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A indústria da psicopatia

6 reflexões sobre a sociedade de consumo

Janos Biro
1. Quando o holismo é uma doença
A civilização replica seu estado
global em cada país, cada cidade, cada
bairro, cada casa e cada indivíduo ao
mesmo tempo. Ela alcançou um grau de
comunicação em que tudo se torna uma
coisa só, estamos todos unidos pela e para
a civilização. Cada modismo explode
como uma epidemia. Uma coisa é válida
na medida em que pode ser globalizada,
ainda que apenas enquanto sonho de
consumo. Liberdade é desejar consumir o
que os estadunidenses desejam consumir,
ainda que esse privilégio seja para poucos.

Vivemos numa pós-realidade, que


não é uma fantasia porque não podemos
nos desligar dela quando quisermos. É um pesadelo real, uma realidade criada da qual não
se pode escapar e que tem conseqüências letais. Nós nos apegamos a este terror
espetacular, como reféns com síndrome de Estocolmo.

O sonho americano é concretizado tornando virtual aquilo que antes era real.
Nossas relações e experiências com o mundo sensível não são mais válidas. Os
sentimentos resultantes deles foram destilados e transformados em produtos de
entretenimento. Ser natural é inapropriado. O sonho americano não é uma escolha, ele é
uma obrigação. Todas as partes do holograma devem refletir o todo.

Ocidentais se vestem como orientais, e orientais se vestem como ocidentais.


Ambos se completam no espelho. O holismo se tornou uma doença que descaracteriza o
indivíduo, a cultura e a comunidade.

2. Comprar ou vender?

Nós nascemos consumindo, mas não somos realmente adultos até começarmos a
vender coisas. Especificamente, comprar coisas exige que alguém que vende coisas nos dê
parte do dinheiro que está ganhando do comprador, que por sua vez o ganhou da mesma
forma. Esse jogo de compra e venda permite com que o dinheiro seja naturalmente
empilhado em pirâmides de pirâmides, que formam uma única e inimaginavelmente
gigantesca pirâmide, um grande amontoado de dinheiro.

Em nossa sociedade, é preciso ter dinheiro para suprir as necessidades humanas e


os caprichos culturais. Eu só posso amar e ser amado se tiver dinheiro. Todas as
atividades humanas estão subordinadas ao tempo, que por sua vez depende do dinheiro.
Cada segundo vale dinheiro. Nem mesmo água é gratuita. E para conseguir dinheiro eu
preciso vender coisas, daí a importância primordial de vender.

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Eu posso vender qualquer coisa. Tudo que eu puder vender me dá dinheiro, não
importa que utilidade tenha. E para que eu possa me sentir normal, eu devo comprar o que
quer que as pessoas estejam comprando, que é o que quer que outros estejam vendendo
muito. Porque se alguém precisa de alguma coisa, outra pessoa prontamente irá vender
aquilo para que ela possa, em troca, comprar as mesmas coisas.

Dizem que o ar ainda é gratuito, houve um tempo em


que a água também era. Sabemos que é só questão de tempo até
podermos vender ar. E será muito bom para a economia, porque
representará muitos novos empregos. Precisamos de empregos,
porque como essa palavra indica, nosso emprego é nossa única
função nesse universo. E todo emprego se trata de vender coisas.
Porque se há uma coisa na qual nossa sociedade se fundamenta é
na livre movimentação de coisas. As coisas precisam viajar o
mundo e conhecer pessoas novas.

Todo o dinheiro do mundo jamais será suficiente para nos satisfazer. Pois
enquanto nós nos torturamos para vender coisas, as coisas estão em liberdade. Enquanto
nos sacrificamos pelas coisas, as coisas não sacrificam nada por nós. As coisas são cada
vez mais inteligentes, práticas, resistentes, seguras, limpas, bonitas... Ao oposto de nós.
Nosso mundo é perfeito para as coisas. Nós nos dedicamos cada vez mais às coisas, à livre
movimentação cada vez mais eficiente das coisas, e ficamos felizes porque algumas coisas
trazem felicidade. Pelo menos para aqueles que venderam muitas coisas.

A maioria das pessoas precisa ficar feliz sem comprar muitas coisas, precisam
entender que a felicidade não está em comprar muitas coisas. Pois assim os que só ficam
felizes tendo muitas coisas podem acumular as coisas que as pessoas que têm poucas
coisas fazem. Elas fazem muitas coisas para poderem comprar poucas coisas. Assim as
coisas sobrando ficam com os que precisam de mais coisas para ser felizes, e os que só
precisam de poucas coisas ficam felizes com o que têm. Todo mundo fica feliz, cada um
com a quantidade de coisas que precisa para ser feliz.

Eu não sei por que as pessoas estão cada vez mais deprimidas, se as coisas vão
tão bem. É quase como se esperassem que o objetivo de nossa sociedade não fosse o bem
exclusivo das coisas, em detrimento das pessoas, se elas mesmas assim escolheram
quando aderiram às regras de mercado. É verdade que em muitos lugares as coisas
poderiam estar bem melhores, mas considerando nossa sociedade, acho que dificilmente
as coisas poderiam estar melhores... Para as coisas...

3. Quem a pirataria prejudica?

Existem três argumentos básicos contra a pirataria. O primeiro argumento é que a


pirataria, ao gerar prejuízos para os detentores do direito autoral, os desestimula a
produzir obras de qualidade. O segundo argumento é que o comércio informal de produtos
culturais retira empregos da população prejudicando empresas que pagam seus impostos,

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e isso prejudica a economia. O terceiro argumento é que a pirataria financia atividades
criminosas mais graves. Repondo cada um deles neste texto.

Grandes obras da humanidade foram feitas antes do direito autoral e não


precisaram de muitos recursos. Quanto mais recursos são gastos para difundir um único
autor ou uma única obra, maior será a massificação, pois menos incentivo terão os autores
locais. De fato, desde que a produção cultural se tornou massificada e comercial, não há
qualquer incentivo para se produzir algo de qualidade, uma vez que modismos venderão
muito mais. Empresas que promovem cultura massificada cobram muito mais do que o
custo de produção real, mas o que é repassado ao verdadeiro autor da obra é apenas uma
parte do que as empresas cobram pelo direito de acesso. Essa parcela está embutida no
lucro apenas para justificá-lo. A maior parte do dinheiro gasto com entretenimento vai
para essas empresas e para uma pequena parcela dos autores, atores ou artistas que
estejam na moda. Ainda que a pirataria não seja uma solução contra a massificação, ela é
uma forma de diminuir a colaboração com ela.

O dinheiro que é repassado aos autores, aos empregados e ao Estado, em forma


de imposto, é obviamente apenas uma parte do lucro das empresas que produzem cultura
massificada. Logo, tudo aquilo que ela deixa de ganhar representa menos dinheiro sendo
concentrado nas mãos de poucas pessoas. Assim como no caso acima, ainda que a
pirataria não resolva os problemas do capitalismo, ela é uma forma de não colaborar com
o monopólio e o excesso de concentração de dinheiro nas mãos de poucos. Se há comércio
informal ou ilegal de produtos culturais, é apenas porque as empresas dificultam a difusão
livre. Se tal forma de comércio fosse legalizada, os únicos prejudicados seriam as grandes
empresas, e não as pessoas.

Se as pessoas deixam de
comprar produtos que financiam o
crime, então ou o crime diminuirá ou
encontrará outras formas de se
manter financeiramente. Se o
primeiro caso é verdadeiro, e se
consideramos que o comércio ilegal
só ocorre porque a livre difusão é
proibida, então seria muito mais
vantajoso permitir a livre difusão e
prejudicar as atividades criminosas
mais graves. Se o segundo caso é
verdadeiro, então o fim da pirataria
apenas aumentaria o uso de outras
formas de financiamento do crime, mas não reduziria o crime. Em ambos os casos não há
vantagem alguma em acabar com a pirataria sem acabar com todo o sistema econômico
que gera desigualdade.

A propriedade intelectual é questionável por si só. Ela pressupõe que idéias


podem ser propriedades ainda que sua difusão possa ocorrer naturalmente e sem qualquer

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gasto intelectual extra por parte do autor da idéia. Isso apresenta muitos problemas. A
propriedade intelectual não é uma propriedade real, é apenas um suposto direito sobre
todos aqueles que reproduzem sua idéia. É um direito de reprodução. Muitas pessoas já
entenderam que tais direitos não deveriam funcionar de forma a permitir que empresas
criem pedágios imaginários nas estradas onde circulam nossas idéias, e cobrem o que
quiserem para permitir que se trafegue nelas. Tais vias são livres, e funcionam melhor se
não forem reguladas pelas leis de mercado. A pirataria é apenas uma conseqüência disso,
por mais indesejável que seja. Quem a pirataria realmente prejudica é um modelo
econômico que prejudica a todos nós.

4. Mimados ou neuróticos

A questão que se coloca é que o capitalismo gera jovens mimados por um lado, e
neuróticos por outro. Se os seus pais te dão tudo que precisa, você fica conformado. Mas
se eles têm, mas não te dão, você fica revoltado. Se eles não têm, pior ainda. Um amigo
diz ter ficado muito tempo sem falar com seu pai porque ele nunca o ajudou com nada,
mesmo podendo. Ele teve que conseguir tudo sozinho. Seu pai talvez quisesse fazer ele se
tornar um cara empreendedor, o salvou de ser mal acostumado, mas o deixou neurótico
por investimentos na bolsa de valores. Há uma moral muito estranha aí: a de que o que
vale é o trabalho, e não o que você ganha trabalhando. Então se você acumulou muito
dinheiro, é melhor gastar tudo com você mesmo, porque se deixar para outro vai fazê-lo
perder a oportunidade de trabalhar. O capitalismo assim não resultaria necessariamente
em acúmulo de riqueza, e sim em acúmulo de esforços para a maioria, e de conforto para a
minoria. Se a “qualificação” se torna cada vez mais importante, temos cada vez mais
trabalho e mais necessidades. Temos cada vez mais estresse e menos tempo livre.

Certamente
uma pessoa mimada é
muito chata. Mas
forçamos nossos filhos
a se tornarem
neuróticos apenas para
que eles consigam
conviver numa
sociedade neurótica. E
é tão ruim ser mimado
quanto ser neurótico,
mas os neuróticos, em
geral, estão nas classes
mais baixas. O que eu
estou chamando de
neurose aqui? Estou falando da exigência cada vez mais rígida de eficiência na produção.
Correria, estresse e preocupação vão lentamente "moldando o caráter" da pessoa, mas
apenas no sentido de adaptá-la ao sistema, e não necessariamente de torná-la uma pessoa
saudável. E quando isso é reconhecido, apenas cria um novo nível de exigência: uma
busca desesperada por equilíbrio físico e mental, que não deixa de ser neurótica.

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A neurose do culto ao trabalho também mata qualidades humanas
imprescindíveis. Enquanto o mimado não sabe agir sob pressão, o neurótico não tem
paciência, não sabe lidar com coisas que não são problemas. Ele tem que transformar a
coisa num problema para poder entendê-la. Dificilmente as pessoas que precisam se
preocupar demais compreendem a contemplação, a não-ação, a arte, a filosofia, a poesia,
sentimentos... Para ela só existe ação. Essas pessoas estão sempre afoitas na busca de
alcançar metas, e de ter tudo sob controle. Ao fazer isso, elas raramente questionam o
sistema, apenas se esforçam para cumprir seu papel.

A alta sociedade passa às pessoas de classe inferior a idéia de que é muito mais
terrível ser mimado, muito mais valoroso ser um trabalhador esforçado, que desde cedo
trabalha muito para obter as coisas que precisa ou deseja. Assim eu não tenho que me
preocupar com a existência da pobreza, pois seria terrível se todos fossem ricos, porque
todos teriam o que quisessem sem ter que trabalhar, e assim todos seriam mimados. Ao
mesmo tempo, é o próprio trabalho que gera a desigualdade, aumentando a distância entre
ricos e pobres. Se gerar empregos para os pobres desse mais dinheiro aos pobres que aos
ricos, isso quer dizer que ricos estariam perdendo dinheiro, e a economia entraria em
colapso. Mas nenhum emprego faz isso, porque os ricos é que dão os empregos, e eles
jamais permitiriam uma coisa dessas.

5. Carência e depressão

A depressão e a carência estão em


ascensão. Estão se transformando em estilo
de vida. Os jovens não se sentem mais
capazes de sobreviver, criam uma cultura
que demonstra isso. Depressão não é uma
mera moda. É epidemia psicopatológica em
nossa sociedade, que se torna algo
suportável ou aceitável se a transformamos
em estilo.

O movimento gótico pode ser visto como uma forma de encarar a inevitabilidade
da morte e tentar torná-la parte do seu dia-a-dia, usando uma estética mórbida. Você pode
ver problemas psicológicos influenciando cada vez mais a arte e a cultura. Ver beleza no
que nos angustia é uma forma de defesa contra essa angústia, quando já não se pode mais
escapar dela. Os músicos suicidas não querem morrer porque são músicos. E o fato de que
estejamos querendo morrer cada vez mais cedo é uma coisa que deveria ser levada a sério,
e não tratada como uma piada. Não é a música que cria isso, a música é criada por essa
situação psicológica. Há uma sensação de carência intensa, uma necessidade de amor
desesperado, típico de um ambiente emocional nada saudável. Os jovens estão reagindo a
uma situação de desespero e vazio. Essa sensação cresce geração após geração. E ainda
assim a sociedade quer tratar isso como mais uma moda passageira que serve para vender
certos produtos.

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O que deveria ser feito não é levar os jovens para psicólogos e tentar tratar de um
por um, mas perceber porque nosso modo vida deixa os jovens tão depressivos e carentes,
e tentar solucionar isso para que eles não se tornem mais assim. Tratá-los depois que
ficam assim é inútil. Temos que ir à causa dos problemas.

6. Ninguém pode mudar o mundo

Por isso devemos logo de início ignorar ou pelo menos desconfiar de qualquer
um com essa intenção. "Por quê?" (insira voz de idiota na pergunta), um tolo pode
perguntar. Ora, porquê! Não importa. Ninguém pode mudar o mundo porque ninguém é
Jesus. Ninguém é Maomé. Ninguém é Buda. Ninguém é Einstein. Ninguém é Newton.
Ninguém é Darwin (estenda essa lista para o resto dos famosos, inclua também os não-
famosos e todos os que colaboraram com eles). Ninguém é ninguém. E o mais importante
de tudo: jamais será. Imagine, que pretensão inaceitável: ser alguém. Ora, termine sua
bebida, vomite e vá pra casa como todo mundo! Mudar o mundo! Idéia estúpida! Apenas
pessoas mudam o mundo. Aliás, é tudo que elas fazem na vida, coitadas. Você não quer
ser uma pessoa, quer? Pessoas são detestáveis, são do tipo que morrem virgens. São do
tipo que travam conversas chatas. São do tipo que ficam melhor trancadas, caladas,
queimadas e ignoradas.

Não seja, eu disse,


não seja uma pessoa. Seja
gente como nós. Nós temos
distrações até pro seu cachorro.
Nós temos religião sólida,
religião líquida, em pó, em
tubinhos, em pílulas, religião
que cresce no chão, frases
bonitas, sexo fácil e acima de
tudo: ESTILO (Insira sorriso
carismático). É... Nós somos!
O resto tenta. Nós, que somos
gente, nós temos amigos,
carreiras, tudo. Nós temos
tudo. É isso mesmo, nunca
tinha me tocado... Meu Deus,
nós somos deuses! Somos mais
que deuses, temos livre-
arbítrio. Temos frustrações que
nos impedem de enjoar da felicidade. Mas por quê? Por que, em nome de tudo que há de
mais sagrado (insira imagem de uma vagina) alguém gostaria de ser uma pessoa? Pensar
no mundo? Pensar em mudança? Meu Deus (insira Matt Damon empolgado aqui), temos
tantas coisas mais legais pra fazer! Tanto em que usar nossos neurônios! Olhe (contando
nos dedos): Videogames. MTV. Kama Sutra. Wisky. Câncer. Ou Cartas. Praia. Namoro.
Cerveja. Câncer. Tanto faz. "Suit yourself", temos para todos os gostos. Gosta de ler?

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Ótimo! Leia Kafka, leia Baudelaire, leia Tolstoi. Nós garantimos: Aqui dentro você está
seguro do verdadeiro significado, que, eu garanto, te decepcionaria se você soubesse.

Você gosta de ver as coisas criticamente (ser do contra)? Ótimo, isto está na
moda também. Aqui você pode ser assim e ainda ser amado. Aqui você pode xingar o
sistema, reclamar da própria hipocrisia, falar mal da própria falta de caráter. Tudo certo,
testado e aprovado. Adaptamos tudo pra você, você pode ser tudo. Pode escolher a idéia
que quer que implantemos em você. Temos para todos os gostos! Pode se revoltar. Vamos
lá, tente. Acredite em mim, está tudo perfeitamente seguro. Grite! Vamos, organize
grupos de combate a sei lá o quê. Colabore com não sei o que lá. Lute pela sei lá o que de
sei lá aonde. Vamos! Pode ir, sério, não acredita em mim? Vivemos em tempos bem
diferentes agora. Enquanto a maioria acredita que não aprendemos nada do passado, nós
não só aprendemos como aplicamos perfeitamente. Nós aprendemos a conter reações
contrárias de DENTRO, antes de começarem. Nós aprendemos a continuar fazendo o que
nos interessa sem que os poucos descontentes nos atrapalhem. Nós temos canções de ninar
para os espíritos cansados. Elas soam como sirenes de emergência, não é? Não, para quem
nasceu aqui dentro não. Para quem está acostumado, elas soam como isto: (insira música
favorita aqui) Uma doce, doce melodia...

Índice:
1. Quando o holismo é uma doença
2. Comprar ou vender?
3. Quem a pirataria prejudica?
4. Mimados ou neuróticos
5. Carência e depressão
6. Ninguém pode mudar o mundo

Janos Biro
janosbirozero@gmail.com
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