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4 BRECHT, ADORNO E O INTERESSE DO ENGAJAMENTO. INA CAMARGO COSTA “Como entraré a tila numa discussio com alguém que a ceensura por néo ser um carvalho?” (Bertolt Brecht) Em 1962, Adorno publica na Alemanha Ocidental ensaio “Engagement”, no qual ataca a dramaturgia de Brecht com os objetivos declarados de salvar o dramaturgo ~falecido alguns anos antes ~ de seguidores que tentariam desvincular seu teatro da politica e reanimar o debate sobre o engajamento (talvez porque 6 teatro alemao ocidental retomara os assuntos politicos sem se dar ao trabalho de discutir aquele problema francés). Mas como se trata de fildsofo dialético, nao seria de admirar se 0 resultado desse no contrério, isto é, dificultar a percepcio das qualidades da dramaturgia brechtiana e apresentar mais uma defesa como sempre empenhada da arte aut6noma, com base em pressupostos assumidos jé nos anos 30. ‘Com fundamento critico na idéia de que as obras devem des- montar a aparéncia de modo a explodir aarte por dentro, ou re- Professora de Teoria Liertia na USP. 18 {CAPITULOS DO MARKISMO OCIDENTAL sist exclusivamente através da forma ao curso do mundo, sio apresentadas sérias restrigbes ao teatro de Brecht que, diferente- ‘mente de Beckett, nao cumpriria tal exigéncia, caso particular de A Santa Joana dos Matadouros (1931) e A resistivel ascensdo de Arturo Ui (1941), cujos tropecos se explicariam sobretudo pelo cengajamento do dramaturgo, que se traduziria em teses expostas ‘ou pressupostas, nestas e em outras pecas, como a “glorificagso do Partido”, a submissio as politicas stalinistas ¢ a apologia do socialismo (ou da revolugéo, que para Adorno & a mesma coisa). Embora o ensaio tenha um alcance muito maior, aqui nos restrin- sgiremos a discutir alguns dos argumentos de Adorno contra estas dduas pegas, a exemplo do que fez Christopher McCullough (1994) com os de Eric Bentley a propésito da primeira, guardadas as necessirias proporgées. Séo estes os principais argumentos contra Santa Joana: A caftica a Brecht ndo pode ignorar que ~ por razbes objetivas além do aleance de suas propria criagdes ~ ele no cumpriu a nor- ‘ma por ele mesmo estabelecida como meio de salvaglo. Santa Joana foi a obra central de seu teatro dialético. (A alma boa de Setsuan € tuma variagio dela ao contrério: enquanto Joana favorece o mal pela imediaticidade de sua bondade, Chen-té, que deseja 0 bem, fem que se tomar mé.) A peca se desenvolve numa Chicago a meio caminho entre as fabulas do Oeste selvagem de Mahagonny efatos econémicos. Mas quanto mais Brecht se preocupa em informa, ‘menos procura imagens e mais perde a esséncia do capitalismo que 1 pardbola pretende representar. Meros epis6dios na esfera da cir- culagio, na qual os concorrentes se entredevoram, si0 relatados ‘em vez da apropriacéo da mais-valia na esfera da produgio e, com> parados a estes, a beligerincia dos negociantes de gado para garan- tir sua participacio no butim é epifendmeno incapaz de provocar alguma crise. Mais ainda, as transagées econdmicas apresentadas como maquinagées de corretores rapaces nio sio meramente pue- ris — que parece ser como Brecht pretendeu apresenticlas~ elas si0 também ininteligiveis até pelos eritérios da mais primitiva logica econémica. A contrapartida desta dltima é uma ingenuidade politi- ca que 86 poderé provocar nos oponentes de Brecht um sorriso irdnico, a0 pensar num inimigo tio ingnuo. Eles poderiam ficar tio tranguilos com Brecht quanto ficam com a agonia de Joana na imprestionante cena final da peca. Mesmo admitindo a maxima liberdade para licencas poéticas, a idéia de que a lideranga de uma RECHT, ADORNO E O INTERESSE DO ENGAJAMENTO 19 sgreve apoiada pelo Partido possa confiar uma tarefa crucial a um ‘io-militante€ tao inconcebivel quanto a idéia subseqiente de que «0 fracasso desse individuo poderia arruinar a greve como um todo. (Adorno, 1994a, p.183-4) Embora a afirmagéo de que Santa Joana é pega central do teatro dialético de Brecht traga um problema de ordem hist6rica € conceitual, vamos deixé-la para outra oportunidade, pois seu exame exige informagées que ainda nao estio ao nosso alcance. Da mesma forma, deixaremos para outra vez as relagdes com A «alma boa de Setsuan, mas nao custa adiantar que, nesta outra pega, ‘mais importante do que o problema das aparéncias de bondade ¢ maldade € 0 exame da mitologia sobre a acumulacio primitiva do capital, fato que estabelece uma relago muito interessante coma crise do capitalismo exposta em Santa Joana. ‘Comecemos entio pelo capitalismo que Brecht queria repre- sentar nesta peca: a crer em Adorno, seria o do primeiro volume de O capital, no qual Marx expés como a mais-valia absoluta é extraida do trabalhador pelo capital em hipotéticas “condigées normais”, Brecht, no entanto, até por raz6es conjunturais, estava interessado numa questo mais ampla e menos abstrata ~ a da crise de superproducio que, paralisando a produsao e, conseqiien- temente, interrompendo 0 processo de realizacio de mais-valia num determinado setor, transforma populacées inteiras de traba- Ihadores em item supérfiuo, obrigando os verdadeiramente inte- ressados no fim da mais-valia, como parece ter sido o caso de Adorno nesse ensaio, a pensar em outras questées um pouco mais clementares, como a da sobrevivéncia da espécie. Com este interesse, é um acerto de Brecht por no centro da eca, a partir da produgio paralisada, epis6dios da esfera da cir- cculagio, como mercadorias (trabalhadores,latas, salsichas) enca- Ihadas, nao meros epis6dios, mas imagens altamente reveladoras do que conta para o capital e seus detentores, os quais determi- nam prioridades — aquelas que Adorno reduziu a pueris “maqui- nagées de corretores rapaces”, ou beligerncia de negociantes de gado. £ também um achado estratégico do dramaturgo encenar essa crise na Area do abastecimento de carne, que pode ser gene- 80 {CAPITULOS DO MARKISMO OCIDENTAL ralizada para o problema politico fundamental do abastecimento, tal como se apresenta nao s6 agravado, mas sobretudo provocado pelos interesses do capital. O recorte do problema, tratado no Ambito da carne industrializada e da concentracio em Chicago dos negécios, que vao da disputa pelos pregos do “boi em pé” comercializagio da carne enlatada, levou Brecht a localizar na- quela cidade a parte visivel fundamental do seu argumento, pois, como se sabe, desde o século passado, a Chicago da curralada dos ‘matadouros concentra o essencial dos negécios mundiais no ramo dda agricultura, razio pela qual tem a mais importante bolsa mun- dial de futuros, como se diz, onde se decidem a curto, médio e longo prazos a vida e a morte de pequenos, médios e grandes pro- dutores agricolas em todo mundo, para nao falar no abasteci- ‘mento e na fome de populagées inteiras. Ainda neste ambito, € preciso rejeitar com vigor a afirmacio de Adorno sobre as “ininteligiveis e pueris” maquinagées dos cor- retores. De fato, o dramaturgo quis mostrar isso ¢ mais alguma coisa: operando na base do mais elementarcélculo contébil, tran- sages econdmicas de alcance mundial, nas quais estio em jogo interesses econ6micos e politicos, devidamente concertados € po- derosissimos, a ilusio de corretores ¢ investidores de bolsas, de que tém controle sobre o jogo em que se engalfinham, é pueril ‘mesmo e deve ser mostrada como tal. Quanto a concluir daquelas ccenas que sio ininteligiveis (para o pablico), ha um passo arrisca- do. Brecht nao acharia nada mal que sua pega estimulasse estudos criticos de economia politica. Mas isso ainda nao € tudo: mais importante é perceber que o dramaturgo acentuou o carsteralie- nado da atividade, isto €, entender que agentes de especulacio, ‘grandes ou pequenos, mas em especial os que nao tém “amigos ‘em Wall Street” ou nas esferas do poder politico para lhes passa- rem inside information, nao entendem, eles mesmos, 0 que fa- zzem, Sao incapazes de perceber 0 alcance de decisdes apoiadas no interesse individual por lucro imediato e, quando se do mal, tam- ‘bém em conseqiiéncia de suas operagées contraditérias, continuam sem entender o que lhes aconteceu. Em suma, Brecht expe uma totalidade que se movimenta a revelia dos que se supéem seus agentes e, assim, aponta para a RECHT, ADORNO E O INTERESSE DO ENGAJAMENTO 81 necessidade de compreendé-la. De preferéncia, criticamente, jé que ela, seus pretensos agentes e aliados so uma clara ameaga & sobrevivéncia da prépria humanidade. Ameaca estrategicamente cifrada com genuna coragem artistica no absurdo objetivo repre~ sentado pela produgio da fome, da miséria, do desespero ¢ da morte por aqueles que agambarcaram o processo mais essencial & ‘manutengao da vida, que é justamente o da produgio de alimen- tos. £ sobre este terreno, bem mais amplo e significativo que um ‘vago “meio caminho entre Mahagonny e o faroeste”, que se mo- vvimentam as figuras de Santa Joana. Partindo do exposto por Marx, segundo o qual todos os en- volvidos pela crise de superproducéo nela se comportam feito baratas tontas (porque o sujeito automitico parece adquirir vida répria, como se vé no ambito da especulagao financeira), sem entender 0 que se passa, os aproveitadores tanto quanto as suas vitimas, acrescentando sua percepcio pessoal de que muito menos © partido é que deveria ter capacidade para crticé-la e uma estra- tégia para enfrenté-la, se possivel revolucionaria, Brecht vai ex- por uma série de relagées pressupostas pela crise, como as tra- balhistas, as comerciais, a especulacio, e as que vio se sobrepondo para complicar um quadro que jf era por simesmo complexo. Acom- panhemos os principais grupos de baratas tontas e seus feitos. s capitalistas sio criadores de gado, industriais da carne enlatada, atacadistas e, acumulando ou nio fungées, especuladores dda bolsa de futuros. Estes esto com a iniciativa 0 tempo todo. A ‘Pega comega com a crise jé em andamento (e nao esperando por algum ato que a desencadeie, como pareceu a Adorno, em descon- certante expectativa dramética) e a primeira tentativa, fracassada, de solugéo é 0 monopélio da produgo/eliminagéo da concorrén- cia por parte de um industrial com boas relagées nos citculos “bem informados” de Wall Street. A saida encontrada, depois de muitas peripécias, €a formagio de um cartel que deveré “racionalizar” 0 sistema de abastecimento, desde a criagio planejada do gado até © escoamento, sem crise, do produto final, a carne enlatada. 3s trabalhadores: empregados, desempregados em niimero maior em todos os niveis de degradagio e, nos dois casos, em diferentes graus e tipos de organizagio ou desorganizacao, con- 82 {CAPITULOS DO MARKISMO OCIDENTAL forme o ponto de vista. Apresentam todos os tipos de comporta- ‘mento, da tio decantada solidariedade de classe A mesquinhez (a troco de um prato de comida) mais extrema. S40 manipulados, enganados, assassinados e, sobretudo, do comego ao fim da peca, estio permanentemente correndo para recuperar o prejuiz0, € 0 maior deles é a incompreensio, até o fim, do que se passa. Com diferentes graus de percepgio do papel que representa, ‘grupo religioso € 0 terceiro bloco em importancia, do qual emer- gira fracassada candidata a herofna, Joana. Este evolui de uma situagio mais ou menos consciente de parastismo para uma alianga cexplicita com o capital, depois de ficar claro para as partes inte- ressadas 0 papel que Ihes caber4 na “soluco” da crise: serdo ins- ‘trumento auxiliar de garantia da paz social, atuando de maneira planejada junto aos desempregados cujo niimero devers aumen- tar em conseqiiéncia dos “imperativos tecnol6gicos” da moderni- zagio e da reducio dos custos de producio, estocagem e distri buigdo das mercadorias encalacradas. © Partido Comunista, com nivel muito pequeno de adesio dos trabalhadores, € quase um corpo estranho a classe esta pre- sente na peca quase que na forma de vestigios. Também nao en- tende nada do que esté acontecendo, atal ponto que num quadro de desemprego em massa e lockout aparece com a palavra-de- cordem de greve geral - como se sabe, c6digo para revolugio ~e atua como se tivesse proposto uma greve setorizada. Os donos da vida, que nunca esto para brincadeiras, corretamente interpre- tam a palavra-de-ordem como declaragio de guerra civil e, con- seqiientemente, a enfrentam com armas de todos os calibres. Enten- dda-se: a classe dominante entendeu que a nica titica cabivel naquela situagio era a declaragio de guerra, por isso a reagio aparente- ‘mente despropositada. Podemos, aqui, corrigir uma das observa- ‘g6es de Adorno: com inimigos como os que Brecht mostra, aclas- se dominante pode dormir trangiila. Os fios principais do enredo macabro de Santa Joana provém dessa espécie de pas de quatre, mas ha outros ingredientes revela- dores, dentre os quais cabe destacar o Estado, na forma da repres- sao policial armada, que atua com toda a violéncia cabivel (ou- vvem-se todos os tipos de tiros durante o massacre da greve), RECHT, ADORNO E O INTERESSE DO ENGAJAMENTO 83 produzindo um néimero incalculavel de mortes e s6 se interrom- pendo apés 0 antincio da derrota total; a Imprensa, no papel de orta-voz politico do capital, divulgando apenas as noticias de interesse dos donos da vida, canonizando Joana d’Arcem sua con- digao de mértir pacifista; e 0 mesmo Estado na forma de agente politico, que intervém no auge da crise acentuada pela especula- ‘s40, derrubando barreiras alfandegérias para favorecer a circula- ‘$40 de mercadorias, tanto para abastecimento das indéstrias com matéria-prima importada (para forcar a queda dos pregos da ma- téria-prima local) quanto para exportagao das mercadorias enca- Ihadas nos mercados locais abarrotados. S6 depois de identificado este conjunto de relagdes épicas tem sentido o exame das diferentes trajet6rias de alguns persona- ‘gens que, evidentemente, néo podem mais ser vistos como aut6no- ‘mos e responsiveis por seus atos, pois néo tém nenhum controle sobre os seus efeitos. dramaturgo dé destaque ao processo vivido por Joana também por razées de critica dialética da maior relevan-

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