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ESQUILO BRROMETEDU AGRILHOADO TRADUGAO, PREFACIO E NOTAS be Ana Paula Quintela Ferreira Sottomayor Assistente da Faculdade de Letras do Porto Bolseira do Instituto de Alta Cultura 2.9 Edigio INTRODUGAO a0 ae O-Autor 25 | AL Petal ae. Primeira Representagio PROMETEU AGRILHOADO . Argumento . PROIGEO ne ce aroda 7 ee 1° episédio. . - 1. estdsimo . : 2esepisodios 2 = 2° estésimo. . . B° episodio... = = 3.° estdsimo. . . ibttleg aes INOTASE tue ae ee BIBLIOGRAFIA. . . + INDICE Péginas We eae eee eee 9 ete a 4 eae eee Five) (ete 8 coh ete ae uo 27 INTRODUCAO Antes de iniciarmos 0 estudo do Prometeu Agrilhoado de Esquilo, daremos ao leitor alguns esclarecimentos que Ihe sao devidos. O original grego que utilizimos para a presente versao em portugués do Prometeu Agrilhoado é o de Wilamowitz-Moel- lendorff, Aeschyli Tragoediae’. Tendo ao nosso dispor dois argumentos da peca — um pertencente aos escélios antigos e outro aos mais recentes — preferimos o ultimo por nos pare- cer de maior interesse para 0 ptblico. A licéo que seguimos para o referido argumento é de Dindorf, Aeschyli Tragoediae Superstites et Deperditarum Fragmenta II. Quanto A técnica de traducao, devemos esclarecer que pro- curdmos fugir a termos obsoletos, tendo sempre em vista a representabilidade da peca bem como a sua facil compreensao da parte do ptiblico dos nossos dias, servindo-nos, no entanto, de uma linguagem tao nobre quanto possfvel. Numa tentativa de mantermos a distin¢do feita por Esquilo entre partes Ifricas e nao-liricas, vertemos as primeiras em verso solto e as segundas em prosa. Qs versos do original vao indicados, ao cimo de cada pagina, entre colchetes. O AUTOR Esquilo, filho de Euf6rion, nasceu em Eléusis, provavelmente em 525 a. C. Informa a Suda, léxico do séc. x, que ele apre- sentou a sua primeira pega em 500 a. C., com a idade de 25 anos. Segundo o Marmor Parium, crénica lapidar grega, morreu em Gela, na Sicflia, em 456/455 com 69 anos. Obteve em vida treze vitérias em concursos dramaticos e varias depois da morte, pois foi o tinico tragedidgrafo, a quem um decreto ateniense concedeu o privilégio de as suas pecas serem apresentadas, quando ele ja nao vivia. Da sua vida pouco se sabe. Ha quem admita que foi um dos «iniciados» dos mistérios de Eléusis, visto que Aristéfanes, nas Ras, pde na sua boca estas palavras: «Deméter, que alimentaste a minha alma, faz com que eu seja digno dos teus mistérios.» Combateu em Maratona e este é o unico facto a que se refere o seu epitdfio (que, caso curioso, omite a qualidade de tragedidgrafo): «Este timulo de Gela fértil em trigo encerra 0 extinto ate- niensé Esquilo, filho de Euférion. A sua famosa coragem pode- ria cont4-la 0 bosque-de Maratona-e-o Medo de longa cabeleira, que bem a experimentou.»———————~ Wee Um catdlogo antigo transmite-nos o titulo de setenta e trés das suas obras, enquanto a Suda considera que escreveu 12 noventa, Desta vasta produciio s6 chegaram até nés sete: Os Persas, Os Sete Contra Tebas, As Suplicantes, Prometeu Agrilhoado e a trilogia Oresteia (Agamémnon, Coéforas e Euménides). A PEGA Desconhece-se a data de representagio do Prometeu Agri- lhoado, ¥ certo que temos noticia dum Prometeu levado a cena no ano de 472 a, C.—[lpounSevbs Mupxaeds (Prométhéus Pyrkaéus) (Prometeu que queima com o fogo)—, mas esse era 0 drama satirico da tetralogia a que pertence a tragédia Os Persas. De seguro, s6 sabemos que o Prometeu Agrilhoado foi apre- sentado depois de 479/8 a. C., pois os vy. 367-369 permitem fixar esse terminus post quem, visto que a erup¢ao do Etna a que aludem teve lugar nessa data. Ha quem pense que, pelo pro- vavel emprego do terceiro actor no prélogo — inovacao intro- duzida por Séfocles, cuja primeira pega foi representada em 468 a. C.—e pela semelhanga de estilo com a Oresteia, 0 Pro- meteu deve ter sido composto em data tardia. Mette’ coloca mesmo a representacdo da trilogia dos Prometeus em Marco de 469 a. C, baseado em que o Triptdlemo de Séfocles (de 468 a. C.) apresenta um verso, que parece imitar um outro do Prometeu Agrilhoado e ainda em que, no ano de 467 a, C. j4 o Prometeu tinha sido composto, uma vez que a Esfinge, representada nessa altura, alude a um passo do Prometeu Libertado. - A pega fazia parte da trilogia dos Prometeus. Um atthe antigo das obras de Esquilo ed além — Pro oo Destas ultimas pegas restam-nos, infelizmente, escassos frag- mentos e nao podemos, por isso, estar certos quanto ao seu contetido. Nem sequer se conhece, com seguranga, a ordem por que foram apresentadas. O senso comum levar-nos-ia a pensar que ao crime de Prometeu se seguiria 0 castigo e a este a libertacdo. Terfamos, portanto, em primeiro lugar, 0 TpounSed¢ Muppocs (Prométhéus Pyrphdéros) (Prometeu Portador do fogo) — que “contaria a dddiva do fogo aos homens—=,*em Seguida o Prometeu Agrilhoado e, por fim, 0 Prometeu Liber- tado —que marcaria o termo das penas do Tita. Deve ter-se em conta, porém, a opiniao dos comentadores antigos, que é tanto mais de considerar, quanto é certo que eles viveram numa época bastante proxima da do poeta. Ora, © escélio ao v. 94 do Prometeu Agrilhoado (...suportarei a grande idade do tempo...) afirma que 0 poeta no Prometeu Portador do fogo conta que o Tita esteve agrilhoado durante trinta milénios, 0 que nos faz pensar que o Prometeu Agri- Thoado deveria preceder 0 Prometeu Portador do fogo. Além disso, o escdlio ao vy. 511 (O destino que tudo acaba ainda nao determinou por termo a isto) declara que o Filantropo seria libertado na peca subsequente. Sendo assim, dentro da trilogia a ordem seria a seguinte: Prometeu Agrilhoado, Prometeu Libertado e Prometeu Portador do fogo. Dois argumentos tém sido ainda aduzidos em favor desta hipdtese: —Por um lado, no Prometeu Agrilhoado, os acontecimen- tos anteriores s4o relatados com tal pormenor que somos leva- dos a pensar que esta é a primeira pega da trilogia. —Por outro lado, sabemos que os alti (Aitia) (que esta- beleciam a relagdo entre a histéria narrada e um culto) eram do agrado de Esquilo, como pode ver-se na Oresteia. E Iicito, por isso, pensar que 0 Prometeu Portador do fogo constituiia a ultima parte da trilogia, cujo tema seria 0 da instituicao do af culto de Prometeu, em Atenas, terminando a pega, provavel- mente, com um cortejo de archotes. Teriamos, assim, primeiro, a puni¢ao do Tita, em seguida o abrandamento da ira de Zeus com a consequente liberta- ¢ao do Filantropo e, por fim, a reconciliagao perfeita entre a divindade nova — Zeus —e a antiga — Prometeu — pela con- cessio do direito ao culto, algo de semelhante ao que acontece na terceira peca da Oresteia, no momento em que as terrificas Erinias sao transformadas nas propfcias Euménides. ~ Nao podemos, no entanto, pér de parte a opiniao de Dodds *, que considera que Esquilo nao escreveu uma trilogia, mas uma dilogia (constitufda por Prometeu Agrilhoado e Prometeu Liber- tado) identificando assim, o referido especialista o [opnSevs Tlvpéees (Prometeu Portador do fogo) com o drama satfrico TlponSevc [ugxaeic (Prometeu que queima com o fogo). E, de facto, é curioso notar que o catdlogo ja referido nao fala do Ilugeaevs, talvez porque também o assimila ao [uppépoc. O mito de Prometeu aparece, pela primeira vez, em Hesjodo, tanto na Teogonia como nos Trabalhos e Dias. Conta ele que Prometeu, filho de Japeto e de Climene, um dia ludi- briou Zeus, ao pretender destinar-Ihe, num sacriffcio, um montao de ossos coberto de gordura, reservando, por outro lado, para os mortais a melhor parte da vitima. Como castigo deste dolo, Zeus privou os homens do fogo que, mais tarde, Pro- meteu conseguiu roubar, servindo-se de novo ardil. Entao, Zeus, irritado, agrilhoou o Tita, condenando-o, além disso, a suportar o flagelo duma dguia que lhe devorava o ffgado con- tinuamente renoyado, consentindo, mais tarde, que seu filho ® Esta opiniao foi expressa em aulas, na Universidade de Oxford, segundo informa a Professora Doutora Maria Helena da Rocha P no seu livro Estudos de Histéria da Cultura Classica’, IS Hércules a abatesse. Aos mortais deu como castigo a primeira mulher — Pandora. Esquilo, aproveitando este mito, introduziu, no entanto, cer- tas inovagGes: " —Nao apresenta 0 Titi como filho de Climene, mas sim de Gaia, que ousadamente identifica com Témis, omitindo o nome do seu pai. —Enquanto Hes{fodo conta que os mortais foram privados do fogo, em virtude do ludfbrio feito a Zeus na distribuigao dos lotes do sacriffcio, Esquilo nao menciona esta parte da lenda, apresentando Prometeu como aquele que pela primeira vez deu o fogo aos homens. —No Prometeu Agrilhoado o Tita presenteia também os homens com a esperanga, 0 que constitui outra inovacao. —Note-se, por fim, que a libertagio de Prometeu se deve nao s6 a Hércules, mas também ao centauro Quifron (cf. n. 109). Esquilo, ao servir-se do mito de Prometeu, quis, uma vez mais, mostrar que até os deuses devem ser moderados, sem nunca _ultrapassarem as limitagdes do seu_poder. Prometeu, ao dar 0 fogo aos homens, foi além daquilo que era justo, pois roubou um privilégio que, na reparti¢ao das honras dos deuses, tinha sido atribufdo a Hefesto. O Tita, depois de declarar que errou por querer, diz no v. 268: «Por certo que eu nao pen- sava que, extenuado por tais sofrimentos e agrilhoado a estes altos rochedos, me caberia em sorte este pico ermo e solitdrio.» Isto prova que, apesar de reconhecer que o castigo era mere- cido, o considera, contudo, severo demais. Nao estaria também Zeus a exceder-se, ao ordenar uma punicao tao dura, tanto mais que devia a ajuda do Tita o facto de agora ser o Pai dos Deuses e dos Homens? Vemos, portanto, dum lado, um rebelde obstinado, que a todo 0 momento injuria Zeus; do outro, um tirano inflexivel, ingrato e injusto. Para que estas duas forcas em tensdo se recon- 16 ciliem, é necessdrio que ambas entrem na ordem césmica que perturbaram, Sem diivida que, nas restantes pegas da trilogia, Prometeu abrandaria a sua cdlera e Zeus aprenderia a perdoar. Ambos tenderiam, assim, para a moderacao. Vemos quao diferente é este Zeus daquele que na Oresteia e nas Suplicantes 6 identificado com a prépria Justi¢a. Como péde o piedoso Esquilo ter delineado de forma tao denegrida a figura do Pai dos Deuses? Este facto, aliado a certas peculiaridades de estilo, de métrica e de sintaxe, fez com que alguns especialistas duvi- dassem da autenticidade do Prometeu Agrilhoado. No entanto, argumentos de cardcter lingufstico como estes facilmente sao rebatidos pelo simples facto de que, infelizmente, da vastissima produgao do poeta apenas possufmos sete pegas. Além disso, Pohlenz* notou que a tragédia Niobe de que apareceram frag- mentos recentemente, apresenta muitas semelhangas estilisticas com o Prometeu Agrilhoado. Quanto a dificuldade de conciliar a figura de Zeus do Prome- teu Agrilhoado com o pensamento religioso do autor, deve- mos, em primeiro lugar, fazer notar que estamos a julgar uma trilogia apenas pela sua primeira peca. Reparemos, depois, que de todas as pecas de Esquilo que chegaram até nés o Pro- meteu Agrilhoado é a de assunto mais antigo, pois narra os sucessos imediatos a vitéria de Zeus sobre os Titas. Situan- do-se, pois, a lenda quase no dealbar da histéria do mundo, sendo Zeus, como se diz na peca, ainda um soberano novo, éde crer numa eyolugao do proprio cardcter de Zeus. Os gregos, primitivamente, nao tinham a nogao de eternidade e perma néncia da divindade; os deuses tinham um nascimento & ao longo da vida, podiam aprender e melhorar. Por esta evo- * Die griechische Tragédie, p. 17 jugdio se explica que 0 Zeus dos primeiros tempos seja tio diferente daquele que vamos encontrar na Oresteia e nas Supli- cantes, Prometeu é o ultimo rebelde, que ensinard a Zeus que a paz SO se alcanga através da justiga e da persuasiio. Sé quando Zeus modera a Sua ira € perdoa ao Tita, a quem injustamente tinha infligido um castigo tao severo é que se estabelece sobre deuses e homens um governo pacifico. O poeta, deliberadamente, denegriu Zeus por todos os meios ao seu alcance. Assim, ao introduzir 0 convulsivo episédio de Io numa tragédia estdtica como esta, pretendeu, sem duvida, __além de fazer dialogar a sacerdotisa de Hera com aquele que o seu descendente Hércules viria a libertar — mostrar Zeus a uma luz mais desfavoravel ainda. Mesmo que possamos admitir que Prometeu tenha sido castigado por ter ultrapassado a justa medida, Io, contudo, é, incontesta- velmente, uma vitima inocente. Mas j4 nesta mesma cena se entrevé o abrandamento do cardcter de Zeus e a sua evo- lucio. Prometeu anuncia, de facto, a infeliz novilha que Zeus pord fim aos seus sofrimentos, tocando-a com mao pacifica. E assim se justifica que as Danaides (cf. n. 78) nas Suplicantes de Esquilo, ao contarem a histéria da sua ante- passada, terminem dizendo: «Quem poderia pér termo a deméncia traigoeira enviada por Hera? E obra de Zeus; Qual dos deuses, com mais razao, poderia eu invocar para estas quest6es tao justas? 18 O proprio pai, autor, criador, senhor, da nossa raga, supremo artifice de antanho, remédio para todos os males, Zeus, que tudo conduz a bom termo.» Vemos como esse Zeus, tinico refugio das indefesas Danaides, &é bem diferente do deus caprichoso e injusto que encontramos na histéria de Io. Zeus, embora nunca apare¢a em cena, esta, contudo, pre- sente em toda a tragédia. Vemo-lo nao sé através dos impro- périos do Tita e das justas lamentag6es da alucinada Io, mas também através da hipocrisia dos stibditos que o rodeiam, como Oceano, da servilidade de Hermes e da dureza inabalavel do Poder. De todas as personagens da peca é Prometeu a mais nobre. Pense-se-no seu siléncio, enquanto o agrilhoam. Apenas se lamenta, quando sé ou em companhia de amigos. Nos didlogos. com Oceano e com Hermes, demonstra uma inflexivel firmeza de cardcter. Ao falar com Io, mantém uma nobre sereni- dade, que contrasta em absoluto com o desatino da virgem- -novilha. Por isso, Prometeu se tornou um simbolo de tudo quanto implica luta por um ideal e nobreza de alma. Os Padres da Tgreja atribufam-Ihe uma funcao messianica & muitas vezes, como informa Edgar Quinet, ‘ cotejaram 0 supli- cio de Prometeu com a paixao de Cristo. Assim, por exemplo, © bico da aguia que devorava o figado do Tita era comparado * Prefacio de Prométhé 5 méthée, p, 15, méthée, apud Louis Sicha Mythe de 19 4 lanca que atravessou o coragao de Cristo e as Ocednides as Santas Mulheres. Outros tomaram o mito como o elogio do tecnicismo. Shaftesbury, * ao dizer que o poeta é um auténtico Prome- teu, iniciou uma corrente que via no mito a luta do artista para criar a sua obra. Goethe, ao fazer de Prometeu o modelador dos homens que se insurge contra Zeus, estava de acordo com os ideais de Titanismo do Sturm und Drang que exaltavam o individuo. Shelley elevoiio Filantropo ao cume da sua gléria, fazendo dele um aut€ntico apdstolo da liberdade que triunfa de Zeus tirano. No seu Prometeu Libertado imaginou mesmo que Zeus se uniu a Tétis e que dessas nupcias nasceu Demogérgon que derrubou o pai, sendo o Tita libertado em seguida por Hér- cules. Entre nés, Guerra Junqueiro serviu-se, também, do mito de Prometeu, no esbocgo do seu Prometeu Libertado, que deixou incompleto. Nesse poema, era “sua intengao aproximar Cristo, o martir do Gélgota, de Prometeu, o miartir do Cducaso. Prometeu buscaria, por todos os meios materiais, obter a feli- cidade, que Cristo conseguira na esfera espiritual. O Tita, que, a dada altura, destréi os deuses para bem dos homens, acabaria por, decepcionado com os mortais, conhecer a verdadeira liber- dade através de Jesus Cristo. Para terminar, vejamos como se resolveriam, no tempo de Esquilo, os problemas técnicos de encenacdéo que a peca levanta. O primeiro surge, logo, no prélogo. Como ja dissemos, a Séfocles se deve a invencio do terceiro actor. Mas como seria possfvel que apenas dois actores representassem os papéis de S Apud Max Pohlenz, Die griechische Tragédie, p. 82. 20 prometeu, Hofeato ¢ Poder? ® Temos de admitir ung ded hipdtesea: — ou que Haquilo 86 servi da inovagio de cles —o que acontece, alida, na Oresteld— ou que figura q Prometeu era substitufda por um manequim, visto Prom * nfo falar durante a cena em que o ageithoam, Beta dtting solugiio técnica encontra, no entanto, graves Obstéculos, Ryn primeiro lugar, imaginawe mal como poderia o manequim acompanhar as outras personagens fa sua entrada em cena, Além disso, como Prometeu fala, quando flea 86, a tinica hipdtese admissivel é a de um actor se insinuar por tras do manequim, No entanto, seria provavel, neste caso, que Aris téfanes, com o seu espfrito mordaz, censurasse este processo, quando, nas Aves, poe em cena esta figura, © segundo problema surge quando Oceano entra em cena, Vemos que ele niio dialoga com as filhas, pelo que é lfcito supor — que elas desapareciam da vista do piiblico, durante esse epis6- dio, Murray 'admite a hipdtese de o grifo, que leva Oceano, ser transportado numa das extremidades duma grua dupla em balancé, enquanto o carro alado do coro" se encontrava na outra; assim, quando Oceano baixasse sobre a cena, as filhas, como era natural, seriam eleyadas, Pickard-Cambridge’ acha * © problema niio ge punha quanto ao actor que desempenhava Papel de Forga, visto que se tratava de um figurante, — ' Bsquilo, el creador de la tragedia, p. 48. 4 ' A propdsito deste carro alado, no devemos deixar nar a interessante hipdtese de Eduard nkel- Chots im Prometheus —Annali della Scuola XXII, Série 11 (1954), 269-284) que rej dade de as Ocednides 2 inadmissivel esta hipdtese, devido ao diferente peso que teria 0 carro alado do coro e o grifo que transportava Oceano. Pre- fere pensar que as Ocednides seriam trazidas num carro alado sobre uma espécie de terraco do cendrio, e que, quando seu pai surgia em cena, dai desceriam por degraus escondidos. Max Pohlenz” admite a hipdtese de o coro, no seu carro, se escon- der por tras duma rocha do cendrio, enquanto Prometeu fala com Oceano. O ultimo problema cénico é o do cataclismo. Autores ha que pensam que deveria ser materializado por meio do éxxdxdnua (enkykléma) (espécie de palco giratério) que retiraria de cena Prometeu. Mas devemos, desde j4, notar que esta maquina s6 foi inventada na época helenjstica. E preferivel, portanto, pensar-se que apenas as palavras do texto, ajudadas provavelmente pelos sons de trovoada emitidos pelo ovzeicy (brontéion) —no caso de este invento nao ser sé da época helenfstica — sugeririam o cataclismo. Vejamos, por fim, como imagina Pickard-Cambridge ™ 0 que terd sido 0 cenario, Haveria varios penhascos e, ao centro, um rochedo ao qual Prometeu seria agrilhoado. Uma rampa ou varios degraus conduziriam da orquestra a essa fraga. Por cima, haveria um terraco a que jd aludimos, onde apareceria o carro alado das Oceanides. Todos os problemas que apontamos terao de continuar em aberto, enquanto um bafejo de sorte nao trouxer a luz as res- tantes pecas da trilogia. Apenas tentémos informar o leitor das principais hipdteses, que sobre as varias questdes tém sido apresentadas, dando-lhe assim a possibilidade de formar o seu préprio juizo. W Die griechische Tragédie, p. 71. The Theatre of Dionysus in Athens, p. 41. PRIMEIRA REPRESENTAGAO A presente versdo feita a partir do original grego foi revista para a cena pelo Professor Doutor Paulo Quintela, a quem manifestamos por isso 0 nosso reconhecimento. Muito devemos ainda ao vasto saber e obsequiosa solici- tude da Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, que, nesta como em outras circunstancias, nunca nos negou a sua incansdvel e preciosa ajuda. Foi esta traducao levada @ cena, pela primeira vez, na noite de 2 de Maio de 1967, em Coimbra pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, com encenagao e direcgao artis- tica do Professor Doutor Paulo Quintela. Figurinos de Virginia Baptista. Tlustragdo musical de Vitor Macedo Pinto. Cendrios de Carlos Baptista e Alexandre Boavida. FIGURAS: Prometeu — Paulo Guerra Poder —Viriato Narciso Hefesto —José Labaredas Forga | —Joao Papoula Oceano —José Queirés To —Isabel Aragao Hermes —José Barata 7 CORO: 24 Ana Paula Sottomayor Laura Barros Moura Regina Martins Madalena Baeta Fernanda Manuel Margarida Lucas Margarida Acciaioli Maria Elisa Sobral Fernanda Dinis Graca Pestana Colaboraram também: Abel Botelho, Alberto Jorge, Alberto Martins, Antonio Quelhas, Arménio Sottomayor, Barros Moura, Canhoto Antunes, Carlos Picado, Correia Marques, Dinis Jacinto, Fernando Brito, Hordcio Coelho, Juvenal Sobral, Lou- reiro Ferra, Machado da Graga, Manuela Botelho, Militao Sobral, Nestor de Sousa, Portugal Sobral, Redondo Lopes, Rui Madeira, Strecht Monteiro. ARGUMENTO Tendo Prometeu roubado a Zeus o fogo e tendo-o dado aos mortais — através do qual inventaram os homens todas as artes — Zeus, irritado, entrega-o ao Poder e a Forca, seus servidores, e a Hefesto, para que, depois de o conduzirem ao monte Cducaso, ai 0 prendam com cadeias de aco. Feito isto, entram em cena as ninfas Ocednides para o consolarem e o proprio Oceano que anuncia a Prometeu que, indo aproximar-se de Zeus com preces e suplicas, o persuadird a libertar Prometeu dos seus grilhdes. Mas Prometeu nado consente, por conhecer a inflexibilidade e a arrogancia de Zeus. Depois de Oceano se ir embora, entra em cena a errante Io, filha de fnaco, que ouve da sua boca aquilo que sofreu e aquilo que sofrerd e que um dos seus descendentes o libertard—esse é Hércules, filho de Zeus —e que ela dard @ luz Epafo, devido ao toque de Zeus. Falando Prometeu com arrogancia contra Zeus — dizendo como ele caird do poder as maos do filho que vier a engendrar— e blasfemando, entra em cena Hermes, enviado por Zeus, que 0 ameaca com o raio, se ele nao disser 0 que estd para suceder a Zeus. E nao o querendo ele anunciar, rebenta uma tea que o engole. A cena passa-se na Citia, sobre 0 monte Cducaso, eo titulo é «Prometeu Agrilhoado>. [1-23] PROLOGO (Entram em cena Hefesto, Poder e Forga, conduzindo Prometeu) PODER —Eis-nos chegados aos confins do mundo, a regiao Cita, 4 desolacéo desértica. Hefesto, trata de pensar nas ordens que o pai te deu e de prender este celerado as rochas alcantiladas, com cadeias indestrutiveis de ago. Pois rou- bando o brilho que era teu’, luz do fogo util a todas as artes, dele fez presente aos mortais. Forga é que os deuses o castiguem por este seu pecado, para que aprenda a suportar o poder de Zeus e a deixar a sua atitude de amigo dos homens. HEFESTO —Poder e Forga, pela vossa parte ja esta cum- prida a ordem de Zeus e ja nada vos detém. Mas eu nao tenho coragem’* de prender pela forca um deus meu parente a esta escarpa batida das tempestades. Necessirio 6, porém, que eu tenha 4nimo para o fazer, pois ¢ grave desprezar as ordens de um pai. O filho de pen- samentos altivos da prudente Témis *, é contra vontade, minha e tua, que vou prender-te a este rochedo deserto com cadeias indissoliveis de bronze, para que nao ougas a voz nem vejas a forma dos mortais‘ mas, queimado pela chama brilhante do sol, sera mudada a flor da 30 (24-51) tua tez, Felizmente para ti, a noite salpicada de estrelas esconderd a luz, mas, de novo, o sol derreterd a geada matinal e sempre te consumira 0 peso esmagador do mal presente, pois ainda nao nasceu o teu libertador’, Tal proveito ganhaste com a tua atitude de amigo dos homens. Pois tu, deus que nao teme a célera dos deuses, deste aos mortais honras que transcendem o que & justo *; por isso, velards sobre esta rocha funesta, de pé, sem dormir, sem poderes dobrar 0 joelho. Soltards, entao, muitas lamentagoes: e vaos pene é sempre um monarca a novo! | PODER —Pois bem, porque hesitas e te lamentas em vio? Porque no odeias o deus mais odioso dentre os deuses que aos mortais fez presente do teu privilégio? HEFESTO —O parentesco e a convivéncia tém uma forga extraordinaria. : PODER —De acordo; mas como é possivel desobedecer as ordens de um pai? Nao te assusta isso mais ainda? HEFESTO —Sempre foste cruel e insolente. PODER — De nada serve lamenti-lo. Nao desperdices as tuas forgas com coisas que para nada servem. HEFESTO —O officio mil vezes odioso! PODER — Porque o odeias? O teu mester, em suma, em nada é responsivel por estes sofrimentos. re tes | ibesse em sorte! (52-74) PODER HEFESTO PODER HEFESTO PODER HEFESTO PODER HEFESTO PODER HEFESTO PODER HEFESTO PODER HEFESTO PODER 31 Nao te apressards a lancar-Ihe em volta as cadeias, para que o pai nao te veja perder tempo? —Ele bem pode ver que ja tenho as cadeias na mio, — Langa-lhas em volta dos bracos. Bate-me com forga esse martelo! Prega-o aos rochedos, — Pronto. E nao foi vio o trabalho. —Bate mais. Aperta. Nao abrandes, que ele é capaz de encontrar safda até para o que nao tem solugao. — Este brago esta preso e nao pode soltar-se. — Prende este, agora, solidamente, para que ele saiba que, embora engenhoso, tem o espirito mais lento do que Zeus, — Vede: ninguém, por isto, me censuraria com justiga. — Agora, com forga, de uma cunha de ago, espe- ta-lhe o gume arrogante que lhe trespasse o peito. — Ai! Ai! Prometeu, gemo pelos teus sofrimen- tos. — Hesitas, entaio, de novo, e lamentas os inimi- gos de Zeus? Toma cautela, ndo vas um dia, mais tarde, gemer sobre ti prdéprio. —Espectaculo doloroso de ver! —Vejo que ele recebe o tratamento que merece. Vamos! Langa-lhe o cinto em volta dos flancos. —E necessdrio fazé-lo, mas poupa-me as tuas palayras. —Eu te incitarei e te exortarei, além do mais. Desce e ata-lhe as pernas vigorosamente. 32 (75-101), HEFESTO —Esté cumprida a tarefa e sem grande esforgo. PODER — Agora, bate com forga as peias que se lhe enterrem na carne, pois severo é 0 censor des- tes trabalhos, HEFESTO — A tua lingua diz bem com o teu aspecto. PODER — Tu, sé mole, mas nao me censures a arrogancia e a aspereza da minha célera. HEFESTO —Vamos, que j4 esta bem agrilhoado. PODER — Agora, aqui, neste lugar, sé insolente e, depois de roubares o privilégio dos deuses, faz pre- sente dele aos efémeros. Que alfvio os mortais serao capazes de trazer aos teus sofrimentos? Com um falso nome os deuses te chamam Pro- meteu — o Previdente —*; deves, pois, de maneira previdente libertar-te das cadeias for- jadas pela arte deste. (Saem Hefesto, Poder e Forga) PROMETEU — © 6ter divino! 6 ventos de asas rapidas! © Aguas correntes dos rios! © sorrisos sem niimero das vagas marinhas! © terra, mae de todas as coisas! Invoco também o disco do sol que tudo vé! Contemplai o que eu, | deus, sofro da parte dos deuses. V q ‘tratamento injurioso, dilacerado, a grande idade do tempo”. Foi e [102-127] 33 dao tudo o que vai acontecer. Nem vird sobre mim nenhum sofrimento imprevisto. Preciso é suportar 0 mais facilmente possivel o que foi marcado pelo destino, pois bem sei que a forca da Necessidade € inexpugndvel. Mas nem é possivel calar as minhas desgracas nem nao as calar. Por ter dado um privilégio aos mortais —infeliz! — foi-me posto este jugo de dores. Apanhei a nascente roubada do fogo que enchia um caule de canafrecha e que se revelou mestra de todas as artes e grande recurso para os mortais. Sofro os castigos destes meus erros, agrilhoado, ao ar livre. Ah! Ah! Oh! Oh! Que som, que odor imperceptfvel voou até mim? Enviado pelos deuses, ou mortal, ou de deuses e de homens misturado? Chega a este rochedo do fim do mundo para contem- plar os meus sofrimentos, ou o que é que ele quer? Vede como eu estou agrilhoado, eu, 0 deus infeliz, eu, 0 inimigo de Zeus, eu, 0 que incorreu no édio de todos aqueles deuses que frequentam o palacio de Zeus, por ter amado em demasia-os-homens. Ai! Ai! Que barulho de aves ouco, de novo, aqui perto? Zumbe o éter com um leve bater de asas. Receio tudo o que de mim se aproxima. (128.148) 1 ch | PARODO (Entra em cena 0 coro das Oceanides) CORO —Nada temas, Pois amigo é o bando Que com rapido esforgo de asas Chega a este rochedo, Depois de vergar, a custo, A vontade paterna™. Trouxeram-me os ventos velozes, Pois do ago O eco estrepitoso Ressoou até o fundo das cavernas E expulsou de mim A timida vergonha E, descalga, ” Me precipitei Neste carro alado. PROMETEU — Ai! Ai! Descendéncia da prolifica Tétis e do pai Oceano” que rodeia toda a terra™ do seu fluxo que nunca tem repouso, vede, consi- derai com que grilhdes, preso a esta escarpa, eu passarei meus tristes dias, sobre rochosos pincaros. —Vejo, Prometeu; E terrivel, de lagrimas carregada, Uma bruma cobre Estes meus olhos, Ao contemplar teu corpo CORO [149-172] 35 Novos senhores Governam o Olimpo“ E com leis novas Zeus rege sem regra E destréi, agora, Os fortes de antanho”™. PROMETEU — Antes ele me tivesse lancado para o Tartaro” sem safda, sob a terra, abaixo do Hades que recebe os mortos, e me prendesse cruelmente com cadeias indissoliveis, para que nenhum deus nem outro ser qualquer exultasse com estes meus sofrimentos. Mas, agora, eu, infeliz, com 0 corpo a baloi¢ar nos ares, sofro para gdudio dos meus inimigos. CORO — Qual dos deuses Teria tao duro coragao, Que se alegrasse com isto? Quem, a nao ser Zeus, Nao se indignard com os teus males? Ele, sempre rancoroso, De coragao inflexivel, Domina a familia celeste E nao cessara Antes de fartar 0 coragao, Ou antes que alguém, Com arte, Lhe tome o poder, Diffcil conquista *. PROMETEU — Eu vos juro que, embora maltratado nestas fir- mes cadeias, ainda um dia o chefe dos Bem- -Aventurados precisar4 que eu lhe indique a resolugdo irreflectida que lhe roubar4 o ceptro e as honrarias”. E em nada me encantara 36 wane com a magia das palavras de mel da Sua elo. quéncia persuasiva, nem eu, assustado. duras ameagas™, revelarei este Segredo, antes que ele me liberte destes cruéis grilhdes e con- oy em ser castigado por este tratamento injurioso, CORO —Es ousado E nao cedes aos reveses amargos. Tens a lingua solta demais. Mas um medo penetrante me excitou o espf- [rito. j 1 : Temo pela tua sorte, Sem saber em que porto, enfim, Verds um dia o termo Destas tuas penas, Pois 0 filho de Crono. Tem alma inabaldvel, — Coracao inflexivel. PROMETEU — Eu sei que Zeus é duro e que tem consigo o direito. Contudo, penso que um dia ainda a sua alma se adocaré quando for assim despe- dacado pelos sofrimentos”, e quando, apazi- guada a célera implacavel, um dia, inquieto vier ter comigo, também inquieto por meu lado, para ser meu aliado e meu amigo. 1. EPISODIO CORIFEU ——Revela-nos tudo e diz-nos rent pion 35%) [197-229] PROMETEU 37 E-me doloroso conté-lo, mas também me déi cald-lo; de qualquer maneira, sofro. Quando os deuses comecaram a encolerizar-se™ e se suscitou entre eles uma contenda, querendo uns destronar Crono para que desde entéo Zeus fosse o seu senhor, esforgando-se os outros, pelo contrario, por que Zeus nunca governasse sobre os deuses, entao eu, embora desse os melhores conselhos para convencer os Titas, filhos do Céu e da Terra, nao o consegui. Des- prezando as artimanhas, pensavam, com a pre- sungaio de fortes, que, sem custo, venceriam pela violéncia, Mas, mais de uma vez, a minha mae Témis ou Gaia”—uma sé forma com muitos nomes—me anunciara o futuro, tal como havia de acontecer — que venceriam os que fossem superiores em astticia e nado em forga e violéncia. Expondo-lhes eu isto em por- menor, nem sequer se dignaram considerar o caso. Entao, pareceu-me que o melhor de tudo 0 que me veio ao espirito seria por-me ao lado de Zeus, que de bom grado me acolheu, como eu, de bom grado, acolhera minha mae. E é por esses meus conselhos que as regides subter- raneas e sombrias do Tartaro escondem o antigo Crono e os seus aliados. Depois de ter aproveitado de mim estes conselhos, o rei dos deuses recompensou-me com estas cruéis penas. Pois ha na tirania esta doenga: descon- fiar mesmo dos amigos. A vossa pergunta— por que razdo ele me maltrata — vou respon- der claramente. Logo que se sentou no trono do pai, pelos deuses distribuiu imediatamente (as0.256) privilégios: a uns, Uns, a OULFOS, OULTOR; © hig. rarquizou 08 poderes, mas no fez nenhum caso dos infelizes mortais. Pelo contrario, pre. tendia, pela destruigho de toda a raga, gerar uma nova. E ninguém se the opunha, a niio ser eu. Eu, eu é que tive essa ousadia, Livre} og mortais de irem para 0 Hades, despedagados, F por isso, com toda a certeza, que vergo ao peso destas dores cruéis de suportar e lastimo- sas de ver. Por me ter apiedado dos mortais, a mim proprio me foi recusada piedade, mas, pelo contrario, sou assim cruelmente maltra- tado, espectaculo que nao da gléria a Zeus. CORIFEU —Teria um coragio de ferro e seria feito de pedra quem quer que, 6 Prometeu, se nao indignasse com as tuas penas, Eu bem gostava de nfo as ver e, ao vé-las, meu coragio sofre. PROMETEU —Por certo sou deplordvel para os amigos aue 38 me vejam. CORIFEU — Acaso nao foste ainda mais além do que con- taste? PROMETEU — Sim, fiz com que os homens deixassem de aten- tar previamei CORIFEU —Que remédio inventaste para essa doenga? PROMETEU — Insuflei-lhes cegas esperancas*. CORIFEU — Grande bem deste aos mortais PROMETEU —E além disso — notai fogo*, CORIFEU —Ba ieroe PROMETEU —p\ ee CORIFEU [257-287] 39 CORIFEU —E nao ha termo proposto para o teu sofrimento? PROMETEU —Nenhum, senaio quando Ihe parecer con- veniente, CORIFEU —Mas como? Que esperanga ha? Nao vés que cometeste um erro?” Dizer que cometeste um erro nao me da prazer e para ti é dor. Mas nao falemos nisto; e procura libertar-te dos teus sofrimentos. PROMETEU —F¥ facil para quem tenha os pés fora do sofri- mento aconselhar e repreender o infeliz. Mas eu jd sabia tudo isto. Cometi este erro por que- rer, por querer™—nao o negarei. Por valer aos mortais, eu proprio vim cair na desgraca. Por certo eu nao pensava que, extenuado por tais sofrimentos e agrilhoado a estes altos rochedos, me caberia em sorte este pico ermo e solitario. Nao lamenteis as minhas dores pre- sentes e, pondo os pés no chao, * ouvi os infor- tunios que aos poucos de mim se aproximam, e ficareis a saber tudo até o fim. Obedecei-me, obedecei, associai-vos 4s penas de quem agora sofre. Pois a infelicidade, pairando sobre todos, ora pousa num, ora noutro. CORIFEU — Seguiamos j4 os teus conselhos, sem que tu nos incitasses, Prometeu. E agora, com pé ligeiro, deixando o carro yeloz e o éter, santo caminho das aves, pouso sobre esta terra aspera. Quero ouvir até o fim as tuas penas. (Chega Oceano) OCEANO —Aqui estou, Prometeu, apds longo caminho, conduzindo sem freio, sé com o pensamento, a (286-321) esta ave de asas répidas®. Fica sabendo: gofro contigo as tuas penas. Pois a isso o paren. tesco" me obriga. A parte 0 parentesco, nijo hé ninguém a quem eu mais estime do que a ti, Verds que isto é verdade e que nio esté no mey feitio mentir para me tornar agradavel. Vamos} Diz-me em que devo ajudar-te; pois nfo dirds, um dia, que tens amigo mais fiel do que Oceano. PROMETEU — Que quer isto dizer? Também tu vens con- templar as minhas penas? Como ousaste yir a terra mae do ferro, deixando o rio™ que do teu tira o seu nome e os antros naturais com abébada de pedra? Ou acaso vens para ver a minha desgragae para te indignares com os meus males? Contempla este especta- culo: eu, o amigo de Zeus, o que o ajudou a consolidar o seu poder, ao peso de que sofri- mentos, a sua Mao me verga. OCEANO —Vejo, Prometeu, e quero dar-te o conselho mais vantajoso, embora tu sejas fértil em manhas: conhece-te a ti mesmo ® e toma novas atitudes, pois também novo é o senhor dos deuses. Se proférires palavras assim rudes e mordentes talvez Zeus te ouca, por longe e alto que esteja, e talvez a multiddo destes sofrimentos venha a parecer-te brincadeira de criangas. Vamos, 6 infeliz, afasta a cdlera que sentes ¢ busca o fim destes teus tormentos. Talvez te Parega que eu digo velharias. E contudo, Pro- meteu, este 6 0 castigo duma lingua i altiva. Mas tu ainda nao te | cedes aos males e queres [322-353] 41 Aqueles que ja tens. Se seguires o que eu te ensino, nao escoucinhards contra o aguilhao, se vires que um rude monarca governa sem ter de dar contas a ninguém. E agora vou ver se posso libertar-te destas penas; mas tu, fica quieto e nao fales com demasiada intempe- ranga. Ou acaso nao sabes tu, tao sdbio, que as linguas insolentes* é infligido castigo? PROMETEU — Invejo-te porque estds fora de qualquer acusa- ¢40, tu, que foste meu ciimplice e que ousaste tanto como eu. E agora deixa correr e nao te preocupes com isto; de maneira nenhuma 0 convencerds, que ele nao se deixa convencer facilmente. Mas vé bem, nao vas tu prejudi- car-te em alguma coisa com a tua iniciativa. OCEANO — —Sabes muito melhor aconselhar os outros do que a ti préprio. Estou a julgar pelos actos e nao pelas palavras. Nao tentes deter quem est4 impaciente, pois eu tenho a presuncao, sim, tenho a presungao de acreditar que Zeus me conceda libertar-te destas penas. PROMETEU — Eu to agradego e jamais deixarei de o fazer: pois nada descuras para mostrar a tua boa von- tade. Mas nao te canses; pois em vao te can- sards para me ajudares, se é que tencionas can- sar-te. E agora vai-te em paz. Ja que eu sou infeliz, gostaria de arranjar sofrimentos para a muitos outros. Nao, isso nao! Acabru- nha-me a triste sorte do meu irmao Atlante ®, de pé, 14 para os lados do poente, stents nos ombros a coluna do céu e da terra, fardo diffcil de suportar. Tive também compaixao do filho da terra, monstro destruidor com cem — 2 [354-384] cabecas, o impetuoso Tifeu™, quando o yi habitar os antros Cilicianos", submetido pela forca. Opés-se a todos os deuses, soprando medo pelas terriveis fauces. Os seus olhos des- pediam um brilho sinistro, como se ele fosse derrubar pela forga a tirania de Zeus. Mas atin- giu-o o dardo insone de Zeus, 0 raio que ao cair se inflama, e derrubou-o dos seus discursos alti- vos. Atingido no cora¢ao a sua forga foi redu- zida a Cinzas e fulminada. E, agora, o seu corpo jaz inttil e estendido perto dum brago de mar por baixo das raizes do Etna, enquanto, sentado no cimo dum monte, Hefesto bate ferro em brasa. Dai sairao um dia rios de fogo que, com linguas selvagens, devorarao os cam- pos extensos da Sicflia dos belos frutos®. Tal a célera em cachao, que Tifeu fara brotar com os dardos ardentes de insacidvel tempestade, embora calcinado pelo raio de Zeus. Mas tu nado és inexperiente nem precisas que eu te en- sine; salva-te, como muito bem sabes”, Entre- tanto, eu esgotarei os rigores da presente for- tuna até que o espirito de Zeus abandone a sua ira. —Nio sabes tu, Prometeu, que ha palavras que sao médicos da célera apaixonada? PROMETEU —Se, no momento oportuno, alguém nos apazi- guar o 4nimo, sem abater A forca a alma timida de paixio. —Mas que prejuizo vés na boa-vontade e na ousadia? Diz-me. Pits PROMETEU —Um afa desmedido ¢ uma — inge- nuidade. i ‘i OCEANO OCEANO [385-403] e OCEANO —Deixa-me ser doente dessa doenga, j4 que o mais vantajoso € parecer que no pensa aquele que pensa bem. PROMETEU — Essa falta parecerd antes minha. OCEANO —As tuas palavras mandam-me, sem rodeios, yol- tar para casa. PROMETEU — Para que as tuas lamentagdes sobre mim nao te fagam incorrer no ddio de alguém. OCEANO — Daquele que ha pouco esta sentado num trono todo poderoso? PROMETEU —Toma cautela, nao v4 um dia o seu coragao irritar-se. OCEANO — Prometeu, a tua desgraca é mestre. PROMETEU —Vai. Toma cuidado contigo e continua fiel a essa opiniao. OCEANO —Mandas-me que faga o que ja tencionava fazer, que esta ave-quadrupede ja roca as asas no caminho liso do éter, e muito contente dobrard 0 joelho no seu estabulo. (Sai Oceano) 1° ESTASIMO CORO ‘—Lamento-te, Prometeu, Pela tua sorte maldita, E destes meus olhos Deixo correr Torrentes de pranto E molho o terno rosto Com himidas lagrimas. Pois Zeus governando Com leis que sao suas Aos deuses de outrora O ceptro orgulhoso Faz reconhecer Por actos deploraveis. E ja todo inteiro Este pafs solta gritos Que fazem chorar. Sobre a tua honra magnifica, Venerdvel, antiga Estes gemem, E sobre a dos teus irmaos, E também te lamentam Todos os que habitam A terra vizinha Da Asia sagrada E, sendo mortais, De ti tém dé, Pelos teus sofrimentos, Que fazem soltar grandes gemidos. E da terra da Célquida As virgens guerreiras ” E a multidao Cita Dos confins da terra, 425-448] : 45 [Antes, sé outro deus yi Oprimido pela afronta De grilhdes de aco: O Tita Atlante Que as costas sustenta Constantemente Ingente e pesada forca Eaceleste abdbada.] Soltam gemidos surdos as vagas marinhas, Umas sobre outras caindo. Geme o fundo do mar. Sob a terra, o Hades sombrio Surdamente murmura E as ondas dos rios De limpida corrente Gemem tua dor lamentavel. 2.2 EPISODIO PROMETEU — Nao penseis que me calo de orgulho ou arro- gancia. Mas um cuidado me devora o coragao, ao ver-me assim insultado. E, no entanto, quem, senao eu, deu a estes deuses novos, sem reservas, privilégios honorfficos? Mas sobre isso eu me calo: pois vos diria o que ja sabeis. Ouvi, porém, as desgracas dos mortais e como eles eram pueris antes de eu os ter tor- tiado inte igentes e senhores da raza0. Quero falar, mas nao para censurar os ; homens, antes para expor em pormenor a benevoléncia do que Ihes dei. A principio, quando viam, viam falsidades; quando ouviam, nao entendiam; e, (449-480) como as formas dos sonhos, misturavam tudo ao acaso durante a longa existéncia; e nao sabiam construir casas soalheiras de tijolo, nem sabiam trabalhar a madeira; viviam, em antros subterraneos, como as formigas desprezi- veis, nas profundidades sem sol das cavernas. E nao tinham indicio seguro do inverno, nem da florida primavera, nem do fecundo verao; antes faziam tudo sem inteligéncia, até eu lhes ensinar o enigmatico nascer_e ocaso dos astros. Também descobri para eles os niimeros, primeira das invengdes engenhosas, e a combinagio das letras, meméria de tudo quanto existe, obreira mae das musas. E fui o primeiro a pér sob 0 jugo os animais, subme- tendo-os 4 canga ou aos corpos dos homens, para que sucedessem aos mortais nos trabalhos mais pesados, e atrelei aos carros os cavalos déceis, ornamento do luxo excessivo. E nenhum outro senao eu inventou para os marinheiros os navios de asas de linho que vogam sobre o mar. E | eu, que descobri tudo isto para os mortais feliz — nao tenho maneira de me libertar do sofrimento. presente. CORIFEU — Porque sofres uma desgraca infamante, estés desatinado e, como um mau médico que adoe- ceu, desanimas e nao podes descobrir remé- dios que te curem. PROMETEU — Mais te admirards, quando me ouvires contar o resto: as artes e recursos que inventei. Sobretudo isto; — se alguém cafsse doente nao havia mezinha que tomasse ou com que Se ungisse ou que bebesse; pelo [481-510] 7 definhavam, 4 mingua de drogas, antes de eu lhes revelar as misturas dos remédios calman- tes com que afastassem para longe de si todas as doengas. E pus por ordem as muitas espé- cies de adivinhacio, e fui_o primeiro a_distin- guir_o que, de simples sonhos, se deve tornar realidade, e dei-lhes a conhecer os obscuros pressdgios dos rufdos® e os que se encon- tram pelo caminho “, e discerni exactamente o voo das aves* de garras recurvas —quais as favoraveis e as que por sua natureza sao des- favordveis, os habitos de cada uma e 0 édio que sentem umas pelas outras, seus amores e ajun- tamentos, e a lisura das suas entranhas, e que cor deveria ter a vesicula biliar para agradar aos deuses e os miltiplos aspectos favordveis do Idbulo do figado* —e queimando os membros das vitimas cobertos de gordura e os seus grandes flancos, guiei os mortais na dificil arte da adivinhagdo e fiz-lhes ver clara- mente os sinais do fogo“, que eram obscuros. Foi isto o que eu fiz. Quem, antes de mim, ensinaria a descobrir os bens ocultos debaixo da terra: o bronze, o ferro, a prata e o ouro? Ninguém —bem 0 sei —se nao quiser jactar- -se, sem fundamento. Numa sé frase, aprende tudo, em suma: todas as artes para os mortais vém de Prometeu. CORIFEU — Mas entio nao ajudes os mortais mais do que é conyeniente, e deixa de pensar na tua propria desdita. Pois eu tenho bem a esperanca de que tu, uma vez liberto destas cadeias, viras a ser nfo menos forte que Zeus. 48 PROMETEU — O destino, que tudo acaba, ainda nao nou por termo a isto, mas, depois de peso de mil oe © calamidades, ey tog. rei a estas cadeias. O engenho é, d, oS fraco do que a Nesessidade, °™#*-Mais CORIFEU — Quem -governa a Necessidade? PROMETEU — As trés Moiras ® e as Erinias de fie] meméria ®, CORIFEU _ —Entao Zeus € menos poderoso do que elas? PROMETEU — Sem dtivida que ele nao poderd fugir ao que esta marcado pelo destino™, CORIFEU| — O que pode estar fixado pelo destino para Zeus sendo governar sempre? PROMETEU —lIsso ja tu nao podes saber. Nao insistas. CORIFEU —Acaso é sagrado 0 que me escondes? PROMETEU — Falai de outra coisa. Esta, de modo nenhum € tempo de a anunciar. Pelo contrario, deve ficar oculta o mais possivel. Pois, se comigo a conservar, libertar-me-ei destes grilhdes indignos e destas desgracas *. 2° ESTASIMO CORO — Que nunca Zeus, que tudo governa, Oponha o seu mando ao meu pensamento E nunca eu demore a achegar. a Com festins sagrados em qi Junto ao curso etern E nunca as palavras me E que em mim persis 49 Agradavel é passar longa existéncia, De coracao confiante, Alimentando a alma de alegrias radiosas. Mas estremego, ao ver-te, Dilacerado por mil sofrimentos, Pois nao temendo a Zeus, Em demasia honras os mortais, Com pensamento muito teu préprio, © Prometeu. Vamos, diz-me amigo: Que beneficio E o teu beneffcio? / Que ajuda? Que socorro | Te _vem dos efémeros "2 fragil fraqueza, Semelhz te a_ um sonho*, Que a cega . espécie humana pe entraves? Nunca as deliberacdes dos mortais Porao de lado a ordem harmoniosa Que Zeus estabeleceu *. Isto eu aprendo, ao contemplar Tuas desgracas malditas, © Prometeu. Mas vem-me ao espirito Um canto diferente, Justamente o canto nupcial que entoei, Em volta do banho e do teu leito, Pelo teu casamento, Quanto recebeste a mio de Nossa irma, 50 [562-589 3.° EPISODIO (Entra em_cena_a-virgem-novilha lo) TO — Que terra é esta? Que raga? Quem é que vejo atormentado por grilhGes rochosos? De que crime sofres a expiacdéo, pela morte? Diz-me a que lugar da terra eu, infeliz, che- guei, vagueando? Ai! Ai de mim! De novo, a mim, infeliz, me aferroa um tayao, sombra de Argo, filho da Terra”. Fujo, ao ver o boieiro de olhos intimeros. Ai vem ele com o seu pérfido olhar. Nem depois de morto a terra o esconde, e, saindo dos Infernos, persegue-me a mim, infeliz, e faz-me vaguear em jejum pelo areal da praia. Responde-me com uma melodia embaladora a flauta sonora ajustada com ___ cera *, Ai! Ai! Para onde me levam os meus errores que por tao longe me fazem vaguear? O filho de Crono, porqué, porque é que enfim, descobrindo que eu pequei, me puseste sob o jugo destes sofrimentos — ai! —e por- que é que assim enfraqueces a infeliz treslou- cada com o pavor da ferroada do tavao? Quei- ma-me o teu fogo, ou esconde-me debaixo da terra, dé-me de repasto aos monstros marinhos! — Senhor, nao me recuses 0 que te peso. Os longos errores j4 me cansaram bas- tante e nao posso saber como hei-de escapar aos meus sofrimentos. Ouves as palavras da virgem de cornos de vaca? PROMETEU — Como nao hei-de ouvir a jovem que o tavao 590-617 [ 1 51 faz vaguear, a filha de fnaco, que inflamou de amor 0 coracao de Zeus e que agora, pelo édio de Hera, @ forga se extenua, em longas cor- rerias? ZO — Quem te ensinou o nome do meu pai? Diz-me quem és, a mim, tao infeliz, diz-me quem és, 6 desgracado, que assim me dirigiste a palavra, proclamando verdades, a mim, miserdvel, e que nomeaste a doenga enviada pelos deuses, que me consome, picando-me com um ferrao que me faz yaguear enfurecida. Ui! Ui! Desen- freadamente aqui chego, com um tratamento injurioso que excita a fome dos saltos, domi- nada pelos rancorosos designios de Hera. Quais sao os infelizes que como eu—ai! — como eu sofrem? Indica-me, pois, claramente © que me resta sofrer. Que expediente ou que remédio ha para a minha doenga? Diz-mo, se 0 sabes. Fala, explica 4 misera virgem vaga- bunda. PROMETEU — Dir-te-ei tudo o que desejas saber, claramente, sem enigmas, antes em linguagem simples, como é justo que se fale diante dos amigos. Est4s a ver Prometeu, 0 que deu o fogo de pre- sente aos mortais. 1O —© benfeitor que um dia apareceste a todos os mortais, Prometeu infeliz, que crime expias assim? PROMETEU — Agora mesmo acabei de lamentar os meus sofri- mentos. 10 —E dar-me-4s 0 que vou pedir-te? PROMETEU —Diz-me o que queres. Tudo de mim podes saber. 52 10 —Diz-me quem te agrilhoou a e PROMETEU — A decisio de Zeus, a mio de E 10 —De que culpas sofres o castigo? PROMETEU — Basta que eu tenha dito 0 que ja JO —Indica-me, também, quando acabario | res desta infeliz. ‘ PROMETEU — Para ti, é melhor nao saberes nada do qu res isso. IO — Nao me escondas contudo o que um dia sofrer. PROMETEU — Pois bem, nao te nego essa dadiva. IO — Porque é que entdo te demoras a contar PROMETEU —Nao € por ma yontade; sé temo pertur a alma. IO —Na§o te preocupes comigo mais do que meu agrado. j PROMETEU —Ja que tanto o desejas, forga é que to Ouve, pois. 3 CORIFEU — Ainda nao! Dd-me também a mim o nhao de prazer. Fiquemos, © seu sofrimento, contando ela sorte funesta. E depois, que resto das suas dores. PROMETEU —Io, deves conceder-lhes (644-675) 53 minha forma, Sem cessar, visdes nocturnas vinham aos meus aposentos virginais e com palavras doces me exortavam: «O joyem ditosa, porque é que, hd tanto tempo, te con- servas virgem, quando podes obter o maior dos esposos? Zeus foi por ti inflamado com dardos de desejo e quer contigo gozar dos dons de Cipria®. Nao desprezes, filha, o leito nupcial de Zeus: vai para o luxuriante prado de Lerna®, para junto dos rebanhos e dos estdbulos do teu pai, para que o olhar de Zeus se liberte do seu desejo». Infeliz, todas as noites era atormen- tada por estes sonhos, até que ganhei coragem para contar ao meu pai estas vis6es nocturnas. E ele enviava a Delfos e a Dodona frequentes mensageiros, que consultassem o ordculo, para saberem o que ele devia dizer ou fazer para agradar aos deuses. Mas eles voltavam com ordculos equivocos, obscuros e ininteligfveis. Por fim, chegou até {naco uma resposta clara, indicando-Ihe abertamente e ordenando-lhe mesmo que me expulsasse de casa e da patria, a mim, como a um animal consagrado que pode livremente vaguear pelos extremos limites da terra™, se nao quisesse que o raio fgneo de Zeus aniquilasse toda a sua ra¢a. Obedecendo a tais ordculos de Léxias™, expulsou-me e fechou-me as portas de casa, bem contra a sua e minha vontade; mas 0 freio de Zeus o for- cava violentamente a fazé-lo. Imediatamente a minha forma e o meu espfrito se desfiguraram, e, com cornos, como estais a ver, e, picada por um moscardo de ferrao agudo, em danga louca of me precipito para o rio de Cer 4gua e paraa fonte de” ‘Lerna, vi filho da Terra, violento em sua. me acompanhava, vigiando com numerosos © caminho que eu segui tino inesperado, de repente, the vida. E eu, picada pelo tavao, so cote divino, sou perseguida de terra Ouviste ja o que me aconteceu. Mas dizer-me o resto dos meus sofrimentos, -mos e nao me consoles com mentiras sas; pois a doenga mais infamante inventar histérias. CORO —Ai! Ai! Ai de mim! Basta! Nunca, nunca eu pensara Que palavras estranhas me chi Nem que a minha alma fosse tortu Por um aguilhdo de duas pontas Sofrimentos, males, medos, que é Ai destino, destino! Estremeco ao ver a sort PROMETEU — Gemes cheia de medo até saberes o resto. — Dize, ensina; pois saberem de antemio | CORIFEU [706-734] 5D: de Inaco, grava no teu cora¢éo as minhas pala- vras, para que fiques a conhecer o fim do teu caminho. Ao saires daqui, em primeiro lugar, voltando-te para nascente, dirige-te para os campos incultos. Chegards até junto dos Citas® némadas que habitam em casas de vime alcan- doradas sobre carros de belas rodas e que se armam com arcos de longo alcance. Nao te aproximes deles. Pelo contrario, dirige-te para os litorais rochosos onde geme o mar e ultrapassa essa terra. A esquerda, vivem os Calibas ferreiros *; guarda-te deles, pois sao selvagens e inacessiveis aos estrangeiros. Che- gards ao rio Hibrista"—o Impetuoso—e o seu nome nao mente. Nao o atravesses — pois nao é facil de atravessar — antes que che- gues ao Caucaso, ali mesmo onde o rio exala a sua forca, dos préprios cimos das montanhas. Depois de alcangares os cumes préximos dos astros, toma o caminho do meio-dia. Af chega- ras ao poyo das que odeiam os homens, as Amazonas, que um dia fundarao Temiscira, ® nas margens do Termodonte®, no lugar onde as rochosas fauces salmidéssias ” sao hostis aos marinheiros, madrastas dos navios. Elas pré- prias te guiarao e com muita alegria™. Chega- ras ao istmo dos Cimérios ® na prépria entrada estreita do lago. E preciso que o deixes com coragao intrépido para alcangares o estreito Me6tico”. Para sempre ficara, entre os mor- tais, a grande fama da tua passagem: de ti, tiraraé o nome de Bésforo—a «passagem da vaca» “. Deixando o solo da Europa, chegards 56 1735.63) ao continente asiatico, Nao vos Parece senhor dos deuses é igualmente Viole; tudo?® Pois esse deus, a esta mortal, condenou-a a estes errores, Oo jovem, encontraste um cruel Pretendentel Tmagina que as palavras que acabas de ouvir nado sao sequer um comego. 10 —Ai de mim! Ai de mim! Ai! Ai! PROMETEU —De novo gritas e gemes. O que fards entio, quando souberes o resto dos teus males? CORIFEU —Tens acaso mais coisas a dizer-lhe dos seus sofrimentos? PROMETEU — Um mar assustador de funesta calamidade, IO — De que me serve, entdo, viver? Porque nao me precipito j4 deste dspero rochedo e, caindo no chao, me liberto dos meus males? Mais vale morrer duma sé vez do que ser infeliz todos ee = PROMETEU — Dificilmente suportarias, sem duvida, os meus sofrimentos, pois nao esté fixado pelo destino que eu morra. Isso seria a libertacao das mi- nhas dores. Mas no hd fim proposto as mi- nhas penas, antes de Zeus ser derrubado do seu poder”. ‘ 10 —E posstivel, entdo, que, algum dia, Zeus seja derrubado do seu poder? PROMETEU —Creio que te alegrarias, ao ver essa desgrava: 10 —Como nfo, se é por vontade de Zeus que SO infeliz? PROMETEU — Poig bem, fica sabendo que assim sera. Z PROMET. oe Por quem serd ele privado do cele —Por si préprio, com suas ocas dé 10 —Como? Diz-mo, se nao. que o nto ¢y que desejaya ales t [764-785] 57 PROMETEU — Faré um casamento tal que, um dia, o hé-de atormentar, JO —Com uma deusa ou com uma mortal? Se for licito, di-lo. PROMETEU — Que importa quem seja? Nao se pode divulgar. JO —Entao sera a esposa quem o derrubar4 do trono? PROMETEU —Fla dara a luz um filho mais forte do que o pai”. 10 —Niao é possivel afastar dele essa desgraga? PROMETEU —Nio, de maneira nenhuma; — s6 quando eu proprio estiver livre destes grilhdes. JO—E quem pode libertar-te contra a vontade de Zeus? PROMETEU — Sera um dos teus descendentes ”. IO — Que disseste?_Um_filho meu.telibertar4 dos teus males? PROMETEU —Na terceira geragao depois de outras dez. 10 — Este ordculo ja nao é facil de adivinhar. PROMETEU —Nao procures conhecer mais a fundo as tuas penas. IO —Na&o me mostres um proveito para depois me privares dele. PROMETEU — Ofereco-te uma de duas narrativas. IO —Quais? Mostra-mas e deixa-me escolher. PROMETEU — Esta bem, escolhe: queres que te conte clara- mente o resto das tuas penas ou que te diga quem me ha-de libertar? CORIFEU —Dé-lhe por favor uma dessas coisas e dé-me a outra a mim. Nao desprezes 0 nosso rogo. A esta, anuncia o resto dos seus errores, a mim, quem é o teu libertador. E isto o que eu desejo. 58 (786-816) Ja que o desejais téo ardentemente, naio me negarei a anunciar tudo quanto pedis, a ti, primeiro, Io, direi os teus errores desvairados; inscreve-os nas tabuinhas fiéis do teu espf- rito™, Logo que chegues ao-rio que ¢ limite dos continentes, encaminha-te para 0 luminoso Oriente, atravessando o marulhar surdo das vagas até teres chegado as planfcies das Gér- gonas de Cistena®, onde vivem as Forcidas®, as trés virgens de longa idade, com corpo de cisne, que tém todas um sé olho e um s6 dente e para as quais nunca o sol, com os seus raios, olha de frente nem a lua nocturna. Perto, habitam as suas trés irmas aladas, as Gérgonas odiosas aos homens, de cabe- leira de serpentes; ao vé-las, qualquer mor- tal perecera. Digo-te isto para que te acaute- les. Mas ouve outro espectaculo hediondo: toma cautela com os Grifos™, caes de Zeus, de bico agudo, que nao ladram, e com a cava- laria armada dos Arimaspos® de um sd olho, que vivem perto do rio Plutao™, rico de ouro. Nao te aproximes deles. Chegards a uma terra longinqua, a uma tribo negra®, que habita para os lados das fontes do sol, ali mesmo onde fica 0 rio Etiope. Segue ao longo das suas margens até chegares 4 catarata onde © Nilo do alto dos montes Biblinos langa uma corrente sagrada® e de boa 4gua. E ele te guiaré até a terra em triangulo banhada pelo Nilo, onde esta determing eh destino, Io, PROMETEU (817-847] 59 ti obscura e diffcil de perceber, volta a per- guntar e informa-te com exactidao. Vagar nao me falta — mais do que desejo, CORIFEU —Se tens para lhe contar alguma coisa nova ou esquecida dos seus errores funestos, di-lo; mas, se ja acabaste, concede-nos a nés o favor que pedimos. Talvez te lembres ainda. PROMETEU — Ela ja ouviu tudo sobre o termo das suas via- gens. Mas, para que saiba que nao me escutou em vao, vou contar os sofrimentos que antes de aqui chegar suportou, dando-lhe assim teste- mundo da minha narrativa. — Deixarei de lado grande numero de histérias e irei ao final dos teus errores. Quando chegaste ao pais dos Molossos* e perto do cabeco de Dodona®, onde ha o ordculo e o assento de Zeus Tesproto® e onde hd um incrivel prodigio —os carvalhos que falam — debaixo dos quais tu claramente, e nado por enigmas, foste saudada como a gloriosa esposa de Zeus que havias de ser — nada disto acaricia a tua lem- branga? — entao, daf, picada pelo tavao, alcan- caste o caminho a beira-mar, o grande golfo de Reia®, donde retrocedeste em tormentosa cor- reria. De futuro, o golfo maritimo raniee a sabé-lo claramente—chamar-se-4 Idnio™,/como memoria da tua passagem para todos os mor- tais. Eis os testemunhos que te dou de que o meu espfrito distingue mais do que o visivel. —O resto, a vés 0 direi e também a esta, — regressando ao trilho das palavras anteriores. HA uma cidade, Canobo™, nos confins da regiao, mesmo junto da embocadura e da alu- [848.- 60 (848-878) vidio do Nilo; é af mesmo que Zeus te yaj fazer recuperar a raza0, pousando sobre tj a sua mio pacffica, tocando-te apenas®, Fecun. dada por Zeus, dards a luz o negro Epafo, assim chamado por esse facto™, o qual reco- Thera os produtos da terra regada pelo Nilo de largo leito. A quinta geracao a partir dele, de cinquenta filhas, voltara de novo para Argos contra vontade para fugir ao casamento com parentes, os seus primos®. Mas eles, arre- batados pela paixao, falc6es* ja no encalgo das pombas, chegarao desejosos dum casa- mento indesejavél”. Mas um deus Ihes negar4 “tais“unides e a terra dos Pelasgos os sepultar4, dominados por Ares que mata pelo brago das mulheres com nocturna audacia vigilante", Cada esposa roubard a vida ao seu marido, enterrando-Ihe na garganta uma espada de dois gumes. Que tais amores ataquem os meus inimigos! Mas o desejo de ter filhos seduzira uma delas a nao matar o marido e a sua decisao se fara fraca™. Preferird ouvir dizer que é cobarde a ser assassina. E sera ela que em Argos dard a luz uma estirpe régia. — Longa teria de ser a minha narrativa Para expor isto até o fim. Dessa semente nas- cera o valente, ilustre no manejo do arco, que me libertaré destas penas™. E este o ordculo que em pormenor me contou minha mae de longa idade, Témis, irma dos Tits. Dizer-te como, isso levaria muito tempo e tu nada ga nharias com sabé-lo. S 10 — Ail! Ail! Nova convulsao, novo delirio [879-900] Quecer ardemn’ dentro. deimniii'e © tyes eo pica com o seu dardo nao forjado™, Meu coragado bate de ‘© contra a arca do peito. eviram-se-me os olhos nas tas. Um sopro louco de raiva me desvia da carreira, sem dominar a lingua, e os pensamentos confusos, em desordem, embatem contra as ondas duma odiosa desgraga. (Ilo abandona a cena) 3.°. ESTASIMO CORO — Era sabio, sim, era sdbio, O primeiro que em seu espirito pesou E expressou com a lingua Que de longe o melhor E um casamento i a E nao o desejo de se unir — Aos ricos que vivem na moleza Nem aos que se ufanam da sua Tinhagem, Quando se é pobre. spy 62 [901-926 Quanto a mim, nao receio Casamento igual em condi¢ao. Que o amor dos deuses superiores Nao lance sobre mim olhar inevitavel. Essa é guerra sem esperanga, Capaz de impossiveis. Que viria a acontecer-me? Nao vejo como escapar Aos designios de Zeus. EXODO PROMETEU — Ainda um dia Zeus se humilhara, embora arro- gante de espirito, pois se prepara para fazer um casamento que o derrubar4, aniquilado, do poder e do trono. E sé entaéo se cumprira de todo a maldigao que o seu pai Crono the lan- cou, ao cair do trono antigo. Nenhum deus sera capaz de Ihe mostrar claramente a maneira de fugir a tal desgraca, senaio eu. S6 eu sei © que vai acontecer e como. Depois disto, permaneca ele impavido’ no seu trono, con- fiante no ribombar das alturas, brandindo o dardo em chamas™. Nada impedird que ele caia vergonhosamente, de uma queda intolera- vel. Est agora preparando um adversdrio tal, prodigio invencivel, que inventara fogo mais potente do que o raio e ribombar mais forte do que o trovao, e que destruird a funesta arma marinha que abala a terra, o tridente de Posidon *. Quando esbarrar com esse mal, [927-950] 63 aprenderé a ver a diferenga entre senhor e escravo. CORIFEU —Parece-me que fazes dos teus desejos ordculos contra Zeus. PROMETEU —Digo precisamente o que se cumprird, e tam- bém 0 que desejo. CORIFEU —E devemos esperar que alguém venha a ser senhor de Zeus? PROMETEU —E ele sofrera penas mais pesadas do que as minhas. CORIFEU —Nao tens medo de pronunciar tais palavras? PROMETEU — Que hei-de eu recear, se nao foi_determinado pelo destino que eu morra? CORIFEU —Mas pode dar-te penas mais dolorosas ainda. PROMETEU — Que o fa¢a! Estou pronto a tudo! CORIFEU —Os que sao prudentes prosternam-se perante Adrasteia ™. PROMETEU — Venera, implora, adula continuamente quem detém o poder. A mim, Zeus preocupa-me menos do que nada. Que faca e ordene o que quiser, durante este breve espa¢o: nao governara os deuses muito tempo. — Mas es- tou a ver o mensageiro de Zeus, o servidor do novo tirano. Vem com certeza anunciar- -nos algo de novo. (Entra Hermes) HERMES —Ati,6 manhoso, azedo dos azedos, que pecaste contra os deuses,.ao dar aos efémeros os seus privilégios, ladrao do fogo, eu te digo: — meu pai ordena-te que declares que casamento é esse de que falas tao ufano, e ainda por sera ele derrubado do poder. plica’ (. tar um castelo inacessivel eu ja, num abrir e fechar de olhos, tiranos? Mais vergonhosamente rapidez hei-de ver cair o terceiro governa. Parece-te acaso que eu rece diante dos deuses novos?™ Longe disso. Vai depressa, volta por Nada saberés do que me pergunt HERMES — —Foi exactamente por essa art dar a este porto de dores. PROMETEU — Fica a saber claramente: desgraca pela tua servidao. — Mais vale servir, entao, este - ser 0 fiel mensageiro PROMETEU — assim que 0s 01 orgulho. a HERMES —Parece que te o PROMETEU — Que me orgulho?! HERMES [980-1006] 65 PROMETEU — Ai de mim! HERMES —A\ est4 uma palavra que Zeus ignora. PROMETEU —Mas 0 tempo, envelhecendo, tudo ensina. HERMES —Noentanto, ainda nao aprendeste a ser sensato. PROMETEU —E verdade. Se o fosse, falaria acaso com um lacaio? HERMES —Nao queres entao dizer nada do que meu pai deseja? PROMETEU —Niao ha divida de que lhe devo muito, para lhe estar agradecido! HERMES —FEscarneces de mim, como de uma crianga. PROMETEU —E nfo és tu uma crianga e até mais insensato do que ela, se esperas saber alguma coisa de mim? Nao ha tortura nem manha com que Zeus me leve a contar o que quer, antes de me ter desatado estes grilhGes ultrajantes. Por isso, lancem contra mim uma chama ardente, que ele confunda e agite tudo sob a neve de asas brancas e com o ribombar de trovGes subter- raneos ”. Nada me forcara a revelar por quem é que ele hd-de ser derrubado do poder. HERMES —Vé bem se isso te podera ser vantajoso. PROMETEU —Ha muito tempo eu ponderei e decidi isto mesmo. HERMES —Vé, insolente, vé se consegues, por fim, pensar nos teus males, como deve ser. PROMETEU —Nao me aborrecas! Ec como se estivesses a falar as ondas. Nem sequer te passe pela ideia que, algum dia, por temor do jufzo de Zeus, eu me faga mulher e dirija stiplicas, de maos vol- tadas, 4 maneira das mulheres, aquele que muito odeio, para que me liberte deste: thdes. Muito longe disso! - (2007-1038) HERMES Parece-me que continuar a falar sera dizer muita coisa em vio. Tu em nada te Suadir nem vergas ao peso das minhas Stiplicas, Mordendo o freio, como um Potro ha pouco atrelado, recalcitras Sacodes as rédeas, A tua ira, porém, confia numa fraca manha, A prépria pertindcia, Sozinha, de nada vale sem a sensatez. Mas considera — ja que as minhas palavras te nao convencem —o que vai ser a tormenta inevitdvel e a tripla vaga de males que vai ruir sobre ti, Primeiro, 0 meu pai, com © trovao e a chama do raio, despedagard este Aspero rochedo que cobrird o teu corpo e fica- rds envolto em pedra, E longo, longo tempo passard antes que possas regressar a luz. Mas © cao alado de Zeus, a Aguia ensanguen- tada, rasgara, voraz, e fara em farrapos 0 teu corpo ™—conviva que aparece sem convite © que fica todo o dia —e devoraré 0 teu figado negro e ja rofdo. Nao esperes o fim desta tua pena, antes que um dos deuses queira substi- tuir-te nos sofrimentos e descer ao sombrio Hades, nas profundezas tenebrosas do Tar- taro™, Portanto, delibera, que isto nao é arti- ficio de jacténcia, mas sim palavras muito bem ditas. A boca de Zeus nao sabe mentir e leva a cabo tudo o que diz. Atenta bem, pois, medita e nao julgues que alguma vez a arro- gancia possa ser mais forte do que a pru- déncia. ay CORIFEU — A nés no nos parece que Hermes seja inopor- 5 rocurares tuno no que diz, pois te exorta a P) cigs a sébia prudéncia e a renunciares 2 arrogan deixas per. [1039-1073] 67 Obedece. E uma vergonha que um sensato cometa um erro. PROMETEU — Ja sabia que recado este me vinha dar. Mas nao é de modo nenhum indigno que um ini- migo sofra por parte dos seus inimigos, Caia, pois, sobre mim 0 ziguezagueante raio de fogo de duas pontas; que o éter seja abalado pelo trovao e pelo furor dos ventos selyagens; que © vendaval sacuda a terra e as suas préprias raizes desde o fundo; que a onda do mar com um rude marulhar confunda os caminhos dos astros celestes; que ele lance 0 meu corpo para o negro Tértaro, nos turbilhdes inflexfveis da Necessidade — que a morte total nunca ele ma podera dar. HERMES — — Opinides e palavras destas podem ouvir-se da boca dum louco. E 0 que é que falta para que o desejo deste seja o de um desvairado? Acaso as suas loucuras diminuem? Mas vés, que vos condoeis dos seus sofrimentos, afastai-yos depressa destes lugares, para que o bramido implacdvel do trovao nao vos deixe os espiritos paralisados de medo. CORIFEU —Fala doutra maneira e dé-me conselhos que me convengam. Introduziste sem razio essa pala- vra que eu nao tolero. Como é que te atreves a exortar-me a cometer uma vilania? Quero sofrer com ele o que for necessdrio que ele sofra. Aprendi a odiar os traidores: nao ha >a que eu mais despreze. HERMES ——Mas lembrai-vos daquilo que eu predigo e nao vos lamenteis da vossa sorte, quando fordes apanhadas pela desgraga, nem digais um dia (1074-1094) que | Zeus voi atirou de improviso para o sofrimento, Nao, isso nao! E sé culpa vogsa, Ja vos adverti: — Nao sereis apanhadas Na rede sem safda_da desgraga nem de surpresa nem Por ignorancia, mas antes pela vossa_ loucura, PROMETEU — Em verdade, isto nao sao ja 86 palavras; —q terra treme; muge perto o ribombar profundo do trovao; brilham as espirais de fogo do raio; os turbilhdes levantam torvelinhos de poeira; os ventos atiram-se em luta uns sobre os outros; e o éter confunde-se com o mar. Por ordem de Zeus, sobre mim avanca abertamente este vendaval aterrador. © Mae veneravel, 6 Eter que a todos das luz, vedes que injustigas eu sofro? » Trata-se do fogo, cujo detentor era Hefesto (Vulcano, entre os Romanos). Cf. n, 25. Note-se a profunda humanidade de Hefesto a quem repugna castigar Prometeu, apesar de a ofensa Ihe dizer directamente respeito. * Témis, personificacdo da Justica, é, em Bsquilo, mae de Pro- meteu. Hesfodo (Teogonia 508), porém, considerava Prometeu filho da Oceanide Climene. * Maior castigo do que o facto de estar agrilhoado é para Prometeu a solidao em que se encontra. O coro das Oceanides constituird o seu tinico refrigério e a tinica nota de docura nesta tragédia toda feita de arrogancia, de violéncia e de desvario. Durante todo o drama, as filhas de Oceano dio a Prometeu conselhos sensatos e moderadores, ficando, no fim, corajosamente a seu lado. ® O libertador ser4 Hércules que, ao dirigir-se ao pais das Hespé- rides, matou com uma frechada a dguia que devorava o figado de Prometeu. Sobre a genealogia de Hércules cf. n. 78, e sobre a dguia devoradora do figado de Prometeu cf. n. 108, ® Prometeu, ao dar o fogo aos mortais, incorrera no grave pecado da insoléncia, pois excedeu a justa medida, que nunca ninguém —homem ou deus — deve ultrapassar. Esquilo, nos Persas (821-822), diz que a insoléncia produz a espiga do desyario, cuja messe é feita de ldgrimas. 7 Zeus, a principio tirano inflexivel, aprender4 a moderar a sua célera e a yergar o seu orgulho de soberano omnipotente para evitar uma queda desastrosa do trono, ® Sobre a liberdade de Zeus, cf. n. 51.

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