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| | | | | | Os Argonautas do Pacifico Ocidental Bronislaw Malinovski Introdupio: objecto, modo e alcance desta investigasio As populagies costciras das has dos Mares do Sul, com muito raras, ‘excepsbes, so, ou eram antes da sua extingio, pertas em navegacio e comer Bhnologia A997 me 61798 18 Ethno -virias ihas habitadas pelos Massim do Sul?. Existe, todavia, outro sistema tame a apresentar os dados adquiridos, fazendo-os emergit, perante nés, a partir da mais completa obscuridade, sem qualquer referéncia aos processes Uutilizados para a sua aquisigio, que estd incluido no quadro abaixo (Div. IV deste capitulo), deveria ser sem- pre exibido, de forma a que, num olhar répido, o leitor possa avaliar com recisio 0 grau de conhecimento pessoal do autor sobre os factos que des- reve e formar uma ideia relativamente 2s condigées de obtencio de infor- magio junto dos natives, Se pensarmos na ciéncia histérica, nenhum autor esperaria ser levado a ‘sério se envolvesse as suas fontes em mistério ¢ falasse do passado como se 0 ou na companhia do seu cicerone branco. Alguns nativos juntam-se em sea redor, especialmente se pressentirem que ha tabaco. Outros, mais distintos e 2 Ethnologin passeio soitério de cerca de uma hora, regressa-se e depois, de forma natural, "Existe uma diferenga enorme entre uma escapela esporédica na companhia dos natives e um contacto real com eles. O que significa isto? Da parte do cado nao sonaria fazé-lo, acabaram por me encarar camo parte integrante das suas Vidas, um mal ou um aborzecimento necessétio, mitigado por donatives fescapassem. E devo insistir que de cada vez que se passa algo dramatico ou Malinowski: Os Argonauts do Pactfico Ocidental 2B importante € essencial investigé-lo no preciso momento em que ocorre, pois ‘os nativos nao conseguem entio deixar de falar do assunto e estdo demasiado cexcitados para se mostrarem reticentes ¢ demasiado interessados para se tor- ‘narem parcimoniosos nos detalhes. Também muitas e muitas vezes nao cum- pria etiqueta, facto que os nativos jé familiarizados comigo, nao hesitaram ‘em apontar. Tive de aprender a compostar-me e, até certo ponto, adquici «a sensibilidade» para o que entre os natives se considerava boas e mas manei- ras. Foi gragas a isto, ¢ & capacidade em apreciar a sua companhia e partilhar alguns dos seus jogos e diversdes, que me comecei a sentir em verdadeiro ‘contacto com 05 nativos. E esta é, certamente, a condiéo prévia para poder evar a cabo com éxito 0 trabalho de campo. v Mas o Etnggrafo nio tem apenas de langar as redes no local certo e espe- zado teoricamente no significa estar carregado de «ideias proconcebidass. Se alguém empreende uma missdo, determinado a comprovar certas hipsteses, ¢ se € incapaz dea qualquer momento alteraz as suas perspectivas e de as aban donar de livre vontade perante as evidéncias, escusado € dizer que o seu tra- balho serd instil. Mas quantos mais problemas ele levar para o campo, quanto ‘mais habituado estiver a moldar as suas teorias 0s factos e a observar estes tifco,eestes problemas sio revelados ao observador, antes de mals, pelos estu- dos tesricos. Em Etnologia, os esforcos iniciais de Bastian, Tylor, Morgan dos Volker- psychologen alemdes reformularam a informagio mais antiga e em bruto dos, Viajantes, missionirios, et, e demonstraram-nos quio importante é a aplica- ‘Gio de concepgdes mais profundas em detrimento de outras mais superficiais recentese brihantes do trabalho de campo da escola de Cambridge. A and- lise psicoldgica dos pensadores alemies proporcionou imensas informagées 26 Etinolgia “Malinowski: Os Argonautas do Pasfico Osidental a ‘canho preliminar dos resultados. E era 96 nessa altura que me apercebia das ‘tigador empfrico de um mapa mental pelo qual se possa orientar e definir 0 seu a este assunto eno apenas algumas relagbes ot designagdes estranhas ou fora ‘caminho. do comum. Na investigacao relativa ao parentesco, 0 encadeamento das rela- Regressando 0 nosso exemplo, os vérios casos discutides revelardo 20 es umas nas outras leva, naturalmente, a construgso de tabelas genealgicas ia Ji praticado por autores fundadores reconhecidos como Munzinger e, se bem. as frequentes na informagio, 0 que, por seu tumo, inctard a0 da investigagio, Pela minha propria experiéncia, posso dizer que muitas vezes os proble- j 3s 0s aspectos da vida ‘mas pareciam claramente resolvidos até comecar a escrever um pequeno ras- i nativa. Todos os tipos de transacgdes econdmicas podem ser estudados 30 Ethnologia Malinowski: Os Argonautas do Paffico Ocidental at Aeseritas, fcaré em muito melhor posigio p contacto com os natives de que qualquer outro dos outros vive efectivamente numa aldeia nativa, excepto durante periodos muito curtos, dado que cada qual mantém as suas prdprias ocupagées, 0 que Para resumir 0 primeiro ponto funds cada fendmeno deve ser analisado tendo e clspostos em tabela numa espécie de carta sindptca, visando a sua uilizasio Ihes absorve a maior parte do seu tempo. Além disso, o facto de ae suas rela- simultinea como instrumento de estudo e como documento etnol6gico. Com | ‘es com o nativo serem determinadas pelas posigées respectivas de comer a ajuda destes documentos e da andlise dos dados reais é possivel perspecti- i ante, misiondrio ou aciministrativo pode levé-los & necessidade de coagi-lo, var com clareza 0 contexto da cultura nativa, no sentido mais lato do termo, i transformé-lo, influencié-lo ou usé-lo, o que torna uma observagio real, objec- ‘menos no caso dos missionérios e dos administrativos. iver numa aldeia com o nico propésito de observar a vida nativa per- mite acompanhar repetidamente costumes, ceriménias e transacgées e acu- ular exemplos das suas crengas e do modo como sio realmente vividas. E assim o corpo e o sangue da verdadeira vida nativa depressa dario substin- ia a0 esqueleto de construgdes abstractas. Esta € a razio porque, trabalhando sob as condigies previamente descrtas, o EtnSgrafo consegue acrescentar algo de essencial ao esbogo rudimentar da constituiglo tribal, enriquecendo-a com intimeros detalhes do comportamento, do cendrio e dos pequenos incidentes. Ele est, enti, apto para afirmar circunstancialmente se um acto é publica ou privado; para descrever como uma assembleia publica se comporta e qual a sua aparéncia; pode, entio, julgar se um acontecimento é vulgar ou extraor- dindrio e emocionant Nio € necessdrio repetir que, a este respeito, o trabalho de campo cient fico est muito acima da melhor das produgées de amadores. Existe no entanto ‘um ponto no qual estes ltimos frequentemente se destacam. Refiro-me &des- crigio de alguns tragos intimos da vida nativa que nos trazem aqueles aspec- tos que s6 um contacto prolongado e de grande proximidade’com os nativos pode tomar familiares. Os resultados de alguns trabalhos cientificos ~ sobre- wente designadas como «trabalho de prospec» — dizer, um excelente esqueleto da constituigdo tribal, item varios fendmenos de grande importincia «que ndo podem ser recolhidos através de questionarios ou da andlise de docu- ‘mentos, mas que tom de ser observados em pleno funcionamento. Chamemo- -lhes os imponderabita da vida real. Neles se incluem coisas como a rotina de ‘um dia de trabalho, 0s pormenares relacionados com a higiene corporal, a através da observagso da maneira como determinado costume é posto em pré- tica, do comportamento to preciso pelo Emégrat ‘nos fendmenos sociol6gicos. Se todas as conclusées forem apenas b idas a partir de documentos fi] mas inequivoco como as vaidades e ambigGes pessoais tém reflexos sobre ‘0 comportamento do individuo e as reacgSes emocionais de todos 08 que 0 rodeiam. Todos estes factos podem e devem ser cientificamente formulados ¢ registados, mas é necesséio que isso seja feito no através do regsto super- ficial de pormenores, como acontece normalmente com observadores nao trei- rnados, mas com um esforgo de penetracio na atitude mental que eles expres- sam. E esta é a razdo porque o trabalho dos observadores cientificamente qualificados, desde que seriamente aplicado no estudo destes aspectos, pro- duziré creio eu, resultados de valor acrescentado. Até agora iso tem sido feito apenas por amadores, logo, de um modo geral, com um valor relative. Na verdade, se nos lembrarmos que estes factos imponderdveis mas rantes da vida real fazem parte da verdadeira substincia do 0s ¢ administrativos e, claro est, alguns dos missionérios inteligentes e sen- satos aos quais a Etnografia tanto deve - ultrapassam em plasticidade e riqueza vivencial a maior parte dos relatsrios puramente cientificos. Mas se 0 investigador de campo treinado puder adoptar as condigdes de vida acima agem do que 2 dos europeus ocidentais — mas emborao grau de sucesso possa Variar, todos devem tentar. Destes mergulhos na vida dos natives — que eu empreendi fre- quentemente néo apenas devido ao estuco mas porque toda a gente precisa de companhia humana ~ emergia sempre a clara sensagio de que 0 seu com- ‘ser, em todos as tipos de operagtes tribais, so ransparentes e facilmente compreensiveis do que me eram \contraré todas estas consideragées metodolégicas ilustradas, va For fim, passemos ao terceiro e tiltimo objective do trabalho de campo centifico, a0 tiltimo tipo de fenémenos que di a um retrato completo e adequado da cultura firme da constituiggo tribal e dos temas culturais c ara além do contorno as visbes, opinides e expresses dos nativos ~ deve ser registado. Isto porque, fem cada acto da vida tribal existe, em primeiro lugar, a rotina prescrita pelo costume e tradiga0, depois 0 modo como ¢ levada a cabo e, por fim, o comen- , de acordo com a sua mentalidade. Um homem que se sub- ‘obrigagées costumeiras e que actua segundo a tradiglo, fé-lo scompanhado de certos sentimentos, guiado sentimentos ¢ impulsos sio moldados e con- importancia garantir este ultimo ponto, e é talvez dade no estudio dos factos da psicologia cocia. Sem directamente & questo dos meios praticos para ultrapassar algumas ceuldades que ele Em primeiro lugar, hd que dizer que aqul nos restringimos a formas este- reotipadas de pensar e sentir. Como socidlogos, no nos interessa o que A ou. ‘Malinowski: Os Argonautas do Pacifico Ocidental 35 B possam sentir enquanto individuos, no decurso acidental das suas préprias ‘experiéncias pescoais; apenas nos interessa 0 que senter ¢ enquanto membros de uma determinada comunidade. Ora, nesta qualidade, os seus ‘estados mentais so marcades por um cunho especifico, tomam-seestereoti- pados pelasinsttuigbes onde vivem, pela inthiéncia da tradicio e do folclore, pelo proprio veiculo do pensamento, ou seja, pela linguagem. O ambiente ‘social e cultural em que se movem forca-os a pensar e a sentir de determinada maneira. Assim, um homem que viva numa comunidade poliandrica nao pode experimentar os mesmos sentimentos de ciime que um monégemo estrito experimenta, embora potencialmente o sentimento possa exists. Um Jhomem que viva dentro da esfera do Kula nao pode tornar-se permanente © sentimentalmente lizado a alguns dos seus bens, embora os valorize acima de tudo. Estes sSo exemplos simples, mas a0 longo do texto deste livro encon- tearemos outros melhores. ‘Assim, poderemos resumir oterceiro mandamento do trabalho de campo {da seguinte forma: encontrar os modos tipicos de pensar e sentir, commespon- cultura de uma determinada comunidade, e form- yma mais convincente. Qual ser4 o procedimento para isso? Os melhores escritoresetnogrificos - mais uma vez a Cambridge School ‘com Haddon, Rivers Seligman na primeira linha dos Ftn6grafos ingleses ~ sempre se esforgaram por citar terbatim os cepoimentos de importéncia fun- ‘damental. Os mesmos autores insistem ainda na utilizasSo dos termos nati- ‘vos de classificagio, termini technic saciol6gicos, pscol6gicos e industrias, ¢ na transmissio, tio precisa quanto possivel, da descrigio verbal do pensa- mento nativo. O Etnégrafo pode dar um passo importante nesta linha a0 aprender a Iingua indigena e ao utlizé-la como instrumento de pesquisa. ‘Trabalhando em lingua «Kiriwiv depare, de inicio com dificuldades, quando registava as minhas notas jé traduzidas. Muitas vezes a traducio roubava 0 toxto as suas caractersticas significativas ~ omitia 0s seus pontos de vista -, de forma que, gradualmente, fui impelido a escrever algumas frases impor- tantes tal como eram faladas na lina nativa. A medida que o meu dominio da lingua progredia, passei a escrever cada vez mais em lingua «Kiriwir, até que, por fim, dei por mim a escrever exclusivamente nessa lingua, tirando rnotasrapidamente, palavra por palavra, de cada afirmago. Mal cheguei a este ‘Ponto, apercebi-me de que, a0 mesmo tempo que estava a adquirir um mate- Fal linguistico abundante, recolhia também uma série de documentos etno- _grificos que deviam ser reproduzidos tal como os havia regstado, indepen- entemente da forma como os utilizasse na elaborago do meu trabatho final Este corpus inscriptionum Kiriviniensium pode vir a ser utilizado nao apenas ‘por mim mas por todos aqueles que, pela sua maior acuidade e habilidade de interpretagio, possam encontrar pontos que escaparam & minha atengio; isto 8 semelhanga do que se passa com outros escritos que constituem a base das vrias interpretaghes de culturas antigas e pré-histéricas; s6 que estas inscri- «Entre arte e ciéncia ou © Etnégrafo como heréi romantico»?: Malinowski e 0 trabalho de campo antropoldgico JiR. Dias [Em Maio de 1918, poucos meses antes de regressar a Inglaterra vindo das sw Malinowski registou os seguintes pensamentos no ‘«Fui passear um pouco, tentei concentrar-me. Ideias acerca do ‘a nafureza da minha ambigio. Uma ambigio que vem do 2, intoxicagéo com o meu proprio trabalho, a minha zo meu trabalho, ou trabalhos, ou na revolucio que desejo efectuar na antro- log ocala uma embigo verdadtemente av.» Minow . Divulgada por uma das maiores editoras durante muitos anos esta obra consttuiu o guia mais o smtodo scokgco modemo de tabalio de campo estaremos perante um processo de mitificagio da figura do cepsio das tages da Introd a Argonsuts of the Wester Pacfie~ que seguem. 4.znio nls ne inert wuts ram das meant pl er deste artigo. Ethaologla 1997) ns 68: 3953

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