Você está na página 1de 40
ANTON TenexHov (1860-1904) Anton Pévlovitch Tehekhov nasceu em 17 dejaneiro na cidade Portuéria de Taganrog, ao sul da Russia, sendo o terceiro dos seis fllos da familia, Desde pequeno ajudou seu pai, filho de tum servo emancipado, nos trabalhas da mercearia, Devido a problemas financeiros, o negdcio teve que set fechado, e sua familia se mucou para Moscou. Ele permaneceu em Taganrog Por mais trés anos para finalizar as estudos e garantiu seu sustento dando aulas particulares. Um grande observador da sociedade desde pequeno, Tehékhov comegou a escrever cedo, antes mesmo de entrar na uuniversidade. Aos dezessete, escreveu uma tragédia, destruida por ele em seguida, Dois anos depois se mudou para Moscou para estudar medicina, Voltou a ficar perto da familia, que vivia em condigdes muito precérias. Nessa época sua produgo literdria se intensificou: © primeiro conto foi publicado em 1880, seguido por iniimeros outros —a maioria carregados de um teorsatrico e humoristico~ que comecaram a aparecer em, periddivos russos sob o pseudénimo de Antocha Tehekonte. Desde cedo chamou atengao pela rapidez com que escrevia, demorando as vezes apenas um dia para criar pequenas obras-primas como 0 apaixonado “A dama do cachorrinho” (1899), a mais célebre de suas historias curtas, sobre um amor aparentemente improvavel; o inquietante “Enfermaria n° 6” (1892), classico conto sobre o abuso psiquitrico, entre cente- nas de outros, marcados pela simplicidade e pela exatidio na escotha das palavras. A abordagem tchekoviana é muito mais a da sugestao, que faz com que seus contos sejam carregados 0 mesmo tempo em densidade e sutileza, Apésa formatura, Tchekhov exerceu a medicina em uma clinica no interior da Russia, convivendo de perto com traba- thadores ¢ latifundiérios, funcionirios publicos e nobres, que osteriormente seriam retratados em sua obra. Esse foi um Periodo de reflexao, do qual seu lado escritor sait: amadure- ido, Os contos dessa época ganharam profundidade, seu olkar sobre a sociedade foi se transformando a ponto de se aproximar da alma dos personagens, revelando seus estados psicolégicos, uma das caracterfsticas que fazem sua obra ser tao singular. A primeira antologia de contos foi publicada ‘em 1887, com enorme sucesso. No mesmo ano, apareceram, ‘8 primeiros problemas de satide que culminariam numa tuberculose, e Tchékhov se recolheu ao sul da Rissia para tratamento. O frescor da juventude se esvaiu, dando lugar a um humor mais comedido. Mesmo declarando que nao era sew desejo se tornar um dramaturgo, comegou a escrever pequenos ‘esquetes, para depois, jum escritor maduro, subvertera arte dramética, criando um novo paradigma de teatro ao mostrar © drama da vida cotidiana no palco. Uma de suas primeiras pegas foi Ivanov (1887), escrita em duas semanas e meia, se- guida por O urso, de 1888. Nesse mesmo ano, Tchékhov foi condecorado com o prestigioso prémio Puichkin, concedido pela Academia de Ciencias da Rissa Em 1890, o autor empreendeu uma viagem a ilha de Sakhalina, local de trabalhos forgados, na qual realizou um ‘eenso da populacdo. O clima do extremo leste da Sibéria fez, ‘com que sua satide se deteriorasse rapidamente. Em 1896, depois de um fracasso em Sao Petersburgo, estreou com éxito A gaivota, montada pela companhia do Teatro de Arte de Moscou, de Stanislvski. O ator e diretor russo montaria outros trés sucessos de Tchékhov: Tio Vénia (1897), As trés irmas (1901) e O jardin das cerejeiras (1904). Em 1901, o escritor casou-se com a atriz Olga Knipper, que participou da montagem de algumas de suas pecas. 0 casamento foi um pouco atribulado, uma vez que Tchékhov, seguindo conselhos médicos, mudou-se para Talta, no Mar ‘Negro, enquanto sua esposa permaneceu em Moscou. “Tchekhov morreu em 1° de julho de 1994, na cidade alema de Badenweiller, em decorréncia de complicagoes provocadas pela tuberculose, Esta enterrado no cemitério Novodévichi, em Moscou. Livros do autor na Colegao L&PM POCKET: Um: homem extraordindrio e outrashistbrias Adama do cachorrinho e outrashistévias Anton Tchékhov O jardim das cerejeiras seguido de Tio Vania Tradugao de Mi.ox FERNANDES www.lpm.com.br L&PM POCKE Colegéo L&PM POCKET, vol. 755 ‘Titulo original: Vishntviy Sade Dyana Vanya Primeirs edigao na Colegio L&PM POCKET: maio de 2009 Esta reimpressio:unho de 2011 ‘radu: Millr Fernandes O jardim das cerejeiras / 7 Capa: L&PM Editores Nota do tradutor | 9 Preparagaoe Paria Vurgel, Revise: Lia Cremonese ‘Tio Vania / 81 C1P-Brasil. Catalogagio-na-Fonte Sobre o tradutor/ 149 indicato Nacional dos Fitares de Livros, RI Tag ‘Tehekhov, Anton Pavioviteh, 1860-1904 ( jacim das cerejeiras; seguido de, Tio Vania / Anton Tehechov tradugio 4e Milor Fernandes. ~ Porto Alegre, RS: LPM, 2011 160. ~ (LPM POCKET sv, 755 ) ‘Titulo original: Vishnéviy Sade Dyana Vanya ISBN 978-85-254-1866-1 1, Teatro russo (Literatura). 1, Tehekhov, Anton Pavloviteh, 1860-1904, ‘Tio Vania. 11. Fernandes, Miller, 1924-, IT, Titulo, IV. Titulo; Tio Vania, V. Série, 09.0388. cpp: 91.73 CDU:821.161.1-2 © da tradugio Millor Fernandes, 2008 Todos os direitos desta edigéo reservados & LAPM Editores ‘Rut Comendador Coruja 314, lja 9~ Floresta ~90.220- 180 Porto Alegre RS Brasil / Fone: 51.3225:5777 ~ Fax: 51.3221-5380 Prnivos & Dero, Conca vendas@lpm.com.br aus conoscer infotlpm.com br woe. pm.combr Impresso no Brasil utono de 2011 O jardim das cerejeiras NOTA DO TRADUTOR Millor Fernandes ‘Até traduzir esta peca de Tchékhov eu pensava que 0 titulo dela, a classico em portugues, O jardim das cerejeiras, fosse resultado da tendéncia natural dos radutores poetiza- remtitulos. Achava que o titulo em russo, dadasas enormes dimensoes do “Jardim”, devia ser “O cerejal”. $6 agora, esiudando mais profundamente a pega — esta tradugao se bascia em dez verses diferentes, verifiquei que Tchékhov chamou mesmo sua pega de O jardim das cerejeiras. A in- formacio, que me foi trazida pelo tchekhélogo Jorge Takia, ‘vem de fonte insuspeita, Constantin Stanislavski, criador do naturalismo no teatro russo, que montou pela primeira vver os trabalhos teatrais de Tehékhoy, tendo, aligs, repre- sentado o personagem Gaiév nesta pea. Em sua biografia, Stanislavski explica longamente o titulo, desfazendo uma confusio que existiu até entre ele ¢ 0 autor: “Quga, achei um titulo maravilhoso’, me disse ‘Tehékhov, em sua casa. ‘Vishneviy Sad’ (O cerejal), ¢ ria, feliz. Pedi que me explicasse 0 que via de extraordinari no titulo, Mas ele repetia apenas, com varias entonagdes: “Vishneviy Sad. Vishneviy Sad’. Compreendi que se referia a alguma coisa linda, amada com ternura, porém que 0 sentido nao estava no nome, masna entonagao. Com todo o Cuidado disse isso a ele, Imediatamente a alegria eo triunfo desapareceram do rosto de Tchékhov. ‘S6 uma semana depois entrou no meu camarim ¢ con- seguiu se explicar: ‘Ouga, nao é Vishneviy Sad. E Vishnéviy Sad’. Ai compreendia grande diferenga. Vishneviy Sadé um. ccerejal comum, que da lucro. Mas Vishnéviy (Vichiniovii) ° Sad nao é utilitério, Esconde na sua brancura floridaa gran- de poesia da vida aristocratica que se acaba, Cresce apenas para a beleza, para os olhos dos estetas privilegiados.” PERSONAGENS Lavsa (madame Andréievna Raniévskaia) ~ Proprietaria do cerejal. Ania — Filha de Raniévskaia, dezessete anos. Vania — Filha adotiva de Raniévskaia, 24 anos. Gaiev (Leonid Andreiévitch) ~ Irmao de Raniévskaia. Loraxnine (lermolai Alextievitch) ~ Negociante. ‘Trorimoy, apelidado de Pétia (Piotr Sergueievitch) ~ Es- tudante. Prcrcmx (Boris Borissovitch Simionov) ~ Proprietério de terras. Canora Ivanovna — Governanta. Enikovov (Sémion Panteleiévitch) - Guarda-livros. Duniactta ~ Criada Fins — Criado de 87 anos. Tactia — Criado jovern. (CHEE Da ESTAGAO FuNcionanio pos Conaiios Visrranes CRIADOs CacHorso Aagdo transcorre na propriedade de Liuba Raniévskaia. PRIMEIRO ATO (Um aposento, que sempre foi chamado de 0 quarto das criangas. Uma porta dé pro quarto de Ania. Madrugada, 0 sol vai nascer. E maio, as cerejeiras esto em flor mas, com a geada do amanhecer, faz muito frio no jardim. As janelas estdo fechadas, Duniacha entra com uma vela e Lopakhine com um livro.) Lopaxsanve —O trem chegou, gracas a Deus. Que horas sio? Dowiacna ~ Quase duas. (Apage a vela.) Jé € dia. Lopakiine~ Mas que atraso: quase duas horas! (Boceja ese espreguiga.) Ollha s6.0idiota que eu sou. Vim especialmente pra pegar 0 pessoal na estacio e ferrei no sono. Sentei ai na ‘cadeira e tum! — s6 quando acordei vi que tinha dormido. Me dé um desagrado de mim mesmo, isso... Vocé devia ter me acordado. Dumiacia ~ Pensei que 0 senhor tinha ido embora. (Ouve.) tha, sio eles — acho que sto eles! Lopaxsune ~ (Ouve.) Nao; aquilo demora ~ tem toda a bagagem, gente, cumprimentos... (Pausa.) Liuba Andréiev- na esteve cinco anos no estrangeiro: imagino o que terd mudado, Que criatura esplendidat Sempre de boa vontade. ‘Tao simples, Eu me lembro, quando era um rapazinho de quinze anos, o meu velho pai - tinha uma lojinha aqui na aldeia - me deu um soco na cara, meu nariz espirrou sangue. Nés tinhamos vindo fazer alguma coisa aqui, nao me lembro © qué, ele estava bébado, isso eu me lembro. Liuba Andréievna, ainda estou vendo, era bem mocinha, ‘magrinha, me levou pra lavar 0 rosto, depois me trouxe 1B pra cé pro quarto das criancas e me disse: “Nao chora ndo camponesinho, quando voce casar isso passa”. (Pausa.) Camponesinho. E verdade, meu pai era um mujique, € aqui estou eu, colete branco, bota amarela, um porco bem vestido num saldo de cha. £, um homem rico, mas, com tudo o que tenho, basta uma raspadela que aparece o ma- tuto, Nasci campénio, continuo sendo. (Vira as paginas do livro.) Estava lendbo este livro, mas nao consegui juntar pé ‘com cabeca e cai no sono. Duwuacta—Os cachorros latiram a noite inteira; viram que a dona ia chegar. Loraxnine ~ Esté sentindo alguma coisa, Duniacha? Duwtaca ~ Minhas maos estao tremendo, Acho que vou desmaiar, Loraxtve ~Vocé esté é muito mal-acostumada, Duniacha. Refinada demais. Se veste como uma senhora, se penteia também como uma dama. Nao éassim nao! Vocé tem que conhecer o seu lugar. (Entra Epikodov, com um ramo de flores. Um casaco curto, ¢ botas muito bem engraxadas, que rangem forte. Deixa cair as flores, ao entrar. Apanha-as.) Enikopov ~ Eis aqui — o jardineiro enviou. Recomendow po-las na sala de jantar. (Entrega as flores a Duniacha.) Lopaxune — E me arranja uma bebida, um kvass. Duwiacita Sim senhor. (Sai,) Entxovov ~ Manha gélida, hein? Trés abaixo de zero. Mas as, ccerejeiras estao ai, florescentes! Sinceramente, nao aprovo ‘nosso clima. (Suspira.) Nao é propicio— jamais colabora, ‘Tempo intemporal. Alexéievitch Lopakhine, permita-me chamar-lhe a atengao para um fato inusitado. (Gesto para ‘as botas.) Adquiri este par de botas tresanteontem e rangem, ‘como ouve (Anda,), um pouco além do suportavel. Acon- selha um pouco de graxa? Resolve o meu problema? ‘Loraxsine - Nao me amola. Vai embora. “4 Eponov ~ Todo 0 dia é uma desgraga nova. Nao me queixo, jé estou acostumado. Encaro até com um sortiso, algumas vezes, (Duniacha entra, entrega a bebida a Lopakhi- ne.) J vou indo. (Tropeca numa cadeira, que cai.) Olha ait (Com voz triuunfante,) £ apenas uma amostra do que... do que eu afirmava. Coisa estarrecedora. (Sai.) Duwtacia ~ Posso Ihe contar um segredo, Alextievitch Lopakhine? Epikodov me pediu em casamento. Loraxiive ~ Huuummm! Dumiacua — E eu nao sei o que fazer. £ um rapaz muito sério, mas algumas vezes, quando comeca a falar, eu ndo entendo uma palavra. O que ele me diz € muito bonito, eu fico toda comovida... s6 que nao entendo nada. Até que eu gosto dele, também. E ele esta louco por mim, claro. Mas ‘no tem sorte mesmo ~ toda hora Ihe acontece uma. E 0 ‘pessoal nao tem pena, casca em cima dele ~ chamam ele de “Vinte e duas desgragas”. Loraknine— Sio eles —chegaram mesmo. Vamos ld na porta, receber. Serd que cla me reconhece? $40 cinco anos... Duntactta ~ Eu vou desmaiar... Eu vou cair aqui... vou. (Ouvem-se carruagens se aproximando da casa. Lopakhine ‘e Duniacha saem rapidamente. O paleo fica vazio. Barulhos nos aposentos vizinhos. Firs, que foi a estagdo buscar madame Liuba, cruza a cena depressa, apoiado numa bengala. Usa uma libré antiga e cartola, Fala sozinho, e ndo se entende nada do que diz. O barulho fora de cena aumenta, Uma voz: “Nao, Por aqui!” Entram Liuba, Ania e Carlota com um ca- chorrinho numa corrente, todos em roupas de viagem. Varia usa um casacizo tem unt lenco amarrado na cabega. Gaié, Pichtchik, Lopakhine e Duniacha vém atrds. Duniacha traz mala e sombrinha. Empregados carregam outras coisas.) Ania - Olha o quarto, mamae! Lembra? Liusa~ (Sorrindo e chorando,) O quarto das criangas. 15 ‘Vania ~ Esté um gelo aqui. Minhas maos estao dormentes. (Para Liuba,) Seus quartos, mamae, o branco ¢o rosa, est30 ‘exatamente como a senhora deixou. Lives ~ Meu quarto de crianga, lindo, meu querido quar- to de brinquedos. Eu dormia aqui, quando era menina, (Chora.) E aqui estou eu, de novo, menina outra vez... Meu irmao! (Beija Gaiév e Varia, Beija 0 irmao de novo.) Varia, vocé nao mudou nada — a minha freirinha, E essa ai... € Duniacha! (Beija Duniacha.) Gattv ~ © trem chegou com duas horas de atraso, Uma notavel administracao. Camtota = (A Pichtchik, falando do cachorro.) Come até nozes. Picurrcurx ~ Nao me digal (Saem todos, menos Ania e Du- nniacha.) Duwtaca ~ Puxa, como nés esperamos! (Pega 0 casaco eo chapéu de Ania.) Avia — Hi quatro noites que ndo durmo, A viagem toda! Fez um frie pavoroso. Duwtactta— Voce foi embora na quaresma, era inverno, se Jembra? Tanta neve e tanto gelo. E agora... Minha querida! (Beija-a rindo.) Como eu senti sua falta, meu anjo, minha alegria. Mas tenho uma coisa pra the contar, nd posso esperar nem mais um minuto.. Avia ~ (Cansada.) Sei, sei. Depois, Duniacha. Duniacua ~ Me pediram em casamento. Anta — (Sem espanto.) Nao dit Dowiacsa — Epikodoy, o guarda-livros, Na Semana Santa, Avta—Ab, Duniacha! Voce! (Endireitao cabelo. ) Perdi todos 5 meus grampos, (Estd caindo de cansada.) Dusnacia—Eu nao seio que fazer. S6 sei que cle meama —esté perdido de amor. 16 Avia - (Olhando para a porta com ternura.) Meu quarto, minhas janelas, sera que fui mesmo embora? Em casa, outra vez! Amanha de manha quando acordar vou correr pelo jardim... Se eu conseguir dormir! Nao dormia viagem toda de tao ansiosa. Duwiactia — Pidtr Trofimoy chegou antes de ontem. Ania — (Alegre.) Pétia! Duwtacna ~ Esta dormindo no pavilhao de banho — se arranjou por la. Disse que nao queria incomodar ninguém. (Otha o rel6gio.) Pediu pra eu 0 acordar, mas dona Varia disse que nao. “Deixa ele dormir”, ela falow, (Varia entra com uma penca de chaves na cintura.) Vanta ~ Duniacha, café! Répido, menina! Mamie esté pedindo. Duntacua — Num minuto, (Sai.) ‘Vana ~ Bom, gracas a Deus, chegaram. Voce voltou pra casa. (Acaricia Ania.) A minha queridinha voltou. A minha adorada, a minha preciosa irmazinha est aqui de novo. Ania ~ Eu nao agitentava mais! Foi horrivel! ‘Vanta ~ Eu sei. Eu sei. Ania - Saimos daqui na Sexta-Feira Santa ~ no trem eu pensei que ia morrer de frio. E Carlota, que nao parava de falar, a viagem toda fazendo aqueles truques com cartas ¢ magicas de circo. Nao sei por que vocé me obrigou a carregar Carlota. ‘Vania ~ Meu amor, eu nao ia te deixar viajar sozinha, Voce tem dezessete anos. Axia—Quando chegamos em Paris, lé estava um frio louco, também nevava. Meu francés é uma vergonha, Mamie mora num quinto andar ~ quando eu entrei tinha uma porgio de franceses, umas senhoras também, e um padre velho com uma Biblia. O lugar estava cheio de fumo, nao ” tem conforto nenhum. Me deu uma pena, eu fiquei tio triste por causa da mamae que me atirei em cima dela, abracei-a com forga, segurei 0 rosto dela € nao queria largar mais. E ela... mamic... sempre t4o boa, me abragou também. Chorou. Vania ~ (Entre lagrimas.) Chega, Ania, chega! Avia — Ela ja tinha vendido a vila em Mentone, estava sem nada, nem um niquel. E nés também, tinhamos apenas 0 dinheiro contado para voltar. Mas mamae nao compreende! Quando desciamos para comer nas estagbes, ela sempre pedia os pratos mais caros e dava aos garcons gorjetas incriveis. Carlota nao fazia por menos. E até lacha! Igual- Zinho! Pede sempre o mesmo que pedimos. E uma despesa assustadora, (Noutro tom.) Nao sei se vocé sabe que Iacha agora é criado particular de mamde: voltou conosco Vania — Eu vio patife. Avia — E por aqui, me diz? Conseguimos pagar os juros da hipoteca? ‘Vania — Com qué? Anus ~ Nada! ‘Vani ~ Em agosto a propriedade vai a leilto. Ania ~ Santo Deus! Loraxine — (Mete a cabeca na porta e bale.) Mé (Desaparece.) Vania ~ (Aborrecimento fingido, sacudindo o puro.) Se eu ego esse diabo, e Loraxnine — (Fora de cena, longe.) M Ania ~ (Baixo, abragando Varia.) Diz, ele ja te pediu em casamento? (Varia nega com a cabega.) Mas ele nao gosta de voce? Nao te ama? Por que vocés nao falam claro, nao se entendem? Que € que estao esperando? Varta — Acho que isso nao vai dar em nada. Ele esta sempre tio ocupado... Nd tem tempo pra mim. Nem me presta 6. 18 atengao. Eu ndo suporto mais essa situagao, prefiro nem vé-lo. Todos falam que vamos nos casar, todos me cumpri- ‘mentam, mas 0 fato € que nao existe absolutamente nada entre nés dois. E tudo um sonho. (Outro tont.} Que broche é esse? E uma abelha? Avia (Lastimando.} Mamie. Imagina o que custou! (Entra em seu proprio quarto e fala num tom infantil, alegremente.) ‘Vocé sabe que em Paris et subi de balao? ‘Vania — © meu amor voltou! Minha irmazinha esté em casa de novo! (Duniacha volta com a cafeteira, comeca a fazer café.) Duntactia ~ (Enquanto prepara.) Olha 0 café. ‘Vanua — (Junto & porta.) Vocé sabe, quetida, 0 dia inteiro, enquanto vou pra ld e pra ci no trabalho de casa, fico so- nhando um jeito de resolver tudo. Sonho com voce casando com um homem muito, muito rico, e ai ett fico tranqilila e livre pra sair em peregrinagdo por Kiev, Moscou; passo © resto da vida de lugar santo em lugar santo... até o fim, (Um pouco de ironia,) Que paz! Ania - Ouve os passarinhos no jardim! Que horas sao? Vania ~ Quase trés, jé, Hora da menina estar na cama, (Entra no quatro de Ania.) Que paz! Tacuia ~ (Entra com um cobertor, em plaid, e wm saco de viagem. Cruza o palco em passos afetadamente delicados.) Se pode? A senhorita permite que..? Dumacia — Mas como vocé esté diferente, Tacha! Quase nao conheci, Mudou muito no estrangeiro. Tact — Hmmmm. E eu, devia Ihe conhecer? Dumactia— Nao sei. Quando voeé foi embora eu era assim. (Mostra altura. E antecipando-se ao reconhecimento,) Du- niacha! Filha do Fiédor Kosoiedov — vai dizer que nao se lembra! Inca ~ H8, hel... (Gira em torno dela.) Ficou uma uva! (Abraga-a sensualmente, Duniacha grita, deixa cair um pires. Tacha sai, correndo.) ‘Vana — (Surgindo a porta, censurando,} Que foi? Duniacita ~ (Choraminga.) Quebrei um pires. ‘Vania ~ Nao faz mal, Dé sorte. Varre e pronto, ‘Ania — (Saindo do quarto.) Pétia esté aqui. E melhor avisar mamie. Vania — Dei ordem pra nao 0 acordarem. Asia~Mas¢ bom ela ficar prevenida, Varia. Pétia Trofimov era. tutor de Gricha, nao se esqueca. Vé-lo assim, sem avi so, pode despertar em mamie tudo que ela quis esquecei (Pausa. Em sonho.)a morte de papai. Nem um més depois ‘meu ir mao Gricha se afogando no rio. Um menino tao lindo, sete anos apenas! Foi mais do que ela podia suportar, ela foi embora, nos abandonou, fugiu sem olhar pra tris, toda essa dor, toda essa culpa pode voltar de repente, seis, anos depois... Hla esté sempre achando que nao tem perdao. Se ela soubesse como a compreendo. Fins — (Entra de casaca e colete brancos. Vai até a cafeteira, preocupado,) Madame ver tomar o café aqui. (Poe luvas brancas.) Est pronto? (Severo, ¢ Durtiacha) Menina! Leite! Dusiactia~ Ah, meu Deus! (Sai correndo.) Firs - (Com preocupacao exagerada em volta da cafeteira.) Duniacha, vocé é uma vale-nada', uma inutil! (Grunhindo 1. Nooriginal Nedotépa nedoti6pa,palavra inventada por Tchékhow depois incorporada a lingua. Composta de ne (nid), “nao”, e donypat, “acabar de cortar ou detalhar” Seria, grosso modo, "mal-acabado” eque, portanto, nto presta para nada, € indi, Achei melhor inventar também, substansivando ‘a expres “vale-nada, O comentariata Baryuchkof considera esta pala ‘que aparece wirias vezes na pega, a chave paraesua compreensio, pois define a tragéia da vida russa naquele tempo. Liuba, Gaty, Lopakhine, Trofimov, Epikodoy, lacha,e até o vagabundo que aparece rapidamente no Segundo ‘Ato, sto todos nedotapas, vale-eada, (S-T-) 20 ‘para si préprio,) Voltando de Paris. Longe, Paris! O patrao também ia muito a Paris... a cavalo, 0 tempo todo. E... carruagem. (Ri.) Vanta ~ Que foi, Firs? Fins ~ (Ouvindo mal.) Trés horas da manha, eu acho. (Ale~ gre.) A patroa voltou, fiz bem em ficar vivo, Esperei tanto! Agora, sim, posso morrer. (Chora de alegria, Entram Liuba, Gaiéy e Pichtchik; este com um casaco comprido de pano leve ecaleas largas, tipo bombacha, enfiadas nas botas. Gaiéy faz mimica de jogar bilhar.) Lupa — Nao, nao foi assim — a bola vermelha estava no canto, a branca é que estava no centro... Gusev — Exato, Enfiei a vermelha e carambolei a... (Vé onde esté.) Ah, minha irma, dizer que ontem mesmo, criangas, nés dormiamos juntos, neste quarto... E jé estou com 51 anos. £ inacreditavel. Loraknine ~ O tempo voa. Garey 0 qué? Loraxsiine ~ © tempo... eu disse... (Gesto de voar com as ‘mios.} voa. Gait - Que perfume de patchuli. (Prende 0 nariz com os dedos.) Ania — Vou dormir. Boa noite, mamae. (Beija a mae.) Liv Vai, amorzinho. (Beija as maos dela.) Esta contente de estar em casa? Eu nem posso acre Avra —Boa noite, titio. Gixt ~ (Beijando-the o rosto e as maos.) Deus te abengoe. Vocé esta igualzinha a tua mae na tua idade, E voce, Liuba! (Ania aperta a mao de Lopakhine e Pichtchik. Sai, fechando a porta atras dela.) Lisa ~ Esta morta de cansada, coitadinha. Prcitrcunc ~ Uma viagem dessas... Vania ~ (Para Lopakhine e Pichtchik.} Bem, cavalheiros... Trés horas da manha! Luvsa — (Rindo,) Varia, vocé sempre a mesma! (Puxa-a e beija-a.) Deixa s6 eu tomar meu café e vamos todos, (Firs colaca uma almofada embaixo dos pés dela.) Obrigada, amigo. Adoro café, bebo dia e noite. Me viciei. Obrigada, meu velho € querido Firs. (Beija-o.) Vanta— Vou ver se ja trouxeram a bagagem toda. (Sai.) Lusa ~ Seré que sou eu mesma, sentada aqui? Dé vontade de dancar, de bater palmas. (Cobre 0 rasto comt as ntitos.) Deve ser um sonho, nao me acordem. $6 Deus sabe como eu amo esta terra, do mais fundo do meu coragao. Do trem quase nao consegui ver nada. As ligrimas. (Chora,) Deixa eu beber meu café. Obrigada, Firs, obrigada, meu velho querido. Que alegria te ver ainda com vida. Firs — Ontem nao. Antes de ontem. Gnitv ~ Cada vez ouve menos. Loraxnine ~ Tenho que ir. Vou pegar o direto das cinco para Karkoy. E uma pena — logo hoje. Queria poder olha- la um pouco mais. Conversar. (Pausa,) Esta maravilhosa. Como sempre. Picurrcinx — Esté até mais bonita. Quando a vi, vestida assim... & la francesa, fiquei com o coracdo batendo. LoraknINE ~ Seu irmao aqui, Leonid Andréievitch, vive dizendo que eu sou um casca grossa, malnascido, um kulak, ansioso por dinheiro. Mas eu nao ligo a minima. Deixa ele falar. Eu quero apenas que a senhora continue a confiar em mim como sempre confiou. $6 desejo que seus belos olhos continuem me olhando como antigamente. Deus misericordioso! Meu pai foi servo de seu pai, e de seu av6 tambémt!, mas a senhora fez tanto por mim que eu esqueci n de tudo isso. Eu a amo como se fosse um parente. Mai uma irma. Ou mais ainda. Livaa—Nao consigo ficar sentada, nao consigo. (Levanta de um salto e anda, agitada, ) Essa felicidade é...eu nao agtien- to, Podem rir de mim, sei que é ridiculo. O mew armério querido! (Beija 0 armario.) A minha mesinha adorada, Gait — A babs morreu enquanto vocé estava fora, Livaa ~ (Senta, coma café.) Eu sei, que Deus a tenha no seu Santo Reino. Vocé me escreveu. Gait - Anastasi também morreu. E Pedro, o caolho, lem- bra? Me deixou, Sentou praca na policia. (Tira do bolso uma caixa de caramelos e chupa um.) Prarronk Minha filha, Dachenka, he manda lembrancas. Lopaxnint — Eu quero the dizer uma coisa muito boa. A. senhora vai ficar muito contente. (Olha o relégio,) Esta na minha hora— vou falar 0 mais répido possivel. Nao preciso Ihe lembrar que o cerejal vai ser vendido pra pagar as suas, dividas, © leilao esta marcado pro dia 22 de agosto. Mas ngio precisa perder 0 sono por causa disso, minha cara amiga, hé ‘uma maneita ficil de resolver tudo, Proponho o seguintes ‘ougam com atencio: estamosa vinte quilometros da cidade, eaestrada de ferro corre quase paralela & propriedade, de acordo? Pois bem se 0 cerejal ea terra que acompanha 0 tio forem cortados em pequenos lotes, os lotes poderao ser alugados para cabanas de veraneio — calculo que isso dara uum minimo de 25 mil rublos por ano. Gute — Mas que absurdo & esse? Isso uma idiotice. Lavsa— Acho que nao entendi bem, lermolai Alexéievitch... Vocé disse... Lopaxntve ~ Como é que eu calculei? Ora, cada veranista pode pagar 25 rublos anuais por hectare. E estou certo de ‘que, sea senhora decidir isso imediatamente, quando chegar 2B 0 outono nao haverd nem um lote de sobra. Eu conhego o assunto. E desde jé lhe dou meus parabéns, a senhora esta salva. O lugar é perfeito, com os banhos no rio. Claro, tudo tem que ser limpo, ajeitado... todas as construgdes velhas, natural, devem ser derrubadas, esta casa também, Alids, (Otha.) j4 nao vale mais nada. Bom, e 0 cerejal. LivBa ~O que € que tem 0 nosso jardim? Loraxsune ~ Vai custar alguma coisa, também. Mas acho que dez homens em dez dias derrubam tudo. Lia — Derrubam? Perdao, meu caro amigo, mas voce nao sabe do que é que esti falando. Se existe alguma coisa verdadeiramente interessante, notavel mesmo, em toda esta provincia, é 0 nosso Jardim de Cerejeiras. Lorakuine — Ora, a inica coisa admiravel no seu... Jardim 0 tamanho. A imensidao. $6 da cereja de dois em dois anos, com as quais ninguém sabe fazer nada e ninguém quer comprar. Gaiev — Nosso cerejal tem um verbete préprio na Enciclo- pédia Russa, Lorakiins~ (Olha o relégio. }Bom, se nao decidirem alguma coisa e nao tomarem providéncias de acordo, 0 cerejal, quer dizer, 0 jardim, toda a propriedade sera vendida em hasta piiblica no dia 22 de agosto. Vinte e dois. Nem 21 nem 23. ‘Tao certo como eu me chamar lermolai Alexéievitch Lo- pakhine. Os senhores decidam. Mas nao tem outra saida, eu juro. Nao tem! Firs — Antigamente, ha quarenta ou cingitenta anos, botavam as cerejas pra secar, punham de molho, faziam conserva, geléia, icor e costumavam até... Gaity — Cala a boca, Firs! Fins Vendiam carrogas de cerejas secas pra Moscou e pra Karkov. Dava muito dinheiro! Mas eram muito boas as 4 cerejas naquele tempo: macias, suculentas, doces, cheirosas. Sabiam preparar, antigamente. Livsa~ E por que nao fazem mais assim? Firs — Desaprenderam. Picrrcink ~ & boa a comida em Paris senhora comeu ri? Lwvna ~ Crocodilo. Prcwrcink Al, isso eu nao acredito! LopaKnINE~ Até pouco tempo atras aqui no campo sé havia senhores e mujiques. Mas agora hé os veranistas. Todas as cidades, as mais pequenas, esto sendo rodeadas por essas, vilas de verao. Em vinte anos havera uma verdadeira massa de pessoas assim em toda parte. Por enquanto, 0 veranista fica s6 tomando ché na varanda, mas daqui a pouco vai querer cultivar uma terrinha e, entao, tudo isto aqui estaré vivo de novo. Gatey ~ (Indignado. ) Uma completa estupidez. Vania — (Entrando com Iacha.) Ah, mame, chegaram dois telegramas pra senhora, (Pega as chaves ¢ abre uma velha cestante, com unt ranger pesado,) Olha. Lava — De Paris. (Rasga, sem ler.) Paris acabou, Gaigv - Vocé sabe quantos anos tem essa estante, Liuba? Sé na semana passada quando eu estava mexendo na gaveta de baixo, descobri a data gravada a fogo: 1803. Cem anos de idade; temos que comemorar este centendrio. E um objeto inanimado mas tem vida: guarda livros. Prcurrcsurx — (Espantado.} Cem anos - quem dirial? Garey — £. Uma coisa admirivel. (Abraga e acaricia a es- tante.) Querida e honrada estante! Gléria a ti que por mais de cem anos tens servido 20s ideais do bem e da justica. ‘Teu silencioso apelo ao trabalho proficuo nunca arrefeceu numa centena de anos, mantendo (Lagrimas. ), em vai # £ como dizem? A 25 geragdes desta familia, a esperanca de um futuro melhor, a féno dia de amanha, e inculcou em nés 0 sentimento da virtude e da consciéncia social, (Uma pausa.) Loraxine — Bom... (Otha o relégio,) Luna ~ Plus ga change, plus ga c'est la méme chose, Leonid. Voce sempre igual. Gattv — (Encabulado.) Carambolo a vermelha no centro e encagapo na direita, Té-ta! Loraxsune ~ (Olhando o reldgio.) Bom, té na hora. Lacua ~ (Passando remédio a Liuba,) Madame, suas pilu- las Picurrcrix ~ Pelo amor do céu, cara senhora, nao tome remédios! Nao fazem bem. Quer dizer; também nao faze ‘mal, entdo pra que tomar? Me da aqui, por favor, estima- dissima amiga, (Pega a cuixa de pilulas, derrama todas nna mao, sopra, poe todas na boca e engole bebendo kvass.) Pronto. (Estarrecimento geral.) Lisa ~ (Alarmada,) Mas o senhor esté louco? Picarcetk ~ Tomei todas, viu? Loraxsine — Que apetite! (Risos.) Fins — Sua exceléncia se hospedou aqui na Péscoa e comeu ‘um barril inteiro de pepinos em conserva... (Continua resmungando,) Lisa ~ O que € que ele esta dizendo? Vania ~ Vive assim resmungando sozinho, ha mais de trés anos. Ninguém liga mais. Tacua ~ C'est la senilité. (Carlota Ivanévna, muito magra, apertada num vestido branco, com um lorgnon pendurado no cinto, atravessa a cena.) Loraxnine ~ Queira me perdoar, Carlota Ivanévna, ainda nao tive aoportunidade de cumprimenté-la, (Tenta beijar-Ihe a mao.) 26 Canora — (Retiranido a mao.) Deixo beijar a mao, logo vai querer beijar 0 cotovelo, depois 0 ombro... ndo, ndo, ndo. Lopaxnne — Levantei com o pé direito, hoje. (Todos riem.) Carlota Ivanévna, pelo menos um dos seus belos truques. Livaa ~ Vai, Carlota, faz uma magical Cantora ~ Estou muito cansada, Loraxnuxe - Bom, daqui a trés semanas estou de volta, (Beija a mio de Liuba.) Até 4, entdo, madame. (Para Gaiév. ) Até 14, (Beija Pichtchik.) Adeus. (Aperta a mao de Varia, depois de Firs e Iacha.) Nao tenho vontade nenhuma de ir. (Para Liuba.) Pense no projeto das vilas. Se decidir alguma coisa € 56 avisar. Levanto facilmente cingitenta mil rublos de empréstimo. Pense seriamente, por favor. ‘Vania ~ (Zangada.} Esta bem, mas vai logo! Pelo amor de Deus! Loraxans — Jé fui. 4 fui. Jé ndo estou mais aqui. (Sai.) Gaiey—Mas como é grosseiro, esse homem! Ooo... perdio. Varia vai casar com ele, é seu prometido. Vania ~ Nao fala bobagem, titio! Lwvsa - Ora, Varia, eu ficaria encantada. £ uma étima pessoa. Picrrcrix —Temos que reconhecer, justica seja feita, é um rapaz de valor. A minha Dachenka também acha... acha ‘que... ela acha varias coisas. (Ronca ¢ logo desperta.} Mas, seja como for, mudando de assunto sem sair do mesmo, minha estimada amiga, ser4 que nao podia me adiantar 240 rublos?... Sabe, vence um pequeno juro, amanha; é de uuma pequena hipoteca, Varta ~ (Assustada.) Na Lvs ~ E verdade, Nao tenho dinheiro algum. Picurrciik— Mas eu sei que aparece. (Ri.) Eu nunca perco a esperanga, Uma vez pensei que estava tudo perdido, que eu 2 Nao! Ela nao tem! estava arruinado e ai (Imita trem.) tchue... tehuc... tchuc... 1d vem a estrada de ferro atravessando minhas terras ¢ eu recebo um dinheirao. Alguma coisa vai acontecer também agora... hoje, amanha, eu sei. Dachenka vai ganhar duzentos mil... comprou um bilhete. Livsa~ Bom, chega de café; vamos dormir. Firs — (Escova a roupa de Gaiév, repreende.) Botou as calgas erradas outra vez! O que é que eu fago com voce? Varta ~ (Suavemente.) Shhhbh! Ania esta dor ido. (Abre 4 janela devagar.) O sol jé nasceu. Nao faz mais frio. Olha, mamiae, as drvores ~ como estao bonitas! Ta ouvindo os passarinhos? E o ar, meu Deus, que perfumado! Gaitv ~ (Abre outra janela.) O jardim esta todo branco, Liuba. Vocé nao esqueceu, Liuba, eu sei. Essa alameda sem fim, reta; reta como uma seta apontando 0 infinito ¢ brilhando prateada nas noites de luar. Diz que lembra, Liuba. Diz que nao esqueceu. Live, ~ (Othando pela janela, para o jardim.) Minha in- fincia, Minha inocéncia. Era aqui que eu dormia, daqui eu contemplava 0 jardim, a felicidade me acordava todas as manhas... O jardim era assim mesmo. Nao mudou nada, (Ri de prazer.) Tudo tao branco, Branco. Oh, meu jardim! Depois desse outono de chumbo e chuva, depois desse inverno mortal, vocé esté jovem de novo, cheio de felicidade; os anjos de Deus nunca te abandonaram... Seeu pudesse tirar de cima de mim esse peso que me esmaga, se eu pudesse esquecer o passado! Garey — Parece impossivel que esse jardim tenha que ser vendido pra pagar nossas dividas. Liua ~ Olha ali! £ a mame andando... toda de branco... Na alameda! Olha! £ ela! Gaitv — Onde? ‘Vania ~ Por favor, mamae. Meu Deus! 28 Luusa — Nao é ninguém. Eu jurei que era. Foi uma visio. Alia direita, no caminho da cabana, aquela rvore branca, ‘toda curvada... Nao é uma mulher? (Entra Trofimov usando um uniforme de estudante, bem surrado, Usa éculos.) Que jardim deslumbrante! Esses montes de flores brancas nesse céu azul. Troriov —Liuba Andréievna! (Ela se volta para ele.) Vim s6 Ihe prestar meus respeitos e saio imediatamente, (Beija-lhe a mao calidamente.) Queira me perdoar. Disseram-me para esperar pela manha, mas eu nao tive a paciéncia... (Liuba otha, perplexa.) ‘Vania — (Através das lagrimas.) £ Pétia Trofimov, mamae. ‘Trortov — Pétia Trofimoy, o tutor de seu filho... Gricha. Sera que mudou tanto? (Liuba abraga-o e chora baixo.) Gusev ~ (Confuso.) Vamos, Liuba, vamos. ‘Vania — (Chorando.) Bu falei, Pétia... Devia esperar até amanha. Lava ~O meu Gricha.., meu menino... meu filho! ‘Varia — Nao se pode fazer nada, mamae. Foi vontade de Deus. Troriwov ~ (Baixo, entre lagrimas.) Pronto... Pronto. Luna ~ (Ainda entre lagrimas.) Por qué? Por qué? Morrer, afogado, assim, s6 com seis anos? Me diz, querido Pétiat (Mais baixo.) O! Ania esta dormindo ali e eu falando alto assim, Esse barulho todo. Mas, Pétia, como vocé ficou feio! Parece um velho! ‘Trorimov— Uma camponesa, no trem, me apontou e disse: “Otha 0 mogo com cara de passa...” (Mimica de enrugado com a mao.) Liusa—Vocé era téo bonito, um estudantezinho todo arru- madinho, e agora, de repente, esta ai, quase careca... de ‘culos! E verdade que voce ainda é estudante? (Caminha em diregio a porta.) 2» ‘TrortMov — Acho que vou ser a vida inteira, Livsa-— (Beijao irmdo e Varia.) Bem, vamos pra cama. Voce também nao é mais crianca, Leonid. Prcercaik ~ (Seguindo-a.) £. Todo mundo ja devia estar dormindo. Aiii! Minha gota. Vou passar a noite aqui, se. Liuba Andréievna, anjo de minh’alma, se pudesse.,. Quem sabe?... Amanha de manha.., apenas 240 rublos. Ahn? Gay ~ Sempre a mesma cantilena, Liusa — Meu caro, eu estou sem dinheiro. Picurcunx ~ Tao pouco! Eu Ihe devolvo logo, garanto. L1usa~ Esta bem, esta bem. Leonid Ihe da. Dé esse dinheiro ace, Leonid. Gaiev—Como nao? Agora mesmo, (Abre os bolsos da calga.) Vem, pega aqui. Tira o que vocé quiser. Lisa ~ Vai, Leonid! O que se ha de fazer? Ble precisa. De- pois paga. (Saem Liuba, Trofimov, Pichtchik e Firs.) Gasev ~ Minha irma nao se emenda ~ continua botando dinheiro fora. O dela e o meu. (Para Iacka.) Vai embora, 6 rapaz; esta cheirando a galinheiro, acu ~ (Mostrando os dentes.} Eo senhor, Leonid Andtie- vitch, continua igualzinho. Ganev ~ O que é que ¢ isso? (Para Varia.) O que foi que ele disse? ‘Vania — (A lacha.) Sua mae esta af, veio da aldeia. Desde ontem de tarde esté ai sentada no galpao dos empregados, esperando pra ver se vocé The concede uma audiéncia, Tacha — Eu nao agiiento mais essa mulher. ‘Vania — Voce nao tem vergonha de falar assim? Tacua ~ Pra que tanta pressa? Nao podia ter vindo amanha? (Sai.) 30 ‘Vania ~ Mamie nao se emenda. Se deixarmos, ela da tudo que tem. Gutev -£. (Pasa) Quando hé muitos remédios pra mesma doenca isso significa que a doenga nao tem cura. Eu pensoe repenso, jd quebrei a cabega de tanto pensar; tenho muitas idéias, muitas, muitas; quer dizer, nenhuma. (Enumera,) Podiamos receber uma heranca de alguém; podiamos casar ‘Ania com uma pessoa muito rica; e podemos it a Taroslav tentar a sorte com a senhora condessa, nossa velha tia. Que, essa sim, & rica de verdade! Vania — (Choro) S6 Deus nos ajudando. Gasév ~ Nao choramingue! Pita com isso, Varia, (Outro fom.) S6 uma pequena dificuldade; titia é muito rica mas no gosta de nds. Primeiro porque minha irma se casou ‘com um advogadozinho, ndo com um nobre. (Ania aparece na porta do quarto.) Quet dizer, se juntou a uma classe inferior. E depois, a conduta dela, de modo geral... bem.. no tem sido precisamente a de uma santa. Liuba ¢ boa, caridosa, uma mulher encantadora, eu adoro ela. Mas, por mais que procuremos achar atenuantes, Liuba tem sido sempre... um pouco... desfrutavel... (Longa pause... imoral. Isso transparece em cada gesto dela. ‘Vansa — (Sussurro.) Ania esta na porta. Gutty — Ahn? Ab! (Pausa.} Que coisa estranba... Acho que uma pestana no meu olho, Humm, Minha vista esta cada ver pior. Antes de ontem, no Forum... (Ania entra.} ‘Varia — Ania, por que voce nao esté dormindo? Anan - Nao consigo, Gay - O minha bonequinha! (Beija o rosto e as maos de Ania.) Minka filha. (Chora.) Vocé nao € minha sobrinha, €meu anjo, é tudo que eu tenho na vida. Diz que acredita em mim! 31 Avia— Acredito, titio. Todo mundo ama e respeita o senhor. Mas... titio querido... 0 senhor fala demais. O senhor tem que falar menos. Ficar calado um pouco. Agora mesmo 0 queé que o senhor estava dizendo da mamae, da sua prépria irma? (Pausa,} Por que ¢ que o senhor disse aquilo? Gaitv Eu sei. eu sei... (Cobre o rosto com a mao de Ania.) Uma coisa horrivel, vocé tem razo. Que horror que eu sou. Deus me perdoe! O discurso que eu fiz. pra essa estante! Que estupidez! O pior é que nem tinha acabado e jé estava vendo todo o meu ridiculo. Vania — E verdade, titio, vocé comeca e... £ melhor nao falar nada e pronto. Avta ~ O senhor vai se sentir bem mais trangailo. Gait ~ Eu prometo — eu me calo. (Beija as mos de Varia e Ania.) Nao falo mais dagora em diante, (Contrafeito.) 56 mais uma palavra ~ sobre nossos negocios. Estive no Fé- rum, quinta-feira, havia muita gente, quase todos amigos, ©, conversa vai, conversa vem, fiquei convencido de que é possivel levantar um empréstimo... contra promiss6rias: pelo menos deve dar pra pagar os juros da hipoteca. ‘Vanta — Ah, se Deus nos ajudasse! Garev ~ Terga-feira eu voltoIé, vou fechar 0 negécio. (Pra Véiria.) Para de choramingar, minha filha, (Pra Ania.) E sua mae vai falar com Lopakhine; nao creio que ele recuse nada pra ela. E, quando voce tiver descansado, acho que deve ira laroslay, visitar a condessa, sua tia-avé, Atacando em trés diregdes a0 mesmo tempo, tac-tac-tac, uma bola ‘6s encacapamos. Os juros, pelo menos, nds pagamos—cos atrasados, (Poe caramelo na boca.) Juro pela minha honra, juro pelo que vocés quiserem ~ esta propriedade nao ser vendida. (Excitacao.) Pela minha prépria felicidade - eu juro, Estendo a minha mao ~ podem me chamar de men- tiroso, canalha, o maior canalha que ja viram se eu permitir 32 que esta casa seja demolida pelo martelo do leiloeiro. Juro. por tudo que tenho de mais sagrado. Axta— (Cala de novo, e bem contente.) Como voc’ ébom, tito, e inteligente! (Abraga-o,) Estou tranguila agora. Calma de novo. E fel Fins— (Entra. Repreende.) Leonid Gaigv, seré que perdeu o respeito a Deus! Quando pretende ir pra cama? Gaitv ~ Estou indo, Estou indo. Vai dormir voc® também, Firs, eu me dispo sozinho. Bom, meninas... hora de nang. Detalhes amanha ~ agora € ir pra cama. (Beija as duas.} Eu sou da geracéo de oitenta. Hoje é moda falar mal dessa época, mas tive que enfrentar muita dureza, sofrer muito, para manter minhas convicgdes. Nao € & toa que 0 cam- ponés me adora. E preciso conhecer 0 homem do campo. E preciso; s6 assim se pode... Awa — De novo, titio? Vania -O senhor acabou de prometer. Fins — (Zangado,} Senhor Leonid Andréievitch! Gait ~ Shh! J vou! J4 vou! Vao deitar. Boa noite. (Vai saindo, seguido por Firs.) Dou a tacada em cheio, na cara da vyermelha, tac! O efeito faza branca carambolar naamarela, tac! A amarela fica na boca da cagapa... (Demora na pon- taria, mimica.) tact Encagapo! Beleza! (Sai comemorando. Comprime a boca, com os dedos, atira um beijo no ar.) Axia— Estou mais tranghiila agora, Nao quero ira Taroslav, no gosto de minha tia-avé, mas estou mais tranqiiila. Tio Leonid me tranquilizou. (Senta.) Varta - Temos que ir pra cama, Uma coisa muito depri- mente aconteceu enquanto voce esteve fora. Na ala dos ctiados. $6 ficaram os velhos, vacé sabe, Efimiuchka, Polia ¢ levstignei — ah, e Karpo, também! Pois eles resolveram deixar uma gente ai, uns vagabundos, passar a noite nos 33 quartos vazios. Eu ndo disse nada, fins ai eles comegaram a espalhar que eu s6 dava pirdo de ervitha para eles comerem; s6! De miseravel que eu sou, entendeu? Ievstignei comecou tudo... “Muito bem”, eu disse cd comigo. “E isso que vocés querem? Nao perdem por esperar.” Mandei chamar levstignei. (Boceja.) Ele vem. “Escuta aqui, velho safado” — eu perguntei - “Como & que voce se atreve...2” (Olha Ania.) Anitchka! (Pausa.) Esté dormindo! Vern, meu amor, vem dormir na cama, (Poe 0 braco em torno de Ania ¢ a conduz pro quarto.) A minha queridinha adormeceu, Vem... Vem... (Vao saindo. Longe um pastor toca uma flauta, Trofimov cruza a cena e, vendo Varia e Ania, para.) Shh! Est dormindo. Vem, meu bem. Awia~ (Meio dormindo.) Estou tao cansada, Varia, olha os sinos! Esta ouvindo? Meu tio querido. Mamie... tio... ‘Vania - Shhh... (Entram no quarto.) ‘Trorimov — (Com ternura.) Ania, meu sol! Minha prima- vera! SEGUNDO ATO (Campo. Um velho santudrio abandonado hé muito tempo, tombado pra direita. Perto de um pogo, enormes pedras que devem ter sido lipides tumulares. Um velho banco. Vé-se 0 caminho que leva é casa de Gaiév. De um lado, muitos lamos, drvores escuras; € nesse ponto que comega o cerejal A distancia vé-se uma enfiada de postes telegraficos e longe, bem longe no horizonte, a silhweta esfumada de uma grande cidade que s6 seré vistvel em dias bem claros, E quase por do sol. Carlota, lacha e Duniacha esto sentadas no banco. Epikodov estd emt pé, perto, tocando alguma coisa sombria ‘numa guitarra, Todos em atitude pensativa, Carlota usa um boné velho; tirou uma espingarda do ombro e esté apertando a fivela da correia.) Cantora ~ (Para si propria.) Eu nao tenho passaporte em ordem; nao sei que idade tenho; e me sinto sempre uma mo- cinha. Quando eu era bem pequena meu pai e minha mae vigjavam de feira em feira e davam espeticulos ~excelentes! Bu dava saltos mortais ¢ fazia outros mimeros. Quando apai e mame morreram, uma senhora alema me pegou ‘eme educou. Eu cresci e virei governanta. Mas de onde eu vvim e quem eu sou, néo sei. Nem quem foram meus pais. Casados nao deviam ser. Sei l4. (Tira wm pepino do bolso ¢ come.) Nao sei de nada. (Pausa.) Eu queria conversar com alguém, mas com quem?... Nao tenho ninguém. Epixopov — (Toca e canta.) Cercado de mil perigos Nao me interessa no mundo Fim Do PRIMEIRO ATO Nem amigos nem inimigos ‘Ah, como ¢ gostoso tocar um bandolim, Duniactts— (Othando um espetho e empoardo a rosto.) Isso €uma guitarra, nao € um bandolim. Erixopov — Para um homem acrisolado pela paixio, é um bandolim. (Canta.) Me diz amada que teu peito ardeu ‘Na mesma chama em que arde o meu. Tacua~ (Canta junto.) Espera amanha, no me responda ja Com outro dia, um outro sol viré. Cantora — Como canta mal essa gente! Shuhhu! Chacais, uuivand Duniactia ~ (Para lacha. ) Concorda, hein? £ uma sorte ter ido ao estrangeirot Iacut— E. Tenho que concordar. (Boceja, acende charuto.) Enixopov ~ Também eu No estrangeiro ha séculos eles ja conseguiram simplificar as maiores complexidades. acta - Também notei isso. Epixopov — Eu posso me afirmar um homem culto, leio toda espécie de livros dificeis, mas nfo encontrei em qual- quer deles a explicagao para a dupla tendéncia a que me inclino: viver ou nao viver, eis a questao. Viver ou meter um tiro na cabega, em suma. De qualquer forma, como a vida é contingente, porto sempre um revélver comigo. Bio. (Mostra.} Cartora~ Pra mim chega. Vou embora. (Poe a espingarda ‘no ombro.) Epikodov, vocé é um homem inteligente ¢ eu diria também assustador~as mulheres devem andar doidas por vocé. Brrr! (Sai,) Esses homens inteligentes sao tao esttipidos; eu nao tenho ninguém com quem falar. Sempre sozinha, ninguém me pertence. Nao tenho amigos nem 36 parentes, ¢ quem eu sou e 0 que € que fago aqui na Terra, €um mistério. (Sai devagar.) Epxopov—Falando sem evasdes, isto é, sem me deixar fugir ‘oessencial do que pretendo exprimir, sinto-me obrigado a ‘um protesto, uma queixa, contra a maneira cruel com que destino me trata, como um furacio brincando impiedoso ‘com um pequeno barco. Se estou enganado, ou de qualquer forma exagero, entio me expliquem, caso possam, por que € que, ao acordar hoje de manha ~ ¢ isso € apenas um pequeno exemplo -, encontrei no meu peito uma aranha caranguejeira de aterradoras proporcoes. (Junta os dois pu- imhas.) Assim! Corro entio a um jarro de cidra para aplacar a minha sede nervosa e, como € natural, dentro do jarro 0 que me olha é um ser obsceno ¢ nojento do género barata. (Pausa.) Jé leram Buckle, o singular historiador ingles? (Pausa,) Sei que importuno, Duniacha, mas poderia the dar uma palavrinha? ‘Duntaca — Fala, homem. Evixopov ~ (Suspira.) Sera que € pedir muito falarmos a s6s? Donactsa ~ (Emibaracada. )Primeiro quer pegar o meu xale em cima do armario? Esta muito imido aqui. Enxopov- Vou apanhar, senhorita. Agora eu sei o que fazer com o meu revélver. (Pega a guitarra e sai tocando.) Tactia — “Vinte e duas desgragas.” Aqui entre nés, € uma desta! (Boceja.) Duniacua — Deus qucira que ele nao se mate. (Pausa.) ‘Ando to nervosa, sinto uma afligao. Eu era bem pequena quando meus patroes me trouxeram pra cé e fui criada aqui, nem sei mais como vivem os camponeses; minhas maos sao brancas; macias como as de uma dama. Eu me tornei delicada, sensivel, tenho medo de tudo. Vivo apavorada. ‘Quer dizer, se voce me enganar, Tacha, os meus nervos nao agtientam. 37 Tacita— (Beija-a.) O, meu pirdozinho! Uma moga nao pode se esquecer que é uma moga, claro! Eu ndo respeito mulher que nao sabe se dar ao respeito...ligeiral Dunlaca ~ Mas... eu estou perdida de amor por vocé, Tacha: voce ¢ to educado, sabe falar de tudo. (Pausa.) Tactia — (Boceja.) E... eu sei. Na minha opiniao, se uma moga se apaixona por alguém € porque nao tem principios... (Pausa.) Nao ha nada melhor do que um bom charuto ao ar livre. (Escuta.) Vem alguém ai... sio os patroes, (Durtiacha 0 abraca impulsivamente,) Vé andando pra casa como se tivesse ido tomar banho no rio. Por af nao, senao voce cruza com eles e vao pensar que marquei um enconiro com voce, Nao quero que pensem isso de mim. Dowtacita ~ (Tossindo baixinho.) O charuto me deu dor de cabega. (Sai. Lacha fica sentado perto da capela, Entram Liuba, Gaiév e Lopakhine.) Lopaxiine —Precisamos nos decidir —o tempo corre contra nds. A questio é muito simples; vao ou nio vao lotear o terre- ‘no? Quero uma s6 palavra, sim ou nao? Uma palavra! Livsa ~ Quem andou fumando esse charuto horrendo? (Senta.) Gaiev — Agora, com a estrada de ferro até aqui, temos a cidade em nossa porta. (Aponta.) Fomos li, almogamos... Jé estamos aqui. Pega a branca de tabela! Carambola a ver- mela... Podiamos ir pra casa jogar uma partidinha. Livea—Tem muito tempo. LoraxitNe—Mas és6 uma palavra. (Implora.)Respondam, por favor, Gaiev ~ (Bocejando.) O que é que ele esta falando? Liusa — (Procura na bolsinha.) Ainda ontem eu tinha um monte de dinheiro aqui, nao tenho mais nada. A pobre da ‘Varia nos alimentando a todos com mingau de leite, por 38 economia, os velhos na cozinha comendo apenas pirdo de ervilha e eu aqui, botando dinheiro fora feito uma louca. (Deixa cara bolsa, espalhando moedas de ouro, aborrecida.) Olhas, caiu tudo! Tact —Permita-me, Eu as recolho. (Recolhe as moedas.) Liusa— Por favor, lacha. (Ele recothe as moedas.) Eo que é que eu tinha que ir almogar na cidade? Aquele restaurante teu, Leonid, é pavoroso, com aquela musica e aquelas toa- thas cheirando a sabio. E voc8? Precisava beber tanto? E comer tanto? Falar tanto? Voce falou o tempo todo, ndo parou um instante! E sobre o qué? Nada. Coisas inteiramen- te fora de propésito. A década de setenta, os decadentes. E com quem? Com os garcons!!! Discutir poetas decadentes com os gargonst Loraxnune ~ E verdade. Gaigv — (Gesto de mao.) Sou incorrigivel — isso eu nao discuto. (Irritado, para lacha que procura uma moeda entre suas pernas,) O que € que vocé esta fazendo ai, rastejando ito..2 Inctta ~ (Ri.) Nao posso conter o riso quando ougo o se- hor falar. Gaitv — Liuba, é ele ou eu. ‘Lau — Levanta dai e vai embora, lacha. Tacna— (Entrega a bolsa ela.) }é vou, madame. (Quase nao consegue conter 0 riso.) Cortendo. (Sai.) Loraxssnse — Deriganov, o miliondrio, pretende gastaro que for preciso para adquirir a sua propriedade. Dizem que vai ‘comparecer pessoalmente ao leilao. Livpa — Dizem, quem? Loraxsive E 0 que se fala na cidade. Gusev — Nossa tia de laroslav prometeu ajuda. Bom, quanto e quando ninguém sabe. 39 Lorakutne — Quanto ela pode mandar? Cem mil? Duzentos? Livsa ~ Ora... Se ela mandar dez ou quinze mil devemos dar gragas a Deus. Loraxsine ~ Olha, eu peco desculpas, nao quero ser ofen- sivo, mas nunca viem minha vida gente tao insensata e tio incapaz quanto o senhor e a senhora! Estou falando, em russo bem claro, que vao perder tudo o que possuem e nao dao 0 menor sinal de que entendem! Lavsa ~ Mas 0 que € que nés vamos fazer? Diz. Lovaxnine — Eu repito a mesma coisa todo dia, Todo dia eu repito a mesma coisa. Os senhores tém — (Silabando.) definitivamente! imediatamente! - que dar permissao para, © cerejal e toda a terra em volta da propriedade, até 0 rio, serem loteados ¢ arrendados para cabanas de veraneio. Isso tem que ser feito agora, nao amanha— o leildo vai comegar! Estd af. Estdo entendendo? Se tomarem essa decisio pode- ao obter todo 0 crédito que precisarem — estardo salvos! Lwwsa ~ Cabanas, veranistas — perdao, mas é tao vulgar. Garey ~ Concordo plenamente. Loraxsune—Eu vou chorar. Eu vou gritar. Eu acho que vou ter uma coisa, Nao agiento mais! Vao me levar a loucural (Para Gaiév.} Sua velhat Gate — Que é que ele disse? Loraxtatve—Velha! O senhor é uma mulher velhat (Levan- ta-se para ir embora.) Lava (Assustada,) Nao, espera ail Espera um pouco, meu caro amigo. Quem sabe, juntos, achamos uma safda? Loraxntne ~ Outra? Duvido muito, Livsa ~ Fique mais um pouco, eu the rogo. Quando voce esti conosco pelo menos é mais divertido. (Pausa.) Vivo sob o terror de alguma coisa, como se a casa fosse me de- sabar em cima. 40 Gatey ~ Tabela na branca, encagapa a doi Livsa ~ Estamos pagando por todos nossos pecados. Lopaxsune~ Pecados, a senhora? Garey — (Poe um caramelo na boca.) Pecado é 0 meu, que chupei minha fortuna em caramelos. (Ri.) Lisa — Quantos pecados! Joguei todo meu dinheiro fora, ‘como uma lovica. Casei com um homem que sé uma coisa sabia fazer bem — dividas. Morreu de champanhe ~ bebeu até o fim. Pra desgraga minha, me apaixonei por outro homem, fui viver com ele e imediatamente tive minha primeira punigdo —o golpe me atingiu aqui mesmo, neste rio... meu filho se afogou ai. E eu fui embora, fugi para o estrangeiro, para sempre, pra nao voltar nunca mais, nunca mais ver este rio, Fechei meus olhos e fugi, desorientada, mas ele veio atris, implacivel, esse homem brutal, Ficow doente em Mentone ¢ me obrigou a comprar uma casa alia doenga dele no me deu descanso, dia ¢ noite, me escravizou, trés anos seguidos, me deixou um trapo,aalma ressecada. No ano passado tive que vender a casa pra pagar dividas, fomos para Paris, ¢ ai ele roubou tudo 0 que me restava e foi viver com outra mulher. De vergonha tentei me envenenar, Tudo tao esttipido, tao humilhante! E, de sabito, me veio a angustia de estar longe da minha terra, ansiei pela Russia, minha casa, minha filha. (Enxuga as ldgrimas.) Deus, Deus, tem misericérdial Perdoa meus pecados! Nao me castiga mais! (Tira um telegrama do bol- so.) Recebi hoje. De Paris. Ele implora perdio, pede que eu volte. (Rasga o telegrama devagar.) f mésica 0 que eu estou ouvindo? (Bscuta) Garey ~E.a nossa famosa Grande Orquestra Judia, lembra? Quatro violinos, uma flauta, um contrabaixo. Livpa ~ Ainda existe? Vamos chamé-la uma noite dessas, dar um baile! 4 Loraxitive ~ (Escuta.) Nao escuto nada. (Canta baixo.) “Por dinheiro um alemao chama até russo de irmao.” (Ri.) Ontem fui a0 teatro — vi uma pega excelente ~ en- sgracadissima, Livpa—Imagino — quando voce acha graca... Voces nao de- viam ir ao teatro ver a vida dos outros — deviam aproveitar melhor o tempo observando mais a sua propria vida. A vida de voces todos ¢ totalmente cinza, vida sem vida. E, para se justificar, falam demais e nao dizem nada. Lorakive ~ E verdade. Sejamos honestos — vivemos uma vida estapida. (Pausa.) Meu pai era um mujique, um cam- pénio, um idiota; nao sabia nada e me ensinou menos. Sua idéia de educagao era me espancar com uma vara quando estava bébado. Por isso sou tio grosseiro e ignorante quanto le. Nao estudei nada. Minha letra é péssima, me dé até vergonha de escrever na frente dos outros. Escrevo como um porco. Lisa ~ Voce precisa é casar, meu velho amigo. Loraktine—E, Acho que sim. Lua ~ Devia casar com nossa Varia, Uma moga exce- lente. Loraxsne - Acho que sim. Live, ~ ‘Tem um bom genio, trabatha 0 dia todo, e.. mais importante, gosta de vocé. E vocé gosta dela hd muito tempo. Lopate —Eu nao digo que nao. £ uma boa moga. (Pausa.) Gaiev ~ Ab, eu contei que me ofereceram um lugar no banco? Seis mil rublos por ano. Livsa— Voce num banco? $6 se for este! (Pausa. Entra Firs trazendo um capote.) Fins ~ Por favor, meu senhor, veste 0 capote; esté muito ‘umido, a Gast ~ (Vestindo.) Voce abortece, hein velho?! Fis — O senhor nao pode fazer isso. Jé de manha saiu sem me dizer uma palavra. (Examina-o atentamente,) Lupa ~ Voce envelheceu, Firs. Fins ~ Eu vou logo buscar, madame. Lopaxnine ~ Voce envelheceu!, ela disse. Pars — £ porque eu ja estou vivo hé muito tempo, Quando ‘les quiseram me casar, 0 seu papai nem era nascido. (Ri.)E quando veio a abolicdo eu jé era primeiro criado de quarto. Mas € claro que eu fui contra, nao aceitei a aboligao: fiquei com 0 meu amo. E com a minha ama. Eu me lembro de todo mundo festejando, todo mundo muito contente. Mas contente por qué? Ninguém sal Loraxsine— A vida era muito melhor, naquele tempo. Nao faltava chicote pra ninguém. Fins - (Sem ouvir.) Pois é! Os mujiques conheciam seu lugar e os senhores conheciam muito bem o deles. Hoje em dia esta tudo tdo confuuso que a gente nao sabe mais quem é ninguém. Garey — Chega, Firs! Tenho que ir cidade amanha. Prome- teram me apresentar a um general que pode me conseguir um bom empréstimo. Loraktuine ~ Nao acredito, E, mesmo que consiga, vai dar pra pagar 0s juros e a hipoteca? Sabe quanto & Livsa — Esté delirando. Esse general ndo existe, (Entram Trofimov, Ania e Varia.) Garey — Ah, nossas meninas! Ania - Olha mamie ali no banco. Lusa— (Terna.) Vem ca, vem ca. Minhas filhinhas! (Abraga as duas.) Se vocés soubessem como eu amo voces duas. Senta aqui. Vocé aqui. (Blas sentam.) Assim. Lopaxitive ~ Nosso estudante perpétuo sempre atrés das, senhoritas. ‘Trorimoy — Est incomodado? Lopaxtine ~ J4, j4 vocé faz cingiienta anos e continua estudando. ‘Trorimoy — Vocé podia a0 menos nos dispensar as suas observagies idiotas. Lopaxnne ~O reitor se zangou? ‘Trortmov — Por favor, nao insista! Lopakine ~ (Ri.) Sabe que eu gostaria ce ter sua opinigo a meu respeito? (Tensao no ar.) Taortmov ~ (Depois de uma relutdncia natural.) Eu vou Ihe dar a minha opiniao. lermolai Alexéievitch: voce & um homem rico, logo ser4 milionario, Logo, vocé é muito ul a sociedade humana, (Uns rsos.) Assim como a pior fera é muito util & natures, (Ligeira pausa. Outros risos) pois devora tudo o que encontta pela frente, (Faz pausa. Outros risos. Ele ergue a mao mostrando que tao acabou.) convertendo tudo em excrementos. (Gargalhadas. Varia e Lopakhine nao participa.) Vania — Acho vocé melhor quando fala sobre astronomia., Fale um pouco. Livsa — Nao. Vamos voltar ao assunto de ontem. Trorimov —O que é que era? Gaitv — O orgulho humano, Trorimov ~ £. Falamos muito e nao chegamos a conclusio alguma. A senhora vé 0 orgulho como algo importante, mistico.E, do seu ponto de vst, talveztenha razao, Mas seolhamos a coisa simplesmente, sem floreios, que orgulho € esse, que sentido tem? Fisiologicamente, o homem é mal, construido; intelectualmente, é retardado e de modo geral, 44 é grosseiro, brutal e profundamente infeliz, De que se ra hiena? E preciso acabar com a auto-glorificacao da espécie e.. botar maos & obra! Trabalhar. Que é 0 que interessa- Gusev ~ Seré? No fim todos morremos. Trorivov - Quem sabe? O que é que quer dizer morrer? Talvez o homem tena cem sentidos e, quando morrem os cinco que nés conbecemos, 95 comecem a viver. Liusa ~ Que idéia brithante, Pétia. Lopaxnune ~ (Fronico.) Brilhantina. ‘Trosimov — A humanidade progride, luta pela perfeisao. Tudo que agora esté fora de nosso alcance um dia send compreensivel e trivial; s6 que ¢ preciso trabalhar, ajudar ‘com toda nossa forga aos que procuram solugoes. Aqui na Rissia, por enquanto, sio muitos os que falam, poucos os aque trabalham, Osintelectuais que conhego nao procuram wnada, nao fazem nada; ficam doentes so com a idéia de qualquer esforgo, Intitulam-se humanistas, mas tratara os Tiados como inferiores e os camponeses como animais. Nao sabem coisa alguma, nao querem aprender nada, no Iéem nada a sério e nuunca fazem nada. © que falam sobre iéncia é ridiculo e seu conhecimento de arte pouco mais que zero. Sio todos muito sérios, usam caras profurndas, discutern assuntos impenetraveis, fazem especulagdes fi Josoficas incontestes,e nao veer que em volta, todos ~ 95 por cento do povo ~ vivem como selvagens, se insultando estracalhando & menor provocagao, Comem lixo podre, dormem na imundicie e na umidade, trinta ou quarenta ‘no mesmo quarto cheio de percevejos, fezes, fedor € con- seqiiente degradagao mora). E evidente que todos nossos belos discursos s6 tém uma fungio ~ enganar aos outros ‘ands mesmos. Me digam onde é que estao essas creches de que se fala tanto? E as bibliotecas? Fa habitagao popu Jar? Essas coisas s6 existem em novelas ~ na vida real eu 45 nunca vi, Eu s6 vejo a desordem, a sujeira, a vulgaridade e a preguiga asiatica, Eu temo e desprezo as caras austeras € 08 que falam com solenidade. Todos fariamos muito mais, calando a boca. Lopauine — Vocé sabe; eu levanto as cinco da manha e trabalho da manha & noite. E tenho dinheiro, meu e dos, outros, passando pelas minhas maos 0 tempo todo—o que me permite conhecer as pessoas que me cercam, ver de que é que sao feitas. E s6 a gente comegar a fazer alguma coisa para verificar como so poucas as pessoas honestas ¢ decentes, Algumas vezes passo as noites em claro pensando: “Oh, Deus. Tu que nos deste essas florestas imensas, esses camposa perder de vista, esses horizontes infinitos, erraste no ser humano ~ deviamos ser gigantes!” Livna ~Vocé quer gigantes? Gigante s6 é bom em contos de fada, Na vida real sto assustadores. (Epikodov cruza ao fun- do, tocando a guitarra. Liuba, pensativa.) La vai Epikodov. Anta ~ (Pensativa.) LA vai Epikodov. Gate — O sol se ps, amigos. ‘Trorimoy ~ Saiu de cena. Garty — (Nao alto, mas, de qualquer forma, declamatério,) © natureza, divina natureza, tu brilhas em tua luz eterna, bela ¢ indiferente. Tu, a quem chamamos mae, trazes em tia vida ea morte. Crias! E destréis! Tu... Vasua — (Suplica.) Titio! 2 Ania — Outra vex, titi ‘TroriMov ~ Por que nao tenta a amarela na cagapa do centro... Gaity—Nao digo mais nada. Bico fechado. Prometo. (Todos agora estao sentados, pensando. Ninguém se move. A tinica coisa audivel é 0 resmungo de Firs. Subitamente hd wm som A distincia, como vindo do céu—o som de uma corda— como 4 de harpa — que se rompe, morrendo aos poucos, ao longe, tristemente?) Livaa — Que foi isso? Lopaxnne — Nao sei, Talver 1 longe, na mina, um cabo {que rompeu. Mas foi muito longe. Gaity ~ Pode ter sido um passaro. A garca pia assim.. Trorimoy ~ Ou uma coruja. Lausa-~ (Estremiece.) Nao sei por que, mas... foi tao horrivel. (Pausa.) Fins Foi assim mesmo antes da desgraga... a coruja piou. Eo samovar assobiou e tossiu 0 tempo todo, Garey ~ Que desgraga? Fins— A aboligdo. (Pausa.) Livea~ Vamos, pessoal, esta na hora. £ quase noite. (Para ‘Ania, Tem lagrimas nos olhos, meu amor. Que é que foi? (Abraga-a.) Anta — Nada, mamae. Nada. ‘Trortov—Temos companhia, (Um viajante surge, decapo- tee boné brancos, ambos velhos. Estd ligeiramente bébado.) ‘Vuyanre-~Permitam-me, Indo por aqui eu dou na estagio? Gait ~ D4. O caminho é aquele. Viyaxre~Sensibilizado eagradecido, (Tosse.) O tempo est soberbo. (Declanna,) Meu irmao! Meu irmao de sofrimento! Vena, irmao, me siga atéo Volga. Que todos ougam nosso gemido de dor. (Para Varia com gesto agressive.) Mademoi- elle, conceda a um russo faminto ainsignificancia de trinta copeques. (Varia grita assustada.) [0 som de wma cacaba metic caindo nas vasidoes da estepe ¢ uma apres da infnca de Tbekow, quando cle pssva ferias num lugar ‘Bbtuament primitive, no Donete O 0m vinha do fondo de wma das ries decared da rego ~ mss panei virdo clu, Tebov soso as deuma ver (NT) 47 Loraxtine — (Com raiva.) Voce est abusando da sua miséria, Lwusa — (Precipitando-se.) Toma, pega aqui! (Procura na bolsa.) Nao tenho trocado. Toma, leva esta de ouro. Viajante ~Sensibilizado eagradecido. (Sai, ziguezagueando, indo para si préprio. Todos riem um pouco, do susto.) Vana ~ (Assustada.) Eu vou embora ~ quero ir para casal Oh, mamie, 0s criados nao tém o que comer ¢ a senhora dando ouro aos vagabundos. Liupa ~ E, eu no tenho conserto, Sou até ridicula. Quan- do chegar em casa vou entregar a vocé tudo o que tenho. Lopakhine, vocé me empresta mais algum. Lovaxuine —£ um prazer. Luvaa— Vamos, amigos, esté na hora. E... Varia, jd combi- namos 0 teu casamento. Meus parabéns. ‘Vania — (Entre ldgrimas.) Mamae, com essas coisas nao se brinca, Lopaxnine ~“Ofélia, recolhe-te a um convento.” Gaiev - Minhas maos esto comichando para segurar um taco, Loraxiine ~ “Ofélia, ninfa, em tuas preces, lembra meus. pecados.” Livna~ Vamos, esté quase na hora de jantar. ‘Varia — Que susto ele me deu! Meu coragao ainda esta batendo. Loraxime ~ Senhores ¢ senhoras, permitam-me lembrar pela iltima vez: 0 cerejal vai ser vendido no dia 22 de agosto. ‘Nao se esquegam! Nao se esquecam! (Saem todos, exceto Trofimov e Ania.) Avia - S6 mesmo com aquele vagabundo assustando Varia € que nés conseguimos ficar sozinhos. Obrigada, vagabundo! 48 Trorimov ~ Varia tem medo de que a gente se ame. Fica atris de nds 0 dia todo, nao nos larga. Claro, aquela cabe- cinha burguesinha nio pode perceber que estamos acima do amor. Eliminar 0 que ¢ mesquinho e transitério, o que nos impede de ser livres e felizes, esse deve ser 0 sentido € 0 objetivo da nossa vida. Avante! Caminhamos de ma- neira irresistivel em direcdo a mais brilhante estrela que ja brilhou na historia, Avante! Nao fiquem para trés, meus companheiros. Ania — (Bate palmas.) Como vocé fala bem! (Pausa.) Aqui esti... hoje... tao maravilhoso! Trortmov ~ £, Um tempo deslumbrante! Anna - O que é que vocé fez comigo, Pétia? J4 nao gosto mais do cerejal como gostava antes. Eu o amava como. como tuma pessoa... querida, Achava que nao havia outro lugar no mundo como 0 nosso cerejal. ‘Trortmov — Ania, 0 nosso cerejal ¢ a Russia inteira. Uma terra imensa e bela — cheia dos lugares mais maravilhosos. (Pausa,) Jé pensou, Ania?! Teu avd, teu bisav6, todos os teus antepassados eram donos de escravos, possuiam ser- ‘vos, eram proprietarios de gente, de almas vivas. De cada cereja, de cada cerejeira em todo o cerejal, de cada folha, de cada tronco ha almas humanas que te espiam. Voce no ouve as vores? Oh, é horrendo! Teu cerejal me apa- vora. Quando & noite eu 0 atravesso, as cascas das drvores brilham tenuemente na escuridao, as velhas cerejeiras pa- recem transpirar os séculos passados retorcidas por visdes horrendas. E. Estamos atrasados pelo menos duzentos anos, nao acompanhamos o tempo, nao progredimos nada nao conhecemos nem nosso pasado. Nao fazemos coisa alguma; filosofamos, choramingamos 0 nosso imenso tédio ebebemos vodca. £ claro que para viver no presente temos, primeiro que redimir nosso passado, romper com ele. E's6 49 faremos isso com muito sofrimento, lutando. E com um trabalho brutal, incansivel. Compreende, Ania? Anta ~ A casa em que moramos hé muito tempo ja nao nos pertence. Eu vou embora daqui. Eu te prometo, Pétia. ‘Trostov—Se voct tem as chaves da casa, joga-as no pogo € vai embora, livre como o vento. Ania — (Extase.) Livre como o vento. Eu vou. ‘Trortmov —Acredita em mim, Ania, Confia em mim! Nao tenho nem trinta anos, sou jovem, ainda sou um estudante, ‘mas ja vivi muita coisa. Assim que o inverno chega eu passo fome, fico doente, amedrontado, pobre como um mendigo. J4 passei por muitos altos e baixos do destino. Mas minha alma sempre esteve, noite e dia, cheia de inexplicaveis an- tecipagdes de felicidade, Ania. Ania, eu sei que vai chegar. Anta ~ (Pensativa,) Alua esta nascendo. (Ouve-se Epikodov tocando, na guitarra, a mesma cangao dolente. A lua sobe, Longe, nas drvores, Varia esta procurando Ania.) ‘Vania — (Longe, Fora de cena} Ania! Responde, Ania! Trortmov ~ E, A lua, (Pausa.) Bis a felicidade ~ ela vem vindo. Se aproximando pouco a pouco. Estou ouvindo os passos, E se nunca a encontrarmos, se nunca a conhecer- ‘mos, seré que importa? Outros a encontrarao. Vania — (Fora de cena) Ania. Onde esta voce? ‘Trorimov — Varia, outra vez. (Com raiva.) £ revoltante! Ania ~ Vamos descer pro rio. Lé esta lindo. ‘Trortmov — Vamos la. (Saem.) ‘Vania ~ (Fora de cena) Ania! Ania! Fim Do SEGUNDO ATO 50 TERCEIRO ATO (Sala de estar, separada de um salao maior por um arco. Um lustre esta acesso. Ouve-se a grande orquestra judaica, ‘mencionada no segundo ato. E noite, No salao danga-se urna quadritha. A voz de Simeon Pichtchik: “Promenade & une paire!” Os dangarinos entram na sala de estar aos pares. Pri- meiro Pichtchike Carlota, depois Trofimov e Liuba, logo Ania um funcionério dos Correias, em seguida Varia ¢ o chefe da estacdo, os outros atrds, Varia chora baixinho e enxuga os olhos enquanto danga. No iltimo par esté Duniacha, Osdan- sarinos atravessam a sala, Pichtchik comandando: “Grand romi balancez!” “Les cavaliers a genoux et remerciez vos dames!” Firs, de casaca, traz dgua mineral numa bandeja.) Presrrenix ~ (Entrando com Trofimoy.) O meu mal ésangue demais; ja tive dois derrames. Dangar pra mim é perigo- 30, mas, como lé diz 0 outro, quem vai na chuva € pra se molhar. E s6 se vive uma vez. No mais sou forte como um cavalo, Meu pai, aliés — que Deus o tenha ~, gostava de confirmar isso dizendo — como piada, é claro! — que nds todos, os Semionov-Pichtchik, descendemos diretamente de Incitatus, aquele cavalo que Caligula nomeou senador romano. (Senta.) Mas eu nao tenho dinheiro, ai é que est o busflis, E cavalo com fome sé pensa em alfafa, (Ronca e logo desperta,) Eu, aqui onde me vé, s6 penso em dinheiro. ‘Trortwov — (Examinando-o.) Nao & por estar na sua pre- senga, mas ha realmente alguma coisa de cavalar na sua aparéncia. Prcxtrcntx — Nao pense que me ofende. E um animal nobre, o cavalo. E vale muito dinheiro, o cavalo. (Som de bilhar sl no aposento ao lado. Varia aparece no arco que dé para 0 salao maior.) ‘Trorimov — (Cagoando.) Madame Lopakhine! 0 madame Lopakhine! Vania ~ (Com raiva.) Moco com cara de passa! ‘Trorimov — Cara de passa sim, madame ~ e com muita honra! Picurrcnix - Ja pensei. Cantota- (Dé 0 baralho a ele.) Embaralha. Mais. Bom. Dé aqui, estimado senhor Pichtchik. Ein, zwei, dreif No bolso de cima! (Pichtchik procura.) Dentro! Prcerrcanx — (Encontra a carta.) Oito de espadas! Perfeito! (Deslumbrado.) & inacreditavel! Cartora ~ (0 baralho na mio espalmada.) Depressal Diz } acarta de cima. Vasua ~ (Deprimida, ) Contratam os misicos; eu quero ver quem vai pagar. (Sai,) ‘Trortov ~ (Para Pichtchik.) Se a energia que 0 senhor gastoua vida inteira procurando dinheiro para pagar juros tivesse sido empregada no sentido certo, o senhor teria reformado 0 mundo. Pictrrcinx — Nietzsche, o filésofo, homem notavel, colossal intelecto, diz, em seus escritos, que todo mundo tem direito, a fabricar dinheiro falso. ‘TrortMov — Nao diz, o senhor lé Nietzsche? Picitcrk — Imaginal... Dachenka leu pra mim. Mas, na situaco em que me encontro, acho que vou seguir 0 con- selho, Depois de amanha tenho que pagar 310 rublos — até agora $6 arranjei 130, (Pae a mo no bolso.) Onde ¢ que estio? (Chora.} Todo o meu dinheiro! (Alivio.) Ahhhht Tinha esquecido. Costurei no forro. Fiquei gelado! Liua - (Entra com Carlota cantarolando uma Lesginka.) Leonid esta demorando tanto! O que é que ele ficou fazendo. na cidade? (Para Duniacha.) Duniacha, oferece cha pros miisicos. (Duniacha hesita,) Ché, Duniachal ‘Trortmov — As de copas. ‘Canora —Adivinhou. (Mostra a carta.) E 0 senor Pichtchik? PrcrrrcHk ~ Rei de espadas. Cartota — (Descobre a mesma carta.) Adivinhou. (Mostra aLiuba.) Livaa ~ Dois de paus! Cantora ~ (Descobre a mesma carta de cima.) Adivinhou. (Bate palmas, 0 baralho desaparece.} Que tempo esplendo- roso esté fazendo! Uma vor resunina — (Vindo do assoalho, misteriosa.) “E verdade, madame, esplendoroso mesmo!” Canora — Gosto de pessoas assim, gentis, cordatas. Voz ~ “Eu também admiro muito a senhora.” Cutre pa esracho ~ (Aplaudindo com entusiasmo.) E uma admirdvel ventriloqua! Bravo! Pourcmk — (Encantado, } Nunca vi nada assim! Sem truque! Caraa cara. Encantadora Carlota Ivanévna, estou simples- ‘mente apaixonado pela senhorita. ‘Cantora — Apaixonado? (Dé de ombros.) O que é que 0 senhor entende de paixio, guter Mensch, aber schlechter ‘Musikant? (Pichtchik dé ar de no entender.) ‘Trorimov — (Traduz baixinho no ouvido.) Bom homem, mas isico execravel. (Bate no ombro dele.) Responde, cavakio! ‘Trorimov ~ Pode ser que o leilo nem tenha acontecido, Lina — Acho que nao era bem ahora de... orquestra! Baile, Bom, deixa. (Senta. Canta baixinko.) Cantora ~ (Mostra a Pichtchik um baralho,) Pensa numa carta, 52 3 ‘Cantora Atencio, por favor! Mais um truque. (Pega wma ‘manta em cima de ura cadeira.) Bis aqui uma manta de excelente qualidade: esta a venda! (Sacade a manta.) Quem da mais? Fagam 0 lance, senhores! Picrrciix — (Com admiragao.) O que seré agora? Cantora~ Eins, zwei, drei! (Levanta a manta que deixou cair até 0 chavo. Atrés de manta esta Ania, que faz uma pequena reveréncia, corre para a mide, beija-a e corre para salao no ‘meio dos aplausos.) Livna ~ Bravo! (Aplaude.) Bravo! Cantor —Outra ver! Bin, zwei, drei! (Levanta a manta por trds da qual esté Varia, que cumprimenta o priblico.) Prcarrcanx — (Entusiasmado,) E realmente... ora, sim senhor! Cartora ~ Fim. Terminou o espeticulo. (Atiraa manta em cima de Pichtchik, faz reveréncia, sai correndo pro salio.) Prcurciix — (Corre airds dela.) Que patifinha! Maravilha de... criatu... (Sai.) Livea ~ E Leonid nao chega. Nao entendo o que ele ficou fazendo na cidade, esse tempo todo! A essa altura o leilao jd acabou. Ou a propriedade foi vendida ou nao foi. Por que nos deixar tanto tempo nessa Ans Vania ~ (Tenta consolar.) Titio comprou tudo de novo, tenho certeza. Trortmoy ~ (Irdnico.) Eu também nao tenho a menor davida. Varta — (Irritada com o sarcasmo.) Nossa tia-avé autorizou titio a pagar tudo e transferir o resto da divida pro nome dela. Fez isso por Ania. Estou certa de que Deus vai nos ajudar deixando titio fechar o negécio, Lipa ~ Minha tia [aroslav mandou quinze mil rublos pra botar a propriedade no nome dela propria porque néo confia em nds. Mas isso néo dé nem pra pagar os juros, s4 (Bsconde o rosto nas maos.} © meu destino esta sendo de- cidido hoje, o meu destino. Trorimov ~ (Irritando Véria.) Madame Lopakhine! Vania ~ (Danada,) Estudante eterno. Expulso da univer- sidade duas vezes! Lavpa~ Nao fica t2o zangada assim, Varia. £ s6 uma brin- cadeira. Deixa pra I4, Seja madame Lopakhine, se quiser. Lopakhine é um mogo direito, um homem interessante. Se no quiser, nao quis. Ninguém vai te obrigar, querida! ‘Vania ~ Mas eu nao gosto de brincadeira, mamie, porque encaro a coisa muito seriamente. Ele é um bom rapaz, eu gosto muito dele. Liuna — Pois casa com ele. Nao sei o que é que voce esta esperando. ‘VAnta — Mas, mamie, eu ndo posso me oferecer, nao é? Ha dois anos que todo mundo me fala sobre isso. Mas ele nao, Oucala ou brinca. Eu compreendo. Esta cada vez mais rico, cada vez mais ocupado com os negécios, nao tem tempo pra mim. Se eu tivesse dinheiro, mesmo pouquinho, cem rublos que fosse, largaria tudo, ia embora pra bem longe. Prum convento. Trorimov — Que beatitude! Vania (Para ele.) Um estudante devia ter... juizo! (Em tom Adelicado, chorando, ) Como voc8 ficou feio, Pétia. Como est velho! (Para Liuba, sem chorar.) Mas eu nao posso viver sem. trabalho, mamae; tenho que estar ocupada o tempo todo. Tacna~ (Entra, Quase sem conter o rio.) Epikodov quebrou uum taco de bilhar! (Sai.) Vania —O que é que esse Epikodov esti fazendo aqui? Quem The deu licenga pra jogar bilhar? Eu nao consigo entender essa gente. (Sai,) 88

Você também pode gostar