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GERALDO PRADO Dioco MALAN Goordenadores PROCESSO PENAL E DEMOCRACIA: Estudos em Homenagem aos 20 Anos da Constituicaéo da Reptiblica de 1988 EprTora LuMEN Juris Rio de Janeiro 2009 Um Devido Processo Legal (Constitucional) é Incompativel com o Sistema do CPP, de Todo Inquisitorial* Jacinto Nelson de Miranda Coutinho“ 1. Introdugéo Ha sempre coisas nao ditas acompanhando o que se diz e podem ser elas as mais significativas caso se queira compreender, de fato, 0 que esté por tras dos discursos faceis que dominam o cendrio das reformas do Cédigo de Processo Penal brasileiro. Tratam-se, como se sabe, de tentativas de reformas parciais, algumas absurdas, outras incongruentes, todas lotadas de boas intengGes e poucas perspectivas de que venham a vingar, mormente naquilo ao qual se propdem como solugées salvadoras. Com projetos de lei tramitando no Congresso Nacional ha algum tempo, algumas acabam de se concretizar, como foi o caso das Leis ns 10,689 e 10.690, ambas san- cionadas em 9 de junho de 2008 e publicadas no dia seguinte, alterando, respectiva- mente, 0 procedimento do Tribunal do Juri e a matéria relativa & prova, com prazo de vacatio legis de 60 (sessenta) dias da publicagao, ou seja, com entrada em vigor em 10 de agosto de 2008. © que se tem tentado fazer, em primeiro lugar (mas com as devidas excegdes importantes como a simplificagao dos quesitos no procedimento do Jtiri, hoje quase uma balbiirdia), sio mudancas para tudo permanecer como sempre esteve, cumprin- do 0 discurso de I] Gattopardo, no romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Se vogliamo che tutto rimanga com’é, bisogna che tutto cambi"; em segundo lugar — 0 que é pior ~ tudo vem sendo conduzido sob a égide do discurso ficil da celeridade, ‘Com algumas alteragées, o presente texto foi usado em conferéncia proferida no Congresso “Constituigdo e Process: a contribuigio do Processo 20 Constitucionalismo Democrtico brasileiro”, promovido pelo Instituto de Hermenéutica Juridica (IHJ/MG) e pela Editora Del Rey, Belo Horizonte, em 26,06.08, com 0 titulo “A Contribuigio da Constituigdo Democritica ao Processo Penal Inqusitdrio Brasileiro”. * Professor Titular de Direto Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Parand Especialistaem Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR), Doutor (Universiti degli Studi di Roma “La Sapienza"). Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Parané. Coordenador do Nicleo de Direito e Psicandlise do Programa de Pés-graduago em Direito da UFPR. Conselheico Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Parand. Agradeco a ajuda inestimivel do prof. André Giamberardino, parceiro de idéas e portador de uma posturaideoldgica invejével em tem- pos sombrios. 253 Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que adquire, no processo penal, fei¢ao por demais perigosa aos direitos fundamen- tais (a comecar pelo devido processo legal), restando, em ultima ratio, por ser ape- nas uma palavra sutil no lugar de punitivismo e repressio e, portanto, no mais das vezes, indo de encontro aos principios e regras constitucionais. 2. f preciso mudar o sistema Quando 0 assunto é reforma, o primeiro ponto é o fundamental porque trata do mticleo dos problemas: é preciso manter 0 foco no que hé de ser reformado, fugindo- se &s questées intra-sisteméticas para se reconhecer que o problema estd no préprio sistema, 0 que se nao atinge com reformas parciais e, desde este ponto de vista, meros. remendbs. Se é assim, qualquer reforma deve ser global e incidente sobre todo ele, bastando recordar a origem fascista do Cédigo de Processo Penal brasileiro (Decreto- Lei n® 3.689, de 3 de outubro de 1941), e seu absoluto descompasso para com a atual Constituigao da Republica, democraticamente promulgada em 5 de outubro de 1988.1 Um devido processo legal (constitucional) é incompativel com o sistema do CPP, de todo inquisitorial. Portanto, nao recepcionado, 0 que jé deveria ter sido declarado se se tivesse “vergonha” (como diziam os antigos, mas nao ultrapassados), mesmo em tempos bicudos de neoliberalismo e consumo da ética. Para lembrar, vale a nogao de sistema processual, imprescindivel mas muito descurada. E ela, como se sabe, decorrente da posigao de Kant (“conjunto de elemen- tos sob uma idéia tinica”),? a qual sé pode ser bem compreendida através do concei- to de principio unificador, pensado como motivo conceitual sobre 0(s) qual(ais) funda-se a teoria geral do processo penal, podendo estar positivado (na lei) ou nao. Como ontolégico (ou unificador), principio é um mito, ou seja, a palavra que é dita no lugar daquilo que, se existir, no pode ser dito, dado nao se ter linguagem para tanto, tudo no sentido da idéia tinica de Kant. Por tal via se vé que a diferenciacao dos sistemas processuais entre acusatério ou inquisitdrio far-se-A através, antes de tudo, de tal principio, determinado, aqui, pelo critério referente a gestéo da prova.3 Ora, se 0 processo tem por finalidade, entre outras ~ mas principalmente — 0 acerta- mento de um caso penal apés a reconstituigio de um fato pretérito, o crime, mor- mente através da instrucao probatéria, é a gestao da prova e a forma pela qual ela é realizada que identifica o principio unificador. 1 Sobre tal descompasso € a necesséria conformidade do processo penal frente & CR, v, PRADO, Geraldo. Sistema Acusatério: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3.ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2005 e também LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 2 KANT, Immanuel. Critica da Razdo Pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujio. 4. ed, Lisboa: Fundacdo Clouste Gulbenkian, 1997, p. 657, 3 CORDERO, Franco. Problemi dellstruzione. Ideologie del processo penale, Milano: Giulre, 1966, pp. 158-164,

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