Você está na página 1de 4

A

18.03.2009 UM ADEUS PORTUGUÊS


Pedro Lamares Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
Recitou na Soares dos a luz dos ombros pura e a sombra
Reis duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo


à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta para ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
NÃO POSSO ADIAR de uma velha dor

Não posso adiar o amor para outro Não podias ficar nesta cadeira
século onde passo o dia burocrático
não posso o dia-a-dia da miséria
ainda que o grito sufoque na que sobe aos olhos vem às mãos
garganta aos sorrisos
ainda que o ódio estale e crepite e ao amor mal soletrado
arda à estupidez ao desespero sem boca
sob as montanhas cinzentas ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula
Não posso adiar este braço maníaca
que é uma arma de dois gumes amor do modo funcionário de viver
e ódio
Não podias ficar nesta casa comigo
Não posso adiar em trânsito mortal até ao dia sórdido
ainda que a noite pese séculos sobre canino
as costas policial
e a aurora indecisa demore até ao dia que não vem da promessa
não posso adiar para outro século a puríssima da madrugada
minha vida mas da miséria de uma noite gerada
nem o meu amor por um dia igual
nem o meu grito de libertação
Não podias ficar presa comigo
Não posso adiar o coração. à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
de António Ramos Rosa a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Ma tu não mereces esta cidade não


mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira


da cidade onde o amor encontra as
suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um
comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão eterna e lancinante


que vai ser que já é o teu Eu saí da moldura
desaparecimento Deis às aves os meus olhos a beber.
digo-te adeus
e como um adolescente Não me esqueci de nada, mãe.
tropeço de ternura Guardo a tua voz dentro de mim.
por ti. E deixo as rosas.
Boa Noite. Eu vou com as aves.
de Alexandre O'Neill
de Eugénio de Andrade

POEMA À MÃE

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou


O menino adormecido
No fundo dos teus olhos. A DEFESA DO POETA

Tudo porque ignoras Senhores jurados sou um poeta


Que há leitos onde o frio não se um multipétalo uivo um defeito
demora e ando com uma camisa de vento
E noites rumorosas de águas ao contrário do esqueleto
matinais.
Sou um vestíbulo do impossível um
Por isso, às vezes, as palavras que te lápis
digo de armazenado espanto e por fim
São duras, mãe, com a paciência dos versos
E o nosso amor é infeliz. espero viver dentro de mim

Tudo porque perdi as rosas brancas Sou um código o azul de todos


Que apertava junto ao coração (curtido couro de cicatrizes)
No retrato da moldura. uma avaria cantante
na maquineta dos felizes
Se soubesses como ainda amo as
rosas, Senhores banqueiros sois a cidade
Talvez não enchesses as horas de o vosso enfarte serei
pesadelos. não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas Senhores professores que puseste
cresceram, a prémio minha rara edição
Que todo o meu corpo cresceu, de raptar-me em crianças que salvo
E até o meu coração do incêndio da vossa lição
Ficou enorme, mãe!
Senhores tiranos que do baralho
Olha - queres ouvir-me? - de em pó volverdes sois os reis
Às vezes ainda sou o menino sou um poeta jogo-me aos dados
Que adormeceu nos teus olhos; ganho as paisagens que não vereis

Ainda aperto contra o coração Senhores heróis até aos dentes


Rosas tão brancas puro exercício de ninguém
Como as que tens na moldura; minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa Senhores três quartos cinco e sete
No meio do laranjal... que medo vos pôs na ordem?
que pavor fechou o leque
Mas - tu sabes - a noite é enorme, da vossa diferença enquanto homem?
E todo o meu corpo cresceu.
Senhores juízes que não molhais Amo os abismos, as torrentes, os
a pena na tinta da natureza desertos...
não apredejeis meu pássaro
sem que ele canta minha defesa Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Sou uma imprudência a mesa posta Tendes pátria, tendes tectos,
de um verso onde o possa escrever E tendes regras, e tratados, e
ó subalimentados do sonho! filósofos, e sábios...
a poesia é para comer. Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na
de Natália Correia noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos
nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais
ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram
mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem
acabo,
CÂNTICO NEGRO Nasci do amor que há entre Deus e o
Diabo.

"Vem por aqui" - dizem-me alguns Ah, que ninguém me de piedosas


com os olhos doces intenções,
Estendo-me os braços, e seguros Ninguém me diga: "vem por aqui"!
De que seria bom que eu os ouvisse A minha vida é um vendaval que se
Quando me dizem: "vem por aqui!" soltou,
Eu olhos-os com os olhos lassos, É uma onda que se levantou,
(Há, nos olhos meus, ironias e É um átomo a mais que se animou...
cansaços) Não sei por onde vou,
E cruzo os braços, Não sei para onde vou
E nunca vou por ali... Sei que não vou por aí!
A minha glória é esta:
Criar desumanidades! de José Régio
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-
vontade
Com que rasguei o ventre À minha
mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de
vós responde
Porque me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos


lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés
sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na TODOS OS HOMENS SÃO MARICAS
areia inexplorada! QUANDO ESTÃO COM FEBRE
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós Pachos na testa, terço na mão


Que me dareis impulsos, ferramentas Uma botija, chá de limão
e coragem Zaragatoas, vinho com mel
Para eu derrubar os meus Três aspirinas, creme na pele
obstáculos?... Grito de medo, chamo a mulher
Corre, nas vossas veias, sangue velho Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer
dos avós, Mede-me a febre, olha-me a goela
E vós amais o que é fácil! Cala os miúdos, fecha a janela
Eu amo o Longe e a Miragem, Não quero canja, nem salada
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada e não:
Se tu sonhasses, como me sinto "Com o suor dos outros ganharás o
Já vejo a morte, nunca te minto pão"
Já vejo o inferno, chamas, diabos
Anjos estranhos, cornos e rabos Ó vendilhões do templo
Vejo os demónios, nas suas danças Ó construtores
Tigres sem listras, bodes de tranças Das grandes estátuas balofas e
Choros de coruja, risos de grilo pesadas
Ai Lurdes, Lurdes, que foi aquilo! Ó cheios de devoção e de proveito
Não é a chuva, no meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo Perdoai-lhes Senhor
Não é o vento, a cirandar Porque eles sabem o que fazem.
Nem as vozes, que vêm do mar
Não é o pingo de uma torneira de Sophia de Mello Breyner
Põe-me a santinha, à cabeceira
Compõe-me a colcha, fala ao prior
Pousa o Jesus, no cobertor
Chama o doutor, passa a chamada FRASEADOR
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada
Faz-me tisanas, e pão-de-ló
Não te levantes, que fico só Hoje eu completei oitenta e cinco
Aqui sozinho a apodrecer anos. O poeta nasceu de treze.
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer Naquela ocasião escrevi uma carta
aos meus pais, que moravam na
de António Lobo Antunes fazenda, contando que eu já decidira
o que queria ser no meu futuro. Que
eu não queria ser doutor. Nem doutor
de curar nem doutor de fazer casa
nem doutor de medir terras. Que eu
queria era ser fraseador. Meu pai
ficou meio vago depois de ler a carta.
Minha mãe inclinou a cabeça. Eu
queria ser fraseador e não doutor.
Então, o meu irmão mais velho
perguntou: mas esse tal de fraseador
bota mantimento em casa? Eu não
queria ser doutor, eu só queria ser
fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se
fraseador não bota mantimento em
casa, nós temos que botar uma
enxada na mão desse menino pra ele
deixar de variar. A mãe baixou a
cabeça um pouco mais. O pai
continuou meio vago. Mas não botou
AS PESSOAS SENSÍVEIS enxada.

de Manoel de Barros
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira


À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o
corpo
Porque não tinha outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinha outra

"Ganharás o pão com o suor do teu


rosto"
Assim nos foi imposto

Você também pode gostar