missa do Gato" tem sua origem
provavelmente no tato de que a Missa de Natal á meia-nolte proclama aos
homens o surto do Sol de Justica, ou seja, do Cristo Luz da humanidade.

A religiosidade popular e os ritos de magia até hoje utliizam o galo


como elemento benéfico para os respectivos devotos.

Comentario: O galo é, nao raro, empregado como símbolo


religioso. Nao há quem ignore, por exemplo, a expressao «Mis
sa do Galo», que designa a Missa de Natal celebrada á meia-
-noite de 24 para 25 de dezembro. Em alguns antigos campa
narios de igreja encontra-se, majestosamente postada, a figura
do galo. Ñas religióes afro-brasileiras, a galinha preta e o galo
tém papel importante, como se sabe. Mais: na mitología e ñas
crenqas religiosas de muitos povos da antígüidade, o galo ocorre
freqüentemente como símbolo de valores transcendentais, segun
do o que se verá abaixo. Daí a pergunta espontánea: por que
o galo foi, e é, táo estimado no setor do simbolismo religioso?
Que representa ele para o senso religioso da humanidade?

É a tais perguntas que procuraremos abaixo responder,,


procodendo por etapas.

1. O simbolismo de base

No reino animal, o galo é o chefe do galinheiro e dos gali


náceos . Daí ter sido tomado, desde remotos tempos, como em
blema da virilidade e, também, da fecundidade. A estas idéias

— 503 —
10 cPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 167/1973

associaram-se paulatinamente concepcóes mais transcendentais,


pois um conceito fácilmente evoca outros: o galo — símbolo da
virilidade e da fecundidade — veio a figurar outrossim a perpe-
tuidade da especie, a vida que vence a morte.. .

A idéia de Vitoria sobre a morte ou também de ressurrei-


cáo se prende ao galo especialmente porque este canta de ma
drugada, rompendo o silencio da noite, para anunciar o fim das
trovas e o raiar de novo día; o galo assim é o arauto da luz e
da vida que desperta depois de haver sido amortecida pelas
trevas da noite. Conscientes disto, os gregos designavam o ga
lo pelo vocábulo aléktoor, que nao se deriva de raiz sánscrita
alguma e que pode significar: «aquele que nao se deita» ou
«aquele que anuncia o sol» '.

A fungáo do galo «arauto da luz e da vida» já é descrita


pelo Avesta, livro sagrado dos persas:

"O canto do galo desperta a aurora, (az levantar os homens e p5e


cm fuga os demonios da noite".

Na Pérsia antiga, cada familia fazia questáo de criar um


fíalo, que a dcspertava desde a aurora, a fim de que nao perdes-
se a hora da oragáo da manhá e das ablugSes rituais.

Na mitología grega, Esculapio ou Asclépios, o deus da me


dicina, tirina como seus animáis típicos o galo, a serpente e o
cao: o galo, símbolo de vigilancia e vitalidade; a serpente, guar
dia do tesouro dos conhecimentos e símbolo da vida; o cao,
guardiáo do lar. No séc. Va. C, Platáo, ao referir os últimos
momentos de vida de seu mestre Sócrates, condenado a beber
a cicuta, coloca nos labios do filósofo as seguintes exclamacóes:

"Critao. devemos um galo a Esculapio I Paga a mínha divida 1 Nfio


dolxes de o'fazer!" (Fedon).
Tais teráo sido as últimas palavras de Sócrates. Os comen
tadores perguntam se tais dizeres supóem um voto feito pelo
filósofo em circunstancias especiáis. A resposta mais provável
c negativa; nada se sabe de tal voto ou de costumc análogo.
CoWtoda vcrossemelhanca, pode-sc dizor que os gregos costu-
rnavani sacrificar um galo a Esculapio no momento da morte.
Com efeito, julgavam que vlver no corpo é detrimento para a

■É curioso notar que os gregos nao tinham palavra especial para


designar a galinha, que eles chamavam slmplesmente órnis (= pássaro).

— 504
O SIMBOLISMO DO GALO 41

alma; conseqüentementc o fato de se ver prestes a abandonar


o corpo pela mortc podía suscitar em muitos sabios gregos a
gratidáo para com o deus médico Esculapio, gratidáo que se-
iraduzia pela imolagáo de um galo... Este, de resto, era tido
como o símbolo da vida nova e da imortalidade da alma.

Entre os árabes, os comentadores do Coráo de Maomé en-


sinam que todos os días, por ocasiáo da aurora, no paraíso um
galo sagrado, de estatura gigantesca, faz ouvir um canto de
louvores á gloria de Alá, o Poderoso e Misericordioso; os cantos,
dos galos sobre a térra vém a ser apenas os ecos do canto no
paraíso... Quando chogar o dia do juizo final, nao seráo as
trombetas que despertaráo os mortos, mas o canto do galo...
Os comentadores acrescentam que Maomé viu esse galo no pri-
meiro céu; é de brancura mais cintilante do que a nevé e de tal
tamanho que a sua cabeca toca o segundo céu (segundo céu que
se acha a quinhentos anos de caminhada distante do primein>
céu). Tal é o anjo dos galos; sua funcáo principal consiste em.
rcgozijar a Deus todas as manhás por seus cantos e seus hinos.
— Nesta tradigáo maometana, como se vé, o galo é, mais urna
vez, o arauto da luz e da vida ou da ressurreigáo.

Estes poucos dados da historia das rcligióes sao suficien


tes para que compreendamos que também entre os cristáos a
figura do galo nao podía deixar de ocupar lugar de relevo na
liturgia, na arte e no folclore. Examinemos, pois, o simbolismo-
do galo nos documentos do Cristianismo.

2. O galo na trad¡$5o crista

1. A Escritura Sagrada menciona o galo em dois textos


que contribuiram para chamar a atencáo dos cristáos para o
significado religioso do galo:

Me 14, 29-31.66-72: Jesús predisse a Pedro que, na noite


do julgamento do Mestre, o Apostólo havia de renegar tres ve-
zes o Senhor antes que o galo cantasse. E a profecía se-
cumpriu!

Jó 38,36: O Senhor, numa interrogagáo retórica, pergunta


a Jó quem deu ao galo a sabedoria que o torna táo certeiro e
regular arauto da luz todos os dias (ao menos é neste sentido
que alguns tradutores entendem o texto original hebraico de
Jó).

— 505 —
12 ^PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 167/1973

Sugerido por estes textos bíblicos e pelo patrimonio reli


gioso da humanidade, o galo haveria de significar para os cris-
táos: ressurreicáo, vigilancia e anuncio da Boa-Nova.
1) Ressurreieáo. Nos túmulos cristáos dos primeiros sé-
culos, vé-se, nao raro, a imagem de um galo, acompanhado da
fórmula «In pace» (Em paz). Encontra-se também o galo tra-
zendo no bico um ramo que simboliza a recompensa dos már
tires .
No séc. IV, o poeta latino Prudencio compós alguns hinos
em que apresenta o galo, com seu cantar matinal, como mensa-
geiro da aurora ou da nova luz e arauto da ressurreicáo de
Cristo. Eis urna de suas composigóes mais usadas ainda hoje
na liturgia católica:
"O pássaro, arauto do día, anuncia a luz que se aproxima. Cristo,
que desparta as mentes, nos chama para a vida. 'Deixai, diz Ele, os vossos
Jeitos, em que jazeis amolecidos por sonó mórbido! Sobrios, retos a
castos, viglai, pois estou próximo !' "

Prudencio acrescenta:
"Pouco antes que brilhe a luz, aparece a figura do nosso juiz".
A seguir, Prudencio lembra a renegagáo de S. Pedro, que,
,ao canto do galo, tomou consciéncia do que fizera:
"Reconhecendo o canto do galo, o justo deixa de pecar".

Por fim, Prudencio recorda a ressurreic.áo de Cristo:


"Cremos todos que, durante o repouso em que o galo canta exultante,
Cristo voltou da regiSo dos mortos".'

1 Eis o texto original latino dos versos citados


"Ales diei nuntius
Lucem propinquam praecinit.
Nos excitator mentium
lam Christus ad vitam vocat.
Auferte, clamat, lectulos
Aegro sopore desides.
Castique, recti ac sobrii
Vigilate, iam sum proxlmus".
"Paulo antequam lux emicet
Nostri figura est ludicis".
"Cantuque galli cognito
Peccare ¡ustus destitit".
"Inde est quod omnes credimus
Illo quletis tempore
Quo gallus exsultans canit
Chrtstum rediisse ex inferís".

— 506 —
O SIMBOLISMO DO GALO 43

Para Prudencio, pois, o galo lembra a ressurreigáo de Cris


to, assim como a de todos os homens. Essa temática foi desen
volvida pelos pregadores e santos da antigüidade em escritos e
sermóes, que nao vem ao caso citar aquí.

2) Vigilancia e Boa-Nova. O galo, como símbolo de vigi


lancia, aparece principalmente em obras da Idade Media, cujo
estilo é assaz alegorizante.

Para S. Beda, monge inglés do séc. VIII, o galo é a ima-


gem do cristáo e do pregador, «porque na noite desta vida o
justo recebe pela fé a compreensáo e a virtude que o fazem
clamar para Deus, a fim de apressar a aurora do grande dia».

Guilherme Durando, bispo de Mende no séc. XIII, escreveu


urna obra de teor fortemente alegorizante, em que assim se re
fere ao galo:

"O galo vigía na noite escura, marcando as horas por seu canto;
despena os que dormem; celebra o dia que se aproxima; mas, antes do
mais, ele desperta a si mesmo, e se excita a cantar, batendo as asas. Essas
coisas nSo deixam de ter seu misterio, pois a noite é este mundo; os que
dormem, sSo os filhos da noite, prostrados em suas iniquidades; o galo
representa os pregadores que pregam em.alta voz e despertam os que
dormem, a fim de que rejeitem as obras das trevas; anunciam a luz que
há de vlr, quando pregam o dia do juízo e a gloria futura" ("Rationale de
Oivinls Officiis").

O simbolismo da vigilancia atribuido ao galo em numero


sos escritos medievais inspirou aos construtores de igrejas a
colocagáo de um galo de pedra ou de metal no topo dos cam
panarios . Por vezes, o galo se achaya sobre urna haste de ferro
colocada sobre a cruz do campanario á guisa de ventoínha, ou
soja, com a possibilidade de girar segundo a direcáo do vento.
Símbolo da vigilancia do pastor de almas, o galo sobre o
campanario incita ao despertar e ao trabalho. Eis como o ex
plica a obra «Le Bestiaire du Christ» de Charbonneau-Lassay,
na qual o pcnsamento medieval é fielmente ilustrado:

"Pela sua dupla índole de protetor vigilante e corajoso defensor dos


seus filhotes, o galo no campanario representa o Cristo que, colocado ácima
da Igreja militante da térra, vigía sobre Ela e, para defendé-La, enfrenta
as borrascas e as tempestades, donde quer que venham".

Nao se pode dizer onde e quando precisamente teve origem


o costume de colocar um galo em campanario de igreja. Urna

— 507 —
44J-'^RGUNTEJE

lcnda pretende responder aos curiosos, dizendo que Sao Pedro,


urna vez arrependido de sua tríplice negaejao, tinha aversáo a
todos os galos que encontrava; quando os ouvia cantar, sentía
especial repulsa, e, nao raro, os matava e empalhava desde que
estivessem ao seu alcance. A fim de se ver definitivamente li-
vre dos galos, Sao Pedro teria intencionado dar-lhes urna ligáo
colocando<os, empalhados, em lugar bem exposto como é o topo
de urna igreja. Acrescenta a cstória que a ligáo foi eficaz e
que o exemplo de Sao Pedro se transmitiu aos pósteros. — Pura
lenda!

O simbolismo do galo como vigilante e arauto de nova


vida explica a designagáo de ¡Missa do galo atribuida á Missa
de Natal celebrada á meia-noite. Tal celebragáo, quebrando o
silencio da noite para anunciar aos homens a vinda do Sol de
Justica, o Cristo Jesús, bem podia, segundo as conccpcóes po
pulares, estar associada á imagem do galo.

Resta agora considerar um outro setor em que o galo é


muito explorado como sinal e símbolo: a religiosidade popular.

3. O galo na religiosidade popular

Distinguiremos os seguintes aspectos da vasta temática:


a) O galo e os fantasmas noturnos; b) O galo e os «chabás»
medievais; c) O galo e a magia negra.

a) O galo c os fantasmas noturnos. Desde os tempos pré-


-cristáos, acredita-se que o galo ó o espantalho dos maus espi-
ritos e dos fantasmas que rondam durante a noite para pi*eju-
dicar os homens. A noite, alias, com sua escuridáo, semprc foi
tida pela religiosidade popular como o ambiente propicio aos
maus espíritos. Dai os horrores que os antigos habitantes da
india tinham á noite; dai os niños dos Vedas (da India) con
sagrados a luz; dai a oposigáo entre a noite e o día, que inspirou
o dualismo (mazdeismo) da religiáo persa. Segundo tal men-
talidade, o galo é muítas vezes o símbolo de bom agouro, dis-
sipador das potencias avessas ao homem. Como eco persistente
de tais concepgóes, pode-so citar a seguinte passagem fantasista
de Shakespeare, datada do inicio do séc. XVII:

"Horacio: ... Ouvi dizer que o galo — a trombela da manha — com


seu canto agudo, de som estridente, despena o deus do día. Ao ouv¡-!o,

— SOS —
O SIMBOLISMO DO GALO 43

voltam aos respectivos penates os espirites que vagueiam na agua ou no


fogo, na térra ou no ar... É verdade,... o caso presente o atesta.

Marcelo: A ¡magem do defunto que apareceu durante a noite, dls-


solveu-se ao canto do galo. Há quem diga que sempre, quando vem a es-
tacSo em que se festeja a Natlvldade de nosso Salvador, o pássaro da aurora
(o galo) canta durante a noite inteira; entfio, dizem, as noltes sao sadias;
entáo os planetas vizlnhos nao fazem a térra gelar, as fadas nao lancam
sorte má; as bruaxs nfio tém o poder dos encantamentos, a tal ponto é
graciosa e santa aquela hora".

A mengáo da noite de Natal juntamente com a do canto


do galo parece explicar, mais urna vez, a expressáo «Missa do
galo» como designativo da Missa noturna de Natal.

Em certas regióes rurais da Europa, quando o trabalho


nos campos deve comegar de madrugada, os lavradores costu-
mam esperar o primeiro canto do galo para poder trabalhar
tranquilos. Caso sejam obrigados a comegar mais cedo, imagi-
nam ver em toda parte fantasmas errantes.

b) O galo e os «chabás» medievais. Shabbath é palavra


hebraica que designa o sétimo dia da semana dedicado ao re-
pouso; comega, segundo os judeus, ao por do sol da sexta-feira
e termina 24 horas mais tarde.

Na Idade Media, o espirito antissemita levou o povo a dar


o nome de shabbath (ou «chabá») a reunióes noturnas de feiti-
ceiros. Com efeito, os medievais acreditavam que muitas vezes,
á meia-noite, os feiticeiros e as feiticeiras reunidos ñas monta-
nhas ou nos bosques provocavam, mediante seus rituais, o apa-
recimento de Satanás entre eles. O Maligno mostrava-se-lhes
sob a forma de um bode gigantesco e presidia ás dangas e orgias
rituais. O sussurro popular dizia que em tais reunióes se comia
a carne dos criminosos supliciados bem como os cadáveres de
criangas mortas sem batismo. De tais assembléias só podiam
participar aqueles ou aquetas que, levados pela miseria e o de
sespero ou inflamados pelas paixóes, haviam concluido um pacto
com o demonio, renegado seu batismo e blasfemado as coisas
sagradas. Os membros da assembléia compareciam á orgia
montados em bodes, asnos ou cabos de vassouras. Mais: dizia-
-se também que os mortos saiam de seus túmulos e participa-
vam dos bacanais. Estes geralmente se pro!ongavam até a
aurora. Cessavam, porém, bruscamente e dissipavam-se de sú
bito, caso alguém, por inadvertencia ou por hábito, pronuncias-
se o nome de Deus. Também se esvaeciam imediatamente ao

— 509 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS:* 167/1973

canto do galo; este fazia que se dispersassem todos os fantas


mas e todas as imagens produzidas pela imaginagáo dos mem-
bros da assembléia em delirio. O galo devia evocar entáo a luz,
a mensagem de Cristo, a censura ao pecado (o canto do galo
havia servido de censura ao Apostólo Pedro renegado)...

Muito ligada a esse tipo de religiosidade popular está a


magia negra.

c) O galo c a magia negra. A magia negra é a arle de


realizar prodigios com o auxilio dos espíritos maus ou do de
monio, com o qual muitos iniciados travam um pacto perpetuo.

Aínda em nossos dias no Brasil, como também na Europa,


a magia negra ó um fato, no qual o galo é envolvido. Em tal
arte, porém, nao é tanto o canto do galo que interessa como
meio de espantar os maus espiritos, mas, sim, o sacrificio de
um galo ou de urna galinha. Com efeito, para obter a inter-
vencáo de um espirito superior, os iniciados fornecem, entre
outras, a seguinte receita:

"Tome urna galinha negra que jamáis tenha posto ovo e da qual
nenhum galo aínda se tenha aproximado. Ao apreendé-la, trate de nao a
fazer gritar; em vista disto, vá pegá-la ás onze horas da noi'-e, quando ela
estiver dormlndo; agarre-a pelo pescoco, aportando a este tanto quanto
necessárlo para impedi-la de gritar. A seguir, vá ter a urna encruzilhada
de caminhos; ao toque da mela-nolte, desenhe por térra um circulo com
urna vara de cipreste. Coloque-se no centro do circulo e corte a galinha
em duas partes, pronunciando tres vezes as seguintes palavras: 'Eloim,...
Essaím,... Frugativi,... Appellexl1. Volte-se, depois, para o Oriente, ajoe-
Ihe-se e prolira urna prece. A seguir, vocé fará a grande apelacáo; o
espirito ¡mundo aparecerá, revestido de escaríate, de amarelo e de verde...
Ele pedirá a vocé que Ihe dé as suas ordens, e nada poderá recusar aos
seus desejos".

Assim a galinha negra podia atrair os favores dos espíritos


superiores. O galo negro, por sua vez, dissipava qualquer arti-
manha nociva. Assim, por exemplo, manda o ritual francés do
«Pequeño Alberto» (Petit Albert):

"Se alouém preparou para vocé um maleficio, tsto é, lancou urna


sorte má, vocé pode dissipar esse encantamento e mesmo tazer morrer
aquel» que o produziu.

Para tanto, vocé arranjará um galo negro e Ihe (ara beber tres gotas
de agua benta por um padre que tenha ao menos 60 anos; depois, vocé
suspenderá o galo a urna trave da sua dispensa e lá o detxara durante
tres dias.

— 510 —
O SIMBOLISMO DO GALO £7'

Após este prazo, o galo estará morto. Vocé o pegará pelas patas e
enterrará num aprisco de carnelros, em meló ao estrume, prestando multa
atencfio para que ninguém veja vocé e possa descobrlr o lugar em que-
tiver enterrado o galo. Durante essa operacáo, vocé repetirá tres vezes:
'Caelf et térra, crescite et multiplicamlni; blocar stocarque vade retro.
Faze o mal ao autor do meu mal'.

Gragas a esta slmpliclssima operacao, o malfeltor que Ihe tiver lan


zado urna sorte má, caira doente e deverá morrer num prazo de seis meses,
ou, no máximo, um ano".

Nao é necessário multiplicar os exemplos de emprego do<


galo e da galinha, de cor preta, em passes de magia, visto que
tal uso é freqüente ñas religióes afrobrasileiras e assaz conhe-
cido do nosso público.

Em resumo, vé-se que o galo, na historia das religióes, re


presenta a virilidade ou a vida forte, que se torna vitoriosa da
própria morte. Arauto da luz que ressurge ao fim da noite, o-
galo tornou-se para os cristáos sinal do Cristo ressuscitado e^
mensageiro da ressurreigáo de todos os homens. Na religiosi-
dade popular, o emprego do galo em despachos e receitas má
gicas é tido como benéfico.

Possa, pois, o canto do galo, que os poetas até hoje costu-


mara ouvir e explanar, despertar no público contemporáneo a.
consciéncia de que as trevas e a noite nao nos dizem a palavra
última e definitiva na caminhada desta vida, mas as trevas e a
morte foram vencidas por Aquele que o galo anuncia aos ho
mens todos os dias de madrugada!

A propósito veja-se L. Arnould de Gremilly, «Le coq».


París 1958.
Estéváo Bettencourt O. S. B.

resenha de livros
As origons da Biblia. Subsidios para a leitura da Biblia e a prega-
Cüio, por A. Lápple; traducao de Belchior Comélio da Silva. — Ed.
Vozes, Petrópolis 1973, 135 x 210 mm, 153 pp.

Nota-se crescente interesse pelos estudos bíblicos em nossos ambi


entes católicos; atesta-o o grande número de publicares relativas ao-
assunto, ás quals se acrescenta o estudo ácima referido de tun autor
aiemao que já se tornou conhecido no Brasil atreves de valiosas obras-
traduzidas oportunamente por nossas Editoras.

— 511 —
18 cPERGUNTE E RESPONDEREMOS^ 167/1973

No livro que ora recenseamos. o autor apresenta com notávol


rondsao as conclusoes c hipóteses propostas entre os críticos católicos
a respeito da formacáo dos livros sagrados do Antigo c do Novo Tes
tamento. Certas passagens, resumidas como sao, poderilo, á primeira
vista, desconcertar o leitor que se vá iniciando nos estudos bíblicos;
nssim, por exemplo, a datacáo das epístolas pastorats (1/2 Tim, Ti),
a das epístolas católicas (Tg. 1/2 Pe, 1/2/3 Jo Jud)...; cr. pp.
107-109. 135s. Levcm-sc em conta, porém, os dois seguintes pontos:

1) o autor se move num campo conjetural, em que as hipóteses


tem sua probabilidade oi*a mais ponderosa, ora menos acentuada;
2) A. Lapple em nada se afasta dos principios da sadia exegese
católica; afirma a inspiracáo divina de todos os escritos do Novo Tes
tamento (cí. pp. 85. 136); proíessa a acüo do Espirito Santo na re-
dacüo de qualquer dos escritos sagrados. Lembra, porém, que pesqui
sar a respeito do autor de um livro bíblico, recorrendo a criterios
literarios, nao é contrario a índole inspirada de tal livro; sabemos
tiue os escritores sagrados usaram, por vezes, de pseudónimos — o
uue nao diminui em absoluto o valor o a autoridade de seus escritos;
tais autores íalaram realmente segundo a doutrina do Apostólo ou do
Sabio (SalomSo) cujo nomo elcs usavam. — A. Lapple também re-
conhece que a Revelacao de Deus aos homens se encerrou com a gera-
cao dos Apostólos, de sorte que os escritos do Novo Testamento sao
todos o eco da pregacao dos Apostólos (pouco importa a mao que
redigiu por escrito tal eco).
Importava-nos fixar brevemente estes pontos para auxiliar o leitor
na utilizacao do novo livro de Lapple. É obra de valor, embora sucinta;
destina-se a quem tenha iniciacáo bíblica e conheea as premissas de
exegese que o autor nSo explícita sempre, mas supñe e aplica em sua
■obra.

Circuios Bíblicos, por Carlos Mesters. — Ed. Vozes, Petrópolis


1973, fascículos de 30/40 páginas cada um, 130 x 180 mm.
Freí Carlos Mesters tornouse conhecido entre nos pelo seu intenso
trabalho de dlvulgacao bíblica. Está dando ao público urna serie do
opúsculos que devem inteprar urna colecáo de cinco unidades, cada qual
das quais contendo tres fascículos destinados a círculos bíblicos. Os
temas focalizados por essas cinco unidades sao respectivamente: A
Sabedorla do Povo (Introducao geral na Biblia e SabertoHa do AnUfíO
Testamento). As Parábolas o Sn«-mi>o da Montanha, A Pessoa de Jesús
Cristo, Um novo Céu e urna nova Térra.
O autor tem em mira fomentar a valiosa iniciativa de levar a
Biblia a todo o povo de Deus. PropSe, além de urna visáo geral de
cada um dos cinco temas abordados, roteiros minuciosos e interroga-
c5es para orientar a leitura e o aproíundamento da S. Escritura em
grupos de paróquías, casáis, estudantes etc. O estilo c o vocabulario
de Freí Carlos Mesters íazem eco ao modo de falar da gente mais
simples (ás vezes. de zona rural); o autor recorre a numerosas com-
paracoes. evita termos raros ou dificeis c procura acompanhar estn-
tamente a realidade concreta da vida cotidiana.
A obra assim iniciada já tem dado, o dará, copiosos frutos espi-
rituais despertando nos cristaos o sabor das Escrituras Sagradas; nos
fascículos de Freí Carlos há páginas que abrem perspectivas lucidas
e entusiasmadoras na mente dos leitores.

— 512 —
Seja permitido, porém, íazer a seguinte observacáo: a preocupa-
gao que o autor tem, de su fazer entender pela gente mais simples
torna um tanto uniiaterais (ou mesmo íora de foco) as suas ponde
rales e explicacóes. Estas se voltam quase exclusivamente para as
questdcs pláticas da vida de hoje, procurando elucidá-las á luz da
Biblia; todavía desligam-se, por vezes, do passado ou do ambiente his
tórico em que Jesús íalou e viveu; nao propóem regras de exegese
que possibilitariam o uso mais consciente e científico das Escrituras
Sagradas. Assim os opúsculos de Frei Mesters atendem a grande faixa
do loitores do Brasil; para muitos outros, porém, a mancira como o
autor apresenta os temas bíblicos, poderá parecer insuficiente; ser-
■lhes-ia necessário encontrar urna fundamentado mais científica c
argumentada.

Dizcndo isto, niio intencionamos senáo chamar a atencáo para a


necossidado do niio se exagerar a xpopularizacfio* ou vulgarizacao da
Biblia. O povo <lc Dcus ha de sor educado para comprcender e sabo
rear as riquezas de uma oxegesse mais erudita e esmerada.

O tesouro das parábolas, por L. Cerfaux; tradugáo de Ático Rubini.


Colecáo «A Palavra Viva» n* 3. — Ed. Paulinas Sao Paulo 1973,
110 x 190 mm, 147 pp.

O autor, professor de Exegese Bíblica na Universidade de Louvain,


doixounos varias obras de valor, das quais temos hoje em portugués
interessantc estudo sobre as parábolas do Evangelho. Cerfaux agrupa-
as de modo a ilustrar, mediante o seu comentario, os grandes temas
da presacáo de Jesús: o Reino de Dcus (seu crescimento, suas lutas
a felicidade que ele proporcona), o pecado do homem e a misericordia
do Pai Celeste, a consumacáo da historia (o juízo final e a gloria
celeste).

Os comentarios de Cerfaux destinam-se a um público já um tanto


familiarizado com a Biblia; concisos como sao, supóem no leitor certo
¡.■onhecimento do texto sagrado. Todavía essas páginas nao ficam no
plano da alta erudieüo; tém o intuito concreto de levar o cristáo á
meditacáo o á oracáo. Tal objetivo pode ser fácilmente alcancado por
f|ucm recorra no livro de Cerfaux; esta escrito do maneira clara, pro
funda e altamente inspiradora para quem desoje nutrir a sua vida
espiritual.

Kviiiiffullins qu« Inrnmoclum. ñor A. Pronzato; traducáo do Pe.


Angolo Lucas Caravina. Coloeño «Orarán o aefin». nova serie. n° 12. —
Ed. Paulinas Sao Paulo 1973, 110 x 190 mm. 428 pp.

O autor, jovem sacerdote italiano, percorre os Evangelhos de ponta


a ponta de sorte a por em realce todos os tragos de exigencia e desafio
que eles apresentam ao público. Escreve em tom simples, vivaz e pene-
iranU-, míe realmente' desporta o leitor para uma revisáo de vida e
para a renovacúo do suas atitudes; a fim de fundamentar suas obser-
vacóes. recorre freqüentemente aos documentos do Concilio do Vati
cano II. A sua obra iá nfio é ñs exegese propriamente dita, mas muito
mais do reflexáo sob'e a conduta do cristáo nos tempos atuais desde
que colosada a luz do Evangelho e das diretrizes do Concilio do Vati
cano II.

O livro poderá ser muito útil tanto para a leitura pessoal como
para a roflexAo om grupos.
AS CINCO PALAVRAS MAIS IMPORTANTES

Estou muito satisfeito com vocé!

AS QUATRO PALAVRAS MAIS IMPORTANTES

Qual a sua opiniáo ?

AS TRES PALAVRAS MAIS IMPORTANTES

Fa?a o favor!

AS DUAS PALAVRAS MAIS IMPORTANTES

Muito obligado !

A PALAVRA MENOS IMPORTANTE

EU

Você também pode gostar