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Deus, igreja, sociedade
Poucas tedlogas, poucos tedlogos no Brasil aventuraram-se a
abordar criativamente a doutrina de Deus como Trindade. Embora a
Trindade, Deus como Pai, Filho e Espirito Santo, seja invocada na
maioria das igrejas em cada culto, e embora essa doutrina faca parte
do curriculo obrigatério de todo estudante de Teologia, ha uma carén-
cia de livros de autores brasileiros sobre o assunto. Até mesmo 0 li-
vro seminal A Trindade, a sociedade e a libertacio (1986), de Leonardo
Boff, que seré a principal referéncia neste capitulo, surgiu primordial-
mente de aulas que ele proferiu no Seminario Franciscano em Petré-
polis (RJ) e esta sendo amplamente usado como livro-texto’ . Portanto,
parece resultar mais da necessidade de publicar algo sobre o assunto
para 0 uso de estudantes do que constituir um olhar novo sobre a
doutrina. No entanto, ao mesmo tempo em que assumiu 0 desafio do
tedlogo sistematico de lidar com todos os loci classicos da teologia,
Boff uso essa tarefa para uma critica formulada de forma bastante
sutil, mas de fato dura, frente a uma igreja e sociedade que ele perce-
beu como opressivas e hierarquicas. Enquanto ele estava escrevendo
esse livro, o Brasil atravessava a fase final de sua longa transicao do
autoritarismo para a democracia, da “descompressao segura, lenta e
gradual” iniciada pelo presidente General Ernesto Geisel, em 1974, e
encerrada com a primeira eleigao direta de um presidente apés o final
do regime militar, em 1989, Ao mesmo tempo, Boff teve de observar
um ano de siléncio, imposto a ele pela Congregacao Romana para a
Doutrina da Fé, como conseqiiéncia de suas observacées criticas sobre
a igreja feitas em sua famosa obra Igreja, carisma e poder (1981)?. Logo,
no surpreende que 0 contexto no qual e para o qual ele escreveu nao
fosse somente a sociedade politica, mas também a igreja.
stentarei ao longo deste capitulo que temos que tomar cui-
dado com simples analogias entre o Deus Tritino, a igreja eo mundo.
Em relagao ao escrito de Boff da época, também temos que reconhecer
que tanto seu préprio contexto de vida quanto o contexto brasileiro
mudaram consideravelmente nesse meio tempo. Por isso farei uma
breve introducdo a histéria politica do Brasil, bem como ao papel da
sociedade civil e das igrejas no pais. Entao explicarei a elaboracaoConfianga e Convivéncia -
da doutrina da Trindade proposta por Boff, seguindo-se uma avalia-
40 de como a “doutrina social da Trindade” pode “inspirar” - uma
palavra muitas vezes usada por Boff neste sentido - a interacao co-
munitaria.
A politica no Brasil eo papel da sociedade civil
A Repablica Federativa do Brasil é, hoje, 0 quinto maior pais
do mundo e ocupa a 13° posicdo em termos de poder econémico
(2004). Ao mesmo tempo, ocupa 0 4° lugar em termos de distribuicao
desigual de riqueza. Enquanto os 20% mais ricos recebem 64% de
toda a renda, os 20% mais pobres dispdem de meros 2% (1998). 35%
da populacao vivem abaixo da linha de pobreza nacional. Em termos
de desenvolvimento humano, o pais esta situado entre os paises de
“desenvolvimento humano médio”, ocupando, em 2006, 0 69° lugar,
conforme a ONU. A pesquisa da organizacao norte-americana Free-
domhouse coloca o Brasil entre os paises “livres” com nota 2 em direi-
tos politicos e direitos civis, em 2006, numa escala de 1 (livre) a 7
(nao-livre). Como o pais chegou a esse ponto?
Nao temos muitos indicios claros sobre os tempos pré-coloniais,
mas ceramente a Area era habitada por numerosos grupos étnicos,
especialmente na regido amazénica e ao longo da costa, ea presenca
humana possivelmente remonta a dezenas de milhares de anos. No
dia da Pascoa - 22 de abril - de 1500, o navegante portugués Pedro
Alvares Cabral (1460-1526) aportou no que € hoje Porto Seguro, no
nordeste do Brasil. A terra recém “descoberta”, ou, antes, conquista-
da, tornou-se uma coldnia sob a Coroa portuguesa, adotando seu ti-
pico sistema de padroado, em que a Coroa era responsavel pelo
“bem-estar” nao s6 material, mas também espiritual de seus stiditos.
Protestantes entraram no pais através de invasées francesas e holan-
desas nos séculos XXVI e XXVII, respectivamente, mas sua presenca
foi apenas episédica. Em 1807, a Corte portuguesa passou a residir
no Brasil, fugindo das tropas de Napoledo. Ela retornou a Lisboa em
1821, mas o principe regente permaneceu no Brasil e se tornou 0
chefe do Império brasileiro, proclamando a independéncia em 7 de
setembro de 1822. A primeira constituigao brasileira foi promulgada
em 1824, permitindo, entre outras coisas, a liberdade religiosa sob
certas restricdes. A Igreja Catélica Romana continuou sendo a religiao
oficial do Império.e Deus, igreja, socieda
Em 15 de novembro de 1889, um golpe militar fundou a Repa-
blica. A Igreja Catélica Romana foi, subseqiientemente, separada do
Estado, introduziu-se a liberdade plena de culto, as igrejas foram re-
conhecidas como entidades que podiam, portanto, adquirir bens em
seu nome, e 0 padroado foi formalmente abolido. A Igreja Catdlica
soube usar bem sua nova liberdade e estruturou-se de uma forma
nunca antes vista no pais, criando dioceses e organizando seu traba-
Iho, em consonancia com Roma. As igrejas protestantes, por sua vez,
ganharam cidadania plena e nao precisavam mais lutar para ter onde
batizar os filhos, se casar, sepultar os mortos e construir templos
com cara de igreja.
Depois dessa conquista da Republica, sucederam-se fases de-
mocraticas e episédios ditatoriais. Uma primeira fase ditatorial de
um tipo nacionalista-populista ocorreu depois da revolucao de 1930
no chamado Estado Novo (1937-45) sob Gettilio Dornelles Vargas
(1883-1954). Embora sob um regime autoritario, esse periodo regis-
trou importantes avancos na legislacao trabalhista. Apés uma outra
experiéncia republicana, em que o ex-ditador Vargas voltou a presi-
déncia pelo voto (1951-54) e, entao, gradualmente, deu uma guinada
para a esquerda, a confusao geral levou a uma outra “revolugao” ou
golpe em 1964. Inicialmente moderado e concebido como transitério,
um governo militar assumiu o poder. No entanto, os generais de li-
nha dura fizeram gradualmente a balanca pender para o seu lado,
atribuindo-se poder virtualmente absoluto em 1968 - com o temido
Ato Institucional N° 5, o ALS - e instalando um regime altamente
repressivo. Sua “legitimidade” foi ajudada pelo chamado “milagre
econémico”, que causou admiracao pelos seus altos indices de cresci-
mento econémico (mais de 12%), embora endividasse gravemente 0
pais. Quando esse crescimento chegou a um fim abrupto coma crise
do petréleo de 1973, comandantes mais moderados chegaram ao
poder e comecaram, em 1974, um processo de transigao gradual e
controlado. Peculiarmente, apesar de diferentes tipos de manipula-
Ges, eleicdes diretas ¢ indiretas sempre foram mantidas, os presiden-
tes deixaram normalmente 0 cargo apés um tinico mandato, partidos
continuaram a existir - mesmo que somente dois fossem admitidos
-e0 Congresso, embora fosse fechado as vezes, jamais foi dissolvido.
Os militares finalmente entregaram o poder a um governo civil em
1985, mas a transicdo somente pode ser considerada completa quando
se realizaram eleicdes presidenciais diretas em 1989. Criou-se uma
Assembléia Constituinte que, em processo democratico com conside-
ene