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REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA TOMO XL-4 1984 ACILIO 8, E. ROCHA O conhecimento 4 luz do método transcendental: Uma via para a antropologia de Karl Rahner FACULDADE DE FILOSOFIA BRAGA — 1984 O conhecimento a luz do método transcendental: Uma via para a antropologia de Karl Rahner * Recorrendo ao método transcendental, Karl Rahner procura ressurgir a problematica tomista do conhecimento, fazendo um per- curso pela filosofia moderna kantiana e pds-kantiana. Com efeito, Kant, voltando-se para o sujeito finito, sem todavia o transcender, cerrava a possibilidade da metafisica como ciéncia; se, no entanto, se manifesta que o saber origindrio @ priori 6 um saber metafisico pelo qual se revela o horizonte incondicionado do ser em geral, abre-se a possibilidade, como o fizera Maréchal !, de critica e meto- dicamente se fundamentar a metafisica. Ora, se o pensamento de Rahner se nutre da tradic&io e especialmente de S. Toms, assimilou também as ligdes de Kant, Rousselot, Maréchal e Heidegger (cujos * Karl RAHNER, nascido em Friburgo a 5 de Marco de 1904 e falecido em Ins- bruque a 30 de Margo passado, com 80 anos feitos pouco antes, tem sido por isso recor- dado ¢ invocado na sua obra. Mais no pretendemos aqui do que assinalar a originalidade dos seus escritos filoséficos, sobretudo a sua tese de doutoramento, injustamente preterida por uma esco- listica ao tempo impositiva, mas de que a publicagdo veio a reclamar notoriedade para © seu autor. A partir duma leitura que fizemos dos seus principais escritos filos6ficos, ‘vai para uma dezena de anos, agora reavivada, nao esquecendo um artigo que o proprio Rabner publicou nesta Revista, procurdmos sobretudo seguir o itinerdrio filos6fico percorrido pelo autor, salientar o eclectismo de influéncias patentes na sua obra, ¢ rele var a sua originalidade. 1 Deste autor, deve salientar-se Le point de départ de la Métaphysique, sobretudo co caderno IM [«La Critique de Kant», 326 pp., no que concerne ao estudo da teoria kantiana do conhecimento] ¢ 0 caderno V [«Le thomisme devant la philosophie critiquer, 625 DP ‘quanto & aplicagiio do método transcendental na metafisical, Paris, Deselée de Brouwer, 1949, ul 388 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA cursos seguiu durante dois anos em Friburgo, terra natal de Rahner, quando ai preparava o doutoramento em Filosofia), apartando-se do reftigio duma escolastica absorvente da época; entdo, profundamente influenciado por Maréchal, volta-se para Kant e, na senda de S$. To- mas, a sua intenc&o foi reconciliar este com Kant, expondo a filo- sofia daquele através das categorias deste; ainda, impressionado com a leitura heideggeriana de Kant, € conduzido pela obra do préprio Heidegger na sua analitica do Homem — nicleo vital da obra filo- s6fica rahneriana, Todavia, a sua dissertag’o em Filosofia, Espirito no Mundo [Geist in Welt], julgada como insuficientemente tomista, veio a ser recusada, 0 que revela jé o inconformismo de Rahner perante o ensino ¢ a mentalidade do tempo que nao divisava que sete séculos se interpunham entre Rahner e S. Tomés, necessariamente sepa- rados por problemiticas diversas; tal ocorréncia desviou-o da filo- sofia para a tcologia (cuja andlise se afasta do nosso objectivo), onde a sua pesquisa foi néo somente vasta, mas profunda e inovadora, ¢ dificilmente compreensivel sem os seus pressupostos de ordem filo- s6fica. Deste modo, Rahner tenta repensar os grandes temas do tomismo: repensar e nao repetir: «Em geral—afirma Rahner —, nunca é possivel atingir o genuino conteiido filosdfico da doutrina dum filé- sofo, por meio duma simples colecéo de frases e por mera repetigao verbal; sé por uma criadora exposi¢do pessoal dessa doutrina filo- s6fica € que isso se consegue. (...) A nossa inteng&io é sé esta: um discipulo de Tomas de Aquino vai dizer como compreendeu o grande Mestre... Se 0 compreendeu bem ou se o deturpou, nao é problema que se possa resolver por simples apelo a uma inexistente unani- midade da Escolastica, mas s6 por um novo olhar para S. Tomas e para aquilo de que cle fala» 2, Assim, partindo dele, projecta-o na filosofia. moderna ce contempordnea, especialmente atraido pela fecundidade do método transcendental kantiano, pela obra de Hegel, € seduzido pelo pensamento de Heidegger, reconhecivel no conjunto da sua obra (nfio somente na terminologia — «existencialy, «luz do ser», «luminosidade do ser», etc. —, mas também na tematica, sobre- tudo de inspiracdo antropoldgica). De facto, um eclectismo de influén- 2 Karl Rahner, «A Verdade em S. Tomas de Aquino», Revista Portuguesa de Filosofia, 7 (4) Outubro-Dezembro 1951, pp. 354-355; o sublinhado é nosso, Doravante citaremos este artigo pela sigla VTA (do titulo do artigo). 2] —_ ——- A. S. E. ROCHA — ANTROPOLOGIA DE KARL RAHNER 389 cias$ marca a obra de Rahner, elaborada contudo segundo um sis- tema pessoal e original. A sua tese 4, publicada dois anos apés a rejeigio, versa acerca do problema do ser, visto na sua conexdo origindria e geral com a teoria tomista do conhecimento humano, de que se indagam as con- digdes de possibilidade, Como prolongamento légico, seguiu-se, em 1941, Ouvinte da Palavra [Hérer des Wortes]®, que desenvolve © niicleo da filosofia rahneriana em ordem aos pressupostos antro- poldgicos duma filosofia da religiio; no entanto, tal como em Hei- degger, um dos seus Mestres predilectos, interroga-se, para esse fim, acerca do ser, mas partindo do Homem ¢ nao do mundo. Deste modo escreve: «Heidegger quer, portanto, retroceder para além deste tra~ dicional ponto de partida: 0 que o homem & enquanto tendo de fazer (...) com todos os seres nio pode ser determinado apenas a partir do logos. Devera ser a metafisica estritamente ontologia? Deverd interpretar-se a nogdo de ser a partir da compreensio légica do ser 3A esse eclectismo, patente na sua obra, se refere varias vezes 0 autor, como por exemplo: «Podem censurar-me de cair no eclectismo. Mas onde existe hoje no mundo uma filosofia e teologia sistematicas, sem serem por isso suspeitas do eclectismo, porque tém fontes provadas de origem diversa» (K. Rahner, «Erfabrungen eines Theologem», in Her- der Korrespondenz, 38 (5) 1984, p. 228). E ainda: «Recuso-me, (...) a ser condenado a estar submetido a um 86 sistema filoséfico bem determinado» («Interdisziplinare Dialog und Sprache der Theologie», in P. Imhof ¢ H. Biallowons (eds.), K. Rahner im Gesprich, TI, Munique, 1983, p. 232). 4 Geist in Wel 1939], Munique, Késel-Verlag, 1957; tradugao francesa: L'Esprit dans le Monde, tr. de R. Givord ¢ H. Rochais, Paris, Maison Mame, 1968; tradugao espanhola: Espiritu en el Mundo, tr. de A. A. Bolado, Barcelona, Ed. Herder, 1963. Esta sua tese analisa toda a problematica pressuposta pelo artigo sobre a «conversio ad phan- tasma» (Summa I, qu. 84, art. 7.2), onde Rahner situa o ponto nevralgico, na obra tomista, da possibilidade do conhecimento. Usaremos, nas nossas referéncias, a sigla EM (correspondente as iniciais da tra~ dugo portuguesa do seu titulo) e anotaremos também a paginacdo relativa & edig&o alemi e tradugbes francesa e espanhola, separadas entre si, respectivamente, pelo sinal /; estas referencias dizem respeito & segunda edi¢io da obra, revista por J. B. Metz, dis- cipulo de Rahner. Conservamos, em virtude da sua peculiaridade, as expressdes origi- nais latinas de S. Toms do texto de Rahner, aqui por nés traduzidas. 3 Horer des Wortes, consiste numa sequéncia de ligdes sobre 03 fundamentos da filosofia da religiio, pronunciadas por Rahner nos «Salzburger Hochschulwochen 1937», publicadas em 1941; em 1963, a pedido do autor, J. B. Metz apresentou uma nova ediglo revista (Munique, Késel-Verlag). A tradugéo francesa teve por titulo L’Homme @ l'écoute du Verbe, tr. € ed. comparada por J. Hofbeck, Paris, Maison Mame, 1968, ¢ a traducdo espanhola, Oyente de la Palavra, é de A. E. L. Ros, Barcelona, Ed. Herder, 1967. Usare- mos a sigla OP (correspondente as iniciais da tradugao portuguesa do titulo), © faremos referéncia as trés edigdes, segundo a metodologia adoptada na nota anterior. 390 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA pelo pensamento? Esta é precisamente a questio para Heidegger. Se desde sempre a problematica do ser tivesse sido posta transcen- dentalmente, o problema estaria basicamente resolvido: 0 homem € logos. A tnica coisa que faltaria seria interpretar essa proposigdo cada vez com mais rigor; a problematica da filosofia ocidental n&o conheceu outro horizonte, Na realidade, Heidegger acredita que encontrou em Kant tentativas para romper este circulo, e na linha da sua propria solugdo; para além de Kant ele esta consciente de ser © primeiro desde Plato a fazer ressurgir a grande questdo transcen- dental acerca do ser, sem a conceber antecipadamente como onto- -logia, Isto significa colocar a questéo «O que é 0 homem?», enquanto ainda a relaciona com a questéo do ser em geral, num plano intei- ramente novo ¢ original. Heidegger designa isto, como definiu, onto- logia fundamental. O seu conceito — que consequentemente excluird © especificamente légico — pode ser caracterizado do modo seguinte: @ ontologia fundamental é a analitica do homem como suporte das relagées com o ser, a analitica existencial de «este-homem-concreto», deste existente, deste «presenter: Dasein, segundo a terminologia de Heidegger (...). Consequentemente, possuimos agora o conceito formal da filo- sofia existencial, um conceito formal, vazio, mudo, relativo ao con- tetido com o qual sera enriquecido com a introdugdo do principio a seguir indicado. Podemos defini-lo da seguinte forma: a filosofia existencial no sentido de Heidegger é a investigacdo transcendental do que 0 homem tem sido até agora a medida que ele levanta a questao do ser, uma investigagdo que rejeita a instancia tradicional nesta maté- ria — exclusivamente intelectual —e considerada com a intengdo de fornecer uma resposta @ questo do ser em geral: ontologia funda- mental, como a base de toda a metafisica que daqui em diante poderd reclamar-se de cientifica» ®. Portanto, se Rahner parte de S. Tomas, distingue-se contudo do tomismo tradicional que se apoiava numa visio cosmocéntrica, inserindo-se antes na senda da filosofia moderna, © Karl Rabner, «The concept of Existential Philosophy in Heidegger, Philo- sophy Today, 13 (2-4) Verio 1969, pp. 130-131. Este artigo foi primeiramente publicado com 0 titulo «Introduction au ‘concept de philosophie existenciale chez Heidegger, em Recherches des Sciences Religieuses (30, 1940, pp. 152-171), assinado por Hugo Rahner (seu it mao); contudo, Karl Rahnet confirmou posteriormente, por carta, a autoria do artigo, que veio a ser de novo publi- ado em tradugiio inglesa, lida e aprovada pelo autor, em Philosophy Today (pp. 116-137). ‘conforme se Ié em nota da p. 127. 4) A. S. E. ROCHA — ANTROPOLOGIA DE KARL RAHNER 391 mormente em Heidegger, e com uma obra de indole primordialmente antropoldgica. 1. O ponto de partida: a pergunta metafisica 1.1. A problematicidade da pergunta Karl Rahner nfo situa o ponto de partida do conhecimento meta- fisico no contetido objectivo da consciéncia abstraido da sua inerén- cia a um sujeito psicolégico e do seu valor ontologicamente repre- sentativo, isto ¢, do contetido da consciéncia considerado como objecto fenomenal; nfo parte também do seio da realidade extra- mental, como objecto de conhecimento, como o fizera Tomds de Aquino. Rahner, pretendendo um didlogo com a filosofia moderna a partir de Kant, procura compreender a metafisica na sua peculia- ridade transcendental-aprioristica; se o pensar humano é sempre necessariamente histérico, tenta repensar a metafisica impregnada das possibilidades sempre historicamente emergentes. Assim, apre- senta como ponto de partida o facto da absoluta necessidade que o homem tem de interrogar: «A pergunta é, antes de mais, a dnica obrigacio, a tinica necessidade, a tnica realidade que nio podemos por em questdo e a qual o homem que interroga est ligado, o nico circulo no qual a sua interrogacio est4 encerrada, o tnico a prior pelo qual é arrastado. O homem interroga necessariamente. Ora esta necessidade sé pode fundar-se no facto de que o ser apenas se revela ao homem enquanto é susceptivel de interrogagao, no facto de que o proprio homem é enquanto ele «pergunta pelo ser», de que ele proprio existe como interrogag&o sobre o ser» 7. O homem ’tem que’ 7 EM, 71/69/73. A pergunta &, assim, 0 ponto de partida metafisico irredutivel. No entanto outros pontos de partida tém sido propostos. Entre eles, recorde-se a dhivida, enquanto motor de supera¢o do que niio ¢ incondicionalmente certo, visando, com uma reducio ao «ew», atingir a certeza de si mesmo. A dtivida, que remonta a S. Agostinho, encontrou em Descartes um dos mais vigorosos defensores, na medida em que a certeza do cogito ergo sum & apresentada como a que resiste & possibilidade da diivida. Deve também mencionar-se, dalgum modo, a epaché de Husserl e 0 seu método fenomenol6gico de redugio ao «Bu puro». Donat ¢ J. Vries, nas respectivas Critica, comegam também por prescindir metodicamente da certeza natural ¢ fundamentam a epistemologia na certeza originéria reflexa dos juizos de consciéncia. Porém, pode inda- ‘gar-se sempre se & possivel ainda duvidar, enquanto nfo posso duvidar se posso e devo perguntar: «a divida supera-se pela pergunta, nio a pergunta pela davida», Por outro lado, o juizo tornou-se © ponto de partida da metafisica néo-escolistica, sobretudo a partir da obra de J. Maréchal, Le point de départ de la Métaphysique, 5. Le 3922 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA perguntar pelo ser na sua totalidade, se quer em absoluto ’ser’; essa pergunta constitui o Amago da sua realidade Ontica, pela qual supera a sua primitiva ingenuidade, A pergunta é, ent&o, um ponto de partida irredutivel; a pergunta é 0 a priori dos «a prioris» e, como fonte de dedugio transcendental, a pré-compreensio de todas as respostas. «A pergunta pelo ’ser no seu conjunto’ é, no entanto, a Unica questo de que o homem se nao pode desviar, que ele "tem que’ por se quer simplesmente ser, pois que somente nela o ’ser no seu conjunto’ (¢ portanto também o seu) Ihe € dado enquanto suscepti- vel de interrogagio» 8. Esta necessidade radica na indigéncia o1 gindria do ser humano. Na verdade, o homem é no ser, ndo o possui thomisme devant la philosophie critique (op. cit.), ¢, ainda, com J. B. Lotz, A. Marc, W. Brugger, etc., na medida em que no juizo se realiza a posi¢ao de um contetido com a exigéncia duma validez incondicionada, como condigio de possibilidade do proprio. juizo. Assim, escreve Maréchal: «Para que o método transcendental seja aplicdvel & crftica dos nossos conhecimentos, importa, pois, j4 que toda a aprioridade conota, numa condic¢io formal, um cardcter dindmico, que sejamos capazes de perceber, por Treflexio, a actividade imanente do nosso pensamento no ponto preciso em que esta com- penetra € pde em acto o elemento material das nossas representacdes; é necessirio que alcancemos 0 intellectus in actu na sua propria identidade com o intelligibile in actu; por outras palavras, é necessério que o objecto pensado nos seja dado, imediatamente, & reflex4o, nio como «coisa morta», mas como «pasando da poténcia a acto», como fase de um «movimento» ou de um «devir» intelectual» (op. eit, p. 61). E, nesta Iogica, ‘afirma mais adiante; «se é verdade que somente o juizo nos faz tomar conseiéncia do ‘objecto como objecto, podemos por como tese que o produto sintético do juizo cons- titui o verdadeiro dado imediato e o ponto de partida natural da reflex critica» (ib., P. 131). Contudo, o juizo nao ¢ ainda um ponto de partida inquestiondvel; sobre ele ‘exerce-se ainda a pergunta acerca da sua radicalidade originéria: a pergunta, portanto, Precede-o. O homem, antes de ser 0 que julga, ¢ 0 que inerroga. Karl Rabner foi, segundo cremos, 0 primeiro que pés a pergunta como 0 ponto de partida metafisico. Partindo das exigéncias do método transcendental kantiano, e na senda do seu mestre Heidegger (pois, para este o ser deve considerar-se como aquilo pelo qual o ente é ente, e, desse modo a pergunta acerca do ser dirige-se ao homem como «ser-ain, ¢ caracteriza-se plenamente, na compreensio do ser, como o «lugar» (Ortschaft) da verdade do ser), também, para Rahner, a pergunta é um comego que se fundamenta a si mesmo; por ela se revela a incondicionalidade do ser, e 0 juizo pressupde, entio, um horizonte anterior de validez incondicionada. Se a atitude rabneriana é inicialmente ctitica, ela torna-se terminativamente metafisica; nesta via, foi E. Coreth quem, na sequén- cia de Rabner, analisou a pergunta, de modo radical e vigotoso, como o pressuposto inquestiondvel da metafisica «metédico-sistemétican (ef. E. Coreth, Metafisica — Una fundamentacién metodico-sistemética [1961], tr. de R. Areitio, Barcelona, Ed. Ariel, 1964 (sbt. I especialmente pp. 73-111). 5 gy Bscreve também: «A pergunta metafisica é precisamente a tematizagio, a repetigao explicita, conceptualmente elaborada, da pergunta que o proprio homem necessariamente ¢ enquanto existe: a pergunta do ’ser no seu conjunto’. Enquanto per- (6) ili A. S. E. ROCHA— ANTROPOLOGIA DE KARL RAHNER = 393 «o homem, a partir da primeira pergunta (que se realiza sempre sobre o fundamento da ’pergunta pelo ser’), € quodammodo omnia [de certo modo tudo], e, entretanto, nao o é ainda, nao € ainda nada, tabula rasa, materia prima in ordine intellectus [matéria prima do ponto de vista do intelecto], porque ele interroga precisamente acerca do que visa quando poe a pergunta pelo ’ser no seu conjunto’, (...) Nao se pode dizer, com uma palavra, donde surge este pergun- tar. Parte de nada, pelo simples facto de englobar a totalidade para encetar a sua marcha; e por ser o que pergunta sobre o ‘ser no seu conjunto’, comega o homem ja pelo seu termo, porque Ihe € necessa- rio saber jé alguma coisa do ’ser no seu conjunto’ para sobre ele inter- rogar, ao mesmo tempo que testemunha, pela sua interrogacdo, que nao constitui o préprio termo, mas é um homem finito. Assim, o ponto de partida da metafisica esté determinado por uma peculiar unidade dialéctica: 0 ponto de partida é 0 homem que interroga, que, como tal, esta jd inscrito no "ser no seu conjunto’. Este ponto de partida da metafisica ¢ também 0 seu limite, porque é uma per- gunta, ¢ que nenhuma resposta pode ultrapassar o horizonte que a pergunta ja havia delimitado. Posterior investigatio veritatis nihil aliud est quam solutio prius dubitatorum %» [é uma divida inicial que leva A posterior investigagio da verdade]. Deste modo, o ponto de partida metafisico comporta uma dualidade ¢ uma unidade: 6 0 proprio homem que interroga e que, como tal, esta inserido na tota- lidade do ser: «com efeito, a pergunta metafisica nfo recai nem sobre isto nem sobre aquilo, mas sobre tudo ao mesmo tempo, sobre a totalidade do ser na sua problematicidade. E esta pergunta sobre 0 *ser no seu conjunto’ nio pode ser concebida nem colocada como interrogando a partir de alguma coisa que estivesse «ao lado», ou «fora» ou «acima» dela, ¢ que fosse possuida sem problema» !9, Por outro lado, a metafisica que tinha o privilégio de ser reconhe- cida como ciéncia fundamental ¢ fundamentadora das demais, torna- -se também cla problematica e busca a sua justificagio no proprio ser que a clabora —o homem. A preocupagio de Kant acerca de como 6 possivel a metafisica, como ciéncia, orienta toda a sua filo- gunta transcendental, a interrogagao metafisica € a forma elevada & poténcia conceptual, dessa mesma pergunta do ser. Esta, no seu exercicio, torna 0 homem consciente do que ele € no fundo de si mesmo: o que deve absolutamente por a pergunta do ser» (EM, 72/ 170/74). 9 EM, 74/12-73/76-77. 10 EM, 72/11/75. 394 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA sofia transcendental para o problema do homem!!. Entio, a per- gunta sobre o ser revela uma abertura, uma «antecipacio» do ser, peculiar da estrutura fundamental do homem, e que constitui o cardcter distintivo da sua espiritualidade. Por outro lado, a necessi- dade desse perguntar torna-o contemporaneo com o ente que a formula, isto é, é pergunta sobre o préximo homem: metafisica e an- tropologia surgem, pois, numa origindria unidade !2, Este 0 ponto de partida da metafisica rahneriana: metafisica nitidamente antro- polégica —o homem é «espirito no mundo». 1.2. A «luminosidade » do ser Pelo facto do homem se interrogar acerca do ser nio se segue que ele possua j4 um saber do ser em geral. Na verdade, para que possa interrogar-se acerca do ser na sua totalidade e para que a interrogacdo seja possivel, o homem necessita de saber algo do objecto da interrogaco, porém no por um saber conceptual; de con- trdrio, a pergunta no seria possivel e estaria superada através desse saber. O pré-saber de que parte o homem para que a interrogagiio se processe, nao é também um nada vazio a preencher pela fecundidade da sua fantasia; ¢ a necessidade univoca imposta de, interrogando, indagar acerca do ser em geral; concomitantemente, 0 homem mani- festa-se como ser finito. Com efeito, Rahner escreve; «Se 0 homem nao se encontrasse, interrogando, e, como tal, finito, em presenga do ser no ser em geral, poderia, 4 vontade e segundo a sua propria escolha, a partir dum ponto qualquer desse ser, englobar na sua interrogac&o esse ser tomado como um todo, Se pudesse determinar, a seu gosto, esse nada, ponto de partida da sua interrogagio, esta- ria j4 junto do ’ser no seu conjunto’ de tal modo que o possuiria, ¢ nao teria nada mais que perguntar. Qual é, portanto, o «enter junto do qual o homem, encontrando-se sempre jd necessariamente, € chamado em presenga do ’ser no seu conjunto’? Sao as coisas do mundo, ele préprio com a sua corporeidade, ao mesmo tempo que tudo aquilo que pertence ao espaco ¢ ao meio da sua vida corporal» 18, 4 Cf, Cf. K, Rahner, (retorno ao fantasma). Kant concebe também a imaginacdo (Einbildungskraft) como faculdade mediadora entre o entendimento e a sensibilidade, como produtora de esquemas: um esquema é, em geral, uma regra para a produgio das imagens que delimitam (esquematizam), per- mitindo a aplicagio objectiva das categorias. Contudo, o esquema nao é uma imagem, mas representa um procedimento geral para a constituigdo das imagens. No entanto, se para S. Tomds a imagem resulta dum processo sensorial sobre a qual se efectua a abstrac- fio intelectual, para Kant a imagem ¢ um produto da poténcia da imaginago que actua Segundo um esquema produzido por si mesma: para Kant, 0 objecto tem que adequar-se A mente, e no vice-versa. Todavia, o esquema, sendo uma determinagio do sentido interno segundo o tempo, efectuado pela imaginasio mas também sob certo influxo do entendimento, recorda dalgum modo a «conversio ad phantasma» tomista — nucleo determinante da plenitude objectiva da «presenca-a-si» cognitiva, segundo Rabner, Assim, Rahner pergunta: «Que significa comverso ad plentcsma? A expressio enuncia que o universal intelectual, a species intelligibilis em sentido estrito, é somente conhecida naquilo que é conhecido sensivelmente ¢, deste modo, numa conversio ao contetido sensivel. Ja 108 que © intelligibile em sentido estrito é a luz do intellectus gens, a estrutura a priori do proprio espirito, estrutura conhecida enquanto é a forma do que é conhecido sensivelmente, Assim, a conversio ad phantasma nao &, por conseguinte, ‘outra coisa que a illustratio phamtasmatis per lumen intellectus agentis, pela qual a abs- tracgilo estd ja realizada. Conversio ad phantasmata e abstractio so aspectos dum tinico Processo, indissoluvelmente relatives um ao outro numa prioridade reciproca. Enquanto @ abstrace’io 86 é concebivel por uma «penetraciio» da luz do intellectus agens vem» 0 fantasma, a conversio é logicamente anterior & abstractio; enquanto a conversio, como Processo espiritual «consciente» supde jd um saber espiritual, portanto uma abstractio, esta precede a conversio» (EM, 210/263/260). (24) A. S. E. ROCHA— ANTROPOLOGIA DE KARL RAHNER 4I11. na poténcia sensitiva mais elevada, que forma as sinteses imagina- tivas e esquemas. A imaginagio, como tal, nfio € a faculdade de criar imagens, mas significa o aspecto criativo da mente humana, que forma imagens mentais das coisas particulares, possibilitando que delas sc abstraiam ideias gerais, A fim de determinar 0 préprio objecto, o intelecto «volta-se» para a imaginag&o (e para o fantasma af produzido), em ordem a inteligir a natureza universal af existente; este «voltar-se para o fantasma», esta no centro da principal obra filoséfica de Rahner — Geist in Welt; ai sublinha que, no pensamento tomista, o fantasma torna o conhecimento intelectual possfvel e estabelece uma base para © conhecimento metafisico: com efeito, o espirito pode suprimir a limitag&o do ente concreto por negado © pensar o objecto metafi- sico por «excesso» — que € 0 acto mais origindrio do espirito —, como sua estrutura a priori, enquanto abertura, pela antecipagdo, para a totalidade do esse. O objecto do entendimento é o inteligivel, € o objecto sensivel apresenta-se como préprio e natural da sua apreensio; mas nada é inteligivel sendo enquanto participa do se quer dizer, enquanto entendimento Awmano, tem o seu ponto de partida nos sentidos, nos seres materiais; mas enquanto entendi- mento humano, nao se circunsereve ai, mas ordena-se ao ser em geral. De facto, Rahner poderia também ter titulado essa sua obra de Conversio ad phantasma, j4 que o conhecer significa plenamente «espirito no mundo»; mundo é a realidade da imediata experiéncia do homem; o conhecimento metafisico surge do imediato contacto do espirito com o mundo mediante a permanente ordenagao do intelecto A sensibilidade — pela conversio intellectus ad phantasma. Assim, a conversio no & apenas 0 «voltar-se do espirito para a sen- sibilidade», que precederia logicamente 0 conhecimento do universal como uma condig&io de possibilidade; € 0 préprio movimento do espirito, pelo qual o contetido sensivel é informado pela estrutura 4 priori do espirito, isto €, como projectado no horizonte da anteci pagiio e, por isso, conhecido na sua universalidade; a conversio signi fica, em suma, a relagio dum acto do espirito a um acto da sensibi- lidade. Deste modo, «cogitativa ¢ conversio dizem, no fundo, de maneira imediata, a mesma coisa, ou se queremos observar que cogitativa designa primeiramente uma faculdade, e conyersio uma realizagio actual do conhecimento, podemos também afirmar: a cogitativa é a faculdade da conversio ad phantasma (...): a cogitativa é 0 nome (25) 412 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA correspondente ao facto de a sensibilidade estar constantemente mantida no seu principio livre que a faz brotar» 49. A cogitativa designa, dalgum modo, o cardcter espiritual da sensibilidade; ela 6 0 «meio da livre espontaneidade do espirito (intellectus) e da recep- Go do outro reencontrado na sensibilidade (passivus)» 5°, Nova- mente se revela que a metafisica rahneriana é profundamente de indole antropoldgica; enquanto activo, o intelecto manifesta-se como forma subsistente (para-si), enquanto passivo, como forma da maté- ria (para-outro). Rahner pretende também, de certo modo, propor a unidade alma-corpo de tal modo que seja imposs{vel a auto-rea- lizacdo do espirito 4 margem da matéria. O homem é corpo para ser espirito ¢ é espirito enquanto se corporaliza; esta unidade indissolavel de espirito e matéria manifesta-se de modo eminente, como vimos, na actividade cognoscitiva; 0 corpo é a auto-realizagao espacio-tem- poral do espirito, aquilo por que o sujeito se realiza no mundo; a alma necessita da prépria matéria, na medida em que, tal como © intelecto possivel por relagéo com o fantasma, ela é para-si com a condig&o de ser para-outro. A matriz antropoldgica: liberdade e historicidade 4.1. A liberdade como transcendéncia do singular: Poe-se, contudo, a questo: porque é que o espirito, fazendo brotar de si a sensibilidade, ndo se exaure no outro, na matéria, de tal modo que nela se plasma como apenas existindo no outro? Rahner alega que o fim para que se projecta 0 espirito «nao € o outro, a materia, ¢ por conseguinte, tio pouco a sensibilidade, mas a tota~ lidade do ser, (...). Assim, o espirito, fazendo brotar a sensibilidade, transbordou j4 a amplitude desta; enquanto principio que a faz brotar, o intelecto é o que primariamente brota do sujcito substan- cial e é assim anterior a qualquer estreiteza da sensibilidade. (...) Assim, deixando-se brotar na sensibilidade o espirito permanece todavia livre. E uma forma da matéria, que é uma forma in se subsis- 49 EM, 303/294/291. 50 EM, 308/299/296. Refere também o autor: «A faculdade de julgar como facul- dade de sintese do a priori geral do espirito com o dado sensivel a posteriori ¢ constituida pela poténcia imaginativa pela qual o proprio espirito se configura ese plasma a simesmo no Amago da sensibilidade» (EM, 311/302/299). [28] A. S. E. ROCHA — ANTROPOLOGIA DE KARL RAHNER 413 tens. E, por isso, a sua estrutura @ priori & forma do fantasma e, no entanto, forma que é presenga-a-si, ela € consciente, como estru- tura do dado sensivel, do singular dado na sensibilidade, mas de tal modo que nao obscurece a sua universalidade absorvendo-se na ‘singularidade» 5!. Por outras palavras, 0 outro’ sé pode ser possuido cognoscitivamente, se o cognoscente se torna o ‘outro’ — sensi- bilidade. O ‘outro’ sé pode ser conhecido como tal, se 0 cognoscente, 40 mesmo tempo que é ‘outro’, e precisamente porque o é, é presenca- -a-si, enquanto opera o seu ‘ser-em-outro’ na da transcendéncia, mas segundo as coordenadas espacio-temporais, onde se inscreve pela sua corporeidade, Para além do influxo kantiano, encontramos de novo a matriz heideggeriana de «ser em situacio» (Befindlichkeit). Sendo, por outro lado, a matéria um elemento da sua esséncia, o homem, por si mesmo, faz do espaco e do tempo os momentos inter- nos da sua existéncia55; 0 homem manifesta-se como aquele ente, cujo conhecimento é receptivo, e, por conseguinte, como ser-na- -matéria (para-outro); pela natureza do conhecimento, a actuali- dade do seu ser é actualidade da matéria. «Isto significa que, para bem compreender @ sensibilidade humana, se deve concebé-la como provindo do espirito ¢ da sua necessidade. (...) Para se tornar espi- tito, entra na matéria; o homem penetra no mundo para estar ante © ser que se estende mais longe que 0 mundo» 5°; o homem tem, pois, uma compreensio do ser, em e através do conhecimento sensivel. Resulta também que o homem é um individuo entre outro: @ sua existéncia inscreve-se, portanto, comunitariamente nas coor- denadas espicio-temporais. Liberdade ¢ historicidade, como deter- minagSes essenciais da natureza humana, manifestam uma outra face da matriz filosdfica da obra rahneriana —o homem como espi- Tito no mundo: «Portanto, para o homem, espirito finito ¢ receptivo, © ser apenas € luminoso na luminosidade do ente material; somente ha relacdo ao ser em geral com os entes materiais; nao ha saida Para Deus sendo entrando no mundo, E uma vez que a safda para Deus s6 é possivel na estrutura a priori do homem como espirito, na transcendéncia que the € peculiar, portanto num retorno a si, Podemos igualmente afirmar que o homem nao pode realizar o Tetorno a si que lhe abre o ser ¢ Deus, sendo na saida para o mundo, tomado como mundo comunitério (Mitwelt) e como mundo ambiente (Umwelt)» 58. Por isso a obra de Rahner, distanciando-se duma perspectiva idealista, implica uma reflexio sobre a experiéncia 3 Cf. OP, 161-164/226-231/171-174. % OP, 174/245/186-187. 416 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA histérica do homem; sendo espirito & radica mente histérico — no mundo —, pois 86 af surge a singularidade da liberdade na material dade do sensivel: «E evidente —diz Rahner—que essa liber- dade constitui um momento essencial da historicidade do homem Uma verdadeira historicidade apenas se encontra af onde ha uni- cidade imprevisibilidade da liberdade» 57. A orientagio & téria funda-se na constituigéo ontolégica humana, de tal modo que a esséncia do homem é caracterizada com maior nitidez e mais rigor, definindo-o mais como «espirito histérico» do que como espirito finito (expressio demasiado abstracta). A historicidade nao é, portanto, algo que advenha ao homem facticamente. Espirito situado no mundo, o homem utiliza-o na sua realizagio. Conhecer é afirmar 0 mundo, superando-o: «O homem esté num mundo de entes que se Ihe apresentam como seus objectos. No esté somente num «mundo ambiente» como parcela, como objecto & deriva, est4 perante um mundo de que se distingue pensando e agindo. Ele «ulga» as coisas A medida que age com elas. Nao tem somente um qualquer contacto cognitivo com as coisas, como o poderiamos supor nos animais, mas, julgando, opSe-se ao objecto de conheci- mento. (...) Néo somente experimenta ¢ vive esse mundo ambiente, mas julga-o, e assim 0 constitui em mundo. (...) O seu conhecer nio consiste simplesmente em tornar-se um com o outro num meio de indiferenga entre interior ¢ exterior, entre sujeito ¢ objecto — o que € a esséncia da sensibilidade, (...) —_mas o seu conhecimento con- siste em que o homem saindo para apreender as coisas, retorna tio plenamente a si mesmo como «sujeito», diferente do mundo apreen- dido na sua saida — que se reconhece a si mesmo como sujeito numa oposigio que 0 distingue do objecto outro e€ o-posto (ob-jectum, Gegen-stand )» °8, © reconhecimento do particular processa-se por uma deter- minagio, e portanto, por uma limitagao ontoldgica: ela implica, como condigfio de possibilidade, o dinamismo indefinido da antecipagio: «é a antecipagio sobre o ilimitado que é em si j4 a negagiio do finito, 37 OP, 165/232/175. 58 OP, 72/104-105/74-75. “ ~~» § A. S. E, ROCHA — ANTROPOLOGIA DE KARL RAHNER 417 Porque, transcendendo-o, revela a finitude do ente finito de que é a condig&io de possibilidade. Eo sim ao ilimitado que permite a negagdo no inversamente. E portanto inutil postular uma transcendéncia para o nada que, precedendo qualquer negagio de que seria o funda- mento, deveria revelar a finitude dum ente. O caracter positivamente ilimitado do horizonte transcendental do conhecimento humano mostra em si a finitude de tudo o que nao esgota este horizonte. Nio é verdade que é o nada que nadifica, mas é a infinidade do ser, ado pela antecipacao, que desvela a finitude de qualquer dado imediato» 59, Deste modo, os fundamentos metafisicos da antropologia rahne- riana constituem uma base critica da teologia; o seu objectivo foi mostrar que a tcologia é possivel, porque o homem, em virtude do seu conhecimento a priori do ser, é capaz de ir além do horizonte espacio-temporal para escutar a Revelacio livre do Absoluto — dai © titulo, Ouvinte da Palavra (Hérer des Wortes]. Rahner fez, entao, para a teologia, o que Kant havia feito para a matemitica, a geome- tria, a fisica, a ética: estabelecer as condigées a priori que a tornam possivel. Reclamando-se do método transcendental, pode também afirmar: «Quando uma ciéncia, qualquer que seja o seu objecto, se torna realmente filosdfica, no sentido especifico do termo —e a teo- logia deve sé-lo, em razio mesmo da sua natureza — entio, nela, qualquer questo concernente a qualquer objecto, implicar4 formal- mente uma questiio relativa ao sujeito cognoscente» 5, Neste sen- tido, a antropologia no é um sector da teologia, mas a problematica que subjaz em cada um dos problemas teolégicos em questio. O ho- mem experimenta-se a si mesmo como aquele que vive a sua liberdade num tempo irreversivel; 0 mundo, tornado expressivo pela liberdade, € também sobrenaturalmente significativo: constitui o cenério duma histria da salvag%io; entende-se, pois, que Rahner postule que «toda ‘@ teologia tem de ser antropologia e vice-versa» —como amitide Rahner faz questo em salientar nos seus escritos teoldgicos. © seu pensamento filoséfico merece bem 0 nome, como o pré- prio Rahner denomina, de «metafisica transcendental» ou «antro- Pologia transcendental» ®!, Todavia, 0 método transcendental cul- minar4 depois na indagagdo das condigdes de possibilidade da Reve- 88 OP, 81-82/117-118/84. © K. Rahner, «Théologie et Anthropologie», in Théologie d’aujourd’hui et de demain, Paris, Cerf, 1967, p. 106. i ‘1 Jb., pp. 100 ss. 418 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA lagio em geral, refiectindo acerca das verdades de facto reveladas, examinando as suas condicées a priori; fazendo-o, entra na «teolo- gia transcendental», ou na «antropologia transcendental teoldgica»: esta a via depois percorrida por Karl Rahner Na Ansia por decifrar o enigma humano, Rahner serve-se do método transcendental, pelo qual a pergunta metafisica — ponto de partida sempre presente —envolve simultaneamente 0 sujeito que a faz e as suas condigées de possibilidade; no método transcen- dental, o sujcito néo é uma simples ménada da realidade, mas im- brica com o horizonte da totalidade e, dentro desse horizonte, com as estruturas a priori do sujeito; manifesta-se, afinal, como ser finito: a finitude transparece porque o homem nao pode ser consciéncia absoluta, porquanto interrogando, percorre o caminho da continua compreensao. No entanto, «o conhecimento verdadeiro é também sempre uma tarefa existencial do homem; com efeito, arrasta-o tanto mais para sie para diante de si quanto mais Ihe poe diante o ser como tal» ©, Vislumbrando a ilimitada abertura ao ser em absoluto, vé-se a si mesmo no mundo — espirito no mundo —, expressio que com- pendia o itinerario da sua obra filosdfica. Rahner procura reviver a obra de S. Tomas, transformando-a, com vista a conferir-Ihe moder- nidade; mas somente com esse preco péde, por uma criadora andlise pessoal, pressupor e projectar na obra do Aquinense, um eclectismo de orientages antropoldgicas que a prépria obra filosdfica de Rahner patenteia. ACILIO S. E. ROCHA @ VTA, pp. 368-369. (321

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