Você está na página 1de 64
Direcéo Benjamin Abdala Junior Samira Youssef Campedel Proparagao de texto Sueli Campopiano ARTE René Etiene Ardanuy oseval de Souza Fernandes Capa ‘Ary Almeida Normanha Missa inguagem € scus sons | ‘Albano da Motta Mais, Sio’ Paulo (Série tundamentos) 2. Fonética 3. We 542301 mae 001.5 (17.) 001.542 (18.) Lingifstica 414 07. ¢ 18.) Comunicagéo 001.5 (17.) 54.18.) 410 (7, © 18) 1985 Todos os direitos reservados Editora Atica SA. Rua Bardo de lguepe, 110, Tel: (PABX) 278.9322 — Caixa Postal 6656 End. Teles Bomlivro” — Sao Paulo Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura 10 Figura 1 Figura 12 Figura 13 Figura 14 Figura 16 Figura 18 Figura 19 Indice de figuras j¢do da lingua —______ 29 10 de produgio da voz _______38 Exemplo de sendide 39 Area da audigao humana 41 Produgio do movimento harm: a Soma de sendide B Expectto glotal de voz de Fy de 120 Hz 45 Exemplo de propagagio de onda em tubo uniforme ———_—__ 47 Espectros 48 Espec enunciado [1 49 Espectrogra enunciado 50 Alfabeto Fo 84 Movimentos dos for entre vogais ¢ semivogais _—____— 87 1 de iorias e acusticas —_____ 61 diferenciagdes vocalicas € consonantais segundo o sistema de Jakobson, Fant e Halle 64 Distingdes entre as grandes classes segundo o sistema de Chomsky e Halle 68 Espectrogramas de banda estreita dos enunciados “O Brasil € 0 pais do futuro” e © Brasil era o pais do futuro” 9 Expectrogramas de banda larga dos enunciados “O Brasil € 0 pais do futuro” e “O Brasil era o pafs do futuro” 81 Sumario indice de figuras 3 1. Descobrindo a fala Roteiro bibliografico a 2. Explorando intuitivamente os sons do Portugués Roteiro bibliografico a3 3. 24 ~ 31 4. Incursdes pelo terreno do fisico______ 32 Roteiro bibliografico —_______. Si 5. 'Revivendo um velho dilema____s2 Roteiro bibliogritico 0 Afalaealinguagem Roteiro bibliogréfico 82 A forma e 0 uso — 83 Roveiro bibliogrético 90 O teorico e o empirico 100 O estatico eo 104 Roteiro bibliogratico 109 10. Olhando para o futuro 110 5 Vocabulério 6 Bi iografia at 1 Descobrindo a fala num mundo sem linguagem? Provavelmente nao. Voeé jai penso: Pois tente fazé-lo agora e verd que tudo que consegue é imaginar a vida formas aiternativas de linguagem, humana, Considere qualquer ples, como trocar as aves que vocé cagou pelos frutos que 0 vi colheu. E possivel exercé-ta sem linguagem? Vocé diri sim se por inguagem entende apenas a fala e a escrita. Mas dird ndo se por n entende qualquer forma de comunicagio. ntar imaginar a vida humana sem linguagem no é um exer- io ocioso. Através dele aprendemos que por linguagem podemos igumas delas n Preferéncia arbitra nos perscrutarmos um 10 do termo. Por que fazemos iss lade a0 senso comum? Conve pergunta com que iniciamos este capitulo & uma crenca na impor- tancia da comunicacio para a vida social. As divergéncias surgem S varias formas de comunicagao. » salientar as suas diferengas, Mas seria esta, como parecem pretender os nossos julgamentos, uma questo de tudo ou nada? Se voc’ admite que a troca mencionad: isso de o da ef © seu critério de cl ido o mesmo aguilo que tiver analogamente relacionados entre si. Nesse ¢: pal lecide separd-lo da fala e da esc Em ambos os casos, vocé de linguagem nao & a ivas convivem lado a fem razio, zestual yguagem é 0 que distingue o aderindo a segunda. Analogamen de curiosidade cient Jinguagem, esta escrita, estamos fazendo LInctit tido estreito. Se vocé ¢ fascinado(a) pela agi decisio que exi logo, professor de voeé pode nao ter nenhuma pensar a linguagem pelo prisma dissecador, a reflexao ica. Oport e do mundo, mesmo 0 m: primeira, Ji quando n dos outros anim: quando definimos 0 nosso objeto ica como tudo que pode funcionar como uma la acima pode ser r iguagem, 0 seu critério de tudo que tem 0 mesmo efeito deve, de ser considerado 0 mesmo. Se vocé, embora admitindo recusa-se a cham: sificagao € o da estrutura: sO deve componentes semelhantes ‘aso, € porque no h Javras © as frases que voce 86 que a sua concepcao ica possivel. A prova disso é que as duas tanto no senso comum como na mo a “lingua yemos que tamos aponta para outra inguagem falada ou ‘a ciéneia da linguagem em sen- yem, & certo que tanto a sta curiosidade, Abragar ige muita reflexao e cuida- e oportunidade. Opgtio porque iterario, inguas, fonoaudidlogo, etc. ticular para (0s pontos do Brasi vos da lingua DESCOBRINDO A FALA 7 se cle tiver entusiasmo ¢ paciéncia, as visdes estritas Ihe poderio oferecer uma infinidade insuspeitada de descobertas. Pense, por exemplo, no que significaria tomar a fala como ponto de partida para a investigagdo da linguagem. Se o fazemos arbitraria- mente, por crermos que a fala é especial por natureza, corremos 0 risco de perder de vista outros aspectos da linguagem, truncando a nossa compreensio da sua totalidade. Porém, se o fazemos por uma questio de método, isto é por crermos que compreender bem uma parte é um bom caminho para chegar ao todo, ento podemos mer- har a fundo na nossa curiosidade sobre a fala, sem temer que a linguagem se turve ou desapareca. Mas, mesmo admitindo que um mergulho desses possa ser pro- veitoso, por que escolher a fala como o seu lugar? Nao se trata aqui de simples preferéncia, Ha importantes questdes de método que fala € a porta de acesso mais facil ao estudo dda linguagem sm, embora de forma dis- torcida, na tendéncia do leigo a identificar intuitivamente fala com linguagem. isto & aponta atividades, esse apontar pode fazer-se com maior ou menor ex Em outras palavras, a correspondéncia entre a atividade apontante ¢ a atividade apontada pode ser mais ou menos clara. Por I como as de computador, ela & ssima: perfurar o cartéo de uma certa maneira leva sempre @ viquina a executar as mesmas operacoes. Em contrapartida, nas Tin- uagens artisticas, ela é extremamente vaga ¢ obscura: uma mesma misica ou quadro pode, a0 mesmo tempo, levar a agéo e & contem- plagio ou, ainda, inspirar emogdes velhas ou novas, intensas ou suaves, agradaveis ou desagradaveis. Entre os extremos da computacio ¢ da arte, estéo as chamadas linguas naturais, isto é aquelas que, como o portugues, 0 inglés, o chinés ou o banto, se apresentam inicialmente, no individuo ou na sociedade, sob forma falada. Talvez a caracte- ristica mais marcante das linguas naturais seja justamente a elastici- dade das suas significagies: uma frase como “é proibido fumar” tem ‘uma interpretagéo bem especifica num quarto de hospital € outra, bem aberta, num poema concreto. © que faz as linguas naturais tio eldsticas a ponto de nos permi- r, ao mesmo tempo, escrever poemas € pensar nodes matematicas? it foi dito que é a historia do seu uso, isto &, uma vez tendo-as usado cficazmente para certos fins, o homem teria tendido a aplicé-las inde- damente novas situagdes, 0 que as teria tornado cada vez mais lexiveis. Ja foi dito também que é a sua estrutura, isto é dadas 8_DESCOBRINDO A FALA certas propriedades das linguas naturais, tais como a segmentabilidade (isto € a capacidade de desdobrar-se em unidades, tais como palavras, sons etc.) € a combinabilidade (isto é, a capacidade de combinar as unidades de maneiras variadas), multiplicar os seus usos seria extre- mamente simples. Talvez a verdade esteja entre esas duas posigdes, pois nao é impossivel, para um objeto complexo e antigo como @ lin- ‘guagem natural, que histéria ¢ estrutura se tenham influenciado mutua- mente desde 0 inicio. Se as considerarmos tanto do ponto de vista histérico como do ponto de vista estrutural, veremos que nao é surpresa que as linguas naturais sejam principalmente faladas. (E preciyo dizei porque ha linguas naturais ges dos surdos, que, conforme foi constatado por pesquisas recentes, es de uma lingua falada.) € que, tum animal que trabalha, é vantajoso utilizar a audigio para a comu- niicagao, deixando os demais sentidos livres para exercerem outras a dades, que podem ou ndo ter fungdes comunicativas. Uma razi estrutural para o primado da fala & que, por ser produzida através das vias respiratorias, ela tem articulagoes naturais, 0 que a torna segmentavel, combindvel e, portanto, capaz de veicular muitas mensa- gens com poucos recursos. Suponha, por exemplo, que “pa si “careito” numa lingua hipotética. Como essa palavra se divide em dduas porgdes ARTICULATORIA © acu as, a saber, 0 © 0 a, néo é impossivel que na mesma combina as mesmas naturais é que a dependénci: precisos ¢ convencionais da fal: la e considerd-los pensou como é ites. precisos? Pois outro, € facil estabelecer limites entre os sinais da fem separado (assim como em conjunto). Voce dificil estabelecer convengdes sobre objetos sem a fala, embora no tei 5 Uo precisos assi tratada como se 0s tivesse. Considere, por exemplo, as palavras. Na fala corrente, clas nao tém nenhuma separacao ai 6 ci 08 sempre possivel inseri separagdo, ou exagerar os seus ac se pode dizer das silabas: a prontincia silabada e superarticuluda nio é comum, mas nio deixa de existir em cerlas ocasioes. E 0 mesmo, DESCOBRINDO A FALA embora com maiores ressalvas, se poderia dizer ainda daquelas uni- dades menores que, tais como 0 p € 0 a, Sa0 chamadas SEGMENTOS: tornando o seu p mais forte e explosivo, vocé conseguira separé-lo do a, ainda que a seqiiéncia soe um pouco artificial. Sendo elas mesmas recortaveis e podendo, além disso, ser decom- postas em unidades também nitidamente recortéveis (isto €, 08 seg- mentos), nio é de admirar que as palavras possam, 3s vezes, ser tomadas como os signos mais precisos de uma linguagem artificial. Palavras nio so s6 rétulos, mas podem sé-lo se assim convencionar- mos. Por outro lado, os seus recortes auditivos, uma vez conhecidos, nao necessitam ter manifestagdes fisicas claras, permitindo que elas fluam na fala com extraordindria rapidez € economia de esforco. Isso, por sua vez, compromete a precisdo, embora raramente afete a . assim, nas linguas naturais, uma permanente © Se essa tensio ¢ uma das caracteristicas mais marcantes das yguas naturais € se ela é pelo menos em parte, determinada por que chamamos segmentabilidade ou recortabilidade, entao a fala intissima para o estudo da icional da primeira deve-se, parcialmente menos, a elasticidade estrutural da segunda: & a possibilidade de se introduzirem variagdes no nivel do segmento, da palavra cte. que fe que Wm mesmo ENUNCIADO seja promunciado de diferentes s, podendo, portanto, assumir diferentes fungdes. O que é, entio, a fala, essa forma de re cae estruturalmente privilegiada da nas uma faceta da facetado. Considere, por exemplo, c& palavra tal como “aqui sbes fisicament uma assercio, admoestagio ete, Al icar-se numa infinidade de ver- soara diferente se é uma resposta, uma adverténcia, um lamento, uma n disso, cada uma dessas interpretagdes soard em que esta ‘© mesmo que uma res- , assim como uma resposia a um colega ou ‘amigo nfo & © mesmo que uma resposta a um superior. Mas isso ainda nao ¢ tudo: mesmo que todas as demais condigdes se man- m constantes, a proniincia de qualquer enunciado poderd v iar 1e_DESCOBRINDO A FALA também com a procedéncia regional e social do falante, com as suas, caracteristicas individuais e até com as suas disposigdes momentineas. (© que significa, entdo, dizer que dois enunciados falados séo idénticos? A resposta aqui, como em muitos outros campos do saber, depende do ponto de vista adotado. Representando alguns dos pon- tos de vista possiveis no caso em estudo, encontramos disciplinas eas inteiras. Comecemos pela identidade fisica, Vocé sabia que, por maior que seja a semelhanca auditiva entre dois enunciados, as medidas fisicas utilizaveis na sua descricao dificilmente atingem valores idén- ticos? A razio disso é que as condigdes exatas de produgdo de um enunciado nunca se repetem. Ha, no méximo, aproximagdes — nunca identidades. Assim, mesmo o fisico tem de estabelecer critérios de classificagio para dizer que o som que produzo agora é 0 mesmo que produzi ha pouco. Isso, incidentalmente, vale também para outros fendmenos aciisticos que nao a fala, Por outro lado, nenhum outro fendmeno aciistico est tao sujeito psicoldgicas como a fala. Se voeé, por exemplo, substituir experimentalmente 0 m de “Eu te amo” por um siléncio, surpreen- der-se~i de constatar que permanece ouvindo a “mesma” frase © que continua a fazé-lo mesmo se remover ainda uma boa parte de cada uma das vogais adjacentes. E que 0 seu reconhecimento dessa frase no se baseia na contribuigio linear de cada segmento € sim na confi- guragio aciistica do todo, que é bastante conhecida, Vé-se, assim, que a identidade psicologica pode se distanciar bastante da identidade fisica: um siléncio pode substituir um m, um s, um v etc., sem que 0 enunciado seja percebido como alterado, desde que 0 ouvinte dis- ponha de outras pistas (por exemplo, a familiaridade com 0 todo) para reconstituito. Combinar critérios fisicos & psicolégicos para determinar as iden- tidades que Ihe interessam é 0 que faz a FoNETICA, a da fala em sentido estrito, A Fonética estuda os sons que, dentre aqueles que © aparelho vocal humano pode produzir, so passiveis de ser usados Isso, ao que se sabe pelo estudo das vidas, exclui coisas tais como tosses, beijos e arrotos, ‘mas inclui uma vasta gama de sons cuja principal caracteristica & a variabilidade estru Ja sabemos que, tanto na fala como no mundo, nenhum som & exatamente idéntico a outro. Entretanto isso ao impede que sons fis que podem servir como base para uma identidade psicol © p de “pa” € 0 p de “px movimentos dos ARTICULADORES na fisicamente diferentes, porque DESCOBRINDO A FALA Tt passagem da consoante A vogal sio muito diferentes. Tal diferenca, porém, nao ¢ foneticamente relevante, pois, na medida em que é praticamente inaudivel, torna-se improvavel que qualquer lingua a escolha para desempenhar fungdes comunicativas. ‘A fala se torna ainda mais interessante quando se nota que nem todas as diferencas fonsticas — isto é aquelas que sio suficientemente Sbvias para serem usadas comunicativamente pelas Iinguas naturais — so igualmente exploradas para fins de comunicagéo nas linguas conhecidas.’ Combinar critérios comunicativos de identidade aos cri- os € psicolégicos da Fonética é tarefa da Fonologia, a tas comunicativas da fala, A Fonologia erige-se sobre diferenga fonética pode desempenhar iferentes em linguas diferentes. Por exemplo, em pot- som inicial chiado e outro sem chio em lavras istingue DIALETOS, mas nao palavras, isto dla diz se sou carioca ticha, mas nao diferencia entre coisas que eu possa e com out sem chio, estarci lando cem inglés, a mesma diferenga distingue alavras que designam coisas diferentes, tais como in, “lata”, e chin, FE esse tipo de relagio entre a forma fonética © a fungao ‘de um enunciado que interessa a FoNoLosia. Para essa podem ser considerados do comu- numa lingua se nela deser hiicativa. Assim, do ponto de vista jintos em portugues g se dar conta de que “falar a coisa 10 simples. Reflita um pouco mais uugora ¢ constate que o mesmo se pode dizer da nocao de “fazer a mesma coisa”, que & 0 que esta em jogo sempre que tentamos des- er © comportamento humano. Se repito uma agio tal como cogar beca em duas ocasides diferentes, estou, de fato, fazendo a mesma de um ponto de vista, mas cessariamente de outro. E simplesmente respon- coceira, enquanto noutro eu esteja querendo cexpressar um estado de preocupagdo, A ciéneia que procura determinar {NE que ponto estamos fazendo a mesma coisa quando tepetimos um comportamento & a Psi uma das mais dificeis ¢ controversas, uum tipo de compor- hoje as ciéncias da me da Psico- fala tém apresentado uma problemitica to 12_DESCOBRINDO A FALA Pense na ilusio psicokigica a que nos referimos acima. Se dois ‘objetos fisicamente tao diferentes quanto um silencio e um m podem ser confundidos sob certas condigdes ¢ chamamos a isso wma identi- dade psicoldgica, entio 0 critério para determinagio dessa siltima nao esté_no mundo € sim no individuo: o que esté em questio é 0 que ele faz com os objetos € nao os objetos em si mesmos. Mas 0 que faz, de fato, luo quando trata como 0 mesmo dois abje- tos diferentes? Estaria ele respondendo a condicdes de semelhanca o proprio mundo? Ou estaria apenas externando semethangas que vém de dentro de si mesmo? A Psicologia, desde os seus primérdios, vem oscilando entre defi nir 0 comportamento como uma reagio ao ambiente mediada pelos sentidos ¢ defini-lo como uma expressio da organizacio mental do proprio individuo. Isso nada mais © do que uma nova versio do velho debate entre FMV IKISO © KACIONALISMO, ay duas posigdes mais tradicionais da rEORIA 90 CONHECIMENTO, que disputam se o conhe- cimento emana da experiéneia (dai o nome empirismo) ou da razio (dai 0 nome racionalismo). Historicamente, as ciéneias da linguagem iMhade com a Psicologia nesse tipo de flutuagio: a cosiuma seguir-se uma maré empirista, que, por ‘aque do entio jovem Noam C! ieologica mais influente da época, © cha- recep- 10 © Fepetigio — tor que a sintaxe das linguas naturais j© complexa ¢ ambigua que seria impossivel aprendé-la sem uma inteligéncia ativa capaz de discernir entre as varias interpretagoes possiveis de uma como se segue fas — se rest iagdo de palavras, seria inguir ao menos dois sentidos para expressies onde “os soldados” tos tanto como matadores quanto como vitimas. A idgia é a de que as relagdes superfiviais entre as palavras — que constituem a base empirica das associagdes —— sao idémticas na primeira © na segunda DESCOBRINDO A FALA 13 leitura, nao podendo, portanto, explicar a diferenga entre elas. A originalidade e a veeméncia da argumentagdo de Chomsky acabaram por deslanchar uma revivescéncia do racionalismo que rapidamente se espalhou da Linglistica para todas as cigncias humanas. Vocé est penetrando no fascinante universo do estudo da lin- guagem e da fala num momento dificil, porém promissor, pois & agora que a poeira levantada pela chamada revolugao chomskyane esti co- mecando a se assentar. Isso — nao é excitante? — faz voc’ aterrissar bem no meio de uma controvérsia, que pode ser resumida aproxima- damente como se segue. Ainda que Chomsky tenha argumentos muito fortes contra a Psicologia ¢ a Lingilistica empiristas dos seus predecessores, a sua defesa de uma alternativa fortemente racionalista muita gente insatisfeita. A questio que se coloca é, portanto: haveria uma terceira via entre o racionalismo e o empirismo, ise pensar a linguagem ngo como um reflexo do meio ou ividuo, mas algo que se constitui na telagio dos dois? Nao se intimide ante a aparente solenidade da questi, No mundo do saber, os maiorey progressos se fazem quando Davis como voce enfrentam os Golias das grandes ¢ recorrentes questdes. Além disso, niinguém espera que voc’ 0 faga sem conhecer, pelo menos em parte, © legado dos que nos antecederam na dificil empresa de dissecar as entranhas da fala ¢ da linguagem Pois, se este © outros desafios encontrados aqui fazem vibrar alguma corda dentro de voce, saiba que esté convidado(a) a empre- ‘ender uma longa viagem pelo intrigante universo do estudo da fala, {que incluira nao s6 reconhecer caminhos ja explorados como também descobrir os seus prprios caminhos. Como bagagem, traga apenas. curiosidade, inteligéncia, intuicao © ousadia, E de mim, que serei seu guia, nao espere sendo pistas — nelas nao se fie tanto, pois 0 que ora nos separa é obra das circuns- Uncias: jé estar ew percorrendo estas paragens hi um pouco mais de tempo. Para uma introdugo as idéias de Chomsky, ver a acessivel, po- introdugio de John Lyons (1970). Ver tam- a, porém altamente critica, da obra de Choms- lésofo John Searle (1973). Finalmente, para as informagdes sobre 0 autor, ver Smith ¢ Wilson (1979). uma idéia das repercussées do pensamento de Chomsky na ver Maia (1975) e Slobin (1980) 2 . Explorando intuitivamente os sons do portugués __ Se alguém the perguntasse quantos sons distintos tem 0 portu- ‘gués, voce nao saberia responder de antemao, mas certamente nao serin incapaz de procurar uma resposta. Como falante da nossa lingua, voce tem intuigdes claras sobre como ela segmenta 0 fluxo da fala, Em outras palavras, 0 que vocé percebe ao ouvir portugués nfo é um continuo, mas uma cadeia de sons discretos, que, como ja vimos, denominam-se segmentos. Simbolizando cada segmento por um sina arifico e transcrevendo assim um grande mimero de palavras, vocé poderia empreender um levantamento para buscar uma resposta aquela inusitada_pergunta, Consideremos primeiro 0 problema de inventar sinais gréificos para designar segmentos que 0 seu ouvido distingue. Em muitos casos, © alfabeto comum poderia ser aproveitado, jé que 0 principio bético consiste justamente em representar segmentos por letras. Jé em outros haveria necessidade de propor simbolos especiais, pois a nossa ortografia nao s6 usa a mesma letra para representar segmentos dis- tintos como também usa letras distintas para representar 0 mesmo segmento. " Estdo inequivocamente no primeiro caso os simbolos consonan- tais c, 5, x € 1, 08 digrafos qu e gu e os simbolos vocdlicos Suponhamos agora que voeé tenha decidido acabar com essas ambigilidades atribuindo um simbolo a cada segmento representado EXPLORANDO INTUITIVAMENTE 0S SONS..._15 EXPL ORANDO INTUTTIVAMENTE OS SONS.-._1 por aquelas letras. Para distinguir os segmentos iniciais de “céu” ¢ Neasa™ voce poderia adotar, respectivamente, s e k. O s permaneceria representando o segmento inicial de “sapo", mas seria substituido por ‘sempre que soasse como em “casa”. O x, por sua vez, desapareceria do alfabeto e seria substituido por s em palavras tais como “maximo” fexto”, por z em palavras tais como “exame”, € pelo simbolo especial f em palavras tais como ““xadrez”. Ja o r permaneceria repre sentando 0 segmento medial de “caro”, mas seria substituido por R rno segmento medial de ‘‘earro” € no segmento inicial de (Esta @ uma generalizagao foneticamente inacurada, que serd corrigida no capitulo 5.) ‘Outra letra que poderia desaparecer do alfabeto sem nenhum prejuizo ¢ oq. Em lugar do qu de “quente”, vocé poderia usar k, tomo em “casa”, No lugar do qu de “quando”, vocé poderia usar k mais uma vogal, pois hé aqui uma seqléncia de segmentos, um idén- fico aos de “casa” © “quente” © outro com um som intermediério entre a8 vogais u € 0. Para esse sltimo, seria interessante adotar a jetra prega tw — Omega — que designava um som semelhante no rego antigo. J4 o g permaneceria no alfabeto, pois vocé precisa dele para representar os segmentos iniciais de “ga ‘guerra. Por sua Nez, o pu de “guaco”, & semelhanga do k de “quando”, deveria ser transcrito goo, pois af também ocorre a vogal intermediria mencionada ha pouco. Somente em palavras tais como “gent og desa- pareceria, dando lugar ao simbolo especial 5. ote que os simbolos especiais'f ¢ 3 (respectivamente, de “xa~ ddrez” e “gente”) ainda poderiam ter uma outra utilidade. Nos dialetos fem que 01 ¢ 0d tém uma proniincia “chiada” antes de i, vocé poderia usar if e d 3,tespectivamente, para distingui-los do 1 ¢ do d comuns. (© caso das vogais ¢ um pouco mais complicado. Em portugués, ha diferencas fonéticas bastante claras entre vogais tonicas ¢ tonas, 's como 0 primeiro e 0 segundo a de “casa”. Se vor’ decidir repre~ sentar 0 primeiro por‘a”, teré de achar um outro simbolo para 0 segundo. Digamos que esse seja e , isto 6, um"“a"invertido. Um mimero ainda maior de segmentos é englobado pela letra e. ‘Aw lado da vogel inicial do pronome “ele”, tem-se a do nome da 1. Como a primeira € mais freqiiente, vocé poderia reservar a para ela e adotar a letra grega ¢ (epsilon) para a segunda, pporém, nao resolveria todos os problemas: o segmento que é smo e em posiglo dtona final, na maioria dos di letos brasi- & pronunciado como e, mas sim como uma vogal de quali- lermediatia entre e e ¢ (compare, por exemplo, bebé, bebe 16 _EXPLORANDO INTUITIVAMENTE OS SONS. € bebi). O alfabeto grego poderia aqui ser dil mais uma vez, forne- cendo uma letra ai a + (iota). Essa seria usada, além disso, em que a mesma Vogal ocorre A situacdo da letra 0 € andloga & da letra e, Como ela soa mais freqiientemente como a primeira vogal de “ovo”, conviria reservar | correspondente em “ova” iio, digamos, 2, que é seme- a mesma de sugerido aci tica & de jure, seria graf comum. Analogam de “vemos”, se 1 comum, Agora que vocé ji dispoe de simbolos para diferenciar certos ia portuguesa ignora, convém exa- minar a outra face da questo, isto ¢, onde a ortografia usa simbolos distintos para representar o mesmo segmento, Para deixar claro que voce poderia adotai De acordo com as convengdes ac substitui 0 ¢ em © simbolo [s] © 08 digrafos ss, se exc ivamente. Por sua vez, 0 simbolo [2] subs "© 0 x de “elzlisti’ ina, a um tempo, 0 x € 0 ch do alfabeto. Tem-se, m, [fa], a bebida, e [fa], monarca da Pérsia, indiferen- ciados como sio na prontincia, Analogamente, o simbolo [5] elimina a necessidade do je desambigua 0 uso dog. Uni assim, a grafia de “[3}feito” & Como ficou convencionade, o simbolo [g] usado somente em palavras como “{g]alo 0” e “{glelr dade do digrato gu. O digrafo qu também do simbolo [k], que, além de substi necessidade do ¢ em “(kjaro Finalmente, os simbolos voc: 1 substituem, res- pectivamente, ¢/i, a € 0/u em contextos limitados. Eles designam vogais dtonas que ocorrem preferencialmente apés a sflaba ténica, iminando a necessi- lo pela introducao [klero”, elimina a icos EXPLORANDO INTUITIVAMENTE 05 SONS. tal como em “bulf:]”, “sale al ditongos, tais como em “afes]to” © “pel:Ito Embora esses simbolos constituam um grande passo na nossa tarefa de inventariar os segmentos do portugués, vocé ainda deve estar preocupado com alguns problemas pendentes. Por exemplo, é preciso cujo uso na ortografia por- tuguesa & inteiramente arbitrario do ponto de vista fonétici é-la nos usos mudos de “hoje” © “hera” é bastante problema reside em como substitui-la nos digrafos th e mh. Afinal, cada um deles representa um Gnico segmento, ¢ 0 uso de um digrafo poderia dar a impressio de uma seqiiéncia. A solugio é, pois, escolher dois simbolos arbitrarios: digamos, [<] para th e [n] para nh. finalmente, 0 caso das vogais NASAIS, cuja representagio jusa em portugués: comparem-se “sam- influenciado pela orto- quase sempre, um m em “samba” ¢ 1s. esses, quando existem, sio extremamente is dessas palavras nao fortemente nasal € no uma seqiiéncia de vogal mais consoante, como ouvir decerto se pedir a um inglés ou americano nativo para pronunciar as palavras & pan, “panel izar 0 © adotar a grafia “vogal acompanhada de til” para uni- ficar os trés casos a e vogais dos chamados E preciso, além disso, fazer alguns ajustes quanto ao simbolo voes- Tico, porque as vogais nasais nao soam exatamente como as vogai orais correspondentes“Assim, a vogal de sa” & mais proxima de [e] do que de [a]. 0 que va a adotar o simbolo [é]. Da mesma forma, as vogais de " 10 mais prOximas, respectiva- mente, de [e] € [o] do que de [2] ¢ [a], © que nos leva a adotar os simbolos [@] ¢ [6]. J4 em “cinto” “rumba”, a qualidade das vogais entemente proxima de [i] e de [ul para que possamos famente, 08 simbolos [i] € © que voce acabou de fazer foi reinventar uma boa parte do Alfabeto Fonético Internacional, um instrumento criado pela Assocta- ko FoNética INTERNACIONAL para unificar a prdtica da TRANSCRICKO FONETICA, isto é, a arte de representar graficamente as distingBes foné- ingua. Dizemos “arte” porque a transctigdo foné- ‘a quanto pode parecer & primeira vista. E claro que bons conhecimentos sobre os processos de producto e percepesio da fala podem ser tcis na sua realizagio. O que cles nao podem tica nao € t20 obje {t_EXPLORANDO INTUITIVAMENTE 08 SONS. fazer, entretanto, & substituir um bom ouvido € uma certa dose de bom-senso na escotha dos simbolos do nivel de detalhe a ser repre- sentado. Seria certamente ocioso perder-se em detalhes na transcrigio de todo © qualquer segmento num estudo que enfocasse exclusiva- ‘mente, por exemplo, a prontincia do “erre” em portugués. Num caso assim, 0 bom-senso mandaria que prestéssemos atencao a0 proprio “erre” e a tudo que ocorre sua volta, mas no certamente a [4] ou Lm], que nao coocorrem com {r] ou [R] em portugués. A transcrigio fonética é, antes de tudo, um meio que se deve ajustar, a um fim, Nao existem transcrigdes perfeitas, pois mesmo fonetictstas treinados dotados de ouvido absoluto discordam, as vezes, sobre um mesmo estimulo. O que pode existir é uma transcrigao cuida- dosa € flexivel, que nao s6 evite simbolos incomuns para no sobre- carregar a leitura mas também permita a adigao de detalhes na medida da necessidade. Isso ocorre porque o nimero de detalhes que se podem ouvir e, portanto, grafar é praticamente indeterminado. A fala € para o foneticista como a floresta para o indio: com atengdo ¢ perseveranca, ele aprende a distinguir e identificar uma enorme gama de sons que para 0s outros nao passam de vores do siléncio. Suponhamos agora que vocé tenha atingido um certo grau de familiaridade com as “vozes” da fala, isto é, tenha-se libertado da influéncia da ortografia e tenha conseguido fazer uma_transcrigao fonética sem grandes detalhes, mas fiel as distingdes fonéticas detec tadas pelo seu ouvido. Suponhamos, ainda, que vocé tenha transcrito dessa maneira um vasto material do portugués, O seu problema agora € como organizar 0 material de modo a responder & pergunta com que iniciamos este capitulo. Se vocé der sorte, poderé encontrar um texto onde rapidamente se sucedam todos os segmentos que vocé convencionou distinguir em portugués. Com a repetic¢ao dos simbolos, vocé acabaria convencido de ter esgotado o seu levantamento, © texto que se segue, transcrito de uma conversa entre amigos, constituiria um bom exemplo. Vale assinalar que esta transcrigdo nao & muito acurada, na medida em ‘que preserva espacos ortograticos nao correspondentes a pausas foné- ticas (0 que facilita a leitura) ¢ omite quaisquer sinais referentes & ENTOAGHO, Pedro; kwedw e koe akétsém / Pedro: Quando a coisa aconteceu / by ere garde // tfine Iv eu era garoto, Tinka 14 pelos peluz mews kwatro fnes // meus quatro anos. Tava ainda tave ide t8@ verdginw // to verdinho. EXPLORANDO INTUITIVAMENTE 05 SONS..._19 dgepoz wv 38tfe krisées obskurdtfezmo // 80 dave kope do mide / pre frétf bravo //eskole uma Saropade Paulo: E depois a gente cresceu naquele obscurantismo. $6 dava Copa do Mundo, “pra frente A escola. uma xaro- Pedro: propagide de Pedro: Fazendo propaganda do Resim: // fazén tudo pra Regime. Fazendo tudo pra em- Tota w pésaméto de 3étf: // botar o pensamento da gente, Paulo: £, Mas olha... Pensa mento ¢ igual a mata cerrada: quanto mais c Paulo: ¢ // maz ofa / pésamétw ayy mate seRAde /; mavz.nist// » mats kot mais nasce, Nesse texto voce enc portugués no nivel de d ira todos os segments que ocorrem em e escolhido para a transcrigao (chamado 5.2 $ 3. mM MS iz. Contando-os, voce vou as suas investi- Lar R, fobterd uma resposta para a pergunta que m gacdes: 34. Mas seria essa resposta realmente satisfatéria? Ou, em outras palaveas, existiria, de fao, uma maneira de inventariar (e contar) inequivocamente os segmentos do portugués? Uma davida que voce certamente teri & até que ponto esses resultados nao sao fabricados pelo nivel de transetico que voc? eseolheu. Com uma transcrigao larga, obtém-se 34, Com uma trans- crigio estrcita, fatalmente obter-se-iam mais, 0 que ¢ profundamente inquietante para 0 seu espirito cientifico. Nao haveria uma maneira — pensard vocé — de determinar esse niimero mais objetivamente? Foi diante de impasses como esse que certos lingiistas ¢ fone- ticistas do comeco deste século inauguraram a Fonolos racioci= naram que, embora 0 nimero de segmentos que o falante/ouvinte poste ir seja muito grande, 0 niimero daqueles que @ lingua usa para diferenciar palavras & sempre consideravelmente menor & propuseram que € dai que deve partir a investigacdo linglifstica dos sons da fala. Um exemplo do capitulo pasado pode voltar a ser stil aqui. Como vimos, os segmentos {t,'} € [03] no se incluem entre os ‘que podem distinguir palavras em portugués. Isso se deve ao fato de eles 86 ocorrerem antes de i, contexto em que [t] ¢ [d] no ocorrem. ‘Como existem em portugues muitas palavras em que [t] e [d] desem- contrastarem entre si “chato”, “jato”, “mato”, deré-los como unidades segmentais ba © (45) Se, ao enfrentar © probl ima, vocé teve a idéia de agrupar segmentos em torno de outros segmentos mais bisicos que tenham um papel distintive na lingua, vocé acabou de reinventar uma das nogdes mais importantes da 0 FONEMA. Isso niio € surpresa porque as grandes descobertas cientificas sempre se fazem muitas vezes: por exemplo, quase todos os grandes: matem: nvencao do alfabeto — que se base passando pela Grécia e a India an \de descoberta da Lingiifstica IS mais centradas. na cont fa idgia do som), outras mais centradas na estruturagao da lingua (por exemplo: uma classe de sons que desempenham a mesma fungio). O que todas elas tém em comum € ver 0 fonema como uma abstragio, uma entidade se manifesta através de segmentos fonéticos mas nao € necess: mente idéntica a eles, Assim, podemos dizer que em portugués /t/ ¢ /4/ sto fonemas oneticamente como [t] ou {tf} € [d) ou (a3), respectivamente. © fato de convencionarmos representar seja idéntica ae repre © fonema por uma de suas variantes nao significa que aele, mas apenas que ela ¢ 2 sua manifestaco mais, senti Por que vocé ni itulo por um novo agora encarar a pergunta do inicio deste € respondé-la fazendo um levantamento vocé ji dispde de dois instrumentos Para determinar se dois segmentos distinguiveis entre si sfo tam- bém distintos do ponto de vista da sua funcao no sistema lingiiistico, vocé pode substituir um pelo outro numa série de palavras da lingua € verificar sea mudanga implica alteragao referencial da mensagem. Assim, dizer [tie] om lugar de (tf ie} néo modifica a REFERENCIA da ‘mensagem (isto é podemos estar falando da mesma pessoa), de onde se conclui que [t] [tf] nao sdo distintos em portugués, embora sejam distinguiveis. Por outro lado, dizer “{flaca” em lugar de “[vJaca” EXPLORANDO INTUITIVAMENTE 08 SONS..._21 modifica inteiramente a referéncia da mensagem (isto & no podemos estar falando das mesmas coisas), de onde se conclui que [fl e [vl além de distinguiveis, sio distintos em portugués. Neste ponto vocé ja deve ter encontrado vérios atalhos para a tarefa de comparar pares de segmentos em portugués. Por exemplo, a lista considerada acima ao discutitmos o caso de /t/ e /d/ pode desdobrar-se em nada menos de 21 PARES MINIMOS, isto é pares de palavras que diferem apenas em um segmento: Isto nos permite esta~ belecer contrastes entre doze segmentos: “[plato”, “[b]ato”, “[d]ato’ mos dezesseis segmentos dis- m agora apenas {&], [1] e [x], uma vex que [t'} © {43} jé foram descartadas. Provavelmente, voce ja se adiantou em encontrar novos pares minimos: por exemplo, “pula “putn}a”, “pufrla”. Chegamos, portanto, a dezenove consoantes. ‘Ao exami necessirio lembrar que elas variam s. Teria esse uma funcao di “para” exami Wvras de significados diferentes. § jade que se superpd a nossa decisio, pois é © fonema nao ¢ um som, mas uma enti- pois, tanto quanto ponsdvel por d © acento nao é coerente com a idk dade sonora abstrata Passemos agora contraré logo uma I “s{3le0 /*s{ilga". Com iss Entretanio nem todas essas vogais diferem entre si da mesma forma. Como 0 acento, a nasalidade ¢ uma qualidade que se superpde 2 vogal sem mi mente 0 seu som original. Assim, [a] € lel, [ele (2 |] ¢ [ul € [a soam muito préximos, exceto pela nasalidade. Para sermos consistentes com a nossa decisio acerca do acento, temos de considerar que a nasalidade & responsével pela distingdo entre os pares acima, sendo, portanto, um fonema . voc’ conta doze vogais. Isso importa numa substancial economia de fonemas, pois, em lugar de sete vogais orais ¢ cinco vogais nasais, temos sete vogais orais ¢ tum fonema abstrato den so também distintas. Lem- bre-se de que voce ju que 0 acento tem uma fungio distin- tiva em portugués. Se considerar distintas todas aquelas vogais, voce estar atribuindo a mesma fungio a mais de um fonema, pois os fonemas vocélicos adicionais que postular s6 ocorrerao em _posic: dtona. E mais permanecer considerando 0 acento distin e entender [:), [e] € {w] como realizagdes de /i/, /a/ € /u/ naquela posigdo. jé que fil, [a] e [u] nao ocorrem portugués apresenta ainda guimos captar através da fendmeno restrito as vos cas que podem coocorrer com outra vogal numa silaba ei por exemplo, ] € [pete]. J4 decidimos que tais vogais sao, na reali- isso nao explica contrastes onde os segmentos siio os mesmos fol, fol € fal, (ol, (:, {s] — mas diferem quanto ao seu agrupamento em silabas. As vogais finais de constituem silabas separadas, enquanto os de “vou do acento ¢ da nasalidade, € postal dade, que se superporia as vogais. Em outras palavras, uma vogal pode ser silabica, isto é, ocupar o centro da silaba, ou assilabica, isto 6, ocupar as suas margens. Na prética de transcrigao, & costume usar-se o sinal diacrit ferencial) [-] para representar © caso me~ nos comum, ou seja, a assilabicidade. Assim, os pares em estudo stio transcritos foneticamente como vo[w]/volw] e “dof:Js"/“*dofJs”. Con- siderando que [2 ¢ [00] so variantes de /i/ ¢ /u/, a sua TRANSCRIGKO /vou/ versus /vou/ © /dois/ versus /dois/ Chegando a este ponto, vocé j& avangou quase meio século na ist6ria recente da Lingiifstica. Grande parte do esforco dos lingiistas dos anos 30 e 40 consistiu em criar procedimentos para descobrir os fonemas de uma lingua ¢ estabelecer convengdes para reduzi-la a uma escrita fonémica. Vocé pode imaginar que esperanca isso representou no s6 para os lingiistas interessados em investigar linguas desco- nhecidas como também para os professores de linguas ¢ estudiosos das patologias da fala, que também necessitam de uma maneira econdmica © objetiva de representar o sistema sonoro de uma lingua. _ EXPLORANDO INTUITIVAMENTE 05'SONS..._ 23 Convertendo as suas transcrigdes fonéticas em transcrigdes foné- micas (isto é, eliminando os detalhes fonéticos que no tém papel distintivo na lingua), voce Fa uma nova resposta para a nossa pergunta inicial: 26 fonemas segmentais ¢ 3 fonemas que, por se superporem a fonemas segmentais, serdo chamados SUPRA-SEGMEN- Tals. Vamos supor que 0 seu interlocutor tenha ficado satisfeito com essa resposta, mas construa em cima dela uma nova pergunta: “Quer 'a eu conhecer esses fonemas para saber falar portugues?” apressard em responder que nao. Mas a curiosidade do seu at para ai: ele quer saber por qué. Vocé responderd que & preciso também conhecer as relagdes entre sons ¢ significados, retrucaré que € dbvio. Voc’ replicard, triunfante, que € 10, saber como os fonemas se combinam ¢ se realizam foneticamente Indefectivel, ele agora The pede que esmivice o que quer dizer com isso, Vocé pira, pensa: 0 que vocé descobriu até agora nao & suficiente para chegar a uma resposta satisfaéria. Mas 0 que voce Jucrou com este capitulo é a certeza de que vocé, como qualquer do portugués, esta apto a embarear, armado(a) de io, na fascinante aventura de procuré-la Roteiro bibliografico a discussio da nogao de fonema e sua aplicagdo ao ra Jr. (1977). Seria interessante também fami- izar-se com o pensamento dos pioneiros no campo: Sapir (1921), Bloomfield (1933), Troubetzkoy (1939), Jakobson (1967). 3 Entre o fisico e€ o psicoldgico Descobrir o seu conhecimento técito sobre o portugués em parti- cular e sobre a linguagem em geral é, 20 mesmo tempo, surpreendente, excitante © atemorizante, Surpreendente porque vocé eresceu dentro que desvaloriza e cerceia a reflexao © a © 0 cientista dentro de cada um a vez descoberta, a capacidade de se wento de liberdade de que mente querer abdicar. Atemorizante porque @ responsa- fdade que acompanh: erdade logo pesara sobre os seus om- bros © voce sentird que contraiu consigo e com a humanidade a divida de continuar essa aventura, Pois maos a obra: vocé jé mostrou que & capaz de explorar as suas intuigdes sobre a fala, construindo a partir delas especulagdes fora abaixar um pouco o véo e enfrentar uma das, Ihosas com que se defrontam as ciéncias humanas, 0. Ele a segmentabilidade do fluxo da fala ¢ insiste st errado(a) em reconhecer unidades pISCRETAS onde ele os fendmenos fisicos © os fendmenos psict ‘Tomé, ele quer ver para crer. mas, como _ ENIRE 0 FISICO E 0 PSICOLOGICO_35 Vocé pediu-lhe um tempo para reflexdo e pesquisa e agora esta empenhado(a) em elaborar a sua resposta. A sua sorte € ter um amigo que trabalha num labora ica Acustica € que Ihe Os A disposigao todo 0 seu equipamento. Além disso, vocé tem uma amiga fisiologista que esta ludi-lo(a) a resolver suas diivi- segmentabilidade da fala foi a seguinte. Numa fita onde estava gravada laba [pa], ele marcou o inicio e o fim do sinal acdstico. Em seg cortou essa porgio da fita e a dividiu em quatro pedacinhos iguai A cada um desses pedagos ele emendou uma fita em branco, tornan- do-os, portanto, passiveis de ser ouvidos separadamente no gravador. O resultado, de fato, parece sustentar a tese dele: os dois primeiros pedagos soam como [pa] ¢, embora os dois iiltimos soem como [a], nao ha nenhum que soe como [p]. exclui a possi itam a nossa percepcao realizar lade de que ele con- ivamente tal lo XVI, € possivel que concluisse 108 nao se baseia em nenhuma obra do expitito e prova da existéncia represei do pensamento de hoje, voce se © DUALISMO CORPO/ESPIRITO e a ver a di sicos € fatos psicoldgicos mais como decorréncia da ética do observador do que como propriedade inerente da realidade obser- se & de que 05 fatos fisicos, embora nao homologos aos fatos psicoldgicos, tenham com eles uma relagao inte- ii Comece pela observagio da pripria silaba [pa]. Vocé certamente tem dificuldade de articular o fp] separadamente do [a], mas poderd faré-lo se deixar a lingua em posigdio de repouso e afastar os labios somente quando sentir uma forte pressio por detris. O que voce deverd ouvir entio € uma pequena explosio que, embora soando um |, € auditivamente reconhecivel como [p]. A mesma experigncia pode ser realizada com segmentos tais como [i] e [k]. Observe agora os danos que a separagio entre consoante ¢ vogal causam lade; além de distluente, [p] — [a] soa a de reconhecer como a silaba [pa]. Voce pode comprovar isso ainda mais claramente se pronunciar assim a palavra “pataca” e solicitar que outras pessoas a identifiquem. A sepa- 26 _ENTHE 0 FISICO E 0 PSICOLOGICO ragao dos segmentos nao s6 custa muito esforgo ao falante como também obscurece ¢ dificulta a tarefa do ouvinte: ¢ provavel que os colaboradores the pecam para repetir a seqiigncia [p] — fd — [al as vezes até que identifiquem a palavra procurada. Voeé ja da prod didos” num cor gar se abilidade da seqiiéncia hipote- Vocé jii sabe que, de acordo com o experimento do sew opo- ta no. Mas néo custa nada exercer também 0 seu ide e fazer um reexame da questio. adesiva voeé nao chegaré muito longe, + grosseiro dos cortes assim realizados comprometerd 08 resultados. Felizmente, porém, o laborat6rio do seu amigo tem um permitindo que a sua replicagdo seja até mais acurada que 0 experimento original tem agora uma série de secdes do mesmo tamanho iba [pal montadas em jagnética para audi¢ao separada, E. 6 com excitacio que voce constata que os novos restiltados se apro: ximam mais da sua visio que da do seu opositor: hi uma segao inicial de menos de 20 milésimos de segundo que soa como [p], varias sees intermediérias que soam como {pa] ¢ algu finais que soam como [a]. Embora haja uma certa desproporcio entre as duragoes das Porgdes consonantal e voeilica, parece possivel, de qualquer maneira, interpretar esses dados como indicando que o sinal actistico contém pistas, ainda que contraditorias, no s6 para a identificagdo conjunta como também para a identificagdo separada da vogal ¢ da consoante. Isso Ihe permite até compreender melhor a eficécia comunicativa da fala: com tantas pistas, passiveis de interpretagdes diferentes mas complementares, nao € surpresa que ela seja inteligivel mesmo sob condigdes de ruido e distragdo. Mas também & cabivel pensar que tudo isso s6 € possivel gracas a0 poder integrador da percepgio huma- nna, sem o que as diversas segdes da silaba [pa] que vocé acabou de examinar soariam como uma sucessao desordenada de impresses audi- tivas diferentes. A tarefa que the cabe agora é demonstrar que embora, como supusemos acima, o fato fisico € 0 fato psicol6gico nao sejam’hom- Jogos, nao ha nenhuma incompatibilidade ou incongruéncia entre eles. ENTRE 0 FISICO E 0 PSICOLOGICO_37 Para ser convincente, um tal atgumento precisa conter pelo menos ‘A primeira & mostrar que a segmentagio do e-t io, como seria possivel saber que se trata de gatos n emite o som da palavra ‘Agora pense como jieconémico representar tal som como uma espécie de cépia actistico que voc’ ou eu emitimos quando dizemos “gato”. comecar, seria problemitico até saber que emissa0 copiar: a sua, , a da sua mae ou a do seu ator favorito (ja que todas elas diferem entre si arbitrariamente um individuo com cerminar qual das suas copiar, vis ide promunciar a mesma pi iniimeras ‘Além disso, 0 sin res tals como lante, que sto absolutamel : wento da palavra “gato” 1 precisa de um cédigo enorme niimero de palavras com um mimero pequeno de simbolos, parece ideal para esse fim, Se a representacao que fazemos d mental, € possivel que sempre que des referéncia a esse cbdigo. Mas, como explicar que os movimentos ar culatorios ¢ © sinal aciistico resultante ndo sejam também discretos’ E aqui que tem inicio a segunda parte do nosso argumento, Voeé se pergunta: sera que hé sobre a produgdo da fala restri- Ges tais que nos levem a transformar num continuo os, sinais dis- Ceretos do eédigo lingiistico? Bis ai uma boa ocasido para pedir ajuda sua amiga fisiologist. Para Ihe dar uma idéia exata dos érgios envolvidos na fala, ela convida-o(a) a visitar um laboratério de Anatomia. A principio 0 ambiente todo Ihe parece muito estranho. Entretanto, por mais repug- nancia que Ihe possam causar os cadaveres, vocé ndo pode deixar de palavras & de natureza seg- smos falar fagamos alguma 25_ENTRE 0 Fisico E 0 PsICoLoG admirar a funcionalidade © a complexidade do corpo humano. Os Srgios da fala — voce descobre — so os melhores exemplos disso: para falar, 0 homem utiliza estruturas que estio também envolvidas na respiragao © na . € 0 faz com nora e efi 0 fato de a fala ser concomitante & respiragio & particularmente essa de coordenar a fal a expi informa a sua a poder emitir uma média de catorze segmentos por segundo! E sbvio {que 86 podemos realizar tal proeza porque superpomos os movimentos articulatérios correspondentes aos diferentes segmentos, Do contra como poderiamos compactar tanta informacao em to pouco temp © argumento que buscamos comeca a se configurar. E claro que Afi movimentam-se por um proceso de contragdo-relaxamento, deslocan- do, portanto, toda a sua Massa. Tomemos como exemp sua movimentagio re coordenagio. Suponhamos, por exemplo, que vocé queira pronunciar [ta]. Primeiramente, vocé tem de contrair simultaneamente dois mis- culos a fim de empurrar a lingua para a frente © para a produgio do [t]. Logo em seguida voc tem de relaxé-los, Pata poder contrair outro misculo, que achatari a frente da lingua, alargando a cavidade bucal para a producio do [a]. Entretanto vocd nao obteré a qualidade exata da vogal desejada se nao contrair a faringe, o que tem 0 efeito de deslocar o corpo da lingua ligeiramente para trés, como se vé na Figura 1. Tal deslocamento se da porque, sendo a lingua um corpo macigo assentado sobre uma base fixa, qualquer movimento da sua parte posterior requer um reajuste da sua parte anterior ¢ vice-versa Em vista da necessidade de tantas coordenagies sutis, nfo é de admirar que movimentos independentes, tais como os da raiz e da Ponta da lingua, tendam a se superpor a0 menos parcialmente no tempo. Isso representa uma economia para o sistema articulatério © no introduz nenhuma distorgio no sinal acistico. O que acontece € que esse, em certos pontos, carrega informagies sobre mais de um segmento, na medida em que resulta de configuragdes articulatérias geradas por manobras musculares ligadas a metas segmentais. dife- rentes, Isso deve ter sido suficiente para sustentar a segunda parte do nosso argumento, que visava demonstrar que a articulagio de seg- ‘mentos isolados — como no nosso experimento com a palavra “pataca” ENTRE 0 FISICO F 0 PSICOLOGICO_28 samente desvantajosa, Resta-nos agora demonstrar que ela é n psicologicamente desvantajosa, ou seja, que a conversio da mensagem lingiiistica discreta. numa mensagem fisicamente discreta comprometeria © processo da comunicagao. Figura 1 — Posicio da lingua. Representagéo esquemética da posigao da nna produgio de [ta] {linha chela) em comparagdo com [te} (linha tpl — fal — const e, entio, do papel de advogado do diabo ¢ imagine um mundo onde ha seres ios extraordinaria- hes permite produzir € compreender aquela seqiiéncia de segmentos estaticos sem esforgo algum. Agora pense nos tipos de erros que poderiam ocorrer nesse processo. Em principio, qualquer segmento poderia ser trocado por qualquer outro segmento, poi quaisquer restricées & sua produgdo conjunta. Assim, num dia de extremo cansago e tensio, um desses seres poderia emitir, por exemplo, {a] — {t] — [a] — fa] — (k] — (pl, em lugar de [p] — fl — (0 — [a] — 1K) — fa) Compare agora 0 que acontece em agdes semelhantes com os seres humanos, O cansago € a tensio de fato nos levam a cometer mente rapidos e elisticos, © qué W_ENTRE 0 FiISICO E 0 PsiCoLoGiCo lapsos, mas nunca dessa natureza, Um engano poss da palavra “pataca” seria, por exemplo, dizer “paca continua dos segmentos exige o seu agrupamento em s grupos que gravitam em torno de uma razoavelmente SONORO. A organizacio na medida em que fel na pronincia A articulagao 1e impoe leva a Tapsos € que um seymento ¢ trocado por outro que ocupa a mesma posigao numa siluba proxima. Assim, “pataca™ pode dar “pi “tacapa”, mi . “ ley de eros de produ minora também os erros de per~ to com a silaba (pal. Suponha ruido ocorra do meio para o final dela. Apesar do efeito mascarante disso, vocé ainda tem uma boa chance de recuperar a mensagem ori- ginal: as porgdes intactas do sinal contém informagdes sobre ambos 1s sepmentos, na medida em que correspondem & trai de um para outro. Diante disso, ninguém pode deixar de admitir que a superposi¢ao das articulagdes também & pereeptualmente vantajosa Vocé sente que venceu. Com a ajuda dos seus amigos, conseguit construir um argument. convin icia_de_um cédigo discreto ao nivel psicoldgico © de sua realizacdo num continuo ao nivel fisioldgico e fisico, Armado de teoria e fatos, voré parte para enfrentar © seu opositor. Qual nfo ¢ sua surpresa quando, depois de acaloradas discusses, ele declara acatar a I6gica do seu argumento mas nao estar convencido. O problema — diz ele — & que toda a sua argu- mentacdo se baseia na pressuposicao da existéncia de entidades tais como representagao, pereepgio, etc. — a favor do que voce nao apre- senta nenhuma prova conereta Vocé controla a sua irritagio e replica que © quotidiano fornece muitas provas concretas de que a representacdo € a percepcao real- mente existem, O fato de se ter a ilusio de animacao diante de uma fita cinematografica, por exemplo, & para yoo’ uma prova contundente de que existe uma instincia psicoldgica que integra as nossas sensa- es presentes (isto &, a percepeao}, Analogamente, 0 fato de conse- guirmos reconhecer diariamente um grande niimero de objetos, pessoas ENTRE © FISICO E 0 PSICOLOGICO 31 ¢ lugares em situagies que nunca se repetem exatamente afigura-se-lhe como uma prova contundente de que existem entidades pricoligicas {que sintetizam e tornam acessiveis, de forma abstrata e integrada, as nossas experiéncias passadas (isto é, as representacies). © seu opositor nao mostra © menor abalo. Do contririo, ele se apressa em esclarecer que, a Seu ver, uma prova concreta € algo que pode ser fisicamente observado e medido. Por exemplo — diz ele —, se vocé conseguisse demonstrar que ha fatos anatémicos © meta- élicos que correspondem a essas entidades © ao seu funcionamento tal como voce o descreva, 0 seu argumento tornar-se-ia convincente. ‘Voeé até pensa em se socorrer de novo com a sua amiga fisiolo- gista. Mas logo 0 seu foro intimo se faz ouvir ¢ Fala mais alto. O que Einstein pensaria de um cientista desses — suspira voce (tio indignado(a) como se tivesse recebido uma ofensa pessoal) —, que nem sequer admite que os fatos mudam com a ética do observador? E continua: com que direito quer ele impor uma ética tinica a fend- menos Lio complexos € to pouco conhecidos? 'A vistio do seu opositor é 140 comum nas ciéneias humanas que até ja tem um nome: REI a. O que ela preconiza € que 08 fatos deseritos pelas c nas Si podem ser legitima- dos se forem traduzidos nos term ciicneias fisicas, preferivel- mente através de m s diretas. Voce especula sobre ‘© que se perderia nessa iradugao, ¢ conclui que a sua preoe! a ciéncia do que relletir sobre a sua viabilidade ‘Agora vocé sente que estamos saindo do terreno da ciéncia entrando no da 1bEOLOGIA: os ideais se inflamam, as paixdes se acit- ram, De fato, encontramo-nos nessa fronteira ¢ vamos eruzi-la muitas| vezes no curso da nossa aventura pelo universo da fala. Nunea pense, porém, que hi algo de errado com isso. Todas as grandes polemicas Cientificas asscntam-se; de uma maneira ou de outra, sobre um chio acabou de ganhar uma idéia sobre essa expe- riéncia polémica no seu confronto com o fisicalista, Pense na garra ‘com que vocé 0 enfrentou: de onde voce acha que ela veio? Roteiro bibliografico A questao da segmentabilidade da fala € discutida em Studdert- -Kennedy (1974) © problema do reducionismo no estudo do comportamento ¢ discutido em Fraisse e Piaget (1968, v. 1, cap. IIL). INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO_33 Compreender 0 mecanismo fico da produyio da fala nio é 4 entretante, vina tarefa simples, Lembre-se. da estranheza que voce Ent ao commltar ov manuals de Fisiologia e de Acistica que 0s x sae nce Ihe empeostaram: aguelesfalam de contragoes mselares Incurs6es pelo Creses de ondas sonora, mas como combina esas nogbes mum todo terreno do fisico Testa ver seu interlocutor é voeé mesmo(a): as suas é que propulionard 4 investgasio” Comece plas mals elementaes, cine DoPexemplo: 0: que é 9 som © come ¢ possvel 20 corpo hu sano produto? WF yu & preciso intgrar 0 fico 0 fisiléyieo. Um som — logo aprende Jendo qualquer texto elementar de Actsti Go ar rapus de eslimular 0 nosso aparelbo au vasta gama de variagoes de pressio do ar externo, contanto que elas Se repitam um certo nimero. de vezes num intervalo de tempo. A Nibragio do timpano desencadeia um complictdo processo fisil6gico que culm livag’io dos centros cerebrais da audi¢ao. Por que nem todas as perturbacdes do ar nossa volta fazem vibrar 0 Para entender isso, voce tem de vollar & Fisica: Suma lei isica elementar que es da vibragio de qualquer corpo so deerminados pela sua forma e pela sus mass O tnpane, cr uma excecao a essa Tegra. O que owvimos das propriedades fisicas dessa) membrana . na definigao estrita que estamos considerando, no é mm caso particular de um fendmeno mais amplo que & @ propa 2. Do ponto de vista isco, adas por rele- a um tipo de MOVIMENTO que € chamado ONDULATORIO. As Tes gerais que regem esse movimento. explicam muitos fendmenos da Psicologia. A questo que se coloca agora é: por onde comecar e natureza, da trajetéria da luz & gravitagto atémicn. como equilibrar o estudo desses campos? Devido a sua elasticidade, fluidos tais como o ar e a dgua sao 0 fato de as cas serem mais antigas € extremamente propicios & propagagao de movimento, Considere, por or estabelecidas ree ata voce conga eat exemplo. 0 que acontece quando voce joga uma pedra denteo de menos, voct nfo ropeved lode Woverio en quant peri tm Tago sereno: em toro do. ponto atingido, formam-se pequenas menos. re erate eho nae core eee ondas concéntrices que se dis ia vez mais dele. Pois o som Pee ecuacneauers ms sme Gum fendmeno semelhante: quando 0 ar € perturbado pela wibragio incipioe clarence Alea dina. de um objeto qualquer, tal perturbacdo propage-se tal como as ondas modo de argamentagio das ciencias naturais € dineto ¢ transparente, no lago. Se voce pudesse enxergar as partculas do ar, veria a mesma ado um bom exercicio para quem deseja se aventurar pelo altemincia de “ctistas” ¢ “fossos" em esferas concéntricas que, se terreno mals erpinhoso des cians howaas Gortadas por um plano, se afigurariam como circus. As “ctistas” € a0 conhecimento que se deve ter ‘angar uma compreensao adequada da fala como um todo. Dos seus encontros com 0 seu am com a sua amiga fi de que incursionar por esses terrenos seria ido, as suas espe- m-no(a) em direcdo & 1M_INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO 08 “fossos” correspondem, respectivamente, a pontos onde © fluido se condensa € se ravfica ao longo do raio de propagacao. Fixando 0 olhar num tinieo ponto desse raio, vocé descobriria que ai ocosre uma sucesso regular de condensagdes ¢ rarefagdes. Imagine agora um ponto vizinho ao objeto de onde se origina a vibragdo ¢ faca de conta que as particulas de ar so bolas alinhadas ao longo de uma reta, Se um objeto comecar a vibrar bem junto a uma das extremidades, ele fatalmente empurrara a bola ai localizada, que, por sua vez, empurraré a proxima, e assim sucessivamente. Imagine também que as bolas movem-se aproximadamente como pén- dulos, isto é, deslocam-se alternadamente para um lado e para 0 outro do ponto de origem. E dbvio que as bolas mais préximas mover-se-io sempre sincronizadamente, deslocando-se juntas numa ou noutra dir tenha sido inteiramente consumi E fécil compreender que 0 que acontece em qualquer ponto da reta nesse mecanismo imaginario & 0 mesmo que acontece em qual- quer ponio ao longo do raio de propagagao do som: na sua passagem, as bolas — ou as particulas — deslocam-se num amontoado eres: cente, deixando atrés de si um vazio que s6 ¢ preenchido quando elas tornam a passar em sentido contrério, Evidentemente, os “amontoado: € os “varios” correspondem, respectivamente, as condensagdes rare- fagdes dos fluidos submetidos a0 movimento ondulatério, E provavel que agora 0 velho griico da ONDA sonora faga mais sentido para voce. O que ele representa & uma sucesso de conden- sages € rarefagdes do ar mum dado ponto do espaco ao longo do tempo. Na abscissa (isto é, 0 cixo vertical) esta o tempo e na orde- hada (isto é, 0 eixo horizontal) esta a pressio do ar, cujo valor zero & por convengio, a pressio atmosférica. Quando o ar se condensa, a sua pressio aumenta, 0 que & representado pelo surgimento de cristas no grafico. Analogamente, quando ele se rarifica, a sua pressio diminui, 0 que & representado pelo surgimento de fossos no gritico. De posse dessas informag de ondas sonoras que podem ocorrer na fala. B a que a necessidade de integrar o fisico a0 fisiol6gico se manifesta de novo, Vocé sabe que a vibragdo do ar representada na onda sonora nada mais é que a propagacio da vibracio de um corpo qualquer, que é chamado FONTE sonora, — pois pode haver nio sio imediatamente Sbvias: para compreendé-las, tar-se de novo para a fisiologia da produgao. » voc’ inclina-se a investigar os tipos mais de um woe’ teri de v INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO 36 Um dos problemas mais intrigantes para quem aborda a fisica da fala pela primeira vez € justamente a natureza da fonte, Todos conhecem alguns exemplos tipicos de fontes sonoras — as cordas, as barras, 0s diafragmas —, mas o desconsertante é que nenhum deles parece se aplicar a fala. Apesar disso, 0 nosso aparelho vocal € capaz. de produzir nao s6 a fala mas também 0 canto. Como se originariam tais sons? ‘A melhor analogia entre a fala ea musica reside em instrumentos tais como o drgio e a flauta. Neles as ondas sonoras sio produzidas gracas emisso periddica, em alta velocidade, de finas correntes de ar por um orificio em um tubo, orificio esse que ¢ periodicamente obstruido por um pistéo (6rgdo) ou pelos labios do. instrumentista (flauta). E essa corrente de ar modulada que constitui a fonte sonora, pois € ela que pe em vibracio a COLUNA DE AR no interior do tubo. n fendmeno semelhante, denominado FONAGKO, corre preciso"lembrar que falamos durante a os pulmdes encontram-se cheios € prontos a ceder a reagio das suas paredes, o que acarretard a expulsio automé- tica do ar, Uma corrente de ar modulada forma-se quando 0 ar egresso dos pulmoes encontra um obstaculo na saida da traquéia mas 0 em- purra até forcar a passagem, escapando pela laringe (v. Figura 2) * Figura 2 — Ciclo de produgao da voz. Série de cortes frontais da laringe mostrando posi¢éo das cordas vocals durante 0 ciclo de produgéo da voz [As setas representam 0 ar escapado medida que as cordas vocais se afastam, 36 _INCURSOES PELO TERRENO DO FSICo Comega entéo um “conflito de forgas” entre 0 obstéculo ¢ 0 at: ora © primeiro, que & extremamente clistico, “vence” e retoma a sua Posigdo, ora o segundo, que ganha forga & medida que se’ acumula por trés da passagem fechada, “vence” por seu turno © consegue escapar mais uma ver. As pequenas Iufadas de ar que escapam pela laringe durante a fonagio cons importante fonte de energia da fala: E como se, nesse proceso, a itomaticamente por aquele “conflito de for re serem cordas 0 que, na real id membranas, misculos ¢ ligamentos. Para produzir voz, bast movimento muscular voluntirio: trata-se de aproximar as cordas cais, vedando a GLOTE, que € 0 orificio de comunicagao entre a !aringe a traquéia. Dai . tudo se toma automatico: quanuy a pressdo do ar so as cordas voeais cedem e deixam escapar uma pet 1go que @ pressdo diminui, as cordas idade, precipitam-se — como as paredes de um balio que se esvi para fechar a glote c restabelecer o ciclo, que prossegue com um novo de pressio subgléties, © assim sucessivamente, produzidos inge. Na wue-se de um Ri isto &, vibrag) los instrumentos mente, Nao & surpresa, poi rom LARINGEO. Antes de estudar as propriedades fisicas do tom laringeo, con- vém averiguar 0 seu papel na fala, Voce jd deve ter-se de que a fala nem sempre soa musi fou se superpdem tons e ruidos, sendo os segundos 120 importantes ‘quanto_0s primeiros. Examine, por exemplo, os segmentos siso”. O fs] caracterizado por um ruido sibilante que se produz forcando a pas- sagem do ar por uma fresta entre a ponta da lingua eas gengivas superiores. Este ora muito comum na fal INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO_37 ‘umas com as outras numa passagem estreita, Jé o [i] tem uma quali- trata-se, na verdade, do tom laringeo jcas de RESSONANCIA de uma dada forma do tratamento vocal (v. p. 46). O [2], por sua vez, combina carac- isticas de ambos os segmentos precedentes: simultaneamente a um f idéntico ao do [s}, ouve-se um tom abafado, que ¢ 0 smo tom laringco modificado por ressonncias diferentes. Final- mente, com o [tw], ressurge a qualidade musical, embora com um TIMBRE diferente do da vogal precedente. jos continuos como o do [2], 0 tom 2 ruidos TRANSIENTES, que combina a mesma explosdo que passado a um tom abafado como le © tom laringeo ressoando de outra € [b] — em portugués as consoantes l re RJ e todas as vogais (si we quer dizer “dotados ns segmentos inteiramente is como [f, s, f] — ou de siléncios seguidos kl. Por causa da auséncia de voz, esses presentados em portugués his k JD jonte de energia mais comum ora perguntar como ela ys sonoros podem ficar tao diferentes ori enten- der isso, & prev A primeira & compre- ender que @ voz € um tom complexo, ou seja, € composta sinmulta- eamente de mais de um tom. A segunda & compreender como 0 ressonincia opera sobre esse tom complexo, modificando a intensidade de seus componentes e, portanto, alterando 0 seu timbre. Além de se combinar ar laringeo pode também se asso mentineos. Um exemplo & 0 vimos caracterizar 0 |p] no cay |. que nada ma Com isso voltamos A Aciistica, que nos fornece leis sobre 0 comportamento dos tons complexos. dos quais a voz um caso parti- cular. No estudo desses, convém também raciocinarmos por partes. Em primeiro lugar, compreender como tais tons se superpdem para constituir uma Gnica onda sonora. Comecemos considerando tons simples, tais como os produzidos pelo diapasdo. No . voce praticamente ndo os ouve, pois 38 _INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO quase todos 0s tons familiares — como, por exemplo, os da cam- painha, do telefone, do sino — sao complexos. Isso se deve a0 fato de os tons simples se originarem num tipo de movimento tao simples que dificilmente ¢ encontrado na natureza na sua forma pura, a saber, 0 MOVIMENTO HARMONICO SIMPLES. Alguns livros elementares explicam 0 movimento harménico sim- ples através do exemplo do péndulo, mas essa é uma analogia pe gosa, pois, na verdade, 0 movimento pendular é apenas aproximada- mente harmdnico. O que 0 movimento em questo tem em comum com os movimentos pendulares € que o mével se destoca em duas diregdes opostas a partir de um ponto de repouso e que a sua VELO- cipabe decresce & medida que ele se aproxima dos pontos de deslo- camento maximo. A diferenca é que o péndulo descreve um arco de circulo enquanto © movimento harménico simples descreve um seg- mento de reta, Tal segmento ¢ matematicamente analisivel como a projecdo linear dos pontos que um mével percorreria se descrevesse tum circulo em velocidade constante Para entender isso, imagine um corredor deslocando-se em velo- cidade constante num circulo que circunda um poste no centro de uma sala quadrada com apenas uma janela. Considere agora como a sua sombra se projeta na parede em frente & janela. Suponhamos que ele parta de um ponto onde a sua sombra coincida com a do poste, isto 6 projete-se no meio daquela parede. Inicialmente, a sombra move-se ocidade quase igual & F, mas, & medida que percorrida na reta pela sombra percorrida no circulo pelo corre- dor e 0 tempo gasto por ambos ¢ 0 mesmo. Assim, a velocidade da sombra do corredor sera tanto menor quanto maior for 0 seu afasta~ 4 sombra do poste. Além disso, 0 movimento por ‘4 sempre num afastamento seguido de uma apro- ximacao dessa Gltima, em diregdes opostas. Ai reside uma ilustragao — melhor que a do péndulo — do que vem a ser 0 movimento harménico simples. ‘As hastes do diapasio descrevem um movimento harménico sim- ples transmitem-no as particulas do ar. Consideremos agora 0 tipo de onda sonora que esse movimento produz. Embora vocé esteja acos- tumado(a) a conceber a onda sonora como uma representagio das variagdes da pressdo do ar em funcio do tempo, é facil repensi-la como uma represei do deslocamento das particulas em fungdo do tempo, pois aquelas variagoes sio diretamente proporcionais a esse INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO_2 deslocamento. Assim, se vocé representar o deslocamento de uma particula descrevendo um movimento harménico simples ao longo do tempo, ter um grafico como o seguinte: 30 20: 10) ° 3 6 TFempo.em 3f1000 10 20: 30) Desigcamento em ifiomm Figura 3 — Exemplo de sondide. A abscissa representa 0 tempo em milé- simos de segundo, e a ordenada representa o deslocamento da particula fem décimas de milimetros A curva acima, chamada SENOIDE por ter a forma de um sino, corresponde & onda sonora de um tom simples como o do diapasio. Note que 0 destocamento das particulas — ¢, concomitantemente, a variagio da pressio do ar — ¢ ri lento & medida que se aproxima se acelera quando as particulas passam pelo ponto de origem, voltando a desacelerar-se medida que elas se afastam dele, na direcdo oposta. Felizmente, as propriedades matema conhecidas ¢ isso permite uma compreensio acurada da aciisti tons. simples. éncta, A ampli correspondendo jculas ¢ sendo traduzivel_em razao direta de tal ncia & computdvel a partir da abscissa, pois stesponde ao numero de_movimentos completos descritos numa dade de tempo. Assim, na Figura 3, 0 mével inicia 0 seu movimento ponto zero € afasta-se dele até atingir um maximo, para entio inverter © seu curso, passando de novo por aquele ponto € iniciando 42_INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO _ tum movimento idéntico no sentido oposto. Essa ida e volta completas fem ambos 05 sentidos & chamada cIcLo © desempenha um papel essencial na mensuracio da fregiéncia, que € feita em ciclos por segundo (cps) ou hertz, A segunda denominacao, que se vem popu larizando nos tltimos anos, é uma homenagem a0 criador da medida, 6 fisico alemio Heinrich Hertz A freqiiéncia € 0 principal determinante da sensacio de ALTURA, fou seja, das variugdes entre 0 grave € 0 agudo que 0 nosso ouvida distingue. A relagdo entre 0 parametro fisico freqiiéncia e o parametro psicoldgico altura nao é, entretanto, das mais simples. Na verdade, a altura percebida nao s6 varia em funcao da amplitude como também sofre influéncias de RuiDos MascaRANTES. Além disso, a sua relagio com a freqiiéncia ¢ aproximadamente linear para freqiiéncias até 1 000 Hz e LocaRitauca para freqiiéncias superiores, Isso quer dizer que, abaixo de 1 000 Hz, hé uma correspondéncia termo a termo entre as diferencas de freqiiéncia e as diferengas de altura, de tal forma que um tom de 600 Hz difere de um de 700 Hz tanto quanto de outro de 500 Hz. Em contrapartida, acima de 1.000 Hz, o intervalo entre dois tons depende da razio entre as suas freqiiéncias, de tal forma que um tom de 4000 Hz difere de um de 2.000 Hz tanto quanto de outro de 8 000 Hz, apesar de os intervalos de freqiiéncia serem dife- rentes, A relagio da amplitude com 0 partimetzo psi € ainda mais complicada. Na verdade, a energia sonora detectada pelo receptor, é funcio Fisica, isto &, sonora presente na fonte, € proporcional aos quadrados da amplitude e da freqiiéncia. Entretanto, como na faixa da nossa audigao a tude & muito maior que a da freqiiéncia, a primeira desempenha de fato o papel ‘mais importante na determinacao da intensidade auditiva. Tal variabi- lidade & também uma das razes por que a mensuragio dessa ultima requer uma escala especial, de natureza logaritmica, chamada escala de DEcIBEAS, ico intensidade A, isto INTENSIDADE, ue, por sua ver, Gragas a escala de decibsis, podemos reduzir a faixa de audigio do homem a nimeros inteligiveis, Como demonstra a Figura 4, 0 limite do que podemos ouvir esté contido entre cerca de 10 130 4B, dependentemente da faixa de freqiiéncia. Convém ¢ a nossa audigao € muito mais sensivel na regido das freqiiéncias médias (de 500 a 4.000 Hz); ai, um som de 20 dB, que nao seria ouvido numa freqiiéncia muito alta ou muito baixa, torna-se perfeitamente audivel. Vale notar também que, mais uma vez, a fala se mostra extremamente INCURSOES PELO TERRENO 0 FiSICO_4 ides humanas; como se vé abaixo, ela se situa amplitude e a freqiiéneia podem variar conside- ade, adaptada as potenci uma faixa em que ravelmente sem comprometer a audi db — 70 fea |do 90m 2 |_| rar cite I | | 30 30 oo 200-50” 1000-7000 =$000 19000 20000 Hz nla e intensidade da iclas e Intensidades ses de tamanhos tons caracteristicos na intensidade intermedi entre as dos dois tons. Do ponto de vista fisico, as particulas do ar estariam se deslocando de duas maneiras diferentes, cujos efeitos, sm algebricamente. Para entender isso, retome a imagem do corredor circundando © poste e imagine que agora ha dois, descrevendo circulos concén- icos na mesma velocidade, como ng Figura 5A, Obviamente, um detes completa as suas voltas egos == mm tempo menor que en #2_INCURSOES PELO TERRENO DO FiSICO outro, que tem uma disténcia maior a percorrer. Em compensacdo, © afastamento maximo que a sombra do segundo atinge em relagao & do poste € maior do que aquele que pode atingir a sombra do primeiro, pois o circulo deserito por esse tem um diimetro menor Representando 0 deslocamento das duas sombras em fungao do tempo, vocé teria as sendides das Figuras SB ¢ C. A. Dois corredores descrevendo circulos em torno de um poste, mo B. Sendide correspondente 30 movimenta do primeira . Sendide correspondents a0 movimento do segundo, (Deslocamento em metros, @ tampo em segundos.) Figura § — Produgéo do movimento harménica. INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO_4 Considere, agora, 0 que de fato acontece com 0 ar quando as suas particulas esto se movimentando como no exemplo acima. Quando as particulas afetadas por cada uma das vibragdes esto se aproximando conjuntamente de um ponto de referéncia, a pressio do ar ai aumenta proporcionalmente as contribuigdes de ambos os grupos de particulas. Analogamente, quando aquelas particulas estio se afastando conjuntamente em relagio ao mesmo ponto, a pressio do ar ai diminui proporcionalmente as contribuigdes de ambos 0s grupos de particulas. Em contrapartida, quando algumas particulas esto se aproximando enquanto outras esto se afastando do ponto em questo, a pressio do ar ai permanece mais ou menos estavel, isto é, as contri- buigdes dos dois grupos de particulas se subtraem ou se cancelam. Isso significa que a onda que de fato se propaga quando duas vibra- ges harménicas simples ocorrem simulténea e adjacentemente € a soma algébrica das duas ondas que se propagariam se elas ocorressem fem separado. Por exemplo, a onda da Figura 6 é a soma das sendides das Figuras 5 B e C. Vocé pode vetificar isso reproduzindo essas Gltimas em papel de grafico e tentando reconstruir a primeira a partir delas: basta atribuir valores positivos aos pontos acima da abscissa € valores negativos aos pontos absixo dela. Somando algebricamente pontos egjiidistantes da origem nas duas sendides, voce obterd a Figura 6. Figura 6 — Soma de sendides. Onda complexa representando a soma das sendides de 5A e 5B. Felizmente, para somar ondas simples ou decompor ondas com- plexas nao é preciso ter tanto trabalho, Gracas a0 matemético francés Joseph Fourier, existe um método extremamente geral que permite reduzir qualquer onda complexa — inclusive aquelas originadas em vibragdes APERIODICAS — a uma série de sendides. Tal método — chamado anélise de Fourier — € matematicamente muito complexo — pode ser entendida como a soma de efeitos umente locais que decorrem de movimentos harménicos simples numa multiple ws. Assim, a qnda gerada por uma vibracao turbulenta tem uma aparéncia irregular porque os seus componentes harménicos im mutuamente. Uma outra m: de visualizar © mesmo fato € pensar no que aconteceria se superpuséssemos um nimero muito grande de sendides pelo método grifico: conforme a relagao no estudo de sons rt complexa e imprevisivel. disso, ela se presta a confirmar previses sobre sons cujos com- prevista por alguma teoria fisica lementar que, quando um corpo de uma ou m monicament ibragio pode ser sempre decomposta numa série de movimentos harménicos. simples ber: as freqiléncias de todos os componen- eiros da do componente de freqiiéncia mais baixa, jam o que, em Mate: ARMONICA, dai oS componentes de um sas serem chamados dé HARMONICOS. Ora, ier poderia confirmar tais rela 0 clas jf so bem conhecidas e jada fo) pode ser determinada de outra forma, a ut daguele método reside em revelar as amplitudes dos’ harn Permitindo que se determine 0 ESPECTRO do som © nosso comentario sobre a anilise de Fourier introdu conceitos novos porque, no que concerne A fal fundamei conforme sugere © nome, designa contidas num determinado som. cujos componentes se r% Al Por exemplo, som com essas. caracteris nesses casos, a anilise de F jas pistas 1m distinguir, por exempl ¢ um [e} ou um [a] de um [i]. Quanto as nogdes de fundamental e harmOnicos, a sua importincia reside justa- mente no fato de os componentes espectrais da vor formarem uma série harménica Procuremos agora visualizar como essas nogdes se materializam na producio da fala, Focalizemos, primeiramente, 0 caso da vor. Quando ela se produr, as lufadas de ar saidas da glote poem em INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO_ 45 vibragdoa COLUNA DE AR contida na laringe € essa se comporta exata- mente como qualquer corpo submetido a vibragées harménicas: enquanto o todo vibra numa freqiiéncia “x”, as metades vibram numa frequé 0s tergos numa freqiiéncia “3x”, e assim sucessivar mente. © resultado é que a voz se compée de um fundamental, que corresponde a freqiiéncia com que as cordas vocais bombeiam 0 ar na laringe, e de seus harménicos, que, obviamente, sio miltiplos inteiros daquela freqiiéncia. Assim, se fizéssemos uma anélise de Fourier do som produzido na laringe por uma pessoa cujas cordas vocais se afastam e se aproximam 120 vezes por segundo, poderiamos construir um grifico como o da Figura 7, onde a abscissa representa a freqiiéncia, e a ordenada, a amplitude quadrada mé 10; a ol 600 1200 +1800 ~—«2d00.~-—«3000-« S600 Hr Figura 7 — Espectro glot zida-na glote por um indi do, voz do Fy do 120H2. Espectro éa vor produ: iuo com frequéncia fundamental de 120 He. Este gréfico nada mais € do que o espectro de uma voz de freqiiéncia fundamental de 120 Hz registrada na laringe. £ importante notar que a energia aciistica se distribui discretamente na escala de freqiiéncia: cada linha vertical representa um harménico, isto é uma das sendides que encontrariamos apés uma anélise de Fourier. Cabe notar, ainda, que tais linhas séo igualmente espacadas, devido ao. carter harménico da distribuigao de freqiiéncia. Em geral, as vozes tendem a manter um fundamental médio constante, 0 que explica a nossa impressdo de que elas possuem uma altura caracteristica: se fulano tem uma voz grave, o seu fundamental TERRENO DO FISICO médio esti entre 70 e 100 Hz; se fulana tem uma voz aguda, o seu fundamental médio esta entre 250 e 300 Hz. As vozes masculinas tendem a ser graves porque as cordas vocais do homem, em compa- ragio com as da mulher ¢ da crianga, costumam ser mais espessas € pesadas, gastando, portant, mais tempo para comy lo Assim, 0 fundamental médio masculino esté na casa de 120 Hz, janto o feminino e o infantil se encontram, respectivamente, por de 225 © 260 Hz. Obviamente, em torno desses valores hé uma ampla margem de vatiagéio, nao s6 entre individuos como também no mesmo individuo em diferentes emissées rel que seja a vor, nunca encontraremos um espectro como o da Figura 7 se fizermos uma anilise da fala registrada por um gravador. E que, embora os harménicos se mantenham os mesmos, quando a voz € transmitida através das ido TRATO vocat chama-se Fessonancia © tem conseqiiéncias (20 diversas quanto ampliar a voz num megafone ¢ detrubar pontes na passagem de um exército em marcha. A. ressonii meno muito simples, embora as suas conseq um corpo vibra as. Ha ressondncia sempre que na freqiiéncia tal que corresponde a um modo natural de vibragao de um corpo proximo, o qual, nesse caso, se poe a vibrar em sono. O segundo corpo é chamado de ressoador e, pode ser qualquer coisa, pois todos os corpos tém certas fregiiéncias naturais de vibragéo, que sho determinadas pelo seu tamanho, forma e massa. Voce pode constatar isso experimentando com cordas de violao: qualquer que seja a forca com que voce puxe a corda, 0 tom resultante seré sempre o mesmo, variando apenas em intensidade © duracie, pois a corda vibrara de acordo com os seus modos préj se vocé substituir uma das cordas por outra igual a sua vizinha, bastard que vocé puxe uma para que a outra vibre, pois elas terdo modos de vibracio aproximadamente idénticos. Ressoadores simples como as cordas contribuem muito pouco para modificar som origin apenas reforgam levemente a sua intensidade, Ha, entretanto, ressoadores complexos chamados FILTROS, ‘que respondem apenas a alguns componentes do som original, modifi- zando-Ihe o espectro pela ampliagao daqueles. Os so cavidades tais como as dos tubos € urnas, onde a presenca de paredes propicia a REFLENAO e cria diferencas internas de pressio que favorecem @ propagagdo de algumas ondas ¢ nao de outras. Obvia- INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO_4t mente, 0 tralo vocal & um filtro © € por isso que ele tem o poder de modificar o som original da voz. Para entender como funcionam filtros tais como 0 trato vocal é preciso considerar 0 quanto as condigies de propagagio de ondas dentro deles diferem daquelas normalmente encontradas no ar @ férico. Em primeiro lugar, ao encontrar uma parede dura, o som tende na diregao oposta. Assim, a onda propagada criando uma ONDA ESTACIONARIA 1. A onda estacion assim chamada io em pontos fixos do espago, uma vez que as dus ondas originais viajam em diregdes opostas na mesma v fe, gerando sempre a mesma onda superposta. E fa entender que as ondas estaciondrias que melhor se propagam dentro de um tubo ém maximos de pressio onde 0 tubo é é mais aberto. No caso de um tubo uniforme fechado em extremidades, as ondas estacionérias melhor propagaveis no idade fechada e seus zeros ‘Assim, como demonstra a Figura 8, a maior dessas ondas tera um COMPRIMENTO DE ONDA que equivale a quatro vezes 0 comprimento do tubo. 10cm Figura 8 — Exemplo de propagacao de oF ‘menor freqiéncia (e malor comprimento de onda) luniforme de 10cm de comprimento, ropagada por um tubo Embora 0 trato vocal nao seja um tubo uniforme, o exemplo re no seu interior: dentre iguns sio melhor propagados que outros, portanto, mais audiveis, Em termos espeetrais, a conseqiiéncia disso é que, em vez do ENVELOPE unifor- 4_INCURSOES PELO TERRENO Do FISICO memente decrescente da Figura 7, tem-se sempre, aps a passagem da voz pelo trato vocal, um envelope marcado por alguns harménicos se mos ieos € vales, onde rentemente 0 som original da voz ee 6 *o 20 ° t ° ta) -20 7 ohne ohne w 2 ° “x0 tw 40 0 ane Figura 9 — Espectros tipicos das vogais {\}, [a]. [u]. de que nem sempre Em princi ciro esté envolvido na sua filtragem. 08 ruidos continuos ou transientes produzidos por obstru- des a passagem da corrente de ar pelo trato vocal sio muito semelhantes: trata-se de choques entre as moléculas do ar, pro por freqiiéncias audiveis, mas 0 processo de filtragem no interior do trato empresta-thes um timbre particular, dependente- mente do local da ARTICULAGKO. E por isso que [s} soa tao agudo em comparagao com [f]: no primeiro caso, 0 ruido ressoa numa edimara pequena, que vai dos lébios as gengivas; no segundo, ele res- 08 No trato vocal inteiro. ‘Agora vocé comeca a colher os frutos de todo o seu esforco para integrar a Fisiologia e a Acistica. Nao é dificil adivinhar por que © espectro € t4o importante na -percepgao da fala: afinal, ele INCURSOES PELO TERRENO DO FiSICO_ 4 muda continuamente durante a produgao dessa, ¢ tais mudangas sao ‘conseqiiéncia direta dos movimentos articulatérios. Levando em conta © quanto esses sio rapidos e, as vezes, abruptos, nao é de admirar que em certos pontos o espectro apresente mudangas bastante dristicas que sirvam para assinalar a passagem de um segmento a outto. Se voce avabou de pensar mo seria bom se houvesse um méto- do simples de representar 0 espectro to longo do tempo, pode trang rar-se: esse método existe e chama- fia temporal. Em Principio, ele pode ser implementa- flo em varios tipos de aparethos, comum na andlise da mado. ESPECTROGRAFO 2 110 produzido por tal aparetho — 0 ESPECTROGRAMA 9% é — € freqlientemente usado como lustracio em trabalhos de Fonética: le caractetiza-se por um padrao de “age ¢laro-escuro onde se alternam man- = chas, lacunas ¢ estriagdes, como NA ggg Figura 10. — Este espectrograma difere dos = spectros lineares das Figuras Tey, = 9 por levar em conta o fator tempo. Para poder representar o tempo na t i abscissa, & preciso transferir a fre- qlgncia para a ordenada e encon- {rar um outro meio de representar 8am No espectrogram aso € feito pelo contraste de claro-escuro: os componentes mais, Intensos so escuros, os menos intensos sd claros, e a auséncia de energia accistica expressa-se por uma lacuna branca, Obviamente, esse método nao é muito preciso, mas ¢ suficiente para captar as variagoes de amplitude mais importantes da fala. Na Figura 10, que representa 0 enunciado “(tai]", emitido por um homem com fy de 160 Hz, vé-se primeiro uma mancha alta € longa e, em seguida, um padrao de estriagdes horizontais. A primeira corresponde % exploséo do [t], enquanto a segunda representa os rmOnicos da vox na passagem daquele para o [a] e desse para 0 |. Note que tais harménicos descrevem uma curva descendente: isso Figura 10 — Espectrograma de ban- da estreita do enunciado (taf) ido com entoacdo descendente, isto Ito para ménicos so mais escuros que outros, Eles se sit 500 Hz inicialmente e, em seguida, nas regides de 300 ¢ 2000 He. Obviamente, a sua pergunta de dado? E simples: retorne & Figura 9 e verifique onde se (0s picos espectrais i) € [i]. Observe que aproximadamente com as regides onde os harménicos sio reforcados ‘a da Figura 10, Isso indica que & nessas regides que yhamados FORMANTES, OU seja, as freqliéncias qu melhor propaga quando assume uma determinada forma, 10 assim chamados porque sio os principais. respon: is vogais. Gracas a ressondi nam mais audiveis, dando 20 som a sua ar. Assim, 0 [i] soa agudo que 0 [a] proximos numa re; &: como interpretar esse se encon: 0 trato voe! © método utilizado na Figura 2 © % % « 10 nao é a methor maneira de evi- . denciar os formantes. O que ‘mos € UM ESPECTROGRAMA DE BAN- DA ESTREITA, que faz distingdes muito finas na escala de freqiiéncia, mostrando cada um dos harménicos em separado. Na verdade, os for- ‘antes ficam muito mais visiveis em ESPECTROGRAMAS DE BANDA LARGA, que sao obtidos somando-se os efeitos dos harménicos em faixas de cerca de 300 Hz. Assim, na Figura 11, que € 0 espectrograma de banda + larga correspondente ao enunciado da Figura 10, tém-se manchas es- curas bem nitidas na regio dos for- mantes, embora nao se possam dis- tinguir os harménicos. Tais manchas significam que hé uma concentracéo de energia acistica em dadas éreas t i de freqiiéncia, Em outras palavras, Figura 11 — Espectrograma de ben- clas representam a trajet6ria dos pi- da larga do enunciado [8 cos da Figura 9 a0 longo do tempo. INCURSOES PELO TERRENO DO FISICO_51 Descobrindo a espectrografia, vocé comeca a voltar & fronteira entre 0 fisico eo psicolégico: a perspectiva de poder “ler” os pari- metros espectrais reacende-the a esperanca de compreender 0 comy ado proceso que leva da idéia a0 som ou vice-versa. Voce sente que ainda tem muito que aprender, mas ja domina conceitos basicos € sabe combiné-los para interpretar situagdes complexas. Parece até divertido comecar a relacionar as vogais aos seus formantes © as con- explosdes ete. Tendo compreendide 0 fend- meno da ressonincia, nao Ihe sera dificil especular sobre as relagdes ide € freqiiéncia nos espectrogramas. se: com a “muni¢ao” adquirida nesta parada igica, vocé nao temera enveredar por caminhos mais desafiadores nna busca de um destino para a sua aventura Roteiro bibliogréfico Duas 6timas introdugdes & Fonética Actstica sto de Ladefoged (1962) e Fry (1979) Discuss0es mais avancadas encontram-se em Lass (1976). 5 Revivendo um velho dilema © seu amigo fisico entrou em cen 10 um espectrografo, Por mais de novo € Ihe pos & dispo- Jue as maquinas The intimidem, mecanismo capaz de tradu- escuro, Transfigurada em borrdes de a fala investe-se de apelos estéticos insuspeitados: as VOGAIs agora nio $6 dio o tom de fundo mas ¢ num tragado cuja integridade se rea consonantais. AS CONSOANTES, por repicam em perturbagdes que se traduzem por quebras mais ou menos vir a fala em nuan nbém serpenteiam pelo papel stibitas da continuidade do tragado, Vogais ¢ consoantes — pensa vocé —: dois nomes banais, que, retanto, expressam fendmenos tio complexos, E interessante que, embora s6 se tendo dado conta agora, v nte nesta aventura. Mera conven vacila, para e decide que vale a pena pensar sobre 0 assunto Nao ¢ dificil descobrir que a disting consoante € tio velha quanto 0 pensar do homem sobre surgido com ‘08 graméticos gregos ¢ indianos, ela percorre toda a histéria do pensa- mento lingtistico moderno, para reproduzir-se hoje em qualquer ciéneia que se ocupe da linguagem falada. Uma tal persisténcia nao pode ser gratuita, mas isso s6 reaviva a sua preocupagao: seriam tais categorias os viesse usando continua- ia? Imposigao dos dados? Vocé REVIVENDO UM VELHO DILEMA_§3 \dos pela sanha analitica do investigador ou corres- n elas a propriedades inerentes ao objeto investigado? se deine medo de estar perguntando unra t © problema da objet de fato, crucial em ciéncia. Se a entre a realidade © a fic ‘io ténue quanto nos parece ensinar @ samente submetamos 0s nossos con- ico. O que vocé sente agora nada mais € do um vel & possivel defini categorias na natureza — ou nao dos obscuros pordes da mente humai A fal io particularmente interessante para investigar essa ques construtos tradicionalmente utilizados no sew estudo con! Todo foneticista distingue vogais & de uma maneira ou de outra egorias para gua. Uma simples inspecao de alguns mani indagagdes: voce en de criterios ¢ termos para clas Comegando por um n se deparara com uma pr entender a que de certas reproduzida na pagina seguinte por \de_alguma em compreender 0s quadros consonant ico. Examinemos 0 primeiro, por exemplo. As linhas correspondem aos chamados MODOS DF ARTICULAGAO, que designam @ maneira como a corrente de ar passa pelos canais supra- laringeos. Se ela ¢ interrompida octusiva, caractei tal como em (pl, [bl, [t], Id] etc. Se ela € interrompida oralmente, mas escapa pelas fossas nasais, tem-se uma NASAL, tal como {m], {n] etc. Se ela nao & obstr lados do can: tal como {i}, [é] etc, Se tal escape se faz com fric¢ao, gerando um ruido caracteristico, tem-se uma FRICA- IVA LATERAL, som desconhecido do portugués, mas presente em jetos do espanhol. Se um articulador central — a lingua ou em lugar de obstruir inteiramente a passagem do ar, vibra, jtentemente, tem-se uma VIBRANTE miltipla tal como 0 /R/ de “carro” na proniincia sulista, Se essa vibragao é $4_REVIVENDO UM VELHO DILEMA Tabi: 7" dents Retroteas | stectre Plosivas pb Nasais m m n a Fricativas qb CONSOANTES oF i [eels a 13 sem friegdo | fe semivogais | Fechavdas Semifechadas Aberias ‘Uvulares| Faringais| Glotais, Plosivas es kel ae ? [Navas 2 fs Frets Inteaie rst s | [Vibrantes ® Flapes ® Fricativas ee xu | Re) ha CONSOANTES Continua Fechadas Semifechadas| ‘Semi-abertas Abertas vocais Figura 12 — Alfabeto Fonético Internacional. Classifieagéo dos sons de fala segundo a Associacio Fonética Internacional REVIVENDO UM VELHO DILEMA_§§ ‘momentdnea € ocorre s6 uma vez, tem-se uma vibrante simples (tam- bém chamada ELAPE), tal como 0 /1/,de “caro” em qualquer dialeto do portugués. Se, em lugar de obstruir todo o trato vocal, dois articula- dores se aproximam de modo a apenas estreitar a passagem de ar © provocar fricgdo, tem-se uma FRICATIVA, tal como [f}, [vl, [s] ete, Finalmente, se tal aproximagio ocorre, mas nao € suficiente para produzir fricgio, tem-se uma continua sem friecdo ou uma SEMIVOG tal como o que antes chamamos de vogais assilabicas em exemplos tais como [ay}to pleztt. Examinando as colunas do mesmo quadro,’vocé constataré que las designam pontos ao longo do trato vocal — os chamados PONTOS DE ARTICULAGAO — isto & os lugares onde corre a aproximagio ou © encontro dos articuladores. Uma. s1LaBial. & articulada com os dois bios, tal como [p], [b], {m] ete. Uma LaBioDENTAL & articulada com QUente nas linguas germinicas que nas romanicas — onde o papel de articulador fixo é desempenhado nao pelos denies mas pelos alvéo- los, isto & a parte superior das gengivas. Uma RETROFLEXA mente mais recuada que uma alveolar, porque a para tras tocando 0 céu da boca com a sua supert Ainico exemplo desse tipo de som em portugués Eo /r/ de palavras tais come “porta” e “verde” na prontineia do chamado dialeto caipira.) Uma PaLaToaLveotar articula-se aproximadamente na mesma regio, sendo que a lingua se estende um pouco mais para a frente, por estar igeiramente cOncava, tal como em [fl e [3]. Uma verdadeira PALATAL articula-se com a parte frontal da lingua contra 0 PALATO BURO, isto 4, 0 céu da boca. O tinico exemplo desse tipo de som em portugués € 0 7n/ de “banho”, “sonho” ete., que, entretanto, pode, em alguns dialetos, ser articulado como uma semivogal. Ja as VELARES, que se articulam com 0 dorso da lingua contra 0 VEU PALATINO OU PALATO MOLE, so representadas em portugues tanto pelas oclusivas [k] ¢ [2] como pelas fricativas [x] © fy], que ocorrem como variantes do /R/ ‘na prontincia brasileira, Outras variantes do mesmo fonema em por- tugués so a vibrante UvULAR [RJ © as fricativas uvulares [X} € [2], que, obviamente, sio articuladas com o dorso da lingua contra a tivula. Finalmente, restam as FARINGAIS [h] e [<] ¢ as Gtorats [he {fi}, que também s6 ocorrem em portugués como variantes do /R/, sob forma fricativa. Nas primeiras, & a raiz da lingua que se articula contra a Faringe. Nas segundas, so as cordas vocais que, assumindo uma $6 _REVIVENDO UM VELHO DILEMA Postura mais rigida que na fonagdo, desempen a passagem do ar Como voce 0s subjacentes & organizagio desse qua- dro, apesar de serem perfeitamente inteligiveis, deixam muito a desejar A insatisfagdo que sentimos parece do 1m © papel de obstruir nao podemos i ida que ela ten| em comum com do canal. bucal. Fampouco podemos dizer que as nasais se aproximam das vogais por cia, visto a critérios classificatérios di ‘opriedade: observe que as linhas, na cl 1, feferem-se a graus de abertura do trato vocal ABERTO, SEMI-ABERTO, SEMIFECHADO, FECHADO), enquanto as ios. vogais e consoantes Associagio Fonética Internacional. A propria existéncia de termos tais como semivogal (ou semiconsoante) indicar que sim. Brincando com espectrogramas, voc’ reforga mai ponto de vista ha consoantes que tém uma estrutura espectral bastante parecida com a das vog: Guiado(a) pelo seu ouvido, voce produz espectrogramas de varios tipos de consoantes, das mais musicais as menos musicais. Ndo é Surpresa constatar que as semivogais, por exemplo, s6 diferem das vogais por nao terem um periodo estacionario. Em palavras tais como “paus” € “pais” (v. Figura 13), voc’ vé os FORMANTES se moverem continuamente da posigdo tipica de [a] para as posicdes tipicas de [wl ou de [i], com a diferenca de que, ao atingirem essas metas, eles nao permanecem af estacionados. Menos nitidamente vocélicas — mas apresentando, ainda assi uma estrutura de formantes caracteristic as laterais e as nasa Ao produzir espectrogramas desses sons, vocé constata que a sua qual dade musical se manifesta graficamente através de formantes menos imeensos que os das vogais, em combinagdes bem distintas (v. Figura 14), Refletindo sobre as razdes dessa semelhanga, é facil concluir que ela se deve a0 fato de todos esses sons envolverem uma moditicagao REVIVENDO UM VEI duplo, const nas nasais, ela ressoa também num pelo trato vocal obstruido e pelas fos inal duplo, desta ver. sais livres, 000 00 so » s pa pos ynsi¢io entre vagais © ser Figura 19 — Movimentos dos formantes vvogais: “paus” versus “pais” oom © © @ w 0 w % 10 mm wm HO 009 000 4000 000 Figura 14 — Espectrograma de banda larga do enunciado “Na mela amarela Observar os formantes das nasais e das liquidas. {8 _REVIVENDO UM VELHO DILEMA Esses exemplos devem ter da pertinéncia da sua que: saiba que voce aca pensamento diante das di fond ido suficientes para convencer voce Se, e 0 foi o recém-falecido quem, alls, se devem Jakobson no comecou como vocé, mas usoU exatamente os mesmos fatos que vocé acabou de descobrir para defender uma vagio de outros fendmenos, 896-1982), muitos dos progressos. do se nascida da obser- ndadores da Fono- a mesmo tempo. ‘Um fonema que serve pa gués é 0 /I/. Se, por consoante por ocupar sempre por outro, ele pertence a dois focorrem, respectivamente, nas 1, w, j/) € no final dessa ( disso, el pelo fato de ser sistem: laba na maioria dos di tem em comum com os demais 1 que pertence? classes a ‘Como voce vé, Jakobson e voc’ chegaram & mesma questo, sendo que ele comegou pela Fonologia © voc’ pela Fonética, Fenémenos tais como a multiplicidade categorial do /I/ em portugués abundam nnas linguas do mundo, fornecendo amplo sustento a tese daquele lingitista de que os fonemas devem ser decompostos em propriedades elementares chamadas tracos distintivos. Era exatamente a nogio de trago distintivo que se insinuava no seu racioeinio quando vocé dizia que as nasais tém algo em comum com as oclusivas e também com Propriedades abstratas dos também abstratos fonem: 08 esta vendo como propriedades m: — dos segmentos fonéticos. Jakobson nao tardou, entretanto, a sentir a pressio do clima Postrivista d jas humanas nos meados deste século ¢ a buscar n a sua tese. Juntamente com 0 fone- logia de um grande mimero de linguas € chegou & conclusio de que todos os fonemas deviam diferir ou assemelhar-se ao longo de, no mo, doze dimensies definiveis tanto em termos articulat6rios ras, @ proposta'de Jakobson, Fant rio universal de doze tragos jeos precisos e que podem expli- 1 semelhaneas ou diferengas entre fonemas nas linguas que uma tal economia $6 foi possivel porque ao nivel fonol6gico — isto é, Aqueles contrastes palavras na lingua. Obviamente, um nimero td 1 dar conta de diferencas se observa entre 0 /p/ de “pi” (ligeira- Ge “pu” (marcadamente labializado) roximou do pensamento de mai como actisticos. Em 0! e Hal iizado) 0 /p Voce mais uma vez se venha sempre acom- ia. Convém agora voc’ se infor- mar um pouco mais sobre esse sistema para ver se € em que medida ele responde as su: Im dos pressupostos mais importantes do. sistema em questio 0 de que os tr ivos sto entidades discretas, Outro pres- suposto ompanha © primeiro, sem, entretanto, ser uma imp! de que tais entidades cotbmicas, isto le-se em duas categorias polares. Para entender isso, pense "30. surda/son icamente, ela se manifesta como um continuo acdstico e articulatério denominado tem- po d wet time): as cordas vocais podem comecar a vibrar antes, durante ou depois da articulacdo suprataringea, © que significa que a voz pode ocupar porgdes maiores, menores ou nulas de um segmento, em incrementos ou decréscimos continuos. Entretanto as linguas do mundo néo contrastam diferengas sutis de sonoridade, mas apenas duas ou trés categorias discretas, a saber, SURDO, SONORO e ASPIRADO. Abaixo dessas categorias, qualquer dife- renga sutil na distribuicdo temporal da voz € uma questao de detalhe fonético, néo se prestando a veicular diferengas lexicais. Assim, pode- ‘mos pronunciar “pia” € “Bia” com diferentes tempos de inicio de 64 _REVIVENDO UM VELHO DILEMA sonorizacao, mas rect experimentar nada de do que Jakobson, F io entre rem dizer q iades discretas. jo-continua, mas Uma dico: cconsistem na presen dade. Casos como 0 aparemtemente tres duplas dicotomia ndo-aspirado nada. propri — gue comporta dos pela postulagao de do nosso sistema ner- ase do tudo ou nada, isto & tivos o estatuto de ei ver os contrastes fo! lexicais nao sé tendem a dividir-se em unidades diseretas como bém admitem um nvimero muito pequeno de tais divisées, do constitui uma boa aproximagio. ‘Tomemos como exemplo o problema das chamadas alturas vocd- licas. No quadro da Associacdo Fonética Internacional ha pelo menos cinco alturas, descontando-se as posigSes intermedisrias que aparecem na regio ce is alturas tém uma realidade fonética inequivoca, pois 0 quadrilétero é traduzivel em termos tanto articulatérios como obtida medindo-se na ordenada ima e na abscissa a distincia dos labios. Analogamente, a sua versio actistica € obtida medindo-se na ordenada o inverso da freqiiéncia do primeiro formante ¢ na abscissa © inverso da freqiiéncia do segundo formante (v. cap. 4). Fis as figuras que a foneticista Mona Lindau (1978) obteve realizando tais medigdes REVIVENDO UM VELHO DILEMA 61 AO} T —>— 1 T ie s| 4 ce mm e 10 5 6 De 2 L Ly a a a a a a 8 T 300} eu 400} 7 : eo 00) coe A ce He 600] eo 4 700} 4 00}- 4 1 20001660 “7200 800“ 600400200 Fa-FyemHe Figura 15 — 0 quadrilatero vacélico a partir de medidas (A) articulatérias © (B) acisticas. 62 _REVIVENDO UM VELHO DILEMA : REVIVENDO UM VELHO DILEMA_@ J expect, eles sto considerados compactos. Assim, [i, tu] sito vogais difusas, pois as duas primeiras tém um formante baixo muito Obviamente, do ponto de vista fonético as vogais podem variar continuamente ao longo de ambas as coordenadas do quadri Vocé pode constatar isso pronunciando vagarosamente ¢ sem rupgdes [it © € a B90 @ uJ: comece elevando a frente da lingua em diregio ao palato e vi abaixando-a gradualmente, para comecar a elevi-la de novo — desta vez na regido dorsal — no momer que principiar a arredondar os labios. O que voce ow Uo que se estende gradualmente da pi to essa Fiqueza de m as duas iltimas tém dois formantes baixos intensos ¢ no muito pro- ximos ¢ um formante alto relativamente intenso. Jé [ze, a, 9] siio vogais compactas por terem dois formantes proximos bastante intensos — médios no caso de [2] e baixos no caso de [a, 2] — ¢ um formante alto bem menos i jo dessa distingiio é a oposicdo entre o de tamanhos bem dife- rentes — como no ea faringe é larga — vel fonolégico, Nenhuma \ cas para contras " € 0 uso de caixa Jia de tamanhos semelhantes — como c 5 ide de compreender isso se nde as dreas dos ca * i femos no capitulo 3 sobre as vantagens do uso de ingdo de ener no espectro por serem produzidos com maior © que da lugar a cavidades ressoadoras. mais irregulares que as dos sons frouxos, onde a forma do trato vocal se aproxima mais da de um tubo uniforme. Si sas as vogais PACTO € TENSO/FROUXO, 0, ul ¢ frouxas ay vogais esses autores & aciistica, Com esses tragos, Jakobson, F: com fatos articula: ito das dez vogais das Figuras 15 ¢ 16. ou grave) & definido espectral. Os sons tensos apresentam la pode ser 1 RAVE/AGUDO, DIFUSO/< i ¢ Halle conseguem diferenciar Isso fica claro quando embora AGrios, Assim, ui. Além disso, a intengdo dos autores is que sejam, de fato, font jam de variantes que tém doi os, Essas i deradas. | . e}, que n sao graves ig na faixa de m contraste entre n agudas, " nergi gudo se manifesta como ressoador encurtado, ( orque aumentamos con arredondando os labios [+ compact }. refoream-se as fre- cando assim certas st omprimento retraindo os bem tragos I sistema é que ele explicita caracte- Tragos como {= gravel, lasses de segmentos vituas. Em particular, os dois primeiros as distingSes de ponto de articulagao. Sio graves as conso: e velares. Sdo compactas as consoan- tes velares ¢ palatais, Combinando-se os demais valores desses tragos, tem-se 0 seguinte quadro: sons sao considerados sos; se elas convergem para uma regi 4_REVIVENDO UM VELHO DILEMA epee ee Pl rae -l-[-/-l-l- fle l+ be tem +] -[+ ~|4 { labiais velares ae a : itso ~ be - Figura 16 — Principals dliferen: sistema de Jakobson, Fant @ Halle. Outro trago seria renciar [a] de [0] (a saber, 0 trago rebaixado), Retomemos agora a estudar respeito & necessi de semelhancas © diferei intivo cer em razio da qual voce le. A. sua indagacao que desse con ticos. A nogtio seu uso por as fi faceta fono. os por Jakobson ma que voce te da esco tworia da le & preciso cor ou se aproximam de Mo europeu, do qual tas como Jakabson. Do ESTRUTURALIS- obson foi um dos fundadores, a Fonologia REVIVENDO UM VELHO DILEMA 66 Gerativa herdou a concepedo de que a lingua é uma rede de regulari- dades subjacentes invariantes que sé manifesta de maneira varidvel mas previsivel na fala. Diferentemente, porém, dos estruturalistas, Chomsky e Halle nao véem a lingua como uma abstracao coletiva, derivada de acordos técitos firmados por uma comunidade ao longo da sua historia. Para eles, a lingua nada mais € que a atualizagio de uma capacidade de linguagem inata, cujo desenvolvimento na espécie humana é apenas desencadeado — mas néo determinado — pelo con- tato com o meio, Ora, o que tem isso a ver com a minha questio? — pergunta-se vocé. Nao se aflija, pois vocé vai discernir isso logo. O elo que vocé procura reside no fato de, nos anos 40 e 60, o estrutu passado por u ia crise, gerada pela exigéncia metodolgica de que construtos tais como os fonemas © os tragos fossem definidos és de fendmenos diretamente observaveis na fala. O problema é que, na verdade, ¢ muito dificil definir categorias tao abstratas com base em dados € operacdes empiricas. Pense num fonema como /r/ em portugues: wiantes — que funcionam como fonemas diferentes em outras linguas possivel encontrar uma propriedade fonética classe empiricamen Chomsky € Halle solucionam esse probl ido ignoré-lo. Para cles os fonemas — que, alids, sdo chamados de FONEMAS SISTE- MATICOS para enfatizar a sua rel gilistico — nao sao derivad repert6rio universal de tragos distintivos que integram a capacidade de Tinguagem do homem. O que a experiéncia faz é apenas ativar essas ccategorias, nas quais os dados aciisticos e articulatérios a que o indi- viduo € exposto se enquadrariam automaticamente. Para que isso seja possfvel, quaisquer segmentos, sejam eles concretos — fonéticos — ou abstratos — fon . devem poder ser definidos em termos de tais categorias. F interessante que, a partir da sua postura raciona- ista, Chomsky € Halle tenham seguido uma direcao compativel com A intuigdo que levou vocé a buscar propriedades comuns nos segmen- ‘tos fonéticos € fonolégicos, conquanto tal intuigdo seja de inspiragio empirista. Mas, neste caso — pensa vocé — temos de abdicar dos tragos ios, pois eles si nadequados para caracterizar dis- 'S mais finas. O seu raciocinio & irrepreensivelmente 10 impressiona a cientistas ousados como Chomsky Entusiasmados com a hhipdtese jakobsoniana de que 0 BINA- MO pudesse decorrer de propriedades do sistema nervoso central, eles propuseram um novo sistema de tracos bindrios que pretende dar (6 _REVIVENDO UM VELHO DILEMA conta, ao mesmo tempo, de todas as distingdes fonéticas e fonol6gicas presentes nas linguas do mundo. lizar 0 ha muito mais do que fonéticas em termos bin: tomias. Nao € de admirar que voce esteja interessado(a) em estudar esse sistema para ver se ele cumpre a promessa de responder & sua questio. ‘A maneira mais fécil de entender os novos tragos é referi-los is cate- gorias tradicionais da Fonética Articulat6ria, ou seja, pontos ¢ modos de articulagdo para as consoantes, ¢ altura e recuo da lingua para as vogais. ios, € preciso multiplicar © nimero de di © parametro altura é estendido também as consoantes, sendo traduzido em dois tragos binarios, @ saber [= ALTO] e |= Baixo} E. facil inferir que [i] © [ul sio — baixol, enquanto [a], [el © [9] sao [— € [0] sio [— alto, — baixo]. Obvia- baixo] nunca é preenchida, pois de articulags que as mesmas distingdes. se ap ladas com a parte posterior da lingua. Assim, as palatais e velares sio [+ alto, — baixo] ¢ as faringais ¢ glotais sio |— alto, -} baix enquanto todas as demais consoantes sao [— alto, — baixo]. Uma outra dimensdo articulat6ria comum is € con € © avanco ou recuo da lingua, que Chomsky e Halle expressam através do trago [+ RECUADO]. Assim, as vogais posteriores, inclusive {a}, sao [+ recuado}, enquanto as vogais anteriores so [— recuadol. Analogamente, as consoantes velares, uvulares € faringais sio [+ recuado}, enquanto as demais so [— recuado} Para distinguir vogais tais como [a] ¢ [9], Chomsky ¢ Halle usam ainda 0 trago [2 ARREDONDADO], cujo valor positive aplica-se as vogais arredondadas (por exemplo, [o], [ul, [2]) € a consoantes izadas (por exemplo, [1], {kI). Com isso, eles dio conta de um bom mimero de distingoes entre vogais, mas restam-Ihes ainda ss de consoantes a diferenciar. Como os pontos de articulagao anteriores ndo sio afetados pelos tragos [+ alto] ¢ (++ baixo], Chomsky ¢ Halle introduzem dois novos, tragos para caracterizar as consoantes articuladas naquela rea, a saber: [+ ANTERIOR] € [+ CORONAL]. Sdo [+ anterior] as labiais, . REVIVENDO UM VELHO DILEMA 67 dentais ¢ alveolares e [— anterior] as palatais, velares, uvulares, farin- gais e glotais. O traco [+ coronal] refere-se & posicdo da parte anterior (ou coroa) da lingua: se ela esté elevada, como nas dentais, alveola- res, alvéolo-palatais € palatais, a consoante é [-} coronal]; se ela esta relativamente baixa, como nas labiais, velares, uvulares, faringais ¢ glotais, a consoante é [— coronal] Se vocé quiser buscar incoeréncias no sistema de Chomsky ¢ , certamente fard uma festa consultando o texto original do sew 10 The Sound Pattern of English (1968). Por ora, entre- tanto, coloque essa obra — monumental, apesar de tudo — no seu programa obrigatério de leituras € concentre-se na mais patente dessas encias, a saber: a maneira como os autores tratam os modos Vocé mesmo(a) observou que seria interessante poder captar 0 que as nasais partilham, de um lado, com as oclusivas e, de outro, com as laterais. Chomsky ¢ Halle também sentiram essa necessidade porque, nas linguas do mundo, tais classes tendem a apresentar com- portamentos semelhantes. Para dar conta de fatos dessa natureza, eles propuseram os chamados tragos de grandes classes (major class features), aproveitando alguns tragos do sistema de Jakobson, Fant @ Halle € introduzindo outros novos. Segundo Chomsky e Halle as diferengas mais importantes de modo de articulagio podem ser captadas através de uma divisio dos segmentos fonéticos possiveis em cinco grandes classes, a saber: VOGAIS, SEMIVOGAIS, LiQUIDAS, NASAIS © OBSTRUINTES. Tais classes partilham certas propriedades € diferem em outras. Para diferencié-las © caracte- rizar us suas subdivisdes, os autores langam mao de seis pares de + RESSOANTE], [== SILABICO], SAL] € [LATERAL refere-se & presenga ou auséncia de obstrugio Todas as consoantes propriamente ditas, inclusive as uidas © as nasais, so [+ consonantal]. 1350 as opde as vogais ¢ semi que so unidas pelo fato de serem [— consonantal} © traco que distingue as semivogais das vogais & [+ silébico). As semivogais sio sempre assilabicas enquanto as vogais propriamente as liquidas e as nasais podem ba, como nas palavras inglesas do trato vocal, vogais & semivogais tém em comum 0 trago [+ ie], que as une as liquidas © as nasais. A definigdo articulatéria desse trago em Chomsky ¢ Halle (1968) ¢ extremamente confusa e provavelmente incorreta, mas pode- 6 _REVIVENDO UM VELHO LEMA mos redefini-lo como uma qualidade auditiva que diz respeito ao fato de o som constituir-se ou ndo de uma modificagio da vor. por resso- fos acima citados seriam [++ res- ¢ oclusivas, as africadas e as frica- ivas — seriam [— ressoante]. Para distinguir essas tiltimas das duas uusa-se ainda 0 trago [+ continuo], que separa os segmentos corren n te (oclusivas, africadas la nao o € (fricativas e ressoantes nio- homsky © lateral]. © primeiro ia nasal (consoantes € vogais na mente os tragos [= separa os segmentos com ressoni sais) dos Com a combinagio de todos esses tragos, tem-se fin te matriz, onde estio diferenciadas as cinco grandes cl Chomsky e Halle: Ressoantes sitio | continuo vasa > nl] L Figura 17 — DistingSes entre as grandes classes segundo 0 sistema de Chomsky ¢ Halle. © grande problema com essa matriz 6 que, dadas as definigdes dos tragos, nem sempre é Gbvio a que classe um segmento fonético pertence. Por exemplo, de acordo com a definigo de consonantal, {h] € [— consonantal], pois a obstrugdo dé-se na laringe © néo no trato REVIVENDO UM VELHO DILEMA_@ inguas, como, por exemplo, o japonés, onde ele se comporta como uma fricativa. Que fazer nesses casos? Distinguir duas verses do mesmo segmento, diferenciadas talvez por um outro trago? Ou simplesmente admitir com Jakobson que a mesma realidade fonctica pode ter dupla composicao de tragos, de acordo com 0 seu pressuposto de que todos os segmentos se derivam o de tacos universal ¢ inato. A forca da visio inatista inte em minimizar o papel da experiéneia, evitando, de esta- is que se excluem mutuamente iguns membros intercambiaveis, de como o mecanismo supostament hecimento de tragos opera em tais casos ambiguos, O embaragoso & que a admissdo de uma tal ambigiiidade j@ constitui, em si, uma enorme perda de terreno para a perspectiva inatista, Casos como 0 do [h] nao so abundantes, mas ocorrem sistem: € o das variantes do /r/, que abarcam todas as vibrantes méiltiplas © todas as fricativas pés-palatais, segmentos esses que podem nao so constituir fonemas diferentes como também pertencer a classes m diferentes em diferentes linguas. Tomemos como exempl comum daquelas variantes na promincia brasileira, 0 [x]. E dbvio que ele € foneticamente uma fricativa velar. Por outro lado, & 6bvi também que ele € a realizacio fonética de uma ressoante, pois ocorre em ambientes onde s6 sio permit da variante i do prefixo in; cf. “irregular”, indecente”). Deve ele, entao, ser classificado como luma ressoante ou como uma obstruinte? No primeiro caso, como se aria a sua realizacao fricativa? No segundo caso, como se expl caria o seu comportamento em portugues, tio diverso daquele apresen- tado em linguas como o espanhol ¢ 0 alemao, onde ele funciona, de fato, como uma fricativa? A esta altura, vocé ja deve ter concluido que o sistema de Choms- ky e Halle nao responde satisfatoriamente as suas perguntas ¢ deve 10_REVIVENDO_UM VELHO DILEMA, estar-se indagando onde reside a sua fraqueza. Seria no conteiido dos tragos? Seria no binarismo? Ou seria ainda na insisténcia em tratar categorias maiores, tais como “nasal” e “liquida", com os mesmos Fecursos que categorias menores, tais como “oclusiva” ¢ “dental”? “Se vocé pensar um pouco mais, veré que, embora apresentando outras inadequagdes, como io de diferencas estd de fato'em questio aqui. Qualquer sistema, binario ou escalar, que insista em tratar todas. as egorias estanques incorreré no mesmo pro- sempre segmentos que, embora se comportando jis classes mutuamente exclusivas. vel, agora, 0 reencontro com a lasses? De onde vém vislumbrou 2 esperanga de encont com Chomsky ¢ H: 1a questao inicial: como Com Jakobson voce amento da lingua; le vocé supés poder descobri-las no cérebro do parece pouco convincente a crenga jakobsoniana de que a realidade das categorias fonéticas esteja na rede abstrata de relagdes que & a lingu \da the parece a especulacio chomskyhalleana de que ela esteja na nossa heranca genética. E eis de que o seu esforgo para entender esses autores idere a impo! de distingdes mais desestimulante do que estar sob a impressio de contemplar a verdade. Nesta — voce ji deve saber — toda verdade é provis¢ rate de de, a0 cabo de malfadadas buscas, sentir de repente que voce esta por perto — € entdo fechar os olhos, agucar o tato ¢ seguir a direcdo ditada pelas suas. maos, Roteiro i Os clissicos da Fonologia desta metade de século, como voc’ ja sabe, sto Jakobson, Fant ¢ Halle (1951) © Chomsky e Halle (1968). Para uma digestio dessas obras dificeis, ver Schane (1973) © Hyman «a975) 6 A fala ea linguagem textura, A fala fugaz, traigoeira, mas diante dela voce se excita, se exalta, como se estivesse tocando a pele dessa grande esfinge que & a linguagem. Vocé pensa na intimidade da sua relagao com a pr e se pergunta se isso também sep: entre a lingua Seria a fala, de fato, 0 lugar wuagem toca, acaricia, apreende e captura tudo 0 que Ihe é externo? A lembrani vel que Ihe sobrevém agora é a dos momentos fem que a linguagem Ihe faltou. La estava a vida, no sew inexorével fluxo: vocé a contemplou, sentiu, desejou, amaldigoou e, entretanto, no soube , the oprimi © peito? E vao perguntar. Tudo que vocé sabe € que a sua experiénc tem momentos em que nao se discernem as arestas, os vértices, os limites que a linguagem parece reclamar. Se a Tinguagem transforma em fronteiras nitidas aquilo que na experiéncia so apenas esbogos de contornos, a fala é um Iugar onde isso se evidencia de forma privilegiada. Enquanto objeto da experién- cia, a fala é fluida, evanescente, e apenas insinua os contornos que 72_AFALA EA LINGUAGEM Ihe empresta a Tinguagem, Entretanto, enquanto matéria-prima da iinguagem, ela trai essa continuidade primitiva, segmentando-se ¢ organizando-se numa complicada hierarquia de unidades discretas. Assim como a pele, avesso do espirito, transpira cada manobra dele, a fala, avesso da linguagem, revela-se um espelho da sua natu reza. Na sua continuidade e fluidez, a fala aponta para algo que ela nao 6: 0 fabuloso edificio computacional da linguagem, onde a expe- rigneia se captura e se compartimenta. Mas isso nao € senéo 0 reverso do que faz a linguagem, que usa de todo o seu poder computacional para invocar algo que cla também no é: nada menos que 0 fluxo, de qutra forma inapreensivel, da propria experiéncia, Falamos daquilo que vemos, sentimos, lembramos ou imaginamos €, em geral, s6 somos entendidos por alguém que veja, sinta, lembre ou imagine aproximadamente como nés. Por mais desconcertante que seja, a sittagio do didlogo de surdos nao é incomum: duas pessoas se repetem, se debutem, se exasperam, em tentativas cada vez mais frustradas de se fazer entender. Obviamente, compreensio da lingua E que nao Ihes falta, Falta-Ihes, por recusa ou inabilidade, a possibi- idade de por us mensagens do interlocutor em correspondéncia com algo que tenham vivido. Vocé se pergunta se a linguagem necesséria e sente uma incon- rio onde as pessoas se enten- sem dizer nada, Mas logo recua ante a voragem desse paraiso, onde nao existiriam a dissimulagdo ¢ a mentira, mas no qual faltaria também a privacidade e, com ela, a diversidade © a individualidade. Seja qual for a razio — resigna-se voce —, a linguagem esté em toda purte, circundando-nos de tal forma que quase nos impede de ver aquilo mesmo para que ela aponta, Como a linguagem faz contato com a experiéncia & um mistério: vocé apenas intui vaga- mente que os borrdes da segunda se traduziriam em pontos ou linhas mais ou menos claros na primeira. Se a fala é também um objeto da experiéncia — prossegue voce —, quem sabe no se pode suas relagdes com a Tinguagem’ rio. investigando as ldo se esqueca, porém, de que a sua visio de fala tem um viés milenar: afinal, vocé herdow uma lingua que sempre se serviu se manifestar. O que vocé vé na a — segmentos, fonemas — poderia nao estar nela, mas na lingua- gem, que a recorta e codi Toda a sua engenhosidade agora esti empenhada em encontrar uma maneira de se aproximar da fala sem se deixar iludir pela sombra da linguagem. Vocé procura escutar conversas em linguas que ndo | AFALA EA LINGUAGEM 73 entende e agua os ouvides para tudo aquilo que, até bem pouco, nao Ihe interessava justamente por estar nas margens do lingifstico: issurros, gemidos, © que vocé espera conseguir de como a fala soaria se ela fosse apenas cla mesma. Vocé quase desistiu da empresa depois que a expés a um amigo lingiista, que imediatamente o(a) tachou de louco(a). Os linglistas f voce se comportou como um deles muitas vezes até aqui — vem na fala um reflexo da linguagem, recusando-se quase sempre a admi- tir que a linguagem também possa refletir a fala, Felizmente, venceu a sua teimosia © voce prossegue buscando ouvir a fala enquanto tal. so mais os objetos da sua experiéncia, mas um objeto que vocé construiu e que voce acredita captar as propriedades essenciais da fala. Esse objeto nao tem uma estrutura segmental nitida, mas preserva a melodia € o ritmo que permeiam todas as manifestagdes da fala, das mais sacramentadas as mais mar- ginais. Ele ¢ entoado ¢ percutido e ainda assim, a0 seu ouvide a0 menos, distingue-se perfeitamente no canto, Voce se pergunta como isso € possivel € especula que no canto (© homem recria as vozes da natureza, enquanto na fala ele exerce a sua propria voz: a voz do homem geme, suspira ¢ chama enquanto © que vocé ouve na ele respira e vive, estando, por isso, sujei mos da prépria vida. um Wim THM, vooe interpreta 4 melodia descendente/ascendente como uma coi ada repe- tigao de por sua vez, denunciaria u afetaria a um tempo a freqiéneia e n responsaivel_ pela ais, que, ( resultaria uma batida jara com © modo respi- menores ue se alinha ct rat6rio do. gemido. As hipotese agora é a de qui laridade com sto é, repre- ‘ios. O mesmo tom 14_AFALA E A LINGUAGEM Anilogamente, a maior ou menor proeminéncia relativa das porcdes daquele gemido traduzir-se-ia — se convencionalizada por uma lingua — numa seqiiéncia de batidas: forte — fraco — forte Ironicamente — suspira voré —, a fala, que nasce do grito © do gemido, ests fadada a representar, quase sempre, nao aquilo que eles expressam, mas o recortado e organizado universo computacional da linguagem. £ ia si mesma e langa mio de tudo © que pode para, na sua continuidade, imitar a descontinuidade da inguagem. A vor. se anula ou se retrai, alterando-se ou alinhando-se com explosoe iquirem contornos abruptos, em conseqiiéneia de mudangas nao menos abruptas da forma do trato. ve medida em qu do tempo, suge insere-sem E como se, enca tem algo Nao 1 0 seu conv wentura, para pai A linguagem — teoriza vocé — ¢ um abismo que cresce continua mente entre 0 sentir e 0 gemer. Nao se trata de um abismo catastréfico, que destrua_ uma irmani va sem repor em troca, E AFALA EA LINGUAGEM _75 antes um abismo estratégico, que garante que o homem néo se perca nna vertigem da sua experiéncia e que possa recuperar a sua propria” histéria e a histéria da espécie ao voltar-se para outro homem. Recor- tando o que ¢ fluido e fugaz, a linguagem torna-o recuperavel, compu- tavel, negociavel, mas torna-o também outra coisa, Essa outra coisa & um edificio cheio de casulos € avenidas, cuja fase sonora toca o primitivo gemer e cuja face significativa toca 0 primitive sentir. gemer e o sentir vingam a sua separagdo imprimindo marcas nas superficies de contato do edificio da linguagem. A ndo-segment: bilidade da fala enquanto voz do homem reflete-se numa inevitével margem de vagueza e arbitrariedade das categorias fonéticas, Se Chomsky ¢ Halle tivessem admitido a possibilidade de uma t gueza, nente nao teriam ido tao longe na sua fracassada tentative de descobrir categorias fonéticas universais ¢ absolutas. Analogamente, a nao-segmentabilidade do sentir retorna pela subversio das significa- ges, que também nao conseguem escapar a um certo grau de vagueza ¢ objecdo de que se a linguagem se jentos no haveria como explicar os seus tusos referenciais ¢ intelectuais. Voce apressa-se em esclarecer que por “sentir” nio se deve entender nem recepedo sensorial passiva nem a puramente emocional, mas toda experiéncia visual, audi- ‘motora etc. angariada na agao sobre 0 mundo e sobre 0 outro, Como ess: jencia se inscreve em nds é, sem divida, um que haja uma digital — estruturada nos direto nas nossas E pelo menos reconfortante constatar na companhia de nomes to ilustres moldes da linguagem — atividades mentais conse! que a esse respeito voce est quanto Jean Piaget e Sigmund Freud. jocé explica ao seu ansioso interlocutor — ar alguém a falar porque os fonemas pertencem cujas relagdes com o sentir © com o gemer das possiveis, a saber: 0 LEXIco. No xxico, estruturas sono} as pareiam-se com estruturas seméin- abstratas, formando @ mais determinada das interfaces entre sons idude lexical por exceléncia é a palavra, uma nogio a que, entretanto, tem eludido iniimeras tenta- tivas de definigio tanto por parte da Sintaxe ¢ da Semantica como por parte da Fonologia, Fonologicamente, a palavra se decompoe em tunidades discretas tais como a silaba e o sepmento. Semanticamente, 10 as_ mais im6ve 26_A FALAE A LINGUAGEM € provével que ela também se decomponha em componentes discreto: natureza ainda nao é bem conhecida. Em muitas linguas, inclusive ainda, abaixo da palavra, uma unidade significativa MORFEMA, que provavelmente também se decompoe em componentes semanticos discretos e que, em muitos casos, opera combinatoriamente para formar palavras. Por exemplo, a palavra “brasileiro” decompde-se nos morfemas bras- (como em (como em “viril”), eir- (como em “mingiro”) © 0 (como em “me- nino”) Conhecer os sons e os sign ciente — continua vocé —, porque tanto os primeiros como os segun- dos variam em fungio do contexto ico © situaci Para combinar sons ¢ significados sio necessirias pelo duas grama ticas: uma que guarde sentido mais tradicional do te endendo uma MoRFOLOG uma PRAGM € outra que sancione a pronunciabilidade a per- ceptibilidade das seqiiéncias produzidas pela primeira — ou seja, uma ca que vai converter as as estaticas de fonemas oriundas do Iéxico numa pauta mais el para a fa nado, © seu interlocutor especula sobre a operagio dese mecanismo: seria ele uma espécie de combinatéria, que agruparia tragos di maiores? Vocé reconhece nele 0 preconceito do lingilista que todos nés: enamorado da natureza computacional da lin; se esquece de que ela deve curvar-se a fala para poder se expres Para curvar-se a fala — esclarece vocé —, nio € preciso que a linguagem traia inteiramente a si propria, moldando-se a indole daquela, Pelo contrario, hé num tal gesto uma dupla traigio, porque a linguagem cede a vocagio sintética da fala para melhor enquadri-la nos seus moldes analiticos. O que # gramética fonoldgica toma de empréstimo a fal ajet6ria do todo as partes, ou seja, 0 fato de a relagio entre 0s seus componentes ser sempre mais que uma soma de partes. Em contrapartida, 0 que ela preserva da linguagem é 0 carater discreto e arbitrario das suas unidades e natureza combina- toria das suas operacies. Impaciente, 0 seu interlocutor alega estar perdido em meio as suas abstragdes © Ihe exige um discurso mais conereto, se possivel apoiado em exemplos. Vocé respira fundo, como que buscando ener- gias para enfrentar esse desafio, e saboreia o prazer de embarcar numa nova aventura, ATALA EA LINGUAGEM 77 ‘A sua argumentagio vai-se construir sobre duas frases que voce ouviu: numa conversa entre amigos e achou particularmente ilustrativas. B — 0 Brasil era o pais do futuro. Para enunciar tais frases, os interlocutores langaram mio de um léxico e de uma gram ‘a essa que inclui regras sintéticas, semanticas € pragma 10 Ihe interessa discutir aqui. O que vocé se esforga por entender é a agdo da outra gramética, aquela que converte as seqiiéncias /u brazil ¢ u pais du futdru/ ¢ /u brazil éra u pais du futiru/ em algo que a fala possa interpretar ¢ atvali ica fonoldgica operagdes que podemos captar, ainda através da transcrigao fonética, Numa transerigo rir © que essa transcrigdo expressa, para além da transcrigao foné- 0 as variagdes que sofrem os segmentos sob a influéncia do rerte-se ” passa fa [z] por preceder uma consoante sonora ¢ quase todas as vogais ftonas tornam-se frouxas, Analogamente, na primeira frase 0 /u/ de “o pais” se semivocaliza, isto é, converte-se numa semivogal, na presenca de uma vogal mais forte, 0 /e/, que se apresenta alongada devido ao acento contrastivo. Além disso, essa transcrigéo marca com 08 diacriticos [-] ¢ [| a intensidade retativa dos acentos: na primeira futuro”, enquanto, na frase, 0 acento principal recai sobre a pi segunda, ele recai sobre a palavra “era [As variagdes segmentais expressaveis pela transcrigao fonética sio mais ou menos fixas, isto é, tendem a se repetir de enunciado para enunciado ¢ a ser reconhecidas € usadas por toda uma comunidade de falantes, Entretanto — vocé se dé conta — elas no sio seno uma parte muito pequena daquilo que ocorre quando a linguagem é convertida em fala, Para compreender o seu lugar nesse processo, é preciso dedicar mais atengdo a fala mesma, agucando os ouvides para escutar variagdes que a transcricao fonética, por mais estreita que seja, nab 6 capaz de captar. (© que o(a) impressiona naquilo que vocé ouve ¢ ndo pode trans- crever é que 0s enunciados aparentemente se escandem de uma ma- neira que nao implica nenhuma pausa no sinal acéstico, interessante que as duas frases do didlogo acima o fagam de uma maneira muito 1_AFALAE jientemente diferente para re dessa escansio. Ambos os enunciados tem, por exem- 10 0s «lo segundo sao [w bi nbém em ambos a escansio s 0 seu perplexo interlocutor — por meio de cres de proeminénci dos © decres- © uma coda abrupta, como em Apos novo crescendo, configurando-se um novo pk ide do seu interlocutor diz respeito ao que voce chama aceita que faz sentido que tais nogies seja is de definir objeti- vamente. O acento — argumenta ele — parece ser uma ent « que pro no primeiro enunciado, quand que, simplesmente, aglutina:se as si do com elas um tinico inguir para o seu inter 08 varios niveis em que se pode manifestar o fenomeno da A linguagem — teoriza vocé — segmenta ¢ imobiliza a fal formar © acento em alguma coisa como um trago distintivo, isto uma propriedade capaz de diferenciar itens | tais como “sabia sb “sabia”. Mas a fala obviamente nfo se curva ante essa quando a linguagem € convertida em fala, os acentos sio sendio um pretexto para que essa ultima possa mani- ritmo proprio. Saber onde se localiza 0 acento lexical é, de fato, @ tinica garantia de poder reconhecé-lo nesta ou naquela ocorréncia da mesma palavra, pois muitas vezes a fala o atenua ou apaga a fim de inseri-lo no seu ritmo. . Falta ainda demonstrar a0 seu interlocutor que aqueles acentos lexicais que a fala preserva so manifestados por fendmenos que con- vém abranger sob 0 nome de “proeminéncia relativa”. © velho espec- t6grafo do seu amigo fisico vem de novo em seu auxilio: embora nao dispondo de uma gravacdo do didlogo em estudo, vocé aprendeu 4 imité-Io to bem que pode perfeitamente converté-lo em espectro- gramas, Armado de uma tal “reproducdo”, vocé tenta agora discemir ©8 cortelatos fisicos da proeminéncia relativa. AFALA EA LINGUAGEM 79 por picos da curva descrita pelos harménicos no JA que os harménicos sio miltiplos por exemplo, a freqiiéncia le ao primeiro enunciado, vocé nota apenas um pico em Brasil e outro, ainda mais suave, em fuuro, interpolando-se uma curva descendente entre eles. Na Figura 18B, que corresponde a0 segundo ei nota um plateau ligeiramente ascendente até era, seguido de um descenso estavel até o final. Parece claro que fo mo © wm Om wD mw mY 190 500 peizdo f i . A \ do fotaie sdos (A) *O Bre 0 pais do futuro” e (B) “O Brasil era 0 pals do futuro”. @bia zi j M_AFALAE A LINGUAGEM. a elevacio da freqiiéncia nao assinala todos os acentos de um enun- ciado, mas apenas o principal — como em futuro e era — e 0 inicial = como em Brasil —, esse tltimo por ocorrer num ponto onde a freqiiéncia é naturalmente clevada Os demais acentos de ambos os enunciados — vocé observa — sio marcados através de dois outros recursos. Um é a elevacdo da ensidade, que se pode observar na porgio correspondente a era espectrograma do segundo enunciado, O outro é a maior duragio das silabas acentuadas, visivel em ambos os espectrogramas. £ particularmente interessante que a expansio do [e] de “era” seja acompanhada da contragio de todas bas seguintes: compare-se “o pais do futuro” no primeiro e no segundo espectrogramas. Parece que o desequilibrio entre 0 pé extracurto [¢:re] © 0 pé extralongo Ipeiz do fortirw] & compensado por uma maior duragdo média das silabas do primeiro em comparagio com as do segundo. O seu interlocutor compreende agora como uma mesma marcagio pode servir 20 mesmo tempo fala ¢ a linguagem. Se, por labas como fulti}ro e [é}ra podem ser destacadas para atualizar um acento lexical ou contrastivo, por outro, as batidas que elas marcam servem para organizar o fluxo da fala. A respiragdo, a fonago e mesmo os movimentos articulatérios supralaringeos caden- ciam-se © harmonizam-se na busca de um efeito de alternancia entre Periodos de maior ou menor proeminéncia. Agora quem se surpreende ¢ vocé. Entusiasmado, 0 seu inter- locutor retoma o tema das limitagdes da transcrigao fonética e mos- tra-the coisas que vocé nao fora capaz de pereeber. Hé, por exemplo — assinala cle —, uma quase perfelta 1SocRONIA entre 05 dois enun- ciados: & como se a difetenca de perspectiva entre os interlocutores quanto a importancia relativa des palavras “futuro” e “era” se mani- festasse através da fragdo que elas ocupam de um mesmo tem, Além disso. — continua fortalecimento. das as — ou o enfraquec tensiva ou duracional. Os espectrogramas sugerem, a esse respeito, que a maior ou menor proeminéncia de uma acompanhada de pequenos ajustamentos da postura ja-se, por exemplo, na Figura 19A, como o primeiro Go] & mais tenso — isto 6, tem formantes mais nitidos — © que sugere um maior grau de labializagio, Esse \etto — a intensidade relativa dos dois primeiros for- mantes — pode ser usado ainda para comparar as duas versoes da palavra “futuro” (v. Figuras 194 ¢ 19B): na primeira, que ocorre ‘um pé de tamanho normal, ambos os [0x0] sio mais tensos que na é extralongo que se segue ao enfitico idade” ia se alia & menor labas para compensar a extensio desse pé ¢ precedente, segun - que ocorre Parece que das marcar © seu estatuto secundario em relagdo ao do pé a 5000 400 # peiz dw fot wie joe obra zie Grew paiz do fotiso Figura 19 — Espectrogramas de banda larga dos enunciados (A) *O Brasil 6 0 pais do futuro’ e (B) “O Brasil era o pais do futuro” Vooé se alegra de se dar conta da boa dupla que 0 sew inter- locutor acabou formando com vocé. & uma festa descobrir assim, em conjunto, como a fala e @ linguagem se solidarizam ao mesmo tempo que se opéem,

Você também pode gostar