Você está na página 1de 3

O CHORO DA GUEIXA (resposta ao convite)

Sábias testemunhas da noite: luas, estrelas, cometas


Condor majestoso, guardião das neves eternas
Fênix áurea, das lágrimas de diamante
Grande dragão vermelho, protetor do sol nascente
Sejam vós testemunhas minhas
Sejam para mim asserto de que não é pequeno meu pranto
Sejam guias meus nos caminhos que trilho
Nas pedras que piso, no sangue que me entorna

Não sou mais que um pranto risível


Não sou mais que nódoa na seda
Sou melodia perdida
Sou névoa que esconde o mar tempestuoso
Sou o que sou e essa é minha dor
Estou presa por correntes obscenas
Se ao menos suplico mais me apertam

Não sou luz no breu da cegueira


Não sou riso no choro e nas dores
Se rio é porque me entristece fazer verter lágrimas de sangue
Se rio é porque me têm para isso
Se minha face é branca perdoa-me
Para mim, usar máscaras é natural
Se não grito, meu canto, minha arte, corta-me de cima abaixo
Se não choro, minhas tristezas deixam-me serena, sóbria
E minha sobriedade faz me apreciar o silêncio e o retiro

Às vezes encontras-me longe, à beira da laguna


Olho minha face refletida nas águas calmas e então me agito
Vejo através de mim na miragem cristalina
E percebo que estou presa, como nas águas
O reflexo que me prende não me abandonará
Não mais floresço
Me vejo definhar como minha face fica que fica turva
Quando balanço as águas do lago
Me desfiguro, não sou de verdade, sou imagem, sou objeto

Meu canto solitário, nas clareiras do bosque viscoso


Meu clamor das entranhas não ouvido
Minha dança instintiva sob o som da cítara
Não faz com que percebam meus gritos
Gritos sufocados por uma muralha instransponível
Meu espírito conclama os trovões e eu expio-os subtraindo de minha própria
alma o sacrifício pedido
Comparo-me ao guerreiro que se imola no alto do monte
Por seu povo, por seus ideais, por suas paixões
Imolo-me não por mim, mas porque confio
Mesmo que confiando no impossível
Não vejo esperança
Onde reina a treva
Mas confio
Somente

Não me conheço mais como outrora


Não sinto que sou vida
Sou um ser vivente, como as pedras, como a areia
Não me chamo mais por meu nome
Não me olho no espelho mais por mim
Nem mais me pertence meu templo sagrado
Minha rubra pele já tingiu-se da mácula da miséria
Me dispo de meus sonhos e visto os sonhos de outros
Rio dos risos de outros
Falo das falas de outros

A música toca na ampla sala


Giramos unidas pelas mãos
Sinto-me por segundos quando pequena
Quando girávamos na relva orvalhada
A música para, abro os olhos
E vejo, que nem por meros instantes
Lembro-me dos breves momentos
que me valem mais que toda uma vida

A harpa é impiedosa
o clamor dos guerreiros esbaforidos é cruel
Meu riso dissimulado me persegue
Procuro ver um fim nisso
Um objetivo maior para tudo
Mas não vejo, recolho-me no íntimo
Sorrio brevemente e começo a cantar

Canto a esperança da cerejeira


De tornar a verter flores brancas
Nem que ao menos por uma tarde

Canto a esperança da maré


Que espera a irmã lua subir no firmamento
Paciente, em silêncio, para sempre

Canto a tristeza da donzela


Que chora sobre o túmulo de seu amado guerreiro
Que definhou por entre seus dedos
Que sangrou em suas vestes
Que tornou-la espectro
Não tive guerreiros, não pude ter guerreiros
Perdi família, amigos
Perdi sóis, chuvas
Me perdi em algum momento do passado
E hoje procuro indefinidamente não uma parte de mim
Mas partes de outros
De tantos outros como eu
De tantos eus que se misturam ás águas e já não são mais que lembranças do
que foram outrora

Procuro me libertar das grades que me cercam


Dos tapumes que me tampam a visão
Mas abrem-se as portas do tatame
E vejo que sou uma peça, de um jogo vil, de poderosos
Imundos, como a mim
Sirvo-os, mesmo que odiando-os, sirvo-os

Nas noites vazias de estranhos, penduro meu quimono escarlate


Sento-me nua nas pedras enluaradas
Olho-as, fito-as, desafio-as
A poderem sofrer mais que eu
Mais que meu coração engessado
Por valores que não são mais meus
Por um mundo que não é mais meu
As pedras preferem responder em silêncio
E eu entendo minhas amiguinhas
Ferir feridas como as minhas é ser pior que um assassino

Não posso me libertar nem libertá-lo


Vá, ande por entre as colinas
e lembre-se de mim: no voo dos pássaros
no sibilar do vento
no cair da noite
e na esperança de nascer um novo dia
lembre-se se de mim quando sentir-se livre

talvez ainda hajam outros dias e é nessa esperança que nutro minha existência
espero poder voltar a unir nossas mãos e corrermos livres
por onde eu nunca deixei de habitar em sonhos

estou viva porque amo


morrem os homens
mas não os sentimentos
me deixe por mim porque eu jamais me deixarei por você

Você também pode gostar