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HALBWACHS: MEMORIA COLETIVA E EXPERIENCIA Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud Instituto de Psicologia - USP Este artigo tem como objetivo apresentar algumas das idéias fundamen tais de Maurice Halbwachs sobre 0 trabalho da meméria. Entre as concepedes relevantes para a Psicologia Social destacamos a distingdo e as relagdes entre imagem, lembranca e meméria, e entre meméria indivi- dual € meméria coletiva; 0 conceito de confronto de testemunhos; as tenses e a complementaridade entre a hist6ria e a meméria coletiva. A titulo de ilustragdo de ressondnclas destes conceitos no campo da pesqui- ‘sa em Psicologia Social, comentamos alguns aspectos de pesquisa reali- zada junto a comunidades tradicionais da Estagao Ecolégica Juréia-lta- tins no Litoral Sul de Sao Paulo. Descritores: Meméria. Halbwachs. Experiéncias de vida. Psicologia So- cial. Relatos verbais. bservamos, nos ultimos anos, um crescente interesse pela obra de ‘Maurice Halbwachs. Socidlogo francés, discipulo de Durkheim, escreveu seus principais trabalhos entre as décadas de 20 ¢ 40. Em seus textos, fulgura a originalidade de um pensamento construi- do na contracorrente de idéias hegemOnicas no universo intelectual de sua época. Insistindo na efervescéncia dos meios sociais, os estudos de Halb- wachs se caracterizam pelo apego aos aspectos dindmicos dos fendmenos sobre os quais se debrugam. Valorizando a concepgao durkheimiana sobre a existéncia de rela- Ges dindmicas entre as classificagdes sociais e as mentais, Halbwachs Psicologia USP, S. Paulo, 4(1/2), p. 285 - 298, 1993 285 Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud faz o caminho inverso ao de muitos discipulos de Durkheim que interpre- taram essas relagdes de maneira mecinica, A contrapelo, recupera a visio durkheimiana de um social mével, inventivo e enfatiza a complementaridade, a tensio, a correlagao dialética entre classificagées sociais e classificagdes mentais. Esta concepgao ¢ esta énfase so uma espécie de viga mestra da arquitetura te6rica halbwa- chiana. Esta arquitetura, por sua vez, é marcada por uma desconfianga com relagio as idéias que leva o autor a posicionar-se de modo critico frente ao idealismo filos6fico fortemente dominante entio. Embora nao tivesse contato com a corrente fenomenolégica emergente no campo da filosofia, é possivel notar uma inspiragdo fenomenol6gica na sua tengo pelas situagSes coneretas ¢ no seu interesse em descrevé-las, bem como, no lugar privilegiado que o caso singular ocupa em sua construgio teérica. Como sociélogo, Halbwachs traduziu o trabalho de Durkheim em termos propriamente histéricos, tomando a diregdo de uma historizagao da sociologia, num mundo onde as ciéneias humanas e a hist6ria eram campos separados ¢ quase incomunicaveis, Se, por um lado, o pensamento de Halbwachs se apresenta em contraposigaio a tendéncias filos6ficas e sociolégicas de cunho idealista mecanicista que dominam a cena intelectual do inicio do século, por outro, sua originalidade floresce no contato com a Escola de Strasbourg. A Escola de Strasbourg reuniu, entre as décadas de 20 e 30, um grupo de estudiosos de diferentes origens, posturas intelectuais e idades, com 0 objetivo de estudarem, pesquisarem e trabalharem juntos, visando uma aproximagiio entre franceses e alemies. Neste grupo destaca-se a presenga de estudiosos de origem judaico- alema, entre eles Halbwachs, que portam a experiéncia de serem vistos sempre como “os outros”: para os alemies, so franceses; para os franceses, so alemaes; para os judeus, néo sao judeus; para os cristios, sfo judeus. Esta experiéncia coloca-os na condigo de desenvolverem uma postura ideal para um certo tipo de trabalho sociolégico, histérico psicolégico: sabem o que significa ser “o outro”. 286 Halbwachs: Meméria Coletiva e Experiéncia Do ponto de vista intelectual e metodolégico, esta postura contribui para a compreensio da especificidade e singularidade dos grupos sociais em diferentes épocas e, a0 mesmo tempo, facilita trocas interdisciplina- res, na medida em que cada especialista esté aberto para aprender a contribuigdo da disciplina-outra para o seu préprio campo de estudo. E, de fato, da Escola de Strasbourg emergem tanto a sociologia historicizada de Halbwachs, quanto a histéria sociologizada de Lucien Febvre, Mare Bloch e da Nova Historia, A perspectiva psicolégica nao ficou fora deste contexto de trocas interdisciplinares. A revolugdo psicologica e psicanalitica que aponta para o estudo dos processos psiquicos tal como so encarnados e vividos pelos individuos, e no como entidades abstratas ou mecanismos pura- mente fisiolégicos, teve sua quota de influéncia no pensamento desse grupo. Nao € por acaso, portanto, que 0 movimento da Nova Histéria desemboca no estudo das mentalidades ou que Halbwachs leciona a disciplina de psicologia social no College de France. Halbwachs dedicou-se a temas diversos como o suicidio ou a vida de trabalhadores numa vila operéria alema, buscando entender a formagao da consciéneia social. Fiel a esta tematica, aprofundou o estudo da meméria, principalmente em trés grandes obras: Os quadros sociais da meméria de 1925, Topografia legendaria dos Evangethos na Terra Santa de 1941 eA meméria coletiva (publicagio péstuma) de 1950 que, so, sem diivida, referéncias fundamentais para quem se interessa pelo assun- to. Socidlogos, psicélogos, historiadores, antropélogos, arquitetos, en- te outros, tém, mais e mais, recorrido a estas obras que permanecem ricas ¢ fecundas para as diferentes reas das ciéncias humanas. Na perspectiva da psicologia social, um exemplo préximo desta riqueza e fecundidade é a contribuigao das idéias de Halbwachs para 0 importante trabalho de Ecléa Bosi (1979) sobre lembrangas de velhos. © livro A meméria coletiva, onde a intersecgao entre psicologia social ¢ sociologia se configura de forma mais explicita, seré tomado como principal referéne 287 Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud Buscando indicar possiveis ressondncias destes conceitos na esfera da pesquisa em psicologia social, traremos, apés a apresentagdo tebrica, alguns exemplos referentes a pesquisa de campo realizada junto a comu- nidades tradicionais do litoral sul de Sao Paulo!. Imagem, lembranca, meméria Para Halbwachs 0 individuo que lembra é sempre um individuo inserido e habitado por grupos de referéncia; a meméria é sempre cons- truida em grupo, mas é também, sempre, um trabalho do sujeito, Procuraremos explicitar 0 sentido desta afirmagiio na composigio dos conceitos halbwachianos. Inicialmente, é preciso explorar o significado dos grupos como condigdo para a construgdo da meméria. Segundo Halbwachs, uma semente de rememorago pode permane- cer um dado abstrato, pode, ainda, formar-se em imagem e como tal permanecer ou, finalmente, pode tornar-se lembranga viva. Estes destinos dependem da auséncia ou presenga de outros que se constituem como grupos de referéncia. O grupo de referéncia é um grupo do qual o individuo jé fez parte e com o qual estabeleceu uma comunidade de pensamentos, identificou-se © con-fundiu seu pasado. O grupo esté presente para o individuo nfo necessariamente, ou mesmo fundamentalmente, pela sua presenga fisica, mas pela possibilidade que o individuo tem de retomar os modos de pensamento e a experiéncia comum préprios do grupo. A vitalidade das relagdes sociais do grupo dé vitalidade as imagens, que constituem a Iembranga, Portanto, a lembranga é sempre fruto de um processo coletivo € esta sempre inserida num contexto social preciso. 1 “Experiéncia, tradigfo oral e religiosidade em comunidades da Estagio Ecolégica Juréia-Itatins”, projeto que vem sendo desenvolvido, desde 1993, pelos autores deste artigo, com apoio da FAPESP. 288 Halbwachs: Meméria Coletiva e Experiéncia Em termos dindmicos, a lembranga é sempre fruto de um processo coletivo, na medida em que necessita de uma comunidade afetiva, forjada no “entreter-se internamente com pessoas” caracteristico das relagdes nos grupos de referéncia. Esta comunidade afetiva é 0 que permite atualizar uma identificagto com a mentalidade do grupo no passado retomar o habito ¢ o poder de pensar e lembrar como membro do grupo. A permanéncia do apego afetivo a uma comunidade dé consisténcia 4s lembrangas, Em contrapartida, o desapego esta ligado ao esquecimen- to, “Esquecer um periodo de sua vida” - diz Halbwachs (1990) - “é perder contato com aqueles que entdo nos rodearam” (p.32). Esta perda de contato nao pode ser restituida pela descrig&o, mesmo que exata, dos acontecimentos deste periodo, pois, na descrigdo, as imagens se apresen- tam como dados abstratos. No desapego ndo ha reconhecimento, no ha lembranga. A lembranga, para Halbwachs, é reconhecimento e reconstrugao. E reconhecimento, na medida em que porta o “sentimento do ja visto”. E reconstrugdo, principalmente em dois sentidos: por um lado, porque ndo € uma repetigao linear de acontecimentos e vivéncias do passado, mas sim um resgate destes acontecimentos e vivéncias no contexto de um quadro de preocupagées e interesses atuais; por outro, porque é diferenciada, destacada da massa de acontecimentos e vivéncias evociveis ¢ localizada num tempo, num espago e num conjunto de relagdes soci Tanto 0 reconhecimento quanto a reconstrugaio dependem da existén- cia de um grupo de referéncia, tendo em vista que as lembrangas retomam relagdes sociais, € ndo simplesmente idéias ou sentimentos isolados, que so construidas a partir de um fundamento comum de dados e nogdes compartilhadas. Os grupos, no presente € no passado, permitem a localizagdo da lembranga num quadro de referéncia espago-temporal que, justamente, possibilita sua constituigiio como algo distinto do fluxo continuo e eva- nescente das vivéncias. A meméria é este trabalho de reconhecimento e reconstrugiio que atualiza 0s “ quadros sociais” nos quais as lembrangas podem permanecer ¢, entio, articular-se entre si. 289 Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud Assim, compreende-se, em parte, a concepgo halbwachiana sobre a natureza coletiva da meméria, Confronto de testemunhos outro, através de seu depoimento, apéia, complementa, torna mais exato 0 trabalho da meméria. Nas palavras de Halbwachs (1990): se nossa impresstio pode apoiar-se nilo somente sobre nossa lembranga, mas também sobre a de outros, nossa confianga na exatidio de nossa evocagao seré maior, como se uma mesma experiéncia fosse comecada, ndo somente pela ‘mesma pessoa, mas por varias (p.25). O primeiro nivel de testemunho ao qual o individuo tem acesso se dé na relagdo consigo mesmo, confrontando uma visio atual com as expe- rigncias vividas no passado ou com opinides formadas anteriormente, com 0 apoio de depoimentos de outros. Um segundo nivel, abrange a esfera do didlogo entre o individuo ¢ um outro presente fisicamente ou internalizado. Neste sentido, o trabalho da meméria pode ser compreendido como confronto dos diferentes pon- tos de vista que cohabitam no individuo, Estes pontos de vista ajudam a ver, observar e lembrar. Para ver ¢ observar uma realidade presente, o individuo recorre ao testemunho de sua experiéncia anterior e ao testemunho de outros que indicam ou destacam aspectos a serem observados, bem como, universos onde loca- lizar 0 observado. Na medida em que o presente € vivido nesta interlocugao de teste- munhos, a sua evocago, no futuro, tenderd a retomar estes didlogos. O trabalho da meméria é, portanto, também, a presentificagao daquele conjunto de testemunhos no contexto de um didlogo mais amplo e atual, confronto de testemunhos tem por fundamento as dimensdes do tempo e do espago. De acordo com Halbwachs (1990), 290 Halbwachs: Meméria Coletiva e Experiéncia a meméria nao tem alcance sobre os estados passados e néo no-los restitui em sua realidade de outrora, sendo em razao de que ela ndo os confunde entre si, nem com outros mais antigos ou mais recentes, isto é, ela toma seu ponto de apoio nas diferengas (p.96). A diferenciagao das lembrangas deriva, também, das divisdes do tempo - que so singulares para cada grupo e para cada homem. A divistio do tempo permite a constituigo de uma lembranga enquanto tal, e sua distingdo dentre outras lembrangas numa cadeia de recordagoes. E porque as lembrangas no se confundem entre si que podem ser confrontadas, dando corpo ao trabalho da meméria, Em contraposigdo ao tempo que oferece continuamente a imagem da mudanga, 0 espaco oferece a imagem da permanéncia e da estabilidade. Os lugares recebem a marca de um grupo e a presenga de um grupo deixa marcas num lugar. Todas as ages do grupo podem ser traduzidas em termos espaciais e o lugar ocupado pelo grupo é uma reuniao de todos os elementos da vida social. Cada detalhe tem um sentido inteligivel aos membros do grupo. Ao mesmo tempo que o espago faz lembrar uma maneira de ser comum a muitos homens, faz lembrar, também, costumes distintos, de outros tempos. Sobretudo, faz lembrar de pessoas ¢ relagies sociais ligadas a ele. Neste sentido é, sempre, fonte de testemunhos. Meméria individual e meméria coletiva Depreende-se do que foi exposto até aqui a impossibilidade de uma meméria exclusivamente ou estritamente individual, uma vez que as lembrangas dos individuos so, sempre, construfdas a partir de sua rela- 40 de pertenga a um grupo. A meméria individual pode ser entendida, ento, como um ponto de convergéncia de diferentes influéneias sociais como uma forma particular de articulago das mesmas. Analogamente, a meméria coletiva, propriamente dita, é o trabalho que um determinado grupo social realiza, articulando e localizando as lembrangas em quadros sociais comuns. O resultado deste trabalho é uma espécie de acervo de lembrangas compartilhadas que so 0 contetido da meméria coletiva. 291 Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud Halbwachs ao distinguir e relacionar meméria individual e meméria coletiva pde énfase num dinamismo que Duvignaud (1990) traduz. nos seguintes termos: 6 impossivel conceber o problema da evocagto e da localizagao das lembrangas se no tomamos para ponto de aplicago os quadros sociais reais que servem de pontos de referéncia nesta reconstrugo que chamamos meméria (p.9-10).. Um aspecto a acrescentar neste dinamismo da meméria € a impor- tancia da lembranga pessoal como testemunho frente e contra as interfe- réncias coletivas. Na feliz expresso de Franco Cardini (1993), a lembranga ndo se constrdi sem a meméria coletiva, mas, ao mesmo tempo, @ recordaglo pessoal é uma forma de testemunho que impée limites & tirania ou & ditadura das imagens coletivas, Este limite deve ser entendido no interior mesmo do trabalho da meméria, significando que a experiéncia dos individuos é a ancoragem para a construgo continua ¢ comum que chamamos meméria coletiva, cujos contetidos, por esta razdo, nao so arbitrérios. Por outro lado, a recordagio pessoal enfrenta a ditadura das imagens coletivas enquanto torna possivel que um elemento de cardter pessoal possa ser ouvido por cima da meméria coletiva. Para Halbwachs a consciéncia individual é um registrador de in- fluéncias sociais, mas, ao mesmo tempo, a consciéncia individual é um limite, algo que pode nos salvar da ditadura (Cardini,1993). Tradigao e histéria ‘A meméria coletiva adapta as imagens de fatos antigos a crengas e a necessidades espirituais do presente. Indicando esta caracteristica, Halb- wachs supera a concepgao do passado como um modelo imutavel ao qual conformar-se (Dumond, 1988). Na meméria coletiva o passado é permanentemente reconstruido vivificado enquanto € resignificado, Neste sentido, a meméria coletiva 292 Halbwachs: Meméria Coletiva e Experiéncia pode ser entendida como uma forma de historia vivente. A meméria coletiva vive, sobretudo, na tradigdo, que é o quadro mais amplo onde seus contetidos se atualizam e se articulam entre si A meméria coletiva encontra seu lugar na tradigiio e, ao mesmo tempo, dinamiza as tradigSes, num processo semelhante ao que foi des- crito com relagdo as lembrangas no contexto dos quadros sociais. ‘A meméria coletiva tem uma forte tendéncia a transformar os fatos do passado em imagens ¢ idéias sem rupturas. Ou seja, tende a estabelecer uma continuidade entre o que ¢ passado e o que é presente, restabelecen- do, portanto, a unidade primitiva de tudo aquilo que, no processo histéri- co do grupo, representou quebra ou ruptura. Desta forma, a memoria coletiva apresenta-se como a solugdo do passado, no atual; apresenta-se como recomposigdo quase magica ou terapéutica, como algo que cura as, feridas do pasado. ‘Também a meméria histérica busca solucionar rupturas, busca pro- duzir imagens unitarias do percurso da humanidade. Porém, seu processo possui uma diregdo diferente: soluciona a atual no passado. Isto quer dizer que a meméria histérica oferece uma construgao légica e inventada do passado. Esta construgdo légica e inventada pode ser entendida como o trabalho, que cada época realiza, de encontrar o que jé existia anterior mente, mas que ndo se podia incluir num sistema de imagens. Vé-se, portanto, que a meméria coletiva ¢ a meméria histérica, apoiando-se em regras de reconstrugio distintas, chegam, inevitavelmen- te, a conhecimentos distintos do passado. ‘A meméria coletiva pode, por vezes, se enfrentar de modo contun- dente com a racionalidade da hist6ria feita pelos historiadores. Em outros momentos, pode ser complementar memeéria histrica. E, em outros, ainda, servir como limite ao carater ldgico e ideolégico da historia. Nem a meméria coletiva nem a meméria histérica podem, contudo, legitima- mente, reivindicar para si, a verdade sobre 0 passado. A meméria coletiva, para Halbwachs, desempenha um papel funda- mental nos processos histéricos. Por um lado, dando vitalidade aos objetos culturais, sublinhando momentos histéricos significativos e, por- 293 Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud tanto, preservando o valor do passado para os grupos sociais. Por outro, sendo a guardi dos objetos culturais que atravessam os tempos e que, ento, podem vir a se constituir em fontes para a pesquisa historica. A concepgdo de Halbwachs sobre o lugar da meméria coletiva nos processos histéricos foi assim sintetizada por Cardini (1988): (..) a grande protagonista da histéria € a meméria coletiva, que tece ¢ retece, continuamente, aquilo que o tempo cancela e que, com a sua incansivel obra de rmistificagdo, redefinigio e reinvengao, refunda e requalifica continuamente um passado que, de outra forma, correria 0 risco de morrer definitivamente ou de permanecer irremediavelmente desconhecido (p.xii). Halbwachs e a psicologia social A psicologia social, entre outros objetivos, busca compreender os fendmenos sociais desde o ponto de vista da experiéncia do individuo em seu contexto sécio-cultural. Uma via de acesso, privilegiada, a experién- cia do individuo & o relato oral. Isto porque no relato oral os elementos diversos e heterogéneos que dio corpo & experiéneia encontram uma forma imica, singular e integrada de expresso e comunicago. Halbwachs delimita um campo metodolégico e conceitual de extre- ma pertinéncia para a pesquisa que se baseia na coleta e andlise de relatos orais. A seguir, passamos ao comentario de algumas dimensdes metodol6- gicas da pesquisa com relatos orais que se destacaram no trabalho de campo com comunidades tradicionais da Estacao Ecolégica Juréia-Ita- tins, claramente em conseqiléncia de nosso didlogo com a obra de Halb- wachs. Confronto e relato oral trabalho de campo referido acima tem como objetivo principal 0 estudo dos fendmenos propicios a transmissio e & elaboragiio da expe- rigncia pessoal e coletiva em comunidades tradicionais. Naquele trabalho partimos de uma conceituagao de experiéncia onde o conceito de memé- 294 Halbwachs: Meméria Coletiva e Experiéncia ria ocupa um lugar central. De fato, experiéncia € meméria, enquanto capacidade de recordar e de evocar, que constitui um enriquecimento de saberes; é ainda, presenga ativa do passado em nés, como dinamismo ¢ principio de ago. A elaboragao e a transmissio da experiéncia, entio, remetem ao trabalho da memoria (Ries, 1988). Na coleta de histérias de vida de moradores das comunidades que estamos interessados em conhecer, observamos a presenga da confronta- ¢do como caracteristica intrinseca da narrativa, Freqiientemente, entra- mosem contato com o fato de que um individuo, ao testemunhar oralmen- te o seu pasado, formula a prépria narrativa como um proceso de confrontagio, adaptago e acomodaso de varios elementos, tais como: “casos” pessoais ou antigos, opinides proprias e alheias, distingdes entre pontos de vista, descrigdes dos diferentes modos de vida em diferentes Epocas, histérias tradicionais, referéncias a diferentes grupos; ou seja, elementos que se movem entre os eixos presente/passado e individuo/ou- tros. A observagao do carter plural da narrativa abre a possibilidade de escutar um depoimento pessoal como a orquestragio de vozes coletivas, posta em cena pelo narrador. Isto é importante ndo tanto porque se apreendem as relagdes sociais através da fala do individuo, mas, princi- palmente, porque se apreende o modo como a experiéncia do individuo & modulada, matizada, dentro daquele quadro social, Do ponto de vista do comentario e da andlise do material colhido a partir desta apreensao, as contradigdes, as ambigilidades, as omissdes nao sdo tomadas, exclusivamente, como dissintonias do desejo do individuo, ‘mas como expressGes que atualizam os conflitos, as tenses, a pluralidade de perspectivas, do grupo social, dos quais o individuo se apropria para elaboragdo de sua experiéncia. A elaboragao da experiéncia pode ser entendida como um processo de didlogo entre diferentes pontos de vista atuais e passados que, de alguma forma, estdo presentes para o individuo. Neste campo de didlogo entre diferengas, inclui-se, também, a pre- senga dos pesquisadores. Isto quer dizer que o narrador nao ¢ indiferente a0 pesquisador como representante de um outro grupo e, portanto, sua 295 Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud narrativa é, inclusive, um didlogo com este grupo que o pesquisador representa2. Ruptura e quotidiano Halbwachs salienta que a percepeio do tempo é uma percepgo de diferengas, Na vida das comunidades estudadas, uma dessas diferengas signifi- cativas é definida pela alternancia dos tempos do quotidiano e da festa. Como ruptura do fluxo do tempo quotidiano, a festa se constitui nao s6 como momento de utopia social, mas como um momento privilegiado de percepgdo do quotidiano. f um momento de suspensio do quotidiano que coloca aquela diferenciagiio necesséria para a delimitago da expe- rigneia no tempo. Portanto, € um momento em que o vivido quotidiano pode ser retomado como objeto de reflexio. Analogamente, podemos entender a situago de entrevista como um outro momento de ruptura que propicia a percepgao da realidade quoti- diana e sua elaborago por parte do individuo. Esta elaboragdo tem uma qualidade, uma especificidade e uma riqu za proprias da situacdo de entrevista. Isto permite rebater a critica de que a entrevista é um instrumento limitado por promover uma situagio artifi- cial, uma vez que justamente a ruptura de uma situagfo corriqueira promove uma certa percepgdo e uma certa elaboragao da experiéncia quotidiana, dificilmente captiveis apenas através de observagdes etno- grificas. 2 Vale como ilustragZo a seguinte passagem: 0 narrador estava falando sobre a diferenga entre as coisas que Deus cria e aquelas que 0 homem faz, ¢ traz como exemplo a possibilidade de se repor uma lampada que teria se queimado em contraposi¢do 4 impossibilidade de reconstituigto da natureza devastada. Ora, a lampada é um elemento que nao faz parte do quotidiano das comunidades, como a do narrador, que no contam com energia elétrica, mas sim do mundo do pesquisa- dor. 296 Halbwachs: Meméria Coletiva e Experiéncia Acresce-se a isso, 0 fato de que momentos de ruptura desta natureza no so alheios & experiéncia daquelas comunidades, como a existéncia de frequentes festas comprova. Uma outra critica a entrevista ¢ a de que seria condicionada pelas necessidades ¢ interesses do pesquisador e, portanto, poderia ser invasiva para o sujeito da pesquisa. A valorizago da entrevista como momento de ruptura tem se demonstrado uit tanto para os objetivos de pesquisa em psicologia social, quanto para os sujeitos da pesquisa que tém acolhido a entrevista como uma oportunidade de refletir e de transmitir a sua expe- riéncia pessoal e comunitéria. SCHMIDT, M.L.S; MAHFOUD, M. Halbwachs: colective memory and experience. Psicologia USP, S. Paulo, v.4 n.1/2, p. 285 - 298, 1993. ‘Abstract: The parpose ofthe paper isto present some of the fundamental ideas of Maurice Halbwachs on the working of memory. Among. the relevant conceptions for Social Psychology we stress: the distirection and the relations between individual memory and collective memory; the concept ofthe confrontation of witnesses; the tensious and complementa- riedade between history and collective memory. As an example of the ressondncia ofthese concepts in the field of research in Social Psychology we comment ou some aspect of research carried out in tradutional com- ‘munities of the Juréia-Itatins Echological Station on the southen coast of Sto Paulo Index Terms: Memory. Halbwachs Life experiences. Soctal psychology. Verbal reports REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: BOSI, E. Meméria e sociedade: lembrangas de velhos. Sao Paulo, T-A. Queiroz, 1979. CARDINI, F. 4 meméria coletiva no pensamento de M. Halbwachs. /Conferéncia proferida no Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo em 10 de novembro de 1993, CARDINI, F. Un sociologo al Santo Sepolero, In: HALBWACHS, M. Memorie di Terrasanta. Veneza, Ed. Arsenale, !988. p. vii-xxiv. 297 Maria Luisa Sandoval Schmidt e Miguel Mahfoud DUMOND, francese (1971). In: HALBWACHS, M. Me- ‘morie di Terrasanta, Veneza, Ed, Arsenale, 1988. p.Xxv-xxx. DUVIGNAUD, J. Preficio. In: HALBWACHS, M. 4 meméria coletiva. Sto Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. p.9-17. HALBWACHS, M. A Meméria coletiva, Trad. de Laurent Léon Schaffter, Sdo Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. Tradugdo de: La mémoire collective. HALBWACHS, M. Memorie di Terrasanta. Trad. de Marta Cardini. Veneza, Ed. ‘Arsenale, 1988, Tradugio de: La topographie légendaire des Evangiles en Terre Sainte, RIES, J. La esperienza religiosa. In: MONTI,C., org. II libro del Meeting 88: cercatori 4i infinito, costruttori di storia. Roma, Meeting Per L’Amicizia Fra I Popoli, 1988. 156-9. 298

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