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Módulo 01 - Aula Inaugural – Professor Benedito Rodrigues dos Santos1

Aula Inaugural 12
Gostaria de dar as boas-vindas a todos os professores e professoras que estão
fazendo este curso e dizer que para mim, falar do Estatuto da Criança e do
Adolescente é parte da minha própria trajetória. Eu tenho uma vinculação com o
movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil que, eu diria,
é uma vinculação epidérmica. Por isso mesmo eu sou muito apaixonado pelo que nós
estamos construindo aqui neste país.
Visões Históricas da Infância
Antes de falar da emergência do movimento de defesa dos direitos da criança
no Brasil, e mesmo da emergência do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou como
a sociedade brasileira chegou a um amadurecimento histórico de poder produzir o
Estatuto da Criança e do Adolescente, eu gostaria de falar de três grandes correntes,
maneiras, ou modos de governar ou de criar e educar as crianças na sociedade
brasileira, exatamente para dar sentido à emergência do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Segundo as legislações e as políticas traçadas no país, entre 1500 a 1850
predominou o modo de governar que nós denominamos de Soberania Paterna. Os
pais eram absolutos senhores da criança e do adolescente. A opinião da criança e do
adolescente não era levada em conta. Os pais podiam, neste período, pôr e dispor das
crianças e adolescentes. Podiam vendê-las, colocá-las no trabalho, arranjar
casamentos. Uma série de atos em que a criança era vista como um objeto e como
uma propriedade da família.
A partir de 1850, vai se constituindo neste país um outro modo de governar a
criança, denominado Bem-Estar da Criança. O Estado brasileiro, como Estado

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Benedito Rodrigues dos Santos é secretário-executivo do Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (CONANDA). É doutor em Antropologia e mestre em Ciências
Sociais, especializado nas temáticas da infância, adolescência e família.
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Foram feitas apenas as adaptações necessárias à transposição do texto falado para o texto
escrito.
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moderno, começa a dar sinais de que a criança era importante como cidadão,
querendo, também, partilhar com a família a tarefa de educar as crianças para esta
cidadania, para esta perspectiva do Estado-Nação.
O Estado se preocupa com o bem estar da criança e estabelece um conjunto
de medidas para proteger a criança, para colocá-la a salvo de riscos que a sociedade
estava oferecendo. Mas nesta fase, quem ainda determinava o que deveria ser o bem
estar da criança são os próprios adultos. Ainda neste momento, pouco da voz da
criança era ouvida, ou pouco da opinião dela era considerada.
Este movimento durou de 1850 até 1970, nos países chamados desenvolvidos,
nos países ocidentais modernos. No Brasil ele durou um pouco mais, até 1980, com o
final da ditadura. O Estado brasileiro desenvolveu todo um aparato para cuidar da
criança. Estabeleceu princípios para a sua educação básica, a obrigatoriedade do
ensino etc. Mas ainda aqui, eu insisto, não era o ponto de vista da criança que estava
sendo considerado, mas o ponto de visto da sociedade.
A partir de 1970, surgem os movimentos de emancipação da mulher, os
movimentos de igualdade entre homens e mulheres, entre adultos e crianças ou de
liberdades civis. Nos Estados Unidos e na Europa também surge um movimento em
favor dos direitos da criança e do adolescente.
Nós tivemos momentos interessantes da construção da história do movimento
de defesa da criança no mundo. Por exemplo, nós tivemos o movimento mais
libertário, americano, que defendia toda a liberdade para a criança, considerando que
o fato de você criar a criança confinada, na infância, era um prejuízo para ela própria.
Ela perdia, ao invés de ganhar com isso.
Gradativamente, o movimento que havia sido iniciado no começo do século XX
vai tomando corpo internacional, com declarações em favor dos direitos da criança e
do adolescente. A primeira Declaração Universal dos Direitos da Criança foi
estabelecida ao final da Primeira Guerra Mundial. Era a declaração de 1924, que dizia
que a criança devia ser prioridade em momentos de guerra, e devia ser colocada a
salvo das condições adversas que a guerra provocava. De 1924 para cá, nós tivemos
outros marcos históricos, como a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de
1959 ou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989.
Foi se constituindo uma idéia de que a criança tem direito de ter direitos, porém
esta possibilidade, na verdade, só foi dada agora, nas últimas décadas do século XX.
Na verdade toda a história da civilização é a história de que a criança não tem querer,
que ela não tem vontade própria e que ela não tem direitos, que ela só tem deveres.
Quando muitos professores dizem que a gente deve falar de direitos
conjugados com deveres, eu gostaria de aproveitar esta minha fala, para dizer para os
professores o seguinte: as crianças só tiveram, até bem recentemente, deveres. Pela
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primeira vez na história da humanidade as crianças adquirem o direito de ter direitos.
Isso é tão recente que não tem nem vinte anos. É uma história muito recente.
Nós inauguramos em 1970, nos países desenvolvidos, e em 1980 no Brasil,
depois da nossa ditadura militar, um novo modo de governar crianças, chamado o
modo dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Fazendo um pouco de dialética, e utilizando a mudança dos movimentos
culturais, a gente pode afirmar o seguinte: Enquanto o modo da Soberania Paterna
está bastante residual e praticamente inexistente hoje, graças à luta da sociedade
para transformar este tipo de mentalidade, o modo dominante continua sendo o Bem-
Estar da Criança. Aquele modo em que existe uma preocupação da sociedade com a
criança, mas não em função do bem estar da criança, mas em função do bem estar da
própria sociedade. Este continua sendo o modo vigente na sociedade brasileira, e esta
emergindo agora, o modo dos Direitos da Criança e do Adolescente. Ele é muito
recente para produzir ainda efeitos em escala na sociedade. Por isso é que existem
muitas pessoas que dizem que esta questão do direito da criança de ter direitos, pode
levar à perda do controle. Este é o grande medo. Mas nós estamos percebendo, muito
pelo contrário, que o direito de ter direitos mostra, e a nova geração do Estatuto da
Criança e do Adolescente está ai para afirmar isso, que aquelas crianças que
nasceram com a concepção de direitos e foram educadas nesta nova perspectiva,
aprenderam que o direito delas está imediatamente vinculado à responsabilidade
social delas e ao respeito aos direitos dos outros.
Eu acho que se a sociedade que passa de um sistema completamente
autoritário em relação às crianças e adolescentes muda a perspectiva delas, é lógico
que a criança e o adolescente só vão aprender no exercício concreto. Não tem outra
forma da criança aprender sobre os direitos dela, se não exercitar estes direitos. Não
existe outra maneira da criança aprender sobre os direitos, se os adultos não ensiná-
las como ter direitos. Esta é uma missão que está aqui, posta, e este modelo vai
emergindo em toda a sociedade.
Aula Inaugural 2
1980 – 1990 – Uma Construção Coletiva
Colocado este contexto dos modos de governar crianças, o movimento de
defesa dos direitos da criança foi emergindo no Brasil depois dos anos 80. A história
da construção deste movimento de defesa de direitos coincide, em grande medida, por
vários anos, com a construção da história do Movimento Nacional dos Meninos e
Meninas de Rua (MNMMR).
Nós tivemos aqui no país, no início dos anos 80, a proliferação das chamadas
Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos e Meninas de Rua. Estas
novas experiências traziam uma crítica à institucionalização da criança, através da
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FEBEM e da FUNABEM, e por outro lado também criticavam as formas clássicas, ou
tradicionais, que a escola estava utilizando na educação de crianças e adolescentes.
A presença de um grande conjunto de meninos de rua nas ruas desafiava as
instituições de uma perspectiva mais formal. A família autoritária, a escola também
autoritária, que não abria espaço para a participação de crianças, ou as “instituições
totais”. A presença da criança na rua virou uma espécie de testemunho da falência de
várias organizações, e um indicativo de que nós deveríamos buscar metodologias
alternativas para cuidar deste menino.
Eu me lembro muito bem que o movimento tinha dois princípios muito claros,
nesse período de 1981 a 1985 que eram: ‘devemos trabalhar com a criança no
contexto em que ela está inserida’, e ‘a criança deve ser sujeito da história, sujeito da
sua própria pedagogia’. Nesta época o Fundo das Nações Unidas - UNICEF e o
Governo Federal apoiaram o projeto chamado Alternativas Comunitárias de
Atendimento a Meninos e Meninas de Rua, que começou a mapear estas experiências
inovadoras em todo o país e trazê-las para uma troca de experiência. Na medida em
que seminários e a mobilização iam acontecendo, foram formadas comissões e grupos
locais deste movimento. Estes grupos foram se multiplicando no país, na perspectiva
de que havia um indicativo, ali, de se construir uma nova proposta, uma nova maneira
de se olhar para criança de rua, uma nova forma de educá-la.
Estas comissões, que foram criadas, começaram a se constituir em
movimentos e se organizarem em âmbito nacional. Em 1981 nós tivemos uma fase de
disseminação das chamadas Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos e
Meninas de Rua. Depois desta fase nós tivemos, de 1986 a 1990, a constituição
dessas organizações em redes nacionais.
O Movimento de Meninos e Meninas de Rua se transformou num movimento
nacional, a Pastoral do Menor, que já existia no país, se transformou numa rede
nacional da pastoral, foram criadas outras organizações nacionais, e estas
organizações começaram a trocar experiências entre elas e a descobrir que elas
tinham alguma coisa em comum, e que elas deviam se reunir para enfrentar o
problema da violência contra as crianças no país.
Nesse momento da história do país, e nós estamos falando de 1985 e 1986,
era muito visível a violência contra as crianças na rua, e a violência contra as crianças
nas instituições tipo FEBEM ou FUNABEM. A visibilidade que os meninos de rua
ganharam foi, na verdade, o que levou o país a se preocupar com a infância pobre e a
perguntar o que é que estava acontecendo com as nossas crianças.
O Movimento de Meninos de Rua estava neste processo de articulação
nacional e ele já começou a se articular com um diferencial, que foi trazer as crianças
e adolescentes para o movimento. O Movimento de Meninos de Rua foi oficialmente
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constituído em 1985, e em 1986 fez o Primeiro Encontro Nacional de Meninos e
Meninas de Rua, em que, pela primeira vez na história deste país, puderam eles
mesmos (os próprios meninos e meninas de rua), se dirigir às autoridades brasileiras,
se dirigir à imprensa dizendo: “nós somos violentados, nos queremos ser ouvidos”.
Justamente neste contexto, em que o Movimento estava trazendo a
participação das crianças, inclusive crianças muito vulnerabilizadas, é que também se
colocou na história do país a possibilidade, com o final da ditadura, de se reformular a
própria Constituição Federal
Iniciou-se, nos anos de 85, 86 e 87, um grande Movimento Nacional Pró-
Constituinte. Eu me lembro aqui de um dado curioso para o movimento da criança
daquela época. O Movimento de Meninos de Rua já tinha trazido a articulação
nacional e colocado a perspectiva de que a criança de rua é um sujeito de sua própria
história, um sujeito de sua própria pedagogia, e era um sujeito político capaz de
também defender os seus próprios direitos. Esta era uma grande novidade para a
nação. A nação não estava acostumada a ouvir isso e demorou-se um certo tempo
para que esta idéia pudesse ser assimilada por muitos segmentos da sociedade.
Nesse momento, em que o movimento estava constituindo a criança como
sujeito político, se colocou no país a possibilidade de se interferir no processo
constituinte. Eu me lembro que o Movimento (de Meninos e Meninas de Rua), travou
uma luta, uma discussão interna muito grande, sobre se deveria ou não participar do
processo de mudança das leis do país. E porque isso? Porque naquele momento
muitos de nós éramos descrentes em relação à lei, pela forma que a lei era produzida,
de forma discriminatória. Quase ninguém participava da produção da lei e as leis eram
implementadas de forma discricionária. Elas valiam pra uns e não valiam para outros.
Por isso muitos educadores diziam: “porque que eu vou deixar de estar com o menino,
aqui na rua para participar de um processo constituinte, de mudança de lei? Lei nesse
país não vinga”.
Eu acho que este momento foi muito interessante, porque foi um momento em
que nós tivemos que nos convencer de que deveríamos participar do processo de
mudança, da constituinte. Este era um momento pedagógico em que nós
aprenderíamos sobre a nossa própria cidadania, e sobre a cidadania das crianças.
Nós também tínhamos assessores que diziam que o que não está na lei não pode ser
arguido em favor da criança, então era importante que se colocasse na lei os direitos
da criança e do adolescente. Naquela época, a gente ainda falava muito dos ‘direitos
do menor’, foi nesse momento que se deu a transição do ‘direito do menor’ para o
‘direito da criança e do adolescente’.
Vencido este debate sobre se a gente deveria ou não participar do processo de
mudança legal, o Movimento entrou e fez uma investida muito grande na mudança do

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cenário, junto com os outros atores nacionais. Nós fizemos um movimento para incluir
os artigos 227 e 228 na Constituição Federal, através de duas emendas.
Nós participamos de dois movimentos, um chamado Criança e Constituinte,
articulado com a forte presença do MEC, em várias partes do país. As Comissões
Criança e Constituinte tinham um foco mais na primeira infância, de zero a seis, e nós
começamos participando deste movimento. Depois de certo momento, a gente
acreditou que precisava pensar um pouco nas crianças acima de seis anos, de seis a
doze, quinze, no próprio adolescente, e constituímos uma nova campanha que se
chamou Criança Prioridade Nacional. Que congregou, naquele momento, várias
organizações que tinham tentado interferir na constituição individualmente, mas não
tinham conseguido produzir grandes bons resultados.
Muitos podem, até hoje, comparar esta proposta com o que está no texto da
Constituição Nacional e vão verificar que existem grades semelhanças com o que nós
escrevemos. A Criança Prioridade Nacional foi colocada no movimento da sociedade
brasileira e ganhou uma adesão enorme. Ganhou adesão tão grande que nós
conseguimos reunir e apresentar esta emenda com mais de um milhão e 300 mil
assinaturas no país. Foi um movimento bonito e eu gosto muito de me lembrar dessa
trajetória toda de inclusão.
Este movimento todo foi muito bem sucedido em inserir os direitos da criança e
do adolescente na Constituição Federal. Terminada esta inserção, nós pensávamos
que os artigos 227 e 228 necessitavam ser regulamentados, para ter mais força.
Neste momento nós já tínhamos constituído o Fórum Nacional de Defesa dos
Direitos da Criança e do Adolescente e o Fórum Nacional começou a trabalhar numa
perspectiva da regulamentação da Constituição Federal, que se chamava Normas
Gerais para a Infância e Adolescência. O Ministério Público de São Paulo também
começou uma iniciativa, e mais tarde nós ficamos sabendo que a própria FUNABEM, a
assessoria jurídica da FUNABEM, tinha iniciado um novo movimento de normatizar.
Nessa articulação, nesse movimento todo de saber o que fazer, nós
conseguimos articular todos os segmentos interessados em regulamentar o artigo 227
e constituímos um grupo de redação, que era um grupo pequeno, formado por
pessoas que tinham a prática social, alguns juristas, e consultores do UNICEF para
propor este projeto ao Congresso Nacional.
Nós fizemos cerca de cinco versões do que foi, gradativamente, se chamando
Estatuto da Criança e do Adolescente. Nestas cinco versões o processo de
participação na feitura do estatuto foi muito bonito também, primeiro porque as
próprias crianças participaram da elaboração do ECA, sobretudo as crianças que
estavam envolvidas com as organizações que estavam presentes nos grupos, no
Movimento Pró-Constituinte.
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Como elas participavam? Dizendo o que elas queriam e o que elas não
queriam. “Como é que você quer que seja escola?” “Como é que você quer que seja a
família, como é que você quer que seja o espaço da rua?” E a partir daquela
discussão, a gente trazia e ia transformando aquilo em proposta de lei.
Nós que éramos adultos, não tínhamos experiência nenhuma de participar de
produção da lei, mas nós decidimos que seria importante participar. Muito da nossa
primeira ação era dizer o que a gente não queria, mas a gente não sabia expressar
isso na forma de lei. Foi um aprendizado muito bonito. As crianças participaram, as
versões iam e vinham, e a gente fazia versões mais populares, o que hoje a gente
chama de versão amigável.
Nós decidimos apresentar a mesma versão nas duas casas, uma no Senado e
a outra na Câmara dos Deputados. No senado acolheu a nossa proposta o senador
Ronam Tito, que era do PMDB naquela época e era muito sensível em relação à
questão da criança. Na câmara acolheu a nossa proposta o deputado Nelson Aguiar, a
deputada Benedita da Silva e, mais tarde, se incorporou a este movimento a deputada
Rita Camata.
A proposta do Senado tramitou muito mais rápido do que a da Câmara, mas
aconteceu um problema no Senado, que foi muito difícil. O Senado fez uma
intervenção tão drástica na nossa proposta de Estatuto que, quando ele chegou à
Câmara, a gente não reconhecia o nosso anteprojeto, que foi apresentado como um
projeto da sociedade civil.
Foi bonito também que tanto o Nelson Aguiar, como o Ronam Tito, quando eles
receberam o projeto eles disseram: “eu sou um senador privilegiado, eu sou um
deputado privilegiado por receber nesse primeiro mandato o exercício mais completo
de cidadania deste país que é a população participando da produção da lei”. Mas
assim, mesmo, do Senado para a Câmara houve muito prejuízo da proposta, porém,
com a mobilização nacional, e eu me lembro aqui de detalhes, como de eu mesmo ter
passado a noite inteira fazendo emendas de substituição, de resgate de proposta e de
pedir assinatura de parlamentares, foi retomada a proposta original.
A sociedade estava tão mobilizada que se a comissão especial que avaliou o
Estatuto cancelasse uma reunião, já tinha “uma grita” geral no país. Eram telegramas,
todo mundo mandando (telegramas), todo mundo acompanhando.
Falando deste lobby para aprovar o ECA, um dos lobby mais bonitos que eu
presenciei e eu até ajudei. Eu era coordenador nacional do Movimento de Meninos e
Meninas de Rua, e ajudei a montar esta proposta. Era o II Encontro Nacional de
Meninos e Meninas de Rua, com oitocentas e cinqüenta crianças aqui do país. Havia
um certo consentimento do Congresso Nacional sobre a entrada das crianças no
Congresso, mas no processo de descida, na caminhada nossa do estádio aqui em
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Brasília, do Ginásio Nilson Nelson, para o Congresso Nacional, uma marcha pelos
direitos das próprias crianças, a presidência da Câmera decidiu cancelar o evento. A
idéia era que os meninos entrassem no congresso, ocupassem as cadeiras dos
deputados e votassem a lei, o próprio Estatuto.
Mas quando eles refluíram da proposta, nós firmamos, e entramos com as
crianças e adolescentes no plenário da Câmara. As crianças sentaram nas cadeiras
dos deputados, sentaram na presidência da mesa, abriram sessão, fizeram discursos
a favor e disseram simbolicamente para a nação: “Nós estamos votando a nossa lei,
agora faltam vocês, deputados, cumprirem o papel de vocês”.
Então este momento de mobilização das crianças foi muito bonito e ele teve
repercussão muito grande. O Estatuto foi aprovado em 1990, por unanimidade, não
teve um voto contrário, e a partir daí, a partir de 1990, nós iniciamos uma nova fase
desse processo aqui no país, que é: “a lei está ai, agora falta implementar, falta
cumprir”. E a sociedade, que se mobilizou para aprovar o Estatuto, tem sido sábia, em
também lutar pela sua implementação.
Agora nós iniciamos, de 90 para cá um novo momento de implementação da
lei.
Aula Inaugural 3
A Implementação do ECA e o Sistema de Garantias
De 1990 para cá, tem sido uma fase de implementação do Estatuto ou de
institucionalização dos mecanismos que o Estatuto criou para fazer transformar esta
lei do papel para a realidade.
O Estatuto apostou muito no chamado Sistema de Garantias de Direitos da
Criança e do Adolescente. São aqueles mecanismos sociais que buscam zelar pelo
cumprimento do direito da criança e onde, mesmo as crianças, podem reivindicar seus
próprios direitos.
O Sistema de Garantias que nós chamamos aqui no sentido mais restrito do
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termo , são a chamada Justiça Juvenil, onde temos os Juízes da Infância e da
Juventude; o Ministério Público, onde existem as Coordenadorias da Infância e
Juventude; são as Defensorias Públicas, onde temos advogados colocados à serviço.

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Segundo a Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o
Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e
integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de
instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle
para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal,
Estadual, Distrital e Municipal.
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A este conjunto já existente de instituições de garantias de direitos, foram
acrescentadas duas novas instituições, que passaram também a zelar, pelos direitos
da criança e do adolescente: uma foram os Conselhos de Direitos
Estes Conselhos de Direitos são organismos paritários, entre governos e
sociedade4, e o papel deles é formular políticas para a infância e adolescência do país.
Através dos Conselhos de Direitos, nós conseguimos um feito histórico, de mudança
de gestão, de mudança na forma de fazer política para a infância no país. A
comunidade nunca participava. A partir dos Conselhos de Direitos da Criança e do
Adolescente (CMDCA), a comunidade participa, e participa de uma forma organizada,
dentro do aparelho de Estado. A sociedade organizada também se sente parte do
próprio Estado.
Os Conselhos de Direitos hoje, para as pessoas terem uma idéia, nós temos
cerca de 5.700 municípios no Brasil e nós temos conselhos de direitos em 5.100
municípios. Se você computa que cada conselho tem uma média de 10 conselheiros,
nós temos ai uma média de 50 mil conselheiros no país.
A outra instituição que foi criada e agregada à estrutura do Estado brasileiro
para defender a criança foram os Conselhos Tutelares. Os Conselhos Tutelares
operam numa lógica um pouco diferente do Conselho de Direitos. Conselhos de
Direitos e Conselhos Tutelares são muito diferentes, são diferenciados.
Os Conselho Tutelares são conselhos eleitos pela própria comunidade. São
cinco membros cada um e cada cidade deve ter, no mínimo, um; mas pode ter mais do
que um, dependendo da população, do nível de violação de direitos da criança e do
adolescente daquela cidade (entre outras coisas). Mas os Conselhos Tutelares têm
um papel importante. Eles foram criados para zelas pelos direitos das crianças com
direitos ameaçados ou violados, crianças com vulnerabilidade social.
Os Conselhos Tutelares não são polícia da infância, muito pelo contrário, no
momento em que nós concebemos o Estatuto da Criança nós pensávamos muito nos
Conselhos Tutelares como o PROCON da criança, onde a criança vai reivindicar os
seus direitos. O papel do Conselho Tutelar é proteger a criança, proteger os direitos da
criança e do adolescente. Eles aplicam medidas à criança, ao adolescente e aos pais.
Estes novos atores são muito importantes. Hoje nós temos cerca de cinco mil
Conselhos Tutelares no país, vezes cinco conselheiros em cada um destes, nós temos
25 mil pessoas.
Nós temos hoje um contingente aproximado de 75 mil conselheiros neste país.
Se somarmos o Ministério Público; os funcionários do Governo, do Estado, da

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Obrigatoriamente, metade dos membros representa o Poder Público e metade representa a
Sociedade Civil Organizada.
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prefeitura trabalhando na área da infância; se somarmos todos os voluntários de
programas, de ONGs, nós temos, no país o que os especialistas das Nações Unidas
chamam da maior mobilização, na face da terra, em favor dos direitos da criança e do
adolescente. Esta rede de Conselhos Tutelares e de Direitos forma uma rede sem
igual no mundo inteiro. A única é a nossa.
Por isso, com tantas pessoas trabalhando no cotidiano pra construir o direito da
criança a ter direito, para construir este projeto da criança sujeito de direitos, por esta
construção toda, a realidade vem mudando. Estes conselhos têm gerado políticas de
defesa das crianças e hoje a gente pode dizer que o Brasil, depois do Estatuto da
Criança e do Adolescente, é um país um pouco melhor para as nossas crianças
viverem. Isto, com certeza, a gente pode afirmar.
Fruto dessa mobilização, fruto desse investimento social massivo,
gradativamente os governos que tem maior vontade política vão implementando estas
propostas, e a situação da criança vai, gradativamente, mudando.
A Criação de uma Cultura de Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes
Nós precisamos trazer para este movimento, de uma forma mais intensa, os
professores. Repetindo o que eu disse no início, não existe forma das crianças
aprenderem direitos, aprenderem a ter direitos, a respeitar direitos, se não lhes for
ensinado no espaço da casa e da escola.
Nós estamos convidando aqui os professores para ter um exercício de
cidadania, mais do que o ensino formal dos direitos nós estamos chamando aqui,
neste curso, convidando os professores a terem um exercício de cidadania com as
criança e adolescentes do nosso país.
Se eu pudesse fazer uma espécie de “minha culpa” hoje ou pudesse voltar
atrás no movimento dos direitos da criança e do adolescente, e fazer alguma coisa
diferente, com certeza eu gostaria de um maior envolvimento dos professores e dos
pais na elaboração do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.
O grupo que propôs o Estatuto, o movimento, teve muito pouca representação
dos professores, e os professores são vitais para a criação dessa cultura de cidadania
de crianças e de adolescentes. Eu acho que cultura depende da cotidianidade, de
diariamente viver os direitos. Por isso que o Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente, o movimento de defesa dos direitos da criança, e mesmo
os setores de governo viram com muito bons olhos a Lei 11.525/07, que determina o
ensino dos direitos da criança no ensino fundamental.
Dessa maneira, nesse novo formato agora, aproveitando o ensejo de
implementar esta lei, nós temos oportunidade de recriar o movimento de defesa dos

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direitos da criança e do adolescente, incluindo dois atores fundamentais que estão
presentes na comunidade escolar: os professores e os pais.
Sem vocês, sem os professores, sem os pais entendendo a importância de a
criança ter direitos e que ter direitos significa ter responsabilidades sociais, e que pela
primeira vez na história da humanidade as crianças não só têm responsabilidades,
elas também têm direitos, que a gente pode mudar a história desse país. Criar uma
sociedade muito mais democrática, numa relação mais igualitária entre adultos e
crianças.
Eu acredito que só haverá democracia completa nesse país se
democratizarmos as relações entre adultos e crianças. Sem uma democracia, sem
uma igualdade das relações, sem as crianças serem vistas como sujeitos de direitos,
sem elas serem tratadas e respeitadas como seres em condição peculiar de
desenvolvimento, nós não teremos democracia completa. Por isso eu acredito que
nesse novo processo que nós estamos propondo agora através deste curso, que mais
que um curso, como eu disse antes, é um exercício de cidadania, eu acredito que os
professores terão uma possibilidade de interação muito grande com os Conselhos de
Direitos e Tutelares, e é nesse sentido que nós gostaríamos de convidar a todos para,
a partir de agora, escrever a próxima etapa dos direitos da criança e do adolescente,
os próximos vinte anos do ECA.

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