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O GUARDA DA PRAIA

Maria Teresa Maia Gonzalez

Para a minha mãe


e também para o Luís,
poeta e bicho do mar

Índice

Capítulo I - CARTA DE DESPEDIDA ......... 7


Capítulo II - O PRIMEIRO ENCONTRO ...... 11
Capítulo III - A CONCHA ................ 17
Capítulo IV - O CONVITE ................ 23
Capítulo V - A AULA DE MERGULHO ........ 27
Capítulo VI - UM CESTO DE MAÇÃS ........ 32
Capítulo VII - UMA GAIVOTA NA NOITE .... 37
Capítulo VIII - NO POSTO MÉDICO ........ 43
Capítulo IX BICHOS DO MAR .............. 49
Capítulo X - O VELHO DA MATA ........... 57
Capítulo XI - A TROCA .................. 67
Capítulo XII - NA ESQUADRA ............. 73
Capítulo XIII - PALAVRAS æ BEIRA-MAR ... 81
Capítulo XIV - A VISITA ................ 87
Capítulo XV - UMA FOGUEIRA NA PRAIA ... 101
Capítulo XVI - A DUNA SECRETA ......... 108
Capítulo XVII - PASSADO E FUTURO ...... 117
Capítulo XVIII - O INCÊNDIO ........... 123
Capítulo XIX - CONTANDO ESTRELAS ...... 127
Capítulo XX - LIÇÃO DE GEOGRAFIA ...... 137
Capítulo XXI - NO FUNDO DO MAR ........ 141

Capítulo I

CARTA DE DESPEDIDA

Foi hoje, À hora mais pesada do dia, quando o Sol mergulhava


inteiro na linha recta do mar, de olhos a fecharem-se para a
Terra, que eu soube a verdade. O Dunas foi-se embora. Partiu
finalmente para a América, como ele próprio previra há um ano
atrás. E eu fiquei sem o meu sol.

* * *

Quando cheguei À casinha branca entre as palmeiras, um


pescador de rosto sulcado pelas marés arrastava as redes para
o quintal, com o pouco À-vontade de proprietário recente.
Viu-me passar o portão branco e parou a olhar-me, como se
tivesse sido apanhado em flagrante.
- Vinha para a Dona Sara? Olhe que já cá não mora, senhora,
foi-se no primeiro de Julho. Deu-lhe as febres, sabe....

- E o rapaz? - perguntei, já quase sem esperança.


- O neto teve de se ir daqui. Já se vê, um garoto sozinho
não se governa. A avó tinha-o criado, agora o ppai que o
acabe, lá nas Américas. Que ele parece que até vingou por
aquelas terras, casou com uma amaricana, o garoto é que não
sei como se haverá com a língua de trapos que aquela gente
fala.
Senti o coração descer-me aos pés. Encostei-me ao portão até
recuperar o alento para perguntar:
- E a mãe?
- Essa continua na cidade. Com ela não me ralo eu, que
sempre soube governar-se. Dizem que trabalha no turismo,
naquelas coisas das viagens e dos hotéis, mas... Olhe que nem
veio ao enterro da velhota que Deus tenha. Bem sei que já não
lhe era nada, mas, c'os diabos, tomou-lhe conta do filho estes
anos todos. C'os diabos! A velha tinha lá as suas manias, mas
curou muita gente da aldeia. Muita gente! O cemitério estava À
cunha, só visto! - Depois, antes de entrar em casa, olhou-me
longamente e inquiriu: - A senhora não lhe era nada.
- Não. Nada...
- Então, com sua licença, vou fazer a janta. Até depois.
entrou, fechando a porta atrás de si. Eu continuei
estupidamente parada, colada ao portão, como se esperasse a
todo o momento uma rectificação qualquer. Pus-me a olhar de
longe as paredes da casa, À procura dum sinal, um aviso, e foi
então que me lembrei de ir ao sítio.

* * *

O local secreto do Dunas, segundo me recordava de uma


expedição que ambos fizéramos, ficava atrás da duna grande, na
ponta mais distante da ilhota. Corri para lá, de sapatos na
mão, com uma certeza súbita de que algo me aguardaria. A
correria cansou-me e deixei-me cair pesadamente na areia seca.
O Sol estava a pôr-se, trémulo e triste como nunca.
Ajoelhei-me atrás da duna e desatei a escavar desenfreadamente
no lugar dos picos, as plantas agrestes que sinalizavam o
esconderijo. De vez em quando, parava e olhava o Sol. Parecia
que teria de estar tudo acabado antes do fim do dia. Como uma
sina. Uma maldição. Voltei a desgrenhar a areia até as mãos me
doerem. Por fim, senti uma dureza uniforme e lisa de madeira.
Mergulhei ambas as mãos e icei o cofre. Soprei os grãozinhos
da tampa e vi que tinha a chave na fechadura. O coração voltou
a descer-me aos pés gelados. Então, levantei-me e aproximei-me
da beira-mar com a caixa nas mãos. Do Sol apenas se via uma
nesga laranja a tracejado, um aceno. Respirei fundo e abri a
caixa. Uma folha de caderno dobrada, sem envelope, um búzio,
duas penas de galo-da-Índia, uma lupa e uma perna de
estrela-do-mar.
Pousei o cofre e sentei-me na areia fria e húmida. Desdobrei
a folha e li:

Querida concha, Não posso avisar-te e tenho de ir, não dá


para esperar que chegues. Vou voar para a América! Ter com o
meu pai. Amanhã, apanho a camioneta para a cidade e depois vou
ver os aviões, no aeroporto.

9
O homem que veio buscar-me disse que eu vou num dos grandes,
com dois andares, cinema e coca-cola que não se paga. Deixo
aqui o cofre, que agora é para ti. As coisas que aqui estão
também são para ti. Levo a tua concha comigo. Sei que vai dar
sorte. Agora, vou conhecer a América. Depois, hei-de voltar e
contar-te tudo. Prometo. Não te esqueças de mim e acaba o teu
livro depressa para eu o ler quando voltar.
Um beijo do

Luís

Voltei a dobrar a folha e guardei-a no cofre, que fechei À


chave. O mar chamou-me bem perto dos pés. Olhei em frente até
me perder na linha azul ao fundo, À procura do sol que se
escondera. Definitivamente.

10

Capítulo II

O PRIMEIRO ENCONTRO

Quando aqui cheguei, faz hoje precisamente um ano e um mês,


o meu único propósito era o de encontrar a paz e o sossego de
que precisava para acabar o meu romance. Uns amigos haviam-me
falado da aldeia com as casinhas brancas a espreitar o mar, e
a ilhota onde só se chega de barco. Pareceu-me ideal,
sobretudo por se tratar de um local ainda pouco invadido por
turistas estrangeiros, sempre tão estridentes e volumosos, a
tirar-nos as vistas e os lugares nos restaurantes. Por sorte,
a casa que aluguei era praticamente isolada, com um terraço
generoso a poucos metros da praia dos pescadores, que eu
frequentava bem mais do que a própria casa. Pouco ventoso no
Verão, o quadrado branco murado era uma varanda sobre o mar;
uma varanda donde não se vislumbravam vizinhos, e os poucos
transeuntes que passavam na estradinha empedrada ficavam atrás
do muro, incógnitos, como eu queria ser.

11

Neste alheamento total do resto da aldeia, depois de


contemplar as vistas do terraço, pus a chave À porta, entrei e
pousei a mala e a máquina de escrever no vestíbulo.
A casa, quase nua, tinha uma frescura que me arrepiou. Na
cozinha, apenas o essencial, bem como no quarto e na sala.
Tive a sensação estranha de que aquelas paredes rugosas e
brancas me conheciam já; de facto, por um momento, senti-as
coladas À minha roupa, como se o pequeno corredor se
estreitasse para me dar um abraço de boas-vindas, uma
manifestação de apreço pelo meu regresso. O silêncio era
húmido e experimentei um assobio. A casa, receptiva,
devolveu-me o gracejo. Foi nesse momento que percebi que não
poderia ser outra casa. Nunca resisti a um eco, desde os
tempos mais recuados da infância e logo me imaginei a trinar
árias famosas pela manhã, sem ter de me conter por qualquer
razão.
Nesse primeiro dia, fui eu e a casa. Um reconhecimento
mútuo, uma troca de olhares fácil como quem revê um velho
amigo que sempre nos acompanhou dentro da memória. Deitei-me
sem jantar, sem sequer desfazer a mala. Retirei as cortinas da
janela do quarto e estendi-me sobre a cama de madeira pintada,
de cor consumida pelo sopro ácido do mar.

* * *

Na manhã seguinte, já perto do meio-dia, levantei-me com o


bem-estar de um recém-nascido feliz. O Sol entrava branco pela
janela despida, e o terraço amplo e vazio chamava-me. Saí
descalça e respirei a brisa salgada. Uma fome que há muito
não sentia lembrou-me que não tinha o que comer em casa. Meia
hora depois, estava na aldeia, À procura de uma mercearia.
Soube então que a praça, o sítio ideal para todas as compras,
já nada tinha para vender Àquela hora e tive de contentar-me
com meia-dúzia de latas e pacotes que o merceeiro, de olhar
crítico, me colocou no saco. Depois de pagar, perguntei-lhe
timidamente onde poderia alugar uma bicicleta. Riu-se.
- Vai ficar por muito tempo? - perguntou, de testa franzida.
- Ainda não sei.
- Bom, então, se quer mesmo uma bicicleta - e voltou a
rir-se -, tem mas é de ir À cidade.
A cidade ficava a cinquenta quilómetros, e a minha fome
reclamava um almoço com a maior brevidade. Assim, voltei a pé
para casa, cozinhei À pressa uma sopa instantânea, esverdeada,
dessas que sabem a comida de astronauta, comi um pacote
inteiro de batatas fritas (que já estavam fora do prazo) e saí
para apanhar a camioneta que me levaria À civilização.
Ao fim da tarde, cheguei finalmente a casa, mais morta que
viva, depois de pedalar desde a estrada poeirenta onde a
camioneta me deixara. Deixei a bicicleta na varanda e entrei
em casa, pronta para desfazer a mala e tomar um duche. Depois
do banho, uma moleza quente apoderou-se de mim e fui deitar-me
para descansar um pouco.

* * *

Só acordei na manhã seguinte, com os primeiros raios de Sol


a entrarem-me sem filtro pelo quarto.

12 13

Subitamente, ouvi um ruído na varanda e levantei-me de um


salto. Da janela vi então, para meu espanto, um rapaz loiro,
magro, de pele doirada, que montava a minha bicicleta em
grande euforia, fazendo manobras de circo. Na minha
indignação, não fui capaz de sair para a varanda e ralhar-lhe.
A sua descontracção era visível. Pedalava de peito aberto para
o vento, ziguezagueando pelo terraço como se o mundo inteiro
lhe pertencesse. Em dado momento, a velocidade que atingiu
impossibilitou-o de travar a tempo e saltou o muro, deixando a
bicicleta caída no terraço, de rodas a girar em falso. Saí a
correr do quarto, descalça e de coração apertado. Espreitei
por cima do muro branco e vi-o lá em baixo, já em pé, a
sacudir a poeira das calças de ganga. Dando finalmente pela
minha presença, olhou-me de baixo e, ao contrário do que eu
imaginava, não deu mostras da menor perturbação. Contudo,
vendo que ele sangrava do braço esquerdo, rapidamente me
esqueci da minha indignação perfeitamente justificável e
perguntei-lhe, debruçada no muro:
- Está a doer muito?
- Não - respondeu a sorrir, mas acenando afirmativamente com
a cabeça.
- Vem cá para eu ver isso melhor - ordenei-lhe.
Quando o vi entrar em casa, percebi imediatamente que já ali
tinha estado, mas preferi não fazer perguntas. Fui ao armário
buscar o estojo de primeiros-socorros, lavei-lhe o braço
ferido, desinfectei-lho com álcool e coloquei-lhe um penso com
mercurocromo.
- Au! Arde!
- O que arde cura.
- Eu vou tirar isto. A minha avó depois põe-me aqui uma
pomada que ela faz - explicou.
- Não senhor. Deixa-te estar com o penso. Estás vacinado
contra o tétano?
Riu-se. O riso mais lindo que eu alguma vez tinha visto.
Branco. Inteiro.
- Uma vez tomei uma injecção no posto. Fui com os outros lá
da escola. Mas a minha avó não achou bem, porque disse que eu
não estava doente e proibiu-me de ir outra vez levar injecções
ao posto.
Fiquei perplexa.
- A tua avó é... médica?
- É - respondeu sem hesitar. Depois, reflectiu um pouco e
acrescentou: - Quero dizer, ela sabe curar as doenças todas.
Uma vez até curou a professora, que andava sempre com dores de
cabeça e tinha uns ataques.
- Ataques?...
- Sim, ficava com muito calor assim de repente e tinha de se
sentar, senão caía.
- E a tua avó curou-a como?
- Não sei, mas a professora ficou boa. Até deixou de gritar
e tudo!
O Sol já ia alto no céu e eu ainda de pijama.
- Tenho de ir arranjar-me - disse-lhe. - Se quiseres, podes
esperar-me para tomarmos o pequeno-almoço.
Voltou a rir-se, fitando-me os pés descalços.
- Eu não tenho fome.
Dito isto, saiu para o terraço e só voltei a vê-lo dois dias
mais tarde.

14 15

Capítulo III

A CONCHA

Tinha acabado de tomar o indispensável café depois do almoço


e preparava-me para retomar a escrita. Sentada no terraço,
coloquei a folha na máquina de escrever e, talvez porque o
calor me toldava as ideias e o café ainda não fizera efeito,
recostei-me na cadeira de lona e fechei os olhos, inspirando a
brisa salgada. De repente, uma sombra arrefeceu-me a cara e,
quando abri os olhos, ali estava de novo o invasor de
propriedade alheia, descontraído como sempre.
- Que é que vais escrever ali? - perguntou-me, apontando a
máquina.
Endireitei-me na cadeira, franzi o sobrolho e respondi:
- Uma história, ou melhor, a continuação de uma história que
comecei há muito tempo.
- Uma história sobre quê?
Não tive vontade de contar-lhe, afinal, ainda mal nos
conhecíamos.

17

- A história de uma mulher que vivia sozinha num prédio alto


de uma cidade escura.
Torceu o nariz em total desaprovação.
- Porque é que não escreves antes sobre o mar ou sobre uma
viagem?
- Ouve,... como é o teu nome?
- Tenho dois: Luís é o que está no bilhete, Dunas é como
todos me chamam.
- Ouve, Dunas...
- Se preferes esse é lá contigo. Eu também não me importava
de me chamar Homero.
Sorri.
- Conheces a história de Homero?
- Foi a minha avó quem ma contou. Ela sabe muitas histórias.
Se quiseres, podes ir pedir-lhe para te contar uma e depois
escreve-la na tua máquina.
- Obrigada, mas eu costumo escrever apenas as histórias que
me saem da cabeça, percebes?
- Só que Às vezes não saem, não é?
Era perspicaz, aquele Homero improvisado. E atrevido também.
- Olha, Dunas, eu tenho mesmo de trabalhar. Não estou de
férias. Preciso de sossego, não me leves a mal.
- Eu fico só a ver.
Não pedia nada. Não se desculpava. Apenas participava.
Comecei então a olhar o imenso branco entalado no rolo negro
e, por mais que tentasse, não conseguia que os dedos
acertassem nas teclas empedernidas da imaginação.
- Era melhor escreveres sobre o mar - insistiu, descarado.
- Eu não sei quase nada sobre o mar, Dunas. Nem sequer gosto
especialmente de ondas, peixes e praia, entendes? - retorqui
num tom de voz zangado.
- Então que vieste aqui fazer? - perguntou, olhando-me com a
maior estranheza.
- Vim procurar paz e sossego, mas, pelos vistos, não estou
com sorte nenhuma...
Afastou-se em silêncio e saltou o muro sem olhar para trás.
Quis chamá-lo, pedir-Lhe desculpas pelos maus modos, mas a
moleza que o calor me emprestava deixou-me num mutismo parado
de cacto. Decididamente, aquela não era a hora ideal para a
escrita. O ar estava carregado de luz que banhava a folha de
papel e me encandeava as ideias. Levantei-me e fui À cozinha
fazer uma limonada. Quando regressei ao terraço, aproximei-me
do muro, de copo na mão, e pus-me a olhar a praia. Sozinho no
mar, o Dunas era um peixe amarelo a deslizar veloz pelas
águas, furando as ondas intrepidamente. Pareceu-me até
impossível que estivesse a respirar, pois a cabeça mantinha-se
submersa por tempos infindáveis que me faziam suster a
respiração. Os rochedos ali tão perto e ele debaixo de água,
avançando sem hesitações. O coração apertou-se-me de angústia
e resolvi ir sentar-me para não me afligir mais.
Cerca de uma hora mais tarde, ao levantar a cabeça do
teclado, estremeci. O meu visitante aparecera novamente sem se
fazer notar, saído do nada, de cabelo a pingar na pedra do
terraço.
- Ainda só escreveste isso?! - indignou-se.
Confesso que corei.
- Hoje não estou muito inspirada. Há dias assim...

18 19

Então, sem pedir licença, dirigiu-se À porta da casa, entrou


e, pouco depois, estava de volta com um copo de água na mão.
Achei que era altura de pôr cobro Àquela falta de cerimónia.
- Ouve lá, não te ensinaram a pedir antes de fazer?
- De fazer o quê? - inquiriu com o ar mais calmo do mundo.
- Por exemplo, antes de entrar numa casa que não é tua.
- Mas esta casa já foi minha. Só que foi há muito tempo...
E sentou-se no chão, ao lado da minha cadeira, a beber o
resto da água. Os olhos voltaram-se para baixo e eu tive a
sensação de ter tocado num assunto proibido. Contudo, a
curiosidade foi mais forte do que eu:
- Foi tua quando?
- Quando eu vivia com a minha mãe e o meu pai. Ainda era
pequenino - respondeu sem tirar os olhos do chão.
Olhei-o então com uma ternura acabada de nascer. Tive
vontade de fazer-lhe uma festa nos cabelos molhados, mas
contive-me por algum receio estúpido. Foi nesse momento que
reparei numa concha que ele trazia presa aos calções por um
cordel cor de nada.
- Essa concha aí foste tu que a apanhaste?
- Fui, uma vez que andava com o meu pai a passear na praia.
Algo despertou a minha atenção naquela concha que me parecia
tão familiar. Levantei-me de um salto, corri a casa, entrei no
quarto e retirei da gaveta da mesa-de-cabeceira o meu fio de
prata com a concha que a minha mãe me dera quando eu tinha
dez anos. Voltei com o fio para o terraço, mas encontrei-o
vazio. Procurei o Dunas por todo o lado, chamei-o repetidas
vezes, mas em vão. Desanimada, voltei a sentar-me em frente da
máquina e, inesperadamente, comecei a escrever com a alma na
ponta dos dedos.

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Capítulo IV

O CONVITE

A terceira aparição deu-se quase uma semana mais tarde,


quando eu chegava a casa, vinda das compras que fizera na
aldeia. O Dunas estava sentado no parapeito da janela do meu
quarto, de pernas a balouçar. Viu-me chegar e deixou-se ficar
onde estava, sem nada dizer. Pousei o garrafão de água mineral
e o saco da mercearia na cozinha e dirigi-me ao quarto.
- Essa tua mania de entrares sem pedir licença está a
começar a irritar-me - disse-lhe em tom crítico.
Ignorando as minhas palavras e sem tirar os olhos do
terraço, observou:
- Já é a terceira que aqui passa. E esta é das gordas.
Aproximei-me da janela e espreitei o terraço. Uma lagartixa
enorme repousava colada ao muro branco. Arrepiei-me.
- Há muitas por aqui, há?

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- É o que cá não falta - respondeu, orgulhoso. - E osgas e


louva-a-deus e salamandras, centopeias...
- Estou a ver. Mas não costumam entrar nas casas, pois não?
- balbuciei a medo.
- Só Às vezes - disse, parecendo lamentar o facto. - No ano
passado, consegui apanhar uma aranha de cruz, nas costas da
minha cama! Deu-me imensa sorte! Há muito tempo que não via
nenhuma. Pode ser que este ano apareça outra. Depois trago-ta.
Senti o coração gelar-me no peito.
- Bom, agora salta daí e vem ajudar-me a arrumar as compras
que fiz.
Seguiu-me até À cozinha e juntos colocámos tudo no armário
de madeira. Depois, ofereci-lhe um chocolate que tinha trazido
e fomos para o terraço.
- Tu também gostas de chocolate?! - estranhou.
- Muito. Como um por dia, pelo menos...
- E a tua história?
- Vai andando - retorqui, colocando a máquina sobre a mesa.
- Eu cá gosto é de histórias do mar - lembrou-me.
- Já sei, já me tinhas dito, Dunas. Mas o meu livro não
trata do mar.
- É pena... Nesse caso, não vou lê-lo.
Olhei-o sem saber que pensar daquela admoestação. Foi então
que reparei novamente na concha presa À presilha dos calções
por um cordel. Puxei do fio que trazia e mostrei-lhe a minha
concha de prata.
- É igual À minha - comentou sem dar importância À
constatação.
- Deixa ver.
E, tirando o fio, encostei a concha À dele. Eram
impressionantemente iguais. O mesmo tamanho, a mesma forma. Só
o material era diferente. Sobressaltei-me:
- É espantoso!
- Não. Não é - foi tudo o que disse.
Eu, que sempre me ri das coincidências contadas tão
entusiasticamente pelos outros, não conseguia deixar de me
surpreender, confirmando vezes sem conta a total semelhança
entre as duas conchas.
- É incrível!
O Dunas, porém, já estava absorto, olhando o mar.
- Queres ir dar um mergulho das rochas? - desafiou-me.
- Hoje, não. Desculpa.
- Porquê?
- Porque tenho de continuar o meu livro e porque ainda não
fiz a digestão do almoço e ainda porque...
- Porque tens medo. Morres de medo de mergulhar - concluiu
sem dó nem piedade.
- Também por isso - retorqui com um certo embaraço.
- Mas não foi isso que eu te perguntei. Eu disse Porquê,
porque tu disseste Desculpa. Desculpo o quê?
Confundiu-me por um instante.
- Pedi desculpa para que não ficasses ofendido comigo,
entendes? No outro dia...
- Está bem. Noutro dia eu ensino-te.
- A mergulhar?! - exclamei, quase em pânico.
- É fácil, vais ver. Toda a gente sabe. Na minha escola até
os mais novos sabem dar mergulhos. Só que alguns não chegam ao
pé das rochas...

24 25

- Ouve lá, Dunas, a propósito, tu gostas de ir À escola?


- De ir e de vir. De ficar lá é que nem por isso.
Ri-me.
- Castigam-te?
Ergueu o sobrolho.
- Só a minha avó, Às vezes. Mas não dói nada, porque ela já
tem pouca força.
- Mas, mesmo assim, tu gostas mesmo muito dela, não é?
Levantou-se devagar e foi até ao muro, encher o peito de
vento. Dispus-me então a retomar a escrita, porém,
subitamente, o Dunas aproximou-se e inquiriu:
- E tu? De quem é que gostas mesmo muito?
Levantei a cabeça na sua direcção, respirei fundo, pensei um
pouco e, quando ia finalmente responder-lhe, o meu esquivo
visitante afastou-se e saltou o muro.

26

Capítulo V

A AULA DE MERGULHO

Levantara-me cedo, na esperança de poder aproveitar as


primeiras horas da manhã para escrever. Quando cheguei perto
da minha mesa de trabalho, no terraço, encontrei uma folha
presa no rolo da máquina. Estava escrita. Tirei-a e li:
Estou na praia. Se vieres, ensino-te a mergulhar.
Parei a olhar a folha que ainda segurava nas mãos. Depois,
aproximei-me do muro e espreitei o mar. O Dunas estava sentado
numa rocha, de costas para o areal, fitando sabe-se lá que
nuvem. Uma brisa mais ácida fez-me arrepiar. Por um lado,
morria de medo, como ele tão rapidamente percebera, por outro,
não queria decepcioná-lo nem deixá-lo a pensar que eu era
covarde. Olhei a máquina de escrever e achei que a escrita
poderia ficar para depois da aula de mergulho, se conseguisse
sobreviver...

27
Fui vestir o fato de banho e desci para a praia. Quando lá
cheguei, não vi ninguém. Olhei em todas as direcções e, quando
estava quase a vir-me embora, vislumbrei uma cabeça a flutuar
lá longe, atrás da formação das ondas. Acenei-lhe na esperança
de ser vista. O Dunas reparou em mim e nadou em direcção À
beira-mar. Deslizava com uma rapidez olímpica, um À-vontade
que me deixava sem fôlego.
- Anda! - gritou-me, de braço no ar, perto da rocha que
parecia um vulcão.
Um arrepio invadiu-me novamente, mas não era o momento de
recuar.
Entrei lentamente na água, tentando adaptar-me À temperatura
(gélida, Àquela hora), esforçando-me por acalmar o coração,
que desvairava de indignação. Quando perdi o pé, comecei a
nadar bruços (o estilo em que melhor me desenvencilhava) e
fui-me aproximando da rocha, tentando a todo o custo evitar a
rebentação forte, que me assustava cada vez mais. O Dunas
sentou-se sobre o vulcão e esperou-me, com cara de troça.
- Mais depressa! Pareces uma alforreca... - E ria a
bandeiras despregadas.
Lá cheguei por fim ao rochedo e agarrei-me o melhor que
pude, embora os limos o tornassem escorregadio como pele
viscosa.
- E agora? - inquiri, temendo o pior.
- Agora, vês-me mergulhar duas vezes com atenção. A seguir,
sobes para aqui e atiras-te - declarou, como se se tratasse da
coisa mais simples do mundo.
O coração começou a bater novamente num ritmo alucinante. O
Dunas levantou-se e, sem vacilar, assumiu a posição correcta
para um mergulho de cabeça - esticou os braços, elevou-se nos
ares entre a névoa da manhã e fendeu o azul a pique, como um
golfinho, sem fazer saltar uma única gota de água. Observei-o,
impassível, tentando registar todos os seus movimentos, para
não fazer má figura quando chegasse a minha vez. O segundo
mergulho foi idêntico ao primeiro, mas tão rápido que quase
não pude seguir-lhe a trajectória. No fim da sessão de
demonstração, colocou-se ao lado da rocha e incitou-me:
- Vá, sobe! Viste como se faz, não viste?
Acenei-lhe afirmativamente, embora estivesse consciente de
que iria ser um autêntico desastre. Contudo, subi a custo para
o rochedo, apoiei os pés com toda a força para não escorregar
e, quando me senti finalmente direita, parei, sustendo a
respiração. Aquilo era uma perfeita loucura. Eu só podia estar
demente. Não havia sequer um banheiro que pudesse vir
salvar-me, caso tudo desse para o torto, como era de prever. O
Dunas, sempre vigilante, leu-me os pensamentos e quis
tranquilizar-me:
- Vá lá! Eu estou aqui!
Fechei os olhos, respirei o mais fundo que pude, tão fundo
que senti o mar inteiro invadir-me a alma. Recordo que rezei
mentalmente uma oração curta que inventei na altura e estiquei
os braços. No instante seguinte, estava debaixo de água,
lutando para voltar À superfície. Quando consegui abrir os
olhos, senti um ardor intenso no peito e na barriga.
- Que grande chapão! - riu-se o meu instrutor. - Entraste
mal. Agora tens de repetir.
Estava demasiado atordoada para falar e nem ousei
contrariá-lo ou ralhar-lhe pela falta de cortesia.

28 29

Nadei até À rocha, subi com uma força nova (nascida toda do
despeito que acabara de sentir), coloquei-me em posição e
saltei. Sem preparação psicológica. Sem me dar tempo a
qualquer arrependimento.
- Foi um bocado melhor - disse-me, quando me viu irromper
das profundezas. - Mas os pés não estavam juntos.
Irritei-me:
- Olha lá, Dunas, não achas que já chega de críticas?! Eu
não sou como tu. Nunca fiz isto na vida! Só saltei de pranchas
em piscinas municipais e foi há muito tempo, tanto que já nem
me lembro.
Porém, o Dunas já não ouviu a última frase, mergulhou
novamente e aproximou-se de mim por baixo de água. Depois,
ergueu-se como um peixe voador e deu uma gargalhada:
- Grande cagaço, hã? Nem abriste os olhos nem nada...
Era verdade, mas eu tinha esperanças de que ele não tivesse
reparado.
- Nunca abro os olhos debaixo de água. Faz-me impressão -
expliquei.
Resolvemos então regressar À praia, mas, quando olhei o mar,
sobressaltei-me. As ondas tinham aumentado consideravelmente e
era preciso passá-las para chegar À areia.
- Dunas! - chamei-o, em pânico.
- Que foi? - perguntou, sem parar de nadar.
- Tu já viste aquelas ondas?...
- Que é que têm?
Perante aquela desfaçatez, dispus-me a segui-lo, agora em
crawl para ver se não o deixava afastar-se demasiado. A
passagem pelo Bojador foi um autêntico pesadelo. Engoli tanta
água que me doía a garganta. Chapadas de espuma varriam-me os
cabelos, e eu sem tempo para parar e poder exprimir todo o
horror que me congelava as ideias.
Cheguei À praia exausta. Atirei-me para a areia molhada e
deixei-me ficar, como um náufrago. De todos os meus sentidos
só funcionava a audição. Ouvia o chiar das ondas e o riso
gostoso do meu instrutor, numa tal mistura de vozes que se
tornava impossível distingui-las. Talvez fosse apenas o
próprio mar a rir-se de mim.
Quando finalmente consegui levantar-me, vi o Dunas ao longe,
a vasculhar na areia seca. Foi então que olhei o mar que eu
havia heroicamente atravessado. Pareceu-me estranhamente
calmo. Talvez a turbulência que eu sentira tivesse sido
somente fruto do meu medo. E, subitamente, senti-me vencedora
ao olhar o rochedo em forma de vulcão. No momento seguinte,
uma mão quente poisou no meu ombro molhado.
- Pega, é para ti - disse, entregando-me um búzio. - Não
foste lá grande coisa, mas, pelo menos, tentaste. Amanhã
ensino-te outro salto. Da rocha do pontão.
Peguei no búzio e, instintivamente, colei-o À orelha.
- É mudo este búzio - reclamei, provavelmente para me vingar
dos risos que ouvira.
- Os búzios não falam, ora!
- Claro que falam. Conheço búzios que falam pelos cotovelos
- retorqui, olhando-o a sorrir. - Este é que deve ter apanhado
tal susto que perdeu a voz...

30 31

Rimo-nos ambos e deitámo-nos sobre a areia a aquecer o


corpo.
- Já não tens medo? - perguntou-me em voz baixa, de rosto
quieto, paralelo ao céu.
- Que te parece?
- Que sim, mas que não vais confessar...

32

Capítulo VI

UM CESTO DE MAÇÃS

Tinha acertado nos condimentos, as amêijoas estavam uma


delícia. Como a noite caía quente e sem pressas, resolvi
jantar no terraço, saboreando tranquilamente o meu petisco
(que me levara horas a preparar), regado com um vinho branco
que trouxera da aldeia. De repente, uma mão atrevida puxou-me
os cabelos presos com um elástico.
- Já jantaste, Dunas?
- Já. Lá em casa janta-se cedo. - Depois, fitando o meu
prato, exclamou, profundamente indignado: - Tu comes amêijoas!
- Sim, onde é que está o mal? Não há cá nenhuma lei contra o
consumo de amêijoas, ou há?
- Não, infelizmente, não há...
- Infelizmente porquê? São óptimas! Não queres provar?
- Não! Eu nunca comeria os meus amigos!

33

Pousei o garfo e a faca.


- Os teus amigos?!
- Sim, os seres do mar são meus amigos. Nado todos os dias
ao pé deles. Eles não me comem. Achas que poderia comê-los?!
Estava realmente chocado. Senti-me embaraçada.
- Nunca tinha pensado nisso, Dunas. Na cidade onde vivo
come-se de tudo, percebes? Até carne de minhoca, em
hamburgers. Ninguém pensa assim como tu.
- É pena.
- Por outro lado - continuei, arranjando coragem para acabar
o meu pitéu -, temos de comer alguma coisa, não é?
- Mas não os bichos do mar!
Falou com tal autoridade que comecei a sentir-me enjoada.
Afastei o prato para um canto da mesa e peguei numa maçã.
Quando ia a perguntar-lhe se também queria, já o Dunas estava
a dar uma dentada ruidosa na maçã mais verde da taça.
- Fazes sempre isso! É de propósito, não é?
- O quê?
- Antecipas-te sempre. Nunca pedes nada.
Afastou-se lentamente e foi encostar-se ao muro, roendo a
maçã, de olhos postos no mar. Os cabelos loiríssimos
voavam-lhe sobre a testa.
- Está mar-chão. A Lua deitou-se na água. Nem se mexe! Está
aqui está a dormir. Chiu...

* * *

Na manhã seguinte, quando entrei na cozinha para fazer o


pequeno-almoço, encontrei, sobre o parapeito da janela, um
cesto cheio de maçãs bravo-de-esmolfe, as minhas preferidas,
que só raramente apareciam na cidade. Aproximei-me e descobri,
debaixo do cesto, um desenho a lápis de cera que representava
a nossa praia, com o farol ao fundo, a escarpa e os rochedos;
sobre as águas, um Sol imenso e alaranjado esborrachava-se no
azul, encharcado de mar e luz.
Procurei o Dunas, descalça, pelo terraço, mas em vão. Tive
vontade de pedir-Lhe desculpas pela minha atitude quando o
vira, na véspera, tirar uma maçã da minha mesa sem pedir
licença. Senti-me minúscula perante aquela prova de
generosidade. O Dunas não parava de dar-me lições e eu, bicho
urbano e individualista, tinha muito que aprender. Ele era,
tive a certeza naquele momento, a pessoa indicada para me
ensinar as coisas mais importantes da vida; as coisas que eu
desaprendera com o passar dos anos e com a falta de
solidariedade tão comum entre os que vivem nas grandes
cidades.
Naquele dia, não voltei a vê-lo. Não queria, por certo, que
eu lhe agradecesse, ou talvez tivesse previsto que eu me
sentiria encabulada. De qualquer forma, foi melhor assim, pois
não saberia mesmo que dizer de um gesto que me reduzia À
pequenez de um micróbio. Um micróbio absolutamente anónimo.

34 35

Capítulo VII

UMA GAIVOTA NA NOITE

Dois dias após ter recebido a oferta das maçãs e do desenho,


o Dunas visitou-me pela tardinha. Apareceu silencioso, como
sempre, trazendo os calções do costume e a concha presa na
presilha por um cordel cor de nada. Eu estava a escrever o meu
romance e acabei a frase sem que ele me interrompesse. Depois,
olhei-o com um sorriso e agradeci:
- As maçãs são óptimas e o desenho já está pendurado no meu
quarto. Gostei muito. Obrigada...
- Ainda falta muito para acabares o teu livro?
- Sim, falta bastante.
- E pensas ganhar muito dinheiro?
- Com a venda do livro?
- Pois.
- Não sei, Dunas. Mas não escrevo só por isso, embora o
dinheiro faça falta a toda a gente.

37

- O meu pai, uma vez, mandou dinheiro da América, dentro de


um envelope, com uma carta para a minha avó. E depois ainda
escreveu outra vez, há um ano, e também mandou dinheiro, só
que a minha avó achou que o melhor era pô-lo no banco, na
vila. É dinheiro americano, vale muito! Mas eu não preciso, a
minha avó dá-me tudo.
- E tu, costumas escrever ao teu pai?
- Não... Só escrevi uma vez, no Natal. Mandei-lhe uns
versos, só que não rimavam e acho que ele não deve ter gostado
porque não disse nada quando escreveu À minha avó.
Olhei-o com vontade de abraçá-lo, aquela mesma vontade que
já sentira e ainda não conseguira concretizar. Limitei-me a
sorrir e perguntei-lhe:
- Tu tens irmãos, Dunas?
- Tenho uma meia... - Riu-se. - Meia-irmã. Vive com a minha
mãe. - E acrescentou, erguendo o sobrolho: - Ainda é uma
criança.
- Ah...
- E tu?
- Eu tenho quatro irmãos, mas também nenhum vive perto de
mim. Olha lá, Dunas, tu tens amigos, assim... da tua idade?
- Tenho de todas as idades. Uns são verdes e um bocado
moles, outros são duros e redondos, outros têm escamas,
outros...
- Referia-me a rapazes e raparigas.
- Ah, esses andam lá na escola comigo. Jogamos À bola nos
recreios.
- E não há assim nenhum especial?
- Especial?
- Sim, com quem converses mais.
Reflectiu por um instante e retorquiu:
- Não. Espera... havia um, o Filipe, mas foi-se embora para
outra terra quando ainda estávamos na primária. Às vezes
almoçávamos os dois na cantina.
- E nunca tens saudades dele?
- Saudades? Não. Já não é importante. E agora tu estás
aqui...
Sorrimos. Quanto a amigos tudo estava dito. O presente, para
o Dunas, era muito mais importante do que o passado. Então,
olhou a folha que estava na máquina de escrever e comentou:
- Essa máquina não é lá muito tua amiga, não.
- Porque é que dizes isso?
- Porque não escreve as coisas importantes.
Olhei a folha meia escrita e, franzindo a testa, inquiri:
- Que coisas?!
- Então tu não viste o que deu na televisão?
- Sabes que não há nenhuma nesta casa, Dunas, e eu não vou
ao café só para ver televisão.
- Mais uma maré negra... Aquilo do petróleo que fica no mar
quando um navio vai ao fundo. E não foi longe daqui! Qualquer
dia...
De facto, era importante. Envergonhei-me de nunca ter tocado
no assunto em nenhum dos meus livros, tal a expressão séria do
meu interlocutor.
- Isso é um problema grave, Dunas. Mas pode ser que nunca
chegue À tua praia. Esperemos que não!
- Não, que eu vou estar lá todos os dias, como sempre, e, se
vir algum petroleiro a afundar-se, chamo logo a polícia para
mandar apanhar tudo o que sujar a água. Eles que levem o
petróleo pelo ar, por avião.
38 39

Não levam gente e bombas para as guerras? Então! Metam lá


também os garrafões de petróleo, debaixo dos assentos, ou
noutro sítio qualquer, que os peixes não têm culpa nenhuma de
os homens andarem de automóvel!
A indignação subia-lhe ao rosto pelas veias claras e
crispava-lhe a pele lisa.
- Nada disso é tão fácil como te parece, Dunas.
- Não me interessa! Eles que se arranjem, lá os árabes e os
outros que andam por aí a sujar o mar. Cá na minha praia é que
eles não pôem os pés, isso é limpinho. Eu até já pensei no que
vou fazer se vir algum petroleiro perto da costa, mas é
segredo, não vou dizer-te, porque tu, sem querer, podes
descair-te e contar por aí a alguém. Mas já está decidido.
Barco que se ponha para aí a deitar petróleo está feito
comigo! Que eu tramo-os, e bem tramados!

* * *

Quando a noite caiu, sentei-me na cadeira de lona no terraço


a apanhar banhos de luar com cheiro a maresia. O único ruído
que se ouvia era o suavíssimo murmúrio das ondas e um ou outro
trinado de cigarra ou grilo, escondidos entre os tufos de
relva junto ao muro branco. Fechei os olhos e deixei-me
adormecer, apesar da brisa fresca que corria.
Ao sentir um aconchego de lã sobre os ombros e um forte
aroma a mar, acordei. Sobressaltei-me. Ao meu lado, o Dunas
espiava as estrelas, sorrindo.
- Que estás aqui a fazer? - perguntei-lhe.
- Estavas com frio...
Não soube que dizer. Sentia um certo desconforto por
perceber que o Dunas lia tão fundo dentro de mim. Sempre!
- Que horas serão? - perguntei-me.
- Esta noite há muitas estrelas! Repara!
- É... E está lua cheia.
- Os peixes devem estar assustados - continuou o meu
visitante, olhando o mar ao longe. - Ficam sempre agitados
quando é lua cheia. É por causa daquela luz toda que fica
sobre o mar. Eles querem dormir e não conseguem... Tu dormes
de luz acesa?
Fiquei surpreendida com a pergunta.
- Não, Dunas, não durmo de luz acesa. Por acaso, nunca tive
medo do escuro, nem mesmo quando era muito pequena. Os meus
medos são outros...
- Eu tenho um bocado de medo do escuro, mas só no Inverno,
quando me levanto para ir para a escola e ainda não há luz
nenhuma. Sabes, quando está muito escuro há muito mais
barulho. Se soubesses a quantidade de sons diferentes que eu
ouço a caminho da escola no Inverno! É que eu venho pela mata,
para ser mais rápido, e na mata há muitos bichos e, claro, o
velho...
Tive logo vontade de perguntar-lhe pelo tal velho que, ao
que parecia, tanto o assustava, mas pressenti de imediato que
ele não iria responder-me.
- E que velho é esse?
- Está a ficar tarde, ainda tenho de passar pela praia.
Adeus.
Ia dizer-lhe qualquer coisa, mas, como sempre, não me deu
tempo. Saltou o muro e seguiu em frente até ao areal. Fui
espreitá-lo À beira do terraço.

40 41

Vi-o então encaminhar-se para o lado direito e parar junto


da rocha grande que aí se encontrava. Depois, vi-o
acocorar-se, tirar qualquer coisa do bolso e foi nesse momento
que distingui o corpo claro de uma gaivota deitada na areia
húmida, junto À rocha. O Dunas ficou alguns minutos perto
dela; em seguida, levantou-se, julgo que lhe fez uma festa e
ela voou. Espantada, verifiquei que voava sobre a cabeça loira
do rapaz, em voos baixos e circulares, como um aviãozinho de
papel. O Dunas afastou-se, e a gaivota dirigiu-se ao mar. No
instante seguinte, deixei de a ver. E a ele também...
Chamei-o vezes sem conta, queria por força fazer-lhe
perguntas sobre a gaivota, mas não voltei a vê-lo nessa noite.
Decidi também retirar-me e fui para casa a pensar naquele
miúdo extraordinário que tinha encontros secretos com uma
gaivota e desaparecia tão repentinamente que parecia
volatilizar-se. Talvez fosse isso, talvez o meu jovem
companheiro fosse uma espécie de ser fantasmagórico que se
evaporasse ou se transformasse em espuma do mar...

42

Capítulo VIII

NO POSTO MÉDICO

Os dias que se seguiram foram quase exclusivamente dedicados


À escrita. Aproveitando uma nova - e tão esperada - onda de
inspiração, colei-me À máquina de escrever e consegui um
enorme avanço no meu romance. Lembro-me que senti pouca fome
durante esses dias de entrega total ao meu trabalho. Bebia
copos de leite e comia fruta, para não ter de perder tempo na
cozinha. As bolachas, minhas eternas companheiras de escrita,
tinham acabado, facto de que apenas me apercebi ao cabo de
cinco dias, quando senti vontade de trincar qualquer coisa
doce e estaladiça. Resolvi então montar na minha bicicleta e
ir À aldeia.
Parei em frente da mercearia e, mal desmontei da bicicleta,
avistei o meu amigo misterioso, que bebia água no chafariz do
Largo. Acenei-lhe de longe, mas pareceu não ligar. Depois,
vi-o correr em direcção a um grupo de rapazes que jogava
desenfreadamente À bola, e resolvi entrar na mercearia.

43

Após pagar a conta, ouvi um enorme alarido vindo de fora e


vi o merceeiro a esbracejar À porta do pequeno
estabelecimento. Acerquei-me dele para me inteirar do que se
estava a passar e foi então que vi um círculo apertado de
rapazes que faziam gestos e gritavam sugestões.
Instintivamente, larguei o saco das compras À porta da
mercearia e corri para o lugar onde a miudagem se encontrava
em peso.
- Deixem-me passar! - pedi, furando por entre a maralha.
- É o Dunas - explicou um garoto de calções esfarrapados. -
Teve outro ataque.
Estremeci, mas continuei a furar até me encontrar no centro
do círculo humano, onde encontrei o Dunas, sentado no chão,
sem forças para se levantar. Num ápice, mandei dispersar,
ajudei-o a levantar-se e foi nesse momento que reparei como os
seus olhos estavam congestionados do esforço imenso para
respirar. Então, vendo que ele não conseguia andar, peguei-lhe
ao colo e corri para o merceeiro:
- Por favor, telefone a chamar uma ambulância. O rapaz está
com uma crise de asma.
- Isso é o cabo dos trabalhos - replicou o merceeiro.
- Depressa! Não vê que ele não está bem?!
- O melhor é levá-lo À avó, que ela trata-o. Foi assim das
outras vezes. Até porque as ambulâncias demoram muito a chegar
aqui. Só há bombeiros na vila.
Quase À beira do desespero, lembrei-me de pedir ao merceeiro
que me chamasse um carro de aluguer que pagaria a qualquer
preço, conforme esclareci.
Enquanto esperávamos, sentei o Dunas no banquito da
mercearia e acocorei-me junto dele, tentando acalmá-lo.
- O carro já vem. Tenta respirar o mais devagar que
conseguires, está bem?
Contudo, o Dunas parecia ir desfalecer a qualquer momento e
nem forças teve para dizer uma palavra que me tranquilizasse.
À porta da mercearia, os colegas da bola esperavam também,
agora em silêncio absoluto, um pouco assustados.
- Foi da poeira que a gente alevantou da terra - explicou o
que me pareceu mais velho. - Ele é alérgico ao pó, por isso é
que a avó não quer que ele jogue com a gente.
Subitamente, contendo uma vez mais a vontade de abraçá-lo
por me parecer que talvez isso o embaraçasse um pouco em
frente dos amigos, agarrei com força na concha que ele trazia
pendurada no cordel atado À presilha dos calções. Então, para
minha surpresa, senti a mão do Dunas cair pesadamente sobre o
meu pescoço e depois segurar uma madeixa do meu cabelo, em
sinal de reconhecimento pela minha presença.
Os minutos que se seguiram pareceram-me intermináveis e
quando, finalmente, o carro de aluguer parou em frente da
mercearia, peguei novamente no Dunas e sentei-o ao meu lado no
banco de trás. A viagem até ao posto médico da vila foi rápida
e, À chegada, tive a agradável surpresa de ver o Dunas ser
imediatamente atendido por uma enfermeira simpática a quem
contei o que se tinha passado.
O Dunas foi levado para a enfermaria, e eu fiquei ao
guichet, onde me pediram que preenchesse uma papelada para a
qual eu não tinha praticamente dado algum. Foi quando
mencionei o facto de o Dunas (do qual sabia apenas o nome

44 45

próprio) viver com a avó na ilhota, que a recepcionista fez um


longo Ah... e me dispensou de mais informações. Depois,
adiantou, de sobrolho erguido:
- Essa senhora é um problema, sabe? Teima que não quer que o
neto leve as vacinas... Até da escola já lhe escreveram a
explicar que é obrigatório, mas qual quê! Enfim, sabe como é
esta gente.
Não, não sabia exactamente como era aquela gente, mas, por
aquilo que já me fora dado conhecer pelo Dunas, podia calcular
que se tratava de uma família muito especial.
- Ele já aqui apareceu com um ataque de asma?perguntei.
- Só quando era muito pequeno - contou a recepcionista. - No
tempo em que vivia com os pais. Tinha várias crises nessa
altura. Recordo-me de uma vez em que foi o cabo dos trabalhos
para o reanimar. Não havia oxigénio que lhe valesse. Nem sei
como aguentou!
- E não voltou a ter crises dessas?
- Que nós saibamos, não. Mas parece que a avó é que quer
tratar dele, diz que tem maneira de o curar sem precisar de
recorrer a médicos... Sei lá, há quem diga aqui nas redondezas
que a velhota tem poderes, sei lá, ouvi dizer que faz umas
mezinhas quaisquer e, Às vezes, tem dado resultado. Não que eu
acredite nessas coisas, longe de mim, mas há quem acredite e
só vá ter com ela para tratar os achaques. Ele há coisas!
Fiquei parada a olhar o vazio da salinha de espera. Como
poderia a avó do Dunas fornecer-lhe oxigénio num caso como
aquele que ali me trouxera?! Que lhe faria ela?
- E não há um médico que vá lá a casa do rapaz e explique À
avó que ele sofre de asma e que precisa de tratamente clínico
especial? - perguntei ainda.
- Oh... E de que serviria? Tempo perdido, era o que era. E,
além do mais, o senhor doutor tem sempre muito que fazer. Só
vem Às terças e quintas, nos outros dias está de serviço no
hospital da cidade. Só faz domicílios quando se trata de casos
sérios, percebe?
Indignei-me, mas não disse mais nada. Tudo aquilo me parecia
demasiado burlesco para ser verdade. Desde quando a asma não
era um caso sério?!
- Mas a senhora não se rale - continuou a recepcionista. -
Não é da família, pois não? Deixe, que eles lá se entendem. O
melhor é a gente não se meter.
Calei-me, mais indignada do que nunca e, para não ter de
ouvir mais, fui sentar-me no sofá de napa escura, junto a uma
mesa com uma jarra cheia de flores de plástico. Que acharia o
Dunas daquelas flores?, pensei, sorrindo para dentro.
Uma hora mais tarde, a enfermeira apareceu na sala de espera
trazendo o doente, já com melhor cara.
- Aqui o tem. Já está fino. - Depois, virando-se para o
Dunas: - E nada de correrias nem futeboladas, ouviste? Olha
que tu e o pó não se dão nada bem, como já viste...
Senti uma pena imensa. Que poderia então o rapaz fazer?! A
praia, claro... Era das poucas coisas que não lhe estavam
vedadas. Dei-Lhe a mão e saímos do posto muito mais unidos do
que antes.
- Já estás bem, não estás, Dunas?
- Já. Mas... queria pedir-te uma coisa.

46 47
- O quê? - quis saber, desejosa de poder ser-lhe útil.
- Se alguma vez vires a minha avó, não lhe contes.
- Que viemos aqui ao posto?
- Sim.
- Fica descansado, Dunas. É um segredo só nosso - respondi,
com a cumplicidade de um criminoso que acaba de se envolver
num delito grave.
- Prometes?
- Claro.
Só então sorriu, devolvendo aos olhos aquele brilho de água
que só uma criatura marinha poderia ter.

48

Capítulo IX

BICHOS DO MAR

Dois dias volvidos, o meu companheiro apareceu no terraço,


depois do almoço. Vinha de tronco nu e cabelo a pingar.
- Estiveste na praia? - perguntei-lhe.
- Hum-hum. - Depois, deu uma gargalhada espantosamente
bonita e exclamou: - Apanhaste um cagaço, hein?!
Não sabia exactamente a que se referia, por isso franzi o
sobrolho e inquiri:
- Que cagaço?
- No outro dia. Quando eu tive aquilo...
- Ah, bem, não me assustei assim tanto como isso, pelo menos
depois de ver que foste bem atendido no posto.
- Pensaste que eu ia morrer?
Arrepiei-me.
- Que ideia, Dunas! Não era caso para isso.

49

Voltou a rir-se. Inexplicavelmente.


- Eu vi que estavas com medo. É normal. A professora da
primária também ficava, quando eu começava a tossir muito lá
na aula.
- Bem, claro que, a princípio, fiquei um pouco preocupada.
- Pois foi. Eu, quando era mais pequeno, também apanhei
grandes cagaços, mas agora já sei como é. Depois passa. Passa
sempre, foi a minha avó que me disse, e ela sabe. Ela diz que
eu só vou morrer quando for muito velho, mais ainda do que o
velho da mata.
De facto, a relação do Dunas com a avó era muito mais forte
do que eu podia imaginar. A confiança era total, como se de
uma autoridade em medicina se tratasse.
- Evidentemente que não vais morrer, Dunas. A asma é uma
doença muito vulgar.
- Não é uma doença. É que eu sou alérgico ao pó. A minha avó
diz que é um micróbio da terra que me vem para a garganta e é
por isso que começo a tossir muito, assim de repente, como se
fosse vomitar as tripas, mas não vomito.
Depois daquela explicação tão cabal, fiquei estranhamente
tranquila.
- Que sorte teres uma avó que percebe tanto dessas coisas,
Dunas! Ainda bem.
- Tu tens alguma avó?
- Não. Já faleceram as duas.
- Quê?
- Eram muito velhinhas.
- Essa palavra que disseste...
- Faleceram?
- Pois... Quer dizer que morreram, é?
- Sim, Dunas.
- É uma palavra gira, faleceram... Gosto!
Acabei por sorrir.
- Geralmente, os escritores conhecem muitas palavras, Dunas.
Elas são o nosso material de trabalho.
- Eu gostava que me ensinasses algumas palavras bonitas
assim como faleceram.
- Está bem. Mas então tens de estar muito atento para as
fixares e perceberes o seu significado. Depois, vai ser bom
poderes usá-las, quando falares ou escreveres.
- Eu Às vezes escrevo. Escrevi um poema ao meu pai.
- Já me contaste. Eu gostaria bem de ler um poema teu. Tenho
muita curiosidade!
- Só que dou alguns erros...
- Toda a gente dá erros, Dunas.
Sorriu, agradecido, mas não convencido.
- Tu não. Uma escritora não pode dar erros, pois não?
- Se der, tem de aprender a corrigi-los, como toda a gente.
- Queres vir À praia?
- Agora? Acabei de almoçar.
- E que é que isso tem?
- Bom, tenho de dar tempo para fazer a digestão, não é?
Nova gargalhada estrondosamente bonita. As gargalhadas, que
sempre me haviam parecido descaradas e grosseiras, tornavam-se
agora uma maravilha. O Dunas sabia rir como ninguém.
- Então eu espero, mas só dez minutos - disse ele por fim,
troçando do meu ritual de digestões.

50 51

- Dez minutos não chegam!


- Ora! Eu cá vou para o mar sempre que me apetece, e
apetece-me sempre!
- Mas eu não estou habituada a tomar banhos a seguir ao
almoço, percebes? Poderia sentir-me mal. Não quero arriscar.
Riu-se outra vez.
- Os peixes comem e continuam na água...
- Mas eu não sou peixe, Dunas.
- Pois, mas gostava que fosses...
- Porquê?
Não me respondeu. Afastou-se da minha mesa e foi encostar-se
ao muro do terraço a olhar o mar.
- Se quiseres, vai andando - gritei-Lhe.
Ele, no entanto, pareceu não me ouvir. Subitamente,
acocorou-se e pôs-se a mirar qualquer coisa parada no chão.
- Uma lagartixa! - E, sem me dar tempo a fugir, veio a
correr com o animal na mão para mo mostrar. - Olha! Ainda é
bebé.
Afastei um pouco a cadeira, discretamente, para ver se ele
não notava, mas em vão...
- Que engraçada...
- Então por que é que puxaste a cadeira para trás?
- Puxei? Pois foi! Sabes, é que eu não estou muito
acostumada a animais desses. Na cidade, felizmente, há
poucos.
- Deve ser chato viver na tua cidade. Olha, ontem À noite
encontrei uma osga enorme colada À janela do teu quarto, pelo
lado de fora.
- Estiveste aqui ontem e não me disseste?!
- Já estavas a dormir, foi por iso que não te mostrei a
osga. As osgas são muito simpáticas, ficam quietinhas ao pé da
luz. Não são como as lagartixas, que fogem mais depressa que
sei lá o quê.
Agradeci mentalmente o ter estado a dormir quando o Dunas
encontrou a osga e disse apenas:
- Ouve lá, tu deitas-te muito tarde, não deitas? A tua avó
não diz nada?
Riu-se.
- Ela deita-se cedo, como tu... Só que depois levanta-se
ainda de noite e tu não... Tu és um bocado dorminhoca!
Corei um pouco.
- Só no Verão!
- No Verão é que é bom levantar cedo!
Tinha lógica o meu bicho do mar.
- Isso é verdade, Dunas, mas, quando está calor, fico
preguiçosa.
- Como as osgas...
Não gostei da comparação, mas ele não iria compreender o meu
desagrado. Foi outra vez colar-se ao muro, e eu fui À cozinha
para beber água. A conversa das osgas e lagartixas tinha-me
deixado levemente nauseada.
Quando regressei ao terraço, o Dunas já lá não estava.
Aproximei-me do muro e espreitei a praia. Lá estava ele , a
nadar em direcção aos rochedos maiores, a uma velocidade de
golfinho. Então, sem eu o ter chamado, ele virou-se para o
areal, ergueu a cabeça e acenou-me , chamando-me com a mão.
Não pude resistir. Ignorei a digestão, fui vestir o fato de
banho e desci até À praia. Se me acontecesse alguma coisa,

52 53

o Dunas lá estaria para impedir que eu morresse estupidamente


de indigestão ou de cagaço.

* * *

Nessa noite, eram já horas de descansar o corpo e as ideias,


preparava-me para arrumar a máquina de escrever, quando recebi
outra visita do meu mais recente amigo, que vinha de cabelo
molhado e cabisbaixo.
- Que aconteceu? - perguntei-lhe, amontoando as folhas de
papel já escritas.
- Vieram cá esta tarde e sujaram tudo!
- Quem?
- Os turistas!
Como depois me explicou, havia tardes em que aparecia uma
camioneta cheia de estrangeiros que vinham de um aldeamento
próximo refrescar-se no mar.
- Não são nada civilizados esses turistas, Dunas.
- Eles são é uns porcos! Deixaram sacos de plástico no chão
e tudo. Logo, a minha gaivota não vai poder descansar nem
nada!
Seguidamente, contou-me a história da gaivota que vinha
todas as noites poisar junto da rocha no areal. Segundo o
Dunas, a gaivota era já muito velha e não aguentava a pedalada
das suas irmãs, de maneira que ia para ali repousar um pouco e
falar com ele, mas nunca aparecia nos dias em que a praia era
invadida pelos ditos turistas do aldeamento que havia sido
construído havia pouco mais de um ano.
- Dantes é que era bom. Não vinha para aqui ninguém. Só os
pescadores, claro. Mas, desde o Verão passado, a meio da
semana, zás! É sempre a mesma porcaria.
O que vale é que é só uma vez por semana e só À tarde. É que
eles têm lá piscina no hotel. Eu cá é que não punha os pés
numa piscina!
- Porquê?
- Ora! Aquela água deve estar toda suja com aqueles rabos
todos lá dentro e sempre a mesma água!
Soltei uma gargalhada.
- Mas as piscinas têm um filtro, um sistema de limpeza da
água, Dunas.
- Qual quê! É uma porcaria! Ainda por cima, os turistas usam
aqueles cremes para queimar e deixam óleo na água, nhac! São
uns porcos.
Não conseguindo demovê-lo, mudei de assunto:
- Ouve lá, e essa tal gaivota, que sabes sobre ela?
- Oh... tanta coisa!
Depois, foi até ao muro olhar o mar. Segui-o em silêncio e,
mesmo atrás dele, segredei-lhe:
- Deixa lá, Dunas, a tua gaivota não se vai importar. É só
uma vez por semana. Tem os outros dias todinhos para te ver.
Com uma voz de imensa tristeza, respondeu sem se voltar para
mim:
- Tu não percebes. Ela tem de vir todas as noites! Ela
precisa de vir! Não vês que assim não come?!
Finalmente compreendi. A gaivota não tinha forças para lutar
pela sobrevivência no meio das outras que se juntavam em
grande alarido sobre os barcos dos pescadores. E era o Dunas
quem lhe levava alimento que ele próprio colhia do mar para
lhe dar.

54 55

Sem saber que mais dizer-lhe, coloquei-lhe a mão no ombro e


ficámos por muito tempo a olhar a rocha onde, de facto,
nenhuma gaivota poisou nessa noite.

56

Capítulo X

O VELHO DA MATA
No dia seguinte, não vi o Dunas e confesso que senti a sua
falta, embora nunca soubesse ao certo se ele viria ou a hora a
que chegaria. Levantei-me mais cedo do que o costume, preenchi
a manhã com a escrita e, depois do almoço, pedalei até À
aldeia, pois, pela primeira vez desde que ali chegara, tive
saudades de um cafezinho antes de voltar ao trabalho.
Havia apenas um café na aldeia, que tinha uma televisão
estrategicamente colocada numa prateleira pouco abaixo do
tecto para que todos pudessem ver. O som estava altíssimo e
foi difícil encontrar uma mesa vaga, mas o cafezinho soube-me
bem, muito melhor do que os instantâneos que eu fazia em casa.
Quando chamei o empregado para pagar, ele sorriu como se me
conhecesse e, porque ficou tempo de mais a olhar-me, tive de
perguntar-lhe se queria saber alguma coisa.

57

- Nada, não senhora. É que... bem, a senhora é que levou o


miúdo da ilhota ao posto, não foi?
- Sim, fui eu - respondi, sem compreender aquele interesse
do empregado.
- É que aqui na aldeia sabe-se tudo, não leve a mal.
- Não, não levo a mal. Por que haveria de levar a mal que se
soubesse uma coisa tão simples?
- Simples?... Vê-se que a senhora não conhece a avó do
miúdo. É fogo!
- E o senhor acha que alguém vai contar-Lhe que o levei ao
posto médico?
- Não. Ninguém quer problemas com a velhota. Ela até é boa
pessoa, só que tem lá as manias dela. Julga que sabe tudo, que
pode curar toda a gente.
- E cura?
- Bem, há quem diga que ela consegue fazer remédios que não
se vendem na farmácia...
- Já me tinham dito.
- Mas olhe que é muito ligada ao neto. Não tem mais ninguém,
desde que o filho emigrou para a América.
- Também já sabia. - Depois, achando que o falatório estava
a avançar demasiado, abreviei: - Se não se importa, faça-me a
conta. Estou com alguma pressa. É o café, a água mineral e um
pacote daquelas pastilhas verdes que estão ao lado da máquina
registadora.
O empregado fez a conta um pouco contrafeito. Queria esticar
a conversa, pelo que percebi pela lentidão com que fez o troco
e que me permitiu contar-lhe as nódoas da camisa.
Chegada a casa, sentei-me na cadeirinha do terraço,
descalcei as sapatilhas de lona e fiquei a saborear o sol da
tarde, respirando o perfume que vinha do mar e me lembrava o
Dunas.

58

Acabei por adormecer no terraço, contrariando os meus planos


de escrita. Acordei muito perto da hora do jantar, já o Sol
estava a pôr-se, embora muito devagar. Cozinhei qualquer coisa
que não me soube a nada e voltei depressa ao terraço, na
esperança de que o meu visitante aparecesse. Na realidade,
habituara-me Às suas visitas inesperadas e Àquelas gargalhadas
gostosíssimas que me invadiam a alma como onda em dia de
turbulência. E fiquei a pensar naqueles risos todos que o
Dunas sabia fazer. E sorrisos, também. Era, sem dúvida, a
criatura mais expressiva que eu jamais conhecera. Tudo no seu
rosto falava e, no entanto, só dizia as palavras que queria
dizer, nunca se deixava pressionar para revelar o que quer que
fosse. Senhor de si, controlava o rio perigoso das palavras da
mesma forma que controlava a respiração quando nadava, veloz,
mar adentro. E era esse controlo que faltava À maioria das
pessoas que eu conhecia, a mim inclusivamente. O Dunas tinha
uma relação profunda e, ao mesmo tempo, estranha com a
natureza e com as pessoas (Às vezes tão pouco naturais). Era
íntegro, incorruptível, vadio mas enraizado em qualquer lugar
que eu ainda não descobrira, talvez na casa onde vivia com a
avó, talvez naquela que eu viera ocupar e que dantes lhe
pertencera, na primeira infância, ou talvez a sua casa fosse
mesmo o mar, onde se movimentava com um À-vontade de animal.
Como poderiam os pais tê-lo abandonado e deixado aos cuidados
de uma avó que não acreditava em vacinas?! Quantos não dariam
tudo para ter um filho assim, exactamente assim? Como seria a
mãe dele? Porque não vinha vê-lo, saber notícias, ainda por
cima sofrendo o filho de asma!

59

Estas e outras perguntas deram-me volta À cabeça naquela


tarde, e uma enorme vontade de conhecer a verdade começou a
apoderar-se de mim, como Às vezes acontecia quando, a meio de
um romance empolgante, tinha de ir espreitar as últimas
páginas para ficar tranquila. Onde estariam as páginas que me
revelariam os segredos da vida daquele rapazinho a quem me
sentia já tão intimamente ligada? E por que razão teria ele
uma concha precisamente igual À que me dera a minha mãe quando
eu era criança?
Enervava-me um pouco pensar que talvez nunca viesse a obter
respostas para as minhas perguntas. De facto, começava a
sentir uma certa ansiedade que me entusiasmava e,
simultaneamente, me apertava o coração. Foi então que resolvi
ir procurar o velho, o tal ser misterioso que vivia na mata e
que, pelo que eu percebera, assustava o Dunas quando vinha a
caminho da escola. Era isso mesmo! O velho deveria saber
alguma coisa importante sobre o Dunas ou sobre a sua estranha
família.

* * *

Deitara-me muito cedo na véspera e praticamente não pregara


olho a noite inteira a pensar no encontro com o homem da mata.
Levantei-me mal vi os primeiros sinais de luz e tomei o
pequeno-almoço À pressa, como se estivesse atrasada para o
emprego. Na realidade, cheguei a sorrir da velocidade que
imprimi a todos os movimentos nessa manhã, eu que detestava
apressar-me de manhã!
Antes de sair de casa, fui espreitar a praia, do terraço.
O Dunas ainda não aparecera ou então estaria a dar os
bons-dias Às algas e aos búzios ou, quem sabe, atrás de um
rochedo a contar mexilhões.
Montei na bicicleta e dirigi-me para sul, rumo À mata.
Lembro-me do frio desusado que fazia nessa manhã, ou talvez
fosse a minha ansiedade que me dava arrepios e me crispava a
pele da cara. A concha de prata que trazia pendurada no fio
batia-me no peito ao ritmo da pedalada frenética que,
curiosamente, não me cansava. De facto, só quando parei, junto
das primeiras árvores, compreendi que já nem sentia as pernas,
contudo, a respiração não estava ofegante - na verdade, não me
ouvia respirar, apenas sentia o rumorejar embalador da mata na
qual entrava agora, pedalando suavemente. Um pássaro minúsculo
e semelhante a um pardal veio poisar sobre a parte central do
guiador e depois, tranquilamente , levantou voo e desapareceu
entre a copa de um pinheiro bravo. A certa altura, deixou de
haver caminho, pelo que tive de me embrenhar na mata,
ziguezagueando entre as árvores e os arbustos, afastando o
rosto para os cabelos não se emaranharem nas ramagens. Depois,
cansada daquela luta, parei,. atei o cabelo atrás com um lenço
que trazia ao pescoço e continuei a pedalar, sem saber aonde
aquela viagem me levaria.
Chegada a uma pequena clareira estaquei. Agora, podia ouvir
claramente a minha respiração e o batimento do coração,
descompassado e confuso. E, antes de poder reflectir, vi-me de
pé, ao lado da bicicleta e comecei a caminhar como se os meus
pés soubessem exactamente para onde se dirigiam.

60 61

Deixei-me assim levar sem me importar com mais nada a não


ser encontrar o velho, que, sabia-o agora, estava perto com
certeza.
Após uma caminhada que não sei quanto tempo durou, senti
qualquer coisa junto dos pés e, olhando para baixo, vi um
esquilo. Baixei-me para o ver mais de perto, mas o bichinho
logo desapareceu entre a folhagem e, mal voltei a erguer-me,
ainda sem olhar em frente, pressenti que estava a ser
observada. Quando finalmente levantei a cara, senti o coração
parar e as pernas a tremer.
Quando abri os olhos novamente, estava deitada num colchão
velho, provavelmente recheado de palha, dentro de uma espécie
de estrebaria. Olhei em volta, muito devagar, receando
encontrar qualquer coisa demasiado estranha que me assustasse
ainda mais. As paredes, de tijolos À mostra, eram quase
negras. No chão havia lenha empilhada em dois cantos, uma
panela de ferro e, junto do colchão, uma manta cinzenta e
vermelha, comida pelas traças e pelo tempo. Antes de me
levantar, reparei ainda num coto de vela, colado a um pires
desbotado, sobre um banco tosco. Não sabia o que fazia naquele
lugar, mas tinha a certeza de que fora o velho que ali me
trouxera.
Mal consegui levantar-me, senti uma forte dor nas pernas e
um ardor no braço direito, que estava arranhado, talvez da
queda de que eu não conseguia lembrar-me. Arrastei o corpo
queixoso até À porta aberta e olhei em redor. Foi então que
ele apareceu, vindo das traseiras da casita, arrastando os
pés. Vestia umas calças cor de nuvem e uma camisa de flanela
aos quadrados que, em tempos, tivera certamente um colorido
atraente. Sobre a camisa, um colete largo e esgaçado, sem cor.
Aproximou-se lentamente e entrou na casa, passando por mim sem
nada me dizer. Segui-o então em silêncio e sentei-me no
colchão. O velho, por seu turno, retirou cuidadosamente a vela
do banquito de madeira e sentou-se. Foi então que pude
observá-lo melhor, pois a porta continuava aberta e a luz da
manhã era agora mais brilhante, iluminando-lhe o rosto, de
lado. Não era tão velho como eu pensara, teria talvez setenta
anos, mas era difícil distinguir-lhe as linhas do rosto moreno
escondido pela barba acinzentada que crescia em ponta. Os pés,
metidos em sandálias de couro estalado, eram enormes, como
convinha a um homem daquela estatura. Por fim, um pouco
constrangida por estar a olhá-lo com tão pouca discrição,
baixei a cabeça e tentei quebrar o silêncio, forçando duas
tossidelas que, no entanto, em nada me ajudaram. Subitamente,
ouvi-lhe estas palavras:
- Podia ter partido o braço...
A voz não era de um velho, mais parecia a de um jovem cheio
de vigor e personalidade.
- Devo ter... caído?
Riu-se.
- Foi o susto.
Consegui finalmente levantar a cara e enfrentá-lo.
- Que foi que me aconteceu? Desmaiei?
Voltou a rir-se, mas de forma mais sóbria.
- Grande estafa, hein?
De facto, ainda mal sentia as pernas do esforço a que as
tinha obrigado.
- Acho que vinha depressa de mais... - expliquei. - Devo ter
tido uma quebra de tensão.
Esperava nova gargalhada, mas, em vez disso, o velho fez uma
cara muito séria, levantou-se e foi buscar um pacote de
tabaco.

62 63

Depois, voltou a sentar-se, acendeu um cachimbo que retirou do


bolso da camisa e inquiriu:
- É turista, vê-se bem. Mas ainda nenhuma se tinha
aventurado por estas bandas. Na verdade, nunca aqui vem
ninguém.
- Ninguém mesmo?
- Ninguém.
Por que razão estaria a mentir-me? Insisti:
- Há um rapaz que vive na ilhota com a avó...
- Ninguém! - interrompeu-me resolutamente e levantou-se para
ir buscar mais tabaco.
Mudei de táctica. O melhor seria começar por outro lado.
- Vive aqui há muito tempo?
Sorriu vagarosamente, com um sorriso que me pareceu já ter
visto. E, de repente, comecei a ver nele alguém que eu
conhecia. Aquele sorriso trouxe-me uma imagem que não
conseguia descortinar, mas que estava no lugar bom da memória.
Voltei a perguntar:
- Nunca viveu noutro lugar?
- Claro. Ninguém vive sempre no mesmo lugar.
Começava a desesperar-me aquele velho que teimava em fugir
sempre Às minhas perguntas.
- E família?
Sorriu muito amargamente. Um sorriso que eu nunca tinha
visto em parte alguma. Era absolutamente incolor, como o seu
colete. Mais triste do que amargo. Depois, franziu o sobrolho
e eu compreendi que aquele era um assunto para mais tarde, se
tivesse sorte...
- Bem, vou andando - disse-lhe, ao mesmo tempo que me
levantava preguiçosamente do colchão.

64

Obrigada por me ter trazido para sua casa. Se não tivesse


aparecido, acho que morreria de susto ao acordar na mata,
rodeada de bicharada que não conheço!
Sorriu e levantou-se para me acompanhar até À saída e dar-me
algumas instruções:
- Agora vá sempre por aquele carreiro da esquerda e, quando
vir uma árvore alta que tem uma trepadeira enrolada ao tronco,
a bailarina, siga pela direita. Deve levar uma meia hora até À
praia.
Agradeci e vim-me embora, seguindo as orientações do homem
cujo nome não chegara a saber, mas com a convicção de que
viria a conhecer mais tarde.
Chegada À marginal, parei a olhar o mar. Não se via vivalma
na praia, e os barcos dos pescadores descansavam sobre as
águas mansas, paralelamente À linha dourada do areal.
Em casa, corri para o duche desejosa de um banho que me
reconfortasse da manhã atribulada que passara. Então, para meu
espanto, quando desabotoei a blusa, vi uma nódoa negra no
lugar onde a minha concha batera desenfreadamente durante o
percurso até À mata. Uma nódoa sobre o coração.

65

Capítulo XI

A TROCA

Chovia serenamente naquela manhã. Não estava frio nem corria


ponta de vento. O mar, estranhamente calmo, empurrava até À
praia umas ondinhas que se desfaziam mansamente na areia, sem
força para arrastar alga ou concha. Passeei por muito tempo À
beira-mar, sob a chuva miudinha, respirando iodo e sal que se
colava À pele, emprestando-me aquele cheiro de ser marinho,
como o Dunas. Cansada da caminhada, acocorei-me na fronteira
entre a areia seca e a molhada e pus-me a mirar pedras polidas
pelas águas, semienterradas no chão castanho e fofo. De
repente, umas pernas bronzeadíssimas e esguias chegaram perto
das minhas mãos e pararam. Levantei a cara e vi-o, de cabelo a
pingar, como sempre, e olhos de nevoeiro.
- Até que enfim! - exclamei. - Pensei que nunca mais
aparecesses...

67

Sorriu, com um dos sorrisos que eu já lhe conhecia e que


poderá descrever-se como uma das maravilhas do Universo.
- Ainda não mergulhaste?
- Com este tempo?!
- Que é que tem?!
- Mas eu nem trago fato de banho, Dunas.
- Vai pô-lo e volta aqui!
A voz era autoritária, sem me deixar margem para um não.
Deveria ter-lhe dado uma desculpa convincente, mas não fui
capaz de lhe mentir. Corri a casa, vesti-me e voltei À praia,
onde o avistei ao longe, no meio do mar, sentado numa daquelas
rochas mais escorregadias do que gelo. Mal me viu, acenou-me
para que fosse ter com ele. Respirei fundo, olhei o céu, que
começara a escurecer, e meti-me na água. Ao chegar perto da
rocha, o Dunas desceu e começou a nadar em meu redor, gritando
que era um tubarão. Depois, agarrou-me um braço e abriu muito
os olhos de pestanas coladas pela água salgada.
- Caíste?
Referia-se aos arranhões que eu fizera na mata.
- Caí, vê lá tu. Mas já não dói.
- Onde?
- Hã?
- Onde é que caíste?
- Bem, foi uma coisa sem importância.
- Onde?!
- Na mata...
Ficou calado por momentos, depois, mergulhou e ficou
submerso por tanto tempo que me assustou. No entanto,
contive-me e não gritei ao chamá-lo:
- Dunas!
Voltei a chamá-lo vezes sem conta, olhando À minha volta.
Quando estava praticamente em pânico, avistei a sua figura
esguia ao longe, a nadar crawl já perto do areal. Barafustei
sem ser ouvida e nadei para o alcançar, mas em vão. Já na
areia, encontrei-o sentado À beira-mar a desenterrar um búzio
de cor rosada. Enfureci-me.
- Ouve lá, afinal que é que tu queres?! - Perguntei. -
Desapareces de um momento para o outro, não dás uma notícia
sequer, desafias-me para ir nadar contigo e evaporas-te!
Deixaste-me sozinha longíssimo da costa!
Julguei que éramos amigos, Dunas. AMIGOS, estás aperceber.
Será que também é uma palavra nova para ti?!
Deixei-me cair na areia, exausta da natação e do discurso. O
braço arranhado começara a arder-me do sal, o vento acordou
furioso e desatou a varrer o areal, e o céu ameaçava desabar
sobre as nossas cabeças. Contudo, faltaram-me as forças para
me levantar e correr para casa.
- Não tenhas medo - disse-me por fim, enrolando uma alga
finíssima no meu braço ferido, como se de uma ligadura se
tratasse.
- Tu Estás a apertar-me com isso, Dunas! - refilei ,
afastando o braço.
Ele levantou-se, farejou os ares e voltou a sentar-se ao meu
lado.
- Agora vai começar a chover a sério - avisou.
Mal acabou de falar, as nuvens, em perfeita sintonia com as
suas palavras, despejaram uma carga de água que caía em gotas
grossas e pesadas. No entanto, sabia bem receber aquela água
que tirava o sal dos corpos e lavava o espírito. Levantei-me e
olhei o céu, sentindo a chuva picar-me a cara. Depois, veio
uma sensação de bem-estar.

68 69

O corpo estava leve e morno, exactamente À mesma temperatura


do ar, como se fizesse parte do ar. Foi então que me apercebi
de que o braço já não ardia e, quando o olhei, aconteceu a
coisa mais incrível: dos arranhões nem rasto. A pele,
novamente lisa, não deixava adivinhar a mais pequena
arranhadela!
- Foi da... alga? - arrisquei.
- Não. Foi da chuva - disse o Dunas rindo.
Fiquei perplexa. Numa fracção de segundo passaram-me pela
cabeça as ideias mais disparatadas na tentativa de arranjar
uma explicação para o sucedido: talvez a avó do Dunas Lhe
tivesse ensinado a curar feridas com certas algas e plantas
raras; talvez fosse da maneira de colocar a alga sobre os
arranhões; talvez o próprio sal do mar, talvez aquela chuva
morna e doce...
- Desisto - desabafei. - Não sei o que fizeste, mas gostava
que me explicasses, Dunas. Por favor... Eu destesto ficar sem
compreender o que se passa, sobretudo o que me diz respeito!
Sorriu, de troça ou de pena da minha desorientação.
- Os arranhões passam num instante. - Depois, acrescentou em
voz baixa: - Quando são na pele...
A chuva abrandava, e o mar, mais calmo, espelhava agora asas
de gaivotas. Sentei-me outra vez junto dele e respirei fundo.
- Gostava de entender, Dunas, mas já vi que há muitas coisas
que preferes não contar. É pena. Devemos confiar nos amigos...
- Então porque não confias? - perguntou, levantando-se e
virando-se para a marginal.

70

Fiquei sem palavras. Mecanicamente, levantei-me também e


segui com ele para minha casa, num silêncio que fazia eco - um
ruído surdo de búzio adormecido.
Chegados ao terraço, preparava-me para entrar em casa quando
ele me estendeu a mão onde pusera a concha que trazia sempre
presa aos calções.
- Toma. Esta não vai fazer-te nódoas negras.
Fechei a concha na minha mão. Devagar. Como se ali estivesse
a alma daquele rapaz que eu não supunha existir em parte
alguma do planeta. Depois, tirei a concha de prata do meu fio
e dei-lha, sem a solenidade que gostaria de ter imprimido
Àquele gesto. Ele fez passar a argola no cordel que trazia
atado À presilha dos calções e olhou para mim, como se nada de
especial tivesse acontecido. Foi então que coloquei a sua
concha no meu fio e, felicíssima, corri para casa, adivinhando
que ele iria sumir uma vez mais sem dizer palavra. Não
suportaria vê-lo ir-se embora uma vez mais sem me prometer que
voltaria em breve.

71
Capítulo XII

NA ESQUADRA

Como o tempo continuava chuvoso, passei a manhã em casa, em


frente da máquina de escrever, À procura das palavras que não
vinham. Perto da hora do almoço, ouvi um burburinho na praia,
mas não fui ao terraço. O céu tinha aberto e o barulho vinha
certamente dos turistas do aldeamento novo que apareciam uma
vez por semana. Não tive vontade de ir À praia. O Dunas devia
estar longe, para não ver a sua praia ser uma vez mais
invadida e conspurcada. E era bom que não tivesse vindo mesmo,
porque a barulheira naquela manhã foi invulgarmente descarada.
A seguir ao almoço, coloquei a minha máquina na mesinha branca
do terraço e fui espreitar a praia. Já todos tinham partido e
deixado no areal montes de lixo que pareciam ali ter sido
colocados de propósito. Indignei-me. Não era normal uma
sujeira daquelas. Dir-se-ia que os invasores tinham querido
deixar a sua marca bem visível na praia,

73

e o mais curioso é que o lixo (latas vazias, pacotes, garrafas


e lenços de papel) estava estranhamente organizado em
montinhos aqui e ali como se o serviço de limpeza (que ali não
existia) tivesse começado o trabalho e parasse sem o ter
concluído. Que diria o Dunas quando visse aquele espectáculo?
Tive até vontade de ir eu própria apanhar todos aqueles
resíduos de uma civilização incivilizada e estúpida, só para
evitar outro desgosto ao Dunas. No entanto, o sol começou a
brilhar intensamente e achei melhor deixar a tarefa para o fim
da tarde. Assim, arrumei a máquina e peguei na bicicleta para
ir À aldeia tomar um cafezinho.
Quando me sentei À mesa, o empregado apareceu todo agitado a
perguntar-me se eu sabia do sucedido.
- Não. Não sei de nada - respondi, imaginando que se
seguiria uma coscovilhice qualquer.
- O garoto! Aquele que a senhora levou ao posto no outro
dia...
Sobressaltei-me.
- Aconteceu alguma coisa ao Luís?
- Se aconteceu! A esta hora ainda deve estar na esquadra.
Devia haver qualquer equívoco.
- Não pode ser! - disse, levantando-me imediatamente.
- Então vá lá ver! Parece que houve bronca na praia.
Disseram que o miúdo fez para lá das boas aos turistas. Armou
uma cena dos diabos e dizem que foi um estrangeiro que o
trouxe pelas orelhas À polícia.
Não quis ouvir mais. Perguntei qual era o caminho mais curto
para a esquadra e dirigi-me para lá com o coração reduzido a
um grão de areia.

74

Larguei a bicicleta e entrei esbaforida no posto da polícia.


A esquadra era húmida e escura, um cenário de Dickens.
Um bêbado ruminava uma lengalenga para a parede leprosa,
sentado num banco corrido de madeira carunchosa. Pus-me atrás
da cigana que era agora atendida ao guichet e, chegada a minha
vez, pedi esclarecimentos sobre o que se tinha passado com o
Dunas. O polícia respondeu-me laconicamente, dizendo que, se
eu não era da família, não podia dizer-me nada. Insisti então
veementemente para o ver nem que fosse por cinco minutos,
alegando que conhecia a avó e os familiares mais próximos. O
homem não acreditou, mas, vendo o meu ar aflito, mandou chamar
o rapaz, advertindo-me, porém, de que não poderia levá-lo dali
sem a avó aparecer e mandou-me aguardar no banco onde o bêbado
estava agora praticamente deitado. Encostei-me À parede e
fiquei À espera, numa ansiedade crescente. Meia hora mais
tarde vieram chamar-me. Entrei para uma sala onde havia apenas
uma mesa, duas cadeiras velhas e um candeeiro frágil suspenso
do tecto. Olhei em volta sem conseguir pensar no que quer que
fosse. A espera tornou-se longa, mas não fui capaz de me
sentar. Passou mais meia hora até que, pela segunda porta da
sala, vi entrar o meu amigo acompanhado por um guarda que mo
entregou, dizendo:
- Tenho ordens para o vir buscar dentro de dez minutos. Já
mandámos chamar a avó.
quando ia a sair, o polícia voltou-se para mim e depois
acrescentou:
- Esse garoto é maluco. Não sei se lhe é alguma coisa , mas,
se o conhece, aconselhe-o a tomar juízo para o bem dele. -
voltou a virar-se para a porta, mas não quis deixar de avisar:

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- E olhe, prepare-se, o que ele lhe vai contar é mentira.


Essa miudagem dá-nos cabo da cabeça e depois mentem como cães,
a dizer que a gente lhes bate.
Quando finalmente vi sair o guarda, agarrei com força na mão
do Dunas e depois, ainda em silêncio, abracei-o demoradamente.
A seguir ao abraço, reparei então na cara dele onde podia
claramente ver-se um inchaço junto À orelha direita e uma
vermelhidão escura sob um dos olhos. Abracei-o novamente e
pedi-lhe depois que se sentasse ao meu lado e me contasse
tudo. Ao contrário do que eu calculara, o Dunas tinha estado
na praia nesse dia e, vendo o lixo que os turistas estavam a
fazer na sua praia, resolvera dar-lhes uma lição, recolhendo
tudo num saco, como quem se dispõe a uma limpeza séria e
depois, para comunicar de forma mais eloquente a sua mensagem,
despejara pequenos montes de lixo sobre os veraneantes que
estavam deitados a apanhar banhos de sol... Um deles,
enfurecido, segurara-o com força pelo braço e trouxera-o À
esquadra para lhe darem uma lição de civismo.
- O que é civismo? - perguntou-me então, com a voz mais
serena do mundo.
Suspirei longamente e voltei a abraçá-lo. Quando me
recompus, apenas lhe disse:
- Deixa lá, Dunas. Já passou. Vais ver que não voltam a
sujar a tua praia. Eu vou ter mais atenção e vou vê-los do
terraço. Não te preocupes mais. A tua avó deve estar a chegar
e vai levar-te para casa. Tenho a certeza de que vai dizer ao
guarda que te fez isso na cara que ele não tinha esse direito,
e podes crer que eu vou também dizer-lhe umas verdades!
76

- Não faz mal. Já não dói. A sério! Só doeu foi ter de sair
da praia com o outro, o gigante alemão ou lá o que era, a
agarrar-me o braço. Ele nem me aleijou, só que eu queria
dar-lhe um pontapé e não consegui. Ele era mais alto do que o
meu pai!
- Já passou, Dunas. E daqui para a frente vai tudo correr
bem, tenho a certeza - disse-Lhe, passando a mão sobre os seus
cabelos loiríssimos e lisos como fios de seda doirada.
- Agora é melhor ires-te embora. A minha avó já deve estar
quase aí...
- Está bem, Dunas, eu vou. Mas promete que, assim que
puderes, vais visitar-me.
- Promete-me também uma coisa.
- É só dizeres - pedi-Lhe, esforçando-me por lhe mostrar que
qualquer coisa que eu pudesse fazer por ele me daria o maior
gosto.
- É a gaivota...
- Aquela que já não consegue procurar alimento e que vai ter
contigo atrás da rocha grande?
- Hum-hum...
- Que posso fazer, Dunas? Diz!
- É que os guardas vão dizer À minha avó para me pôr de
castigo em casa, não sei quantos dias, percebes?
Engoli em seco.
- Percebo, Dunas, mas talvez a tua avó não faça isso. Talvez
não.
- Bom, ela come qualquer peixe, estás a ver? Carapau,
sardinha, chicharro... Partes aos bocados e pões lá ao pé, mas
não te chegues muito perto, que ela pode morder... Não é por
mal, mas as gaivotas têm aqueles bicos muito duros e, sem
querer, a brincar, percebes?

77

- Fica descansado. Eu vou tratar da tua gaivota. Prometo.


- Todos os dias até eu poder lá ir?
- Todos os dias, Dunas. Já prometi...
- Tens de ter cuidado por causa do cão amarelo, que aparece
À mesma hora, mesmo ao fim da tarde, para roubar o peixe.
- Eu tomo cuidado. Eu afasto o cão, se ele aparecer.
Ficou mais tranquilo. Depois, levantei-me assim que o guarda
apareceu na sala. O Dunas despediu-se de mim com um sorriso
que recompensava tudo o que me tinha pedido para fazer e muito
mais. E saiu, sacudindo o ombro sob a mão possante do guarda.
Antes de abandonar a esquadra, não pude deixar de manifestar
toda a minha indignação pelos maus tratos que tinham infligido
ao meu extraordinário amigo. De facto, exaltei-me e fui longe
de mais, de tal forma que o polícia que me atendera me pediu
que me retirasse e me acalmasse.
Cheguei a casa desfeita. Estendi-me sobre a cama e foi então
que comecei a sentir um ardor intenso sobre o rosto, no mesmo
lado em que tinham batido ao Dunas. Fui ver-me ao espelho do
guarda-fatos mas não notei qualquer marca. Então, sem saber
porquê, sorri tranquila e feliz. Subitamente, olhei para o
relógio e vi que eram horas de ir ao encontro da gaivota.
Sobressaltei-me: não tinha peixe fresco em casa! Sem pensar
duas vezes, meti duas notas no bolso dos calções, corri para a
bicicleta e voei para a aldeia. Tinha de chegar À praia a
tempo, para não desiludir o meu amigo.
Na aldeia, a peixaria já tinha fechado, mas disseram-me que
fosse bater a uma das casas dos pescadores, que lá haveriam de
arranjar-me qualquer coisa. Voltei a voar na bicicleta e tive
sorte, porque logo na primeira casa onde bati me disseram que
podiam dispensar-me algum peixe.
- É para cozer ou assar? - perguntou a mulher do pescador.
- É para... Eu como cru... Habituei-me com um japonês meu
amigo - expliquei, tentando ser o mais discreta possível.
A mulher franziu a testa e inquiriu:
- Pescada ou carapau?
- O carapau serve. - Então, como ela me olhasse com a mais
sincera expressão de nojo e estranheza acrescentei: - Eu
tempero-o, claro, com azeite e vinagre...
A mulher encolheu os ombros, eu paguei e saí À velocidade da
luz para chegar a tempo À praia.

78 79

Capítulo XIII

PALAVRAS À BEIRA-MAR

Tal como havia previsto, o Dunas ficara de castigo três dias


em casa, e nesses três dias não faltei ao prometido com a
gaivota velha a quem o meu fantástico amigo teimava em
prolongar a existência.
Ao quarto dia, quando cheguei ao terraço depois do almoço
para continuar a trabalhar no meu romance, encontrei uma folha
escrita entalada no rolo da máquina. Retirei-a cuidadosamente,
com um receio parvo de a rasgar sem querer, e li:

Querida concha:

No mar existem muitas conchas. Umas bonitas e boas, e outras


más e feias. Procurei as conchas boas, mas não as encontrei.
Estavam partidas ou riscadas. Cortavam. Até que, um dia, a
maré trouxe até mim uma concha.

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Colorida e transparente. Essa concha abriu-se e eu sentei-me


lá dentro. Para sempre.
A gaivota continua bem. Vi-a da minha casa a voar em
direcção aos penhascos.

Li outra vez e mais outra até decorar todo o texto. Depois,


sentei-me À mesa e tive vontade, pela primeira vez há muito
tempo, de escrever um poema. Fechei os olhos sob o sol
generoso da tarde e escrevi mentalmente o que sentia naquele
momento. Não sei já exactamente que palavras acalentei no
coração para responder Àquela carta - a mais bonita que alguma
vez recebi. Mas sei o que senti: medo. Um medo terrível de não
saber o que fazer com aquele sentimento grande que se tornava
maior do que eu. Medo de não estar À altura, de o desapontar.
Medo de tudo não passar de um dos meus sonhos com coisas
improváveis. E, sobretudo, medo de o perder, embora tivesse
agora a certeza do que aquele Para sempre significava.
Levantei-me e aproximei-me do muro. Recordo claramente que,
naquele momento, preferi fechar os olhos para não o ver lá em
baixo na praia, onde calculei que estivesse. Na verdade não
sabia que dizer-lhe. E fiquei assim por muito tempo, apoiada
no muro, de cabeça escondida entre os braços. Quando por fim
abri os olhos, vi o Dunas no mar, deslizando suavemente em
direcção À praia. Ao ver-me, acenou-me atrás de uma onda. E eu
chorei. Não sei se de alegria ou de pena de não ser mesmo essa
concha transparente que ele pudesse transportar consigo nas
fantásticas viagens através das ondas,

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entre algas e estrelas-do-mar. Na verdade, tive uma vontade


súbita de pertencer-lhe como objecto querido que trazemos
connosco em todas as ocasiões.
Mas... como transformar um corpo grande e humano numa concha
pequenina que se leva presa À cintura por um cordel cor de
nada?
Quando dei por mim, estava na praia. Tirei os sapatos e
corri para a beira-mar. A água fria insistiu em acordar-me e
eu não queria.
- Está quentinha! - disse o Dunas, saindo do mar e
borrifando-me os cabelos com gotas salgadas.
- Está um gelo!
Riu-se.
- Senta-te aqui - pediu-me, puxando a dobra dos meus
calções.
- Sabes, Dunas...
- Encontrei um braço de lula gigante lá ao fundo - contou,
eufórico, apontando a linha do horizonte.
- Eu queria dizer-te que...
- Deve ter havido luta com um tubarão.
- Credo! Há tubarões por aqui!
Gargalhada estrondosa.
- Foi só para ver a tua cara! - E riu-se outra vez.
- Olha, Dunas, eu...
- Mas há raias gigantes. E lulas. E polvos de todos os
tamanhos, lá ao fundo, claro.
- Está bem, mas...
- Eu encontro alguns, quando mergulho do barco de um amigo
do Pedro, que também é pescador.
- Estou a ver. Agora, o que eu queria dizer-te era...
- Corais é que não há, e é pena.

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Impacientei-me:
- Chiu! Importas-te de me deixar falar?
Riu-se descaradamente, a desafiar-me.
- Estás zangada?!
- Por enquanto não, mas vou ficar, se não me deixares falar!
Detesto que me interrompam.
- Já sei tudo - atalhou com o maior descaramento.
- Sabes o quê, afinal, hein?!
- Ora, que gostaste do meu poema e que até o sabes de cor.
Levantou-se para sacudir a areia dos calções ruços. Eu
fiquei boquiaberta, mas não me dei por vencida:
- Por acaso enganaste-te. Não era isso que eu ia dizer-te,
embora seja verdade...
Com a ponta do pé atirou-me areia para o colo e voltou a
enfrentar-me:
- Era isso que me ias dizer, sim senhora. Eu sei.
- Então não vale a pena dizer-te o resto, pronto. E, nesse
caso, posso voltar para casa, não é?
Novo pontapé de areia, desta vez para a blusa.
- Se queres ir-te embora, vai. Não me importo.
Irritou-me aquela desfaçatez e foi a minha vez de lhe atirar
areia, mas, por azar, acertei-lhe em cheio na cara e nos
olhos. O Dunas correu para o mar e eu fui atrás para lhe pedir
desculpa. Como ele mergulhou, mergulhei também e fui apanhá-lo
um pouco antes da rebentação.
- Mostra os olhos! - pedi, receando tê-lo magoado com a
areia.
- Não faz mal...
- Desculpa - disse em voz baixa, tremendo de frio.
- Só se me disseres o que ias contar há bocado...

84

Olhei para trás. As ondas começavam a aumentar de tamanho e


tive medo.
- Podemos conversar antes na praia? - gritei-lhe, por causa
do barulho do mar.
- Não! Aqui! - ordenou.
Mergulhei para ganhar coragem e, quando vim À superfície,
procurei-o, mas já se tinha evaporado. Depois, quando vinha a
nadar em direcção ao areal, uma mão gelada agarrou-me pelo
ombro, imobilizando-me.
- Ah-ha! Apanhei-te!
Virei-me para ele. Os olhos, cheios de água, eram ecrãs
enormes que me olhavam agora com a maior curiosidade.
- O que eu ia dizer-te, Dunas, é que hoje compreendi...
- Que gostas muito mais de mim do que dantes. Eu também
gosto mais de ti.
Baixei a cabeça, desolada.
- Por que é que nunca me deixas acabar as frases?! Porquê!
- Porque não é preciso.
Viemos os dois a nadar até À praia. Depois, deixámo-nos cair
sobre a primeira faixa de areia seca. Em seguida, o Dunas
levantou-se bruscamente e deitou-se noutra posição, de cabeça
em frente da minha, cabelos colados aos meus, e murmurou:
- É tudo verdade.
- O quê?
- Aquilo que eu escrevi.

85

Capítulo XIV
A VISITA

Os dias que se seguiram foram inteiramente dedicados ao


trabalho que, afinal, me trouxera ali. O Dunas apareceu
diariamente, mas só para dizer olá, visto que entendeu
perfeitamente a minha necessidade de acabar o livro. Um dia,
porém, não apareceu e eu estranhei e senti a sua falta. No dia
seguinte, a mesma coisa, até que, no quarto dia de ausência,
preocupada e saudosa, resolvi montar na bicicleta e dirigir-me
À ilhota. Um barquito a remos, ancorado na pequena baía,
convidou-me a entrar e eu lá fui, manejando os remos o melhor
que podia até atracar do outro lado, onde se via uma alvíssima
orla de areia e, mais adiante, inúmeras dunas donde
despontavam plantas verde-seco. Ao fundo, entre pinheiros
magros, uma casinha branca, perfeitamente enquadrada na
paisagem, fez-me sentir a proximidade do meu amigo.

87

Bati À porta, de coração nas mãos. Uma figura alta e esguia


de mulher, espreitou por entre as cortinas de renda e veio
abrir-me a porta.
- Boa tarde. Eu...
- Faça o favor de entrar.
- Obrigada. Eu, bem, ultimamente, tenho sofrido de insónias
e, como me disseram na aldeia que a senhora vendia uns chás
excelentes...
- Insónias, é? - perguntou, fazendo sinal para que me
sentasse a uma mesa de pinho, junto da lareira extinta.
Depois, virou-se para a prateleira que havia na parede do lado
direito, tirou de lá dois boiões de vidro e colocou-os sobre a
mesa. Então, devagar, começou a escolher algumas ervas de um e
outro frasco, que ia colocando sobre uma folha de papel
vegetal.
Sem me conter, perguntei:
- A senhora é a avó do Luís, não é?
O rosto manteve-se atento À tarefa de preparação das ervas e
nem para mim olhou quando, pouco depois, retorquiu:
- Foi você que deu a concha de prata ao rapaz?
- Foi uma troca... - respondi, sem querer dar mais
explicações sobre um dos mais bonitos momentos que tinha
vivido com o Dunas.
- Tem filhos?
- Como?
- Pergunto se tem filhos.
- Não.
- Então sugiro-Lhe que arranje um - replicou, com alguma
agressividade.
- O Du..., o Luís está em casa? - perguntei, assim que
arranjei coragem.
- Tem estado adoentado. Nada de grave.
Sobressaltei-me.
- Que aconteceu?
- Uma febre. Já está a passar.
- Não seria melhor chamar...
- Um médico? - inquiriu com desprezo. - Só servem para
assustar as pessoas e levar-lhes couro e cabelo.
Não sabia que argumentar. A personalidade dela era
fortíssima, via-se bem até pelas rugas finas e fundas em
locais do rosto onde só o mau génio pode fazer rugas. De
resto, tudo nela era peculiar: o cabelo, de um cinzento que
não vinha em nenhum catálogo, o vestido de ramagens preto e
branco, cujo feitio complicado não consegui descortinar, as
mãos muito brancas e pigmentadas, invulgarmente bem tratadas
para quem não tem empregada, e o anel no dedo médio da mão
direita , de ouro finamente trabalhado donde sobressaía uma
pedra oval amarela. Sentia-me intimidada, como se perto dela
eu não passasse de uma criança com receio de fazer má figura.
No entanto, tinha de arriscar:
- Eu... gostaria muito de vê-lo, se não se importar, claro.
Não demoro nada, era só para lhe desejar as melhoras - pedi a
medo.
Foi nesse momento que se sentou À minha frente, do outro
lado da mesa, a dobrar cuidadosamente o pacotinho onde
colocara as ervas. Respirei fundo para tentar sentir-me um
pouco mais À-vontade. Um aroma intenso a plantas e a terra
húmida invadia a sala e contribuía para me estontear.
- O meu neto tem tudo o que precisa, compreende?
Tinha sérias dúvidas, mas respondi um sim atrofiado. Ela
prosseguiu:

88 89

- O meu único filho deixou-o aos meus cuidados, e sou eu que


o tenho criado desde que o pai foi para a América.
- Eu sei que ele está muito ligado a si.
Sorriu, como se as minhas palavras fossem absolutamente
escusadas.
- Quem foi que lhe indicou aquela casa?
- A que eu aluguei na praia?
- Sim.
- Uma amiga que lá passou férias há uns anos.
- O meu filho morou lá antes de se separar da mulher.
- O Du..., quero dizer, o Luís contou-me que viveu lá em
criança, com os pais.
Sorriu novamente, desta feita com ironia.
- Ela não é a mãe dele.
- Não?!
- Viveu com ele três anitos e quis até ficar com a criança,
depois do divórcio, mas eu não deixei, claro.
Não percebi aquela lógica, mas, para não a contrariar,
acenei cumplicemente com a cabeça. Depois, já mais
descontraída, perguntei:
- E a mãe dele onde está?
- Morreu ainda o meu neto era bebé de colo. Pneumonia...
- Ah... E o Luís sabe essa história?
- O pai contou-lhe, contra a minha vontade, bem entendido. O
meu filho era louco por essa rapariga. Conheceram-se um Verão
na praia. Ela veio de fora, era bonita... Enfeitiçou-o.
- Deve ter sido uma tragédia a morte dela.
- O meu filho nunca mais foi o mesmo. Tornou-se caprichoso e
agressivo, ele que era um paz-de-alma... Foi ela que o pôs
assim! Até o obrigou a prometer-lhe que a enterraria na praia!
Ela adorava praia...
Arrepiei-me.
- Na praia?! Na praia dos pescadores?
- Pois!
- E ele... cumpriu a promessa?
- Tal e qual. No dia em que ela morreu, eu não deixei e ele
obedeceu-me. Fez-se um funeral a sério, com missa e tudo antes
de a levarmos para o cemitério da vila.
- E então? - inquiri, sem compreender o que poderia ter
sucedido.
- Então, louco como estava, coitado, foi de noite buscá-la À
campa, embrulhou-a numa manta e trouxe-a para a praia, onde a
enterrou sozinho num lugar que não revelou a ninguém, nem a
mim! Depois, ficou estendido na areia até amanhecer...
Senti-me sufocar. O cheiro a ervas era agora praticamente
insuportável.
- O Luís não sabe isso, pois não?
- Infelizmente... Não pudemos evitar que lhe contassem.
Tive uma enorme vontade de chorar mas, em vez disso, desatei
a tossir desalmadamente.
- É alergia. Eu trago-lhe um copo de água - disse ela, com
uma doçura inesperada que me reconfortou por um instante.
Bebi a água (que me soube a uma fruta que não consegui
identificar) e levantei-me.
- Por isso ele não sai daquela praia... - murmurei junto da
janela.

90 91

- É impossível evitar que ele vá para lá! Só se eu andasse


atrás dele, bem vê que não posso. Aquele diabrete anda-me
sempre em correrias! E o meu reumatismo não me deixa em paz!
Já vê que não posso impedi-lo de andar por aí, todo o dia
metido na água como um peixe. Não posso fazer nada...
- Claro que não.
- O meu neto é muito teimoso...
- Eu sei - respondi-lhe sorrindo. Depois, voltei a arriscar:
- Será que posso ir vê-lo num instante?
Ela suspirou, encolheu os ombros e apontou-me a porta que
dava para o quarto do neto.
Entrei sem fazer barulho. O Dunas dormia o sono dos justos,
e eu fiz por não o acordar, mas, mal me aproximei - em pontas
dos pés - da cama de ferro branca, abriu os olhos e não
pareceu muito surpreendido por me ver ali.
- Vieste no barco?
- Hum-hum.
- Sabes remar?!
- Não, mas desenrasquei-me.
Neste momento, a avó entrou no quarto, e ele, sentando-se na
cama, pediu imediatamente:
- Sai, avó, por favor. Não me dói nada. Podes sair?
Contrafeita, ela saiu, olhando-me de soslaio.
- Estiveste tempo de mais dentro de água, aposto -
disse-lhe, forçando um sorriso para tapar a minha aflição de
não poder abraçá-lo por uma eternidade.
- Morreu...
- Hã? Quem?
- A minha gaivota...
Então era isso...
- Como foi?

92

- Ia dar-Lhe comida, mas ela não conseguiu... Nem me


reconheceu.
Foi nesse momento que reparei no penso, certamente feito
pela avó, que ele tinha no braço esquerdo.
- E isso? Escorregaste em alguma rocha, está visto.
Riu-se.
- Está visto que tu vês mal. Foi o cão.
- O amarelo?
- Chegou-se perto de mais, para roubar o peixe que eu
levava...
Peguei-lhe no braço e fiz-lhe uma festa demorada. Depois
senti o coração descompassado ao pensar que o cão, vadio, não
devia estar vacinado (nem o Dunas...). Lendo-me uma vez mais
os pensamentos, tranquilizou-me:
- A febre foi do sol. O cão não mordeu muito fundo. Estava
mais interessado no carapau.
Foi depois destas palavras que reparei numa ponta de cordel
escondida sob a almofada e, sem pedir, puxei-o. Ele, porém,
impediu-me de tocar na concha que vinha presa ao cordel e
fechou-a logo na mão.
- Desculpa o meu atrevimento - pedi.
Ele voltou a esconder a concha e o cordel debaixo da
almofada e rematou:
- Agora podes ir. Amanhã já vou ter contigo. Quero dormir.
Tenho um sonho para acabar.

* * *

Mal saí da casa do Dunas, dei uma corrida até ao areal e fiz
uma cova onde enterrei o saco das ervas.

93

Só depois me meti novamente no barco e remei até À outra


margem, onde a minha bicicleta estava no local em que a
deixara. Montei e, quando pus os pés nos pedais, uma sombra
agigantada surgiu ao meu lado, fazendo-me dar um salto que
quase me desequilibrava. Olhei. Era o velho da mata. Que faria
ali?
- Ah, é o senhor... Assustei-me...
Sorriu com o tal sorriso que eu já vira em alguém, meio
disfarçado pela barba hirsuta.
- Vou À pesca. Quer vir?
Não sabia que fazer.
- Agora?
- É uma boa hora. Melhor só À noite.
- Para dizer a verdade, nunca pesquei.
- Então há que aprender.
O convite era simpático de mais para recusar, por outro
lado, talvez fosse uma oportunidade de ouvir a história que eu
sabia que o velho guardava. Assim, desmontei da bicicleta e
caminhei ao seu lado em silêncio até À extremidade esquerda do
areal. Lá, ambos nos sentámos numa rocha polida e o velho
colocou o isco no anzol e lançou a cana com mestria de
profissional.
- Foi pescador? - perguntei olhando o manto azul quieto aos
meus pés.
- Como todos os da aldeia. Agora só pesco para mim...
Fez-se silêncio e eu pude distinguir mil ruídos diferentes
que vinham do céu, da terra e do mar. Depois, saiu-me uma
pergunta estúpida:
- Não se sente sozinho Às vezes?

94

Em vez de responder-me, passou-me a cana e acendeu o


cachimbo que retirou do bolso da camisa aos quadrados. De cana
na mão, pareceu-me ficar mais perto dele, quase íntima, como
se tivéssemos finalmente passado a barreira da cerimónia
inicial.
- Vim visitar o rapaz que vive na ilhota - contei-lhe.
- Tem estado doente.
Franziu a testa e, parecendo levemente consternado com a
notícia, perguntou sem olhar para mim:
- Coisa grave?
- Parece que não. A avó disse que ele só tem tido febre e
que está a passar.
A consternação deu lugar a uma perturbação maior que eu não
tinha dados para compreender.
- A Sara ainda me deixa morrer o miúdo, com as manias
dela...
Percebi que conhecia bem a avó do Dunas e tive o
pressentimento de que a revelação que eu esperava devia estar
a rebentar.
- Não sabia que a avó do rapaz se chama Sara. Achei-a...
interessante.
- Casmurra como uma mula...
Não contive o riso.
- Mas o neto gosta dela - continuei.
- De quem é que ele haveria de gostar?!
- O senhor... Como vive por estes lados conhece-os bem?
- Bem de mais - respondeu tão baixo que, por um momento, me
pareceu que a voz vinha do fundo do mar.
Era difícil prosseguir a partir dali. A cana mexeu e eu
sobressaltei-me:
- E agora! Que faço?

95

- Puxe devagar e vá enrolando aí. Com força!


Segui as instruções do velho e, para meu espanto, vi
elevar-se e contorcer-se sobre as águas um peixe cujo nome
desconhecia.
- E agora? - tornei a perguntar, muito entusiasmada.
- Pegue-o com cuidado e volte a deitá-lo À água. Vá,
deite-o!
- Como?!
- Deite-o ao mar!
Sem compreender, fiz o que ele me mandara, sentindo o peixe
dançar-me entre as mãos.
- Não percebo. Porque é que não ficámos com o peixe?!
- O primeiro que se pesca na vida deve ser devolvido Às
origens - foi tudo o que ele me disse, sem explicar a razão
daquele ritual. Devolvi-lhe a cana, meio amuada, e ele
passou-me o cachimbo.
- E disso, já fumou?
- Já. O meu avô também fumava cachimbo e uma vez
experimentei, Às escondidas. E sabe? Gostei, mas não tive
coragem de experimentar outra vez, porque rapidamente me
viciaria e isso seria bizarro demais...
- Agora pode voltar a experimentar, se quiser - disse,
apontando o cachimbo com a maior delicadeza.
- Olhe que vontade não me falta!
Pegou no cachimbo, limpou-o com uma ponta da camisa e
colocou-mo na boca, sem dizer nada. Depois, tirou outra
minhoca de dentro do saquito transparente, colocou a
contorcionista no anzol e lançou a cana À água.
- Por enquanto há cá peixe que chegue. Daqui a uns tempos,
não se sabe... Com as coisas que eles andam a derramar nos
mares, por esse mundo fora... Hão-de dar cabo de tudo, de
tudo...
Uma lufada fresca de vento fez voar o meu chapéu de palha
que caiu como folha de Outono sobre a água e logo começou a
afastar-se rapidamente, levado pela corrente.
Então, sem me dar tempo a impedi-lo, o velho passou-me a
cana, tirou o colete e a camisa, arregaçou mais as calças e
atirou-se ao mar. Levantei-me em sobressalto. Contudo, para
meu espanto, vi-o nadar como um atleta até alcançar o chapéu e
regressar, já mais lentamente, até À rocha.
- Ponha-o aí de lado e deixe-o secar.
- Obrigada. O senhor... Onde aprendeu a nadar assim?
Riu-se, com um certo orgulho.
- Desculpe o meu comentário, mas pensei que a maioria dos
pescadores não sabia nadar. Provavelmente é uma ideia
errada...
- Não, não é. Só que eu sempre gostei de mais do mar para
não o abraçar em toda a sua grandeza. - Fez um curto silêncio
e prosseguiu: - Dantes nadava muito , sempre À noitinha, até a
pele se me enrugar e os ossos estalarem de frio. Agora...
- O Du..., o neto da sua vizinha também passa a vida dentro
de água.
Sorriu, saboreando o sorriso.
- O garoto não saiu À avó, teve sorte...
- Saiu ao pai, talvez...
- Ou ao avô.
Calámo-nos. O que eu suspeitava, afinal, era verdade.
Precisava de saber mais:
- E porque não convive com ele?
Encolheu os ombros.

96 97

- É a vida.
- Não entendo.
- A velha é osso duro de roer.
- Bem sei, mas o Luís havia de gostar de passar algum tempo
consigo.
- Mal me conhece. Além de tudo, acho que tem medo de mim...
Devem ter sido as patranhas que a avó Lhe contou. Aquela nunca
me perdoou.
Sabia que estávamos a pisar terreno escorregadio, mas
senti-me suficientemente À-vontade para continuar o meu
inquérito.
- O senhor fez-lhe alguma...
- Um filho...
- De quem ela parece gostar muito.
- O rapaz ficou maluco com a morte da estrangeira.
- Não tem tido notícias dele?
- Sei que está lá para as Américas. Parece que tem um
restaurante, onde vende esparguete... Pf! Esparguete!...
- E a segunda mulher do seu filho?
- Não tem muito que se lhe diga. Deixou-o. Compreende-se. O
rapaz andava doido de todo. Aquele casamento não lhe serviu
para nada. A outra sim, fazia-o feliz. - Olhou longamente para
mim e, observando-me seriamente, rematou: - Já lhe disseram
que faz lembrar a estrangeira?
Parei de respirar.
- Como?
- Só que ela tinha o cabelo muito escuro e mais comprido.
Mas o rosto, os olhos, essa tristeza que vem de dentro, são
iguais. A Sara não lhe disse isso?

98

Comecei a arrepender-me seriamente de ter começado aquela


conversa que acendera cá dentro uma chama incómoda, a queimar
a pele do coração.
- Está a ficar tarde. Tenho de ir.
- Não diga ao garoto que estivemos a conversar disto. A
velha não pode nem ver-me e arranja sempre maneira de saber de
tudo.

* * *

Em casa, corri para o espelho do guarda-fatos e fiquei a


olhar-me, como se me visse pela primeira vez. Antes não
tivesse falado com o velho da mata! Antes não tivesse ido ver
o Dunas naquele dia. De repente, uma esperança reconfortou-me:
talvez o velho tivesse feito confusão, tivesse confundido
tudo. A mãe do Dunas morrera havia quase doze anos, como
poderia ele lembrar-se da cara dela? E depois, certamente
bebia muito, percebia-se isso pelos olhos, o que teria sido a
razão mais provável de Sara não o querer e o deixar viver
assim, abandonado À sua sorte, no meio da mata. Não, o velho
só podia ter feito uma enorme confusão, até porque para
coincidências já bastava a das conchas!
Nessa noite deitei-me sem jantar. O vento soprou com força,
varrendo o terraço como vassoura enraivecida, e o mar
chicoteava lá em baixo, ameaçando desfazer a praia. Encolhida
sob o lençol, recordo que adormeci a rezar para que o Dunas
não visualizasse nunca em mim qualquer parecença com a mãe que
ele mal conhecera.
99

Capítulo XV

UMA FOGUEIRA NA PRAIA

Como prometera, o Dunas veio visitar-me assim que a febre o


largou e, como habitualmente, apareceu no terraço de cabelo a
pingar. Porque o tempo mudara, vinha com uma camisa Às riscas,
azul e branca, de mangas arregaçadas.
- Não me digas que já foste mergulhar, Dunas! Olha que podes
ter uma recaída. - Calei-me. A minha voz soava a protecção e
isso incomodou-me e a ele também.
- Tão cedo não me apanham na cama! Fiquei farto! Até já
podia ter saído ontem, se não fosse a exagerada da minha avó.
- Ela sabe o que é melhor para ti.
- Não, não sabe, mas não faz mal, porque, um dia, vou viver
sozinho numa casa que eu vou construir ao pé da duna grande. É
um sítio muito bom para ter uma casa. Quando calhar levo-te
lá.
- Fica-te bem essa camisa!

101

Riu-se.
- Também gosto. Foi a minha mãe que ma deu quando fiz anos.
- A tua mãe? - inquiri, para logo de seguida me arrepender.
- Pois teve bom gosto.
- Não é a minha mãe verdadeira, sabes?
Quis mudar de assunto, mas já não fui a tempo.
- Quando será que vamos ter sol outra vez? Diz lá, tu que
sabes tudo!
- A minha mãe verdadeira tinha um vestido azul, que ficou lá
em casa.
Engoli em seco. Como desviar o rumo da conversa?
- Ainda não te contei: estou quase a acabar o meu livro!
- Tu devias ficar bem com o vestido dela. Uma vez, há muito
tempo, tirei-o Às escondidas da arca e peguei nele com as duas
mãos. Depois, levantei-o no ar e fui pôr-me À frente do
espelho que a minha avó tem no quarto dela. E foi fácil!
- Que é que foi fácil, Dunas? - balbuciei.
- Imaginá-la dentro dele, ali mesmo À minha frente, no
espelho. - E repetiu o gesto que fizera com o vestido.
Comecei a sentir outra vez um nó na garganta que queria À
viva força desfazer-se e desfazer-me em seguida.
- Tu tens é muita imaginação, Dunas - respondi, desviando a
cara e forçando um sorriso.
Ele, porém, continuou o seu discurso, alheio Às minhas
intervenções:
- As mulheres ficam quase todas melhor de vestido.
- Achas? - voltei a encará-lo, um pouco mais tranquila.

102

- Hum-hum. Mas eu disse quase...


- Pois disseste... Suponho que te referias a mim.
Acertei?
- Hum-hum. Gosto de te ver de calças de ganga e mais ainda
quando pões os calções de explorador! - Riu-se.
- São uns calções velhíssimos de que nunca fui capaz de
separar-me, Dunas. E sabes a melhor? Eram do meu irmão mais
velho. Um dia, enchi-me de coragem e pedi-lhos. Ele achou uma
parvoíce da minha parte, mas deu-mos.
Então, para meu completo alívio, acrescentou:
- Tu não ficarias bem de vestido, não.
- Nem com o que pertenceu À tua mãe? - arrisquei.
- Só com esse, porque esse ficaria bem a toda a gente.
Respirei fundo. Aquele receio estranho que me assaltara após
a conversa com o velho da mata começava a desvanecer-se.
- E que dizes da novidade sobre o meu livro, hein?
- Não foi para isso que cá vieste? - perguntou com o ar mais
natural do mundo.
- Ora, Dunas, claro que foi, mas não estás contente por eu
ter conseguido finalmente avançar? Sabes como foi difícil ao
princípio...
Riu-se com gosto. E eu mergulhei inteira naquele riso que
lhe iluminava os enormes olhos castanhos.
- No princípio não estavas com inspiração nenhuma! Nem um
bocadinho! Parecias uma aluna na escola a tentar fazer uma
redacção e a coçar a cabeça para as ideias saírem!
Corei como se tivesse nove anos e estivesse na presença da
professora primária.

103

- Também não é preciso fazeres troça. Sou uma pessoa normal.


Não estou sempre inspirada!
Riu-se outra vez, para me arreliar.
- Um dia vou ler um livro teu, quando tiver tempo e
pachorra.
- É preciso ter lata! - indignei-me a sério.
- Não. É preciso ter coragem para pegar num monte de folhas
e ler tudo do princípio ao fim. Eu não costumo ler muito,
percebes?
- Fazes mal. Podias aprender coisas importantes.
- Como o quê?
- Olha, por exemplo, coisas sobre o mar de que tu tanto
gostas. Sobre peixes, algas, gaivotas, barcos. Há livros sobre
tudo, Dunas. Sobre tudo!
- Não, não há - retorquiu, tristemente.
Pressenti que não devia explorar aquela questão, mas, sem
saber porquê, inquiri:
- Porque é que dizes isso? Foi só para me contrariares?
- Não há livros sobre uma coisa que eu gostava mesmo de
saber.
Olhei-o expectante. Depois, como não obtive resposta,
insisti:
- Sobre o quê? Posso saber?
- Não.
Dizendo isto, virou-se e correu para o muro do terraço. No
instante seguinte, voltou atrás, montou na minha bicicleta sem
pedir nada e gritou, já junto do portão.
- Vou dar uma volta. Depois trago-ta.
104

* * *

Fui deitar-me sem que o Dunas tivesse vindo devolver-me a


bicicleta. Adormeci muito cedo, contra o que tinha sido
habitual nos últimos dias. Contudo, poucas horas depois,
estava de novo desperta. Um aroma estranho entrara pela janela
do meu quarto e tive de levantar-me para ver o que era. Pus o
roupão sobre os ombros e debrucei-me no peitoril da janela. O
aroma intenso era afinal o cheiro a lenha queimada. Olhei para
o lado direito e vi um fumozinho ténue que vinha da praia. Sem
hesitar, vesti o roupão e saí para o terraço. Do muro
espreitei lá para baixo e foi então que se me deparou um
espectáculo simpático: o Dunas e quatro ou cinco pescadores
confraternizavam À volta de uma pequena fogueira na praia. Um
deles que não tomava parte da animada conversa, cantava uma
canção triste numa voz pastosa e quente. A seu lado, um vulto
magro de cão rafeiro abanava a cauda ao ritmo da música
indolente. Não consegui distinguir as palavras dos outros,
mas, de quando em quando, ouvia-os rir - um riso demorado -
embebido no vinho que iam bebendo da mesma garrafa. O Dunas
parecia escutá-los com atenção e, em certos momentos,
fixava-se no mar escuro perdendo-se no vaivém das ondas quase
adormecidas. A dada altura, o cão ladrou virado para a Lua
redonda, e todos se calaram e olharam o céu pejado de
estrelas. Tive vontade de me juntar a eles, mas a preguiça
impediu-me de me ir vestir para sair de casa. Por esta razão,
fiquei a vê-los do muro até o último homem partir em busca da
sua sorte. O Dunas ficou um pouco mais na praia, até a
fogueira se extinguir completamente.

105

Depois, como havia um luar generoso, consegui distinguir a


cabeça loura do meu amigo, em frente do mar. Subitamente,
veio-me À ideia o pensamento macabro de que, sabendo o Dunas
do destino que fora dado À mãe, talvez se pusesse a procurá-la
sozinho, nas noites enluaradas como aquela. Senti as pernas
fraquejar e, sem me dar conta do que estava a fazer, desci até
À praia.
Mal pisei o areal fofo e frio, uma sensação desagradável
colou-se-me À alma e, por uns segundos, não consegui mexer-me.
Para a maioria das pessoas, todas as praias têm um fascínio
especial À noite. Para mim, estar ali Àquela hora era
praticamente tenebroso. Quando consegui respirar fundo, olhei
em volta e, sem compreender porquê, não encontrei o Dunas em
canto algum da praia. Então, pensando ter descoberto o seu
esconderijo, dirigi-me À rocha grande, aquela onde ele se
encontrava com a gaivota. Apenas dei com a minha bicicleta
deitada na areia ao lado da rocha... A humidade caía, gelando
o tecido fino do meu pijama. Não havia vento, só se ouvia o
ruído suave das ondas. Ao longe, a presença reconfortante dos
barquinhos dos pescadores com as suas minúsculas luzinhas
fez-me sentir mais calma. Porém, numa fracção de segundo, uma
mão vinda do nada agarrou-me os cabelos soltos e ouvi, numa
voz arrastada, absolutamente do outro mundo:
- Esta é a praia pro-i-bi-da... Quem és tu, mulher, que te
atreves a vir aqui de nooooooite?...
Virei-me, assustada como um coelho.
- Que maldade, Dunas! E se eu tivesse aqui um ataque de
coração? Eras tu que apanhavas um valente cagaço, como tu
dizes.
Riu-se descaradamente.
- Vieste ver os barcos?
- Não, foi a ti que vim ver. Não acho bem que andes por aqui
a estas horas, palavra que não acho. É tardíssimo. E está um
frio de rachar!
Ainda atrás de mim, abraçou-me carinhosamente como se eu
fosse uma criança e ele o pai. E, sem me largar, explicou:
- Não há problema nenhum. Posso vir aqui a qualquer hora.
Esta é a minha praia, lembras-te? Então Não vês que não há
razão nenhuma para ter medo?
Falara novamente como se fosse adulto, o que quase me
enervou.
- Ouve láagora a sério: não te parece que já devias estar a
dormir.
- E tu? Não pensas escrever amanhã? Não?
Se não escreveres diz já, que podemos ir dar um grande
passeio.
Posso levar-te ao sítio...
Prometia mistério, mas voltei À carga:
- Talvez não escreva amanhã, mas hás-de concordar que não é
boa ideia comparares-te comigo no que se refere a horas de
deitar, Dunas...
- Nem no estilo dos mergulhos... - troçou, voltando a
puxar-me alegremente os cabelos.
- Porque é que hás-de sempre ser tu a ganhar quando estamos
a falar?! Isso irrita-me um bocado, Dunas. Qualquer dia, deixo
de conversar contigo, acabou-se!
- E então como é que fazes? Escreves-me cartas na tua
máquina, é?
Virei-me para trás, para o ver. A doçura que o envolvia
acalmou todos os meus receios e até o mar deixou de se fazer
sentir.

106 107

Coloquei o seu rosto entre as minhas mãos, soprei-lhe os


cabelos da testa e disse:
- Vou para casa. Estou a ficar com sono. Faz-me a vontade e
vai também...
- Só depois de dar um mergulho. A água deve estar quentinha!
- Dunas!

108

Capítulo XVI

A DUNA SECRETA

Tal como havíamos combinado na véspera, depois do


pequeno-almoço parti com o Dunas rumo ao sítio. Eu conduzi a
bicicleta e ele foi sentado entre mim e o guiador, em
silêncio. Chegados ao lugar onde a terra mergulhava na lagoa,
desmontámos, encostámos a bicicleta a uma árvore e metemo-nos
no barquito que nos levou À outra margem. O Dunas insistiu em
remar sozinho, o que fez com toda a perícia. Já do outro lado,
vi-o sentar-se no areal branco.
- Cansado, não? Remaste depressa de mais.
- Estás sempre a enganar-te - disse-me, abanando a cabeça
loira. - É que eu não sei se sempre hei-de levar-te ao sítio,
percebes?
- Esta agora! - reclamei. - Porquê?
- Porque é o lugar mais bonito e importante do mundo para
mim.
Amuei.

109

- E achas que eu não mereço ir lá contigo, é isso?!


Calou-se. Depois, lentamente, levantou-se, deu alguns passos
em frente e, sem se virar para mim, declarou:
- Podes seguír-me.
Franzi o sobrolho e lá fui, atrás dele, porque percebi que
ele era o líder incontestável daquela expedição. Avistámos a
casa onde ele morava, mas não fizemos qualquer comentário.
Depois de mais alguns minutos de caminhada, o Dunas mandou-me
parar e correu para a duna grande, desaparecendo atrás dela.
Fiquei À espera, em pé, sob um sol que começava a queimar.
Quando vi a mão dele acenar-me para que me aproximasse, prendi
o cabelo atrás com o lenço e fui ter com ele.
- É aqui - disse, como se estivesse a mostrar-me um local
histórico.
Olhei a duna, dei a volta devagar, mas não encontrei nada
que me chamasse a atenção. No entanto, não quis desapontá-lo:
- É um lugar realmente... interessante, Dunas.
Sorriu.
- Venho cá muitas vezes, quando acordo de manhã com um
pesadelo.
- Tens assim tantos pesadelos?
- Hum-hum. Mas já me habituei. É sempre o mesmo.
A curiosidade subiu-me À garganta:
- E... como é esse pesadelo que costumas ter?
Não respondeu. Ajoelhou-se sobre a areia e começou a tocar
nas plantas secas que despontavam da duna e a alisar a areia,
como quem arruma a casa.
- Só eu é que aqui venho - contou, com uma pontinha de
orgulho na voz. - Dantes, vinha também o meu pai...

110

- Vinha contigo, era?


- Não. Também vinha sempre sozinho. Acho que era para pensar
no futuro.
- Estou a ver...
- Eu ficava a vê-lo de longe. Seguia-o sem ele dar por nada.
Nunca percebeu que eu estava a vigiá-lo.
- E tu querias que ele percebesse?
Calou-se.
- Isto aqui é, de facto, muito sossegado. Bom para pensar...
no futuro - disse-Lhe, só para quebrar o silêncio.
- E no passado.
- Também, claro. Mas creio que não é muito bom pensar de
mais no passado, não achas, Dunas? Já lá vai não é?
- É pena...
- O teu pai há-de voltar um dia, tenho a certeza. E há-de
conversar muito contigo e há-de descobrir o rapaz fantástico
que tu és. É só uma questão de tempo, vais ver.
Sorriu, como se não acreditasse em nada do que eu acabara de
dizer.
- Sabes o mais estúpido? - perguntou, com o mesmo sorriso do
velho da mata. - É que a América não pode ser mais bonita do
que isto aqui. Não pode!
- Concordo. Mas as pessoas nem sempre procuram o que é mais
bonito, Dunas. Às vezes não sabem sequer o que é mais bonito,
compreendes? Aquilo que para ti é extremamente simples pode
não ser visível para outros.
- Mas tu também achas que este é o sítio melhor do mundo,
não achas?

111

- As pessoas são todas diferentes. O teu pai é capaz de não


pensar como nós, de não gostar das mesmas coisas de que
gostamos. E tem esse direito.
- Porquê?...
Calei-me. Um albatroz sobrevoou a duna em voos circulares e
depois seguiu rumo Às nuvens altas. Seguimos-lhe a trajectória
em silêncio, virados para o céu. Então, cansada daquela
posição que me incomodava o pescoço, deixei-me descair e
encostei-me À duna.
- Aí não! - gritou-me.
Rapidamente mudei de lugar, sem fazer perguntas.
- E aqui, posso?
- Sim - respondeu, um pouco embaraçado. Depois, resolveu
explicar: - Onde tu estavas há umas coisas minhas, que eu
guardo há muito tempo.
- Uma espécie de esconderijo?
- Pois.
- Está bem, Dunas, não é preciso contares-me nada sobre
isso.
- Eu sei, mas e se eu quiser contar?
Sorri-lhe.
- Gostava...
- É ali que eu guardo algumas coisas que encontro e que são
só minhas.
- Entendo. Obrigada por me teres contado. Acho que ficámos
ainda mais amigos, não te parece?
- Parece-me que não importa o que eu guardo ali debaixo,
para ti não faz diferença, o importante era que eu te dissesse
alguma coisa. E se fosse... uma caveira?
Assustei-me a valer.
- Que disparate, Dunas!

112
- Porquê? Uma caveira não tem nada de especial. É feita de
ossos feios. Toda a gente tem caveiras. Tu, eu, todas as
pessoas. Não há quem escape.
Arrepiei-me, ao mesmo tempo que me deu alguma vontade de rir
o sem-cerimónia com que o Dunas falava da nossa condição de
mortais.
- Uma caveira não é coisa que valha a pena esconder, por
isso mesmo que tu disseste. Não tem nada de especial.
- Então porque foi que tiveste medo? Até te arrepiaste...
- Medo? Eu? Ora, Dunas, apenas achei a ideia... bizarra -
respondi, sabendo que ele iria mudar o rumo da conversa para
aquela palavra, certamente nova para ele.
- Bizarra quer dizer esquisita, não é? Pois mas, como eu
estava a dizer, eu sei que tu tens medo dos mortos, e eles não
fazem mal nenhum.
Comecei a sentir-me um pouco agoniada. E o calor apertava.
- E se fôssemos dar um mergulho, Dunas, hein? Está um bocado
abafado, não concordas?
Levantou-se e, sempre a sorrir com algum sarcasmo , deu-me a
mão e levou-me até À beira-mar. Aí, tirámos a roupa e, em fato
de banho, entrámos depressa na água, onde nadámos até não
termos mais forças. De regresso À praia, sentámo-nos na areia
a secar o corpo.
- Soube-me muito bem este banho, Dunas. Melhor do que nenhum
outro até hoje!
- Passou-te?
- O quê? - inquiri, fingindo não perceber a que se referia o
meu perspicaz interlocutor.

113

- O cagaço, que é que havia de ser?!


- Fica sabendo que eu não tenho medo nenhum dos mortos,
palerma. Não acredito em fantasmas nem em coisas ligadas a
espiritismos, estás a ouvir?
- Estou a ouvir, mas sei que tens medo.
- És muito teimoso!
Fez uma cara séria e depois ficou pensativo por um instante.
- Sabes, eu também não acredito em fantasmas, apesar de
nunca ter pensado muito nisso, nem conheço ninguém que
acredite.
- Não? Pois eu conheço... Quero dizer, há fantasmas e
fantasmas - disse, achando que ele não veria o fundo da
questão.
- Pois há. Os teus fantasmas são pouco espertos, não têm
inspiração nem querem que tu tenhas, Às vezes. Por isso apagam
a folha de papel que tens na cabeça, cada palavra que tu ias
escrever desaparece e deixam a folha toda branca, como eles
são.
Olhei-o estupefacta.
- De onde é que tiraste essa ideia?
- Ora, de onde é que havia de ser?!
E não tocou mais no assunto.
O sol depressa nos secou os corpos, deixando aparecer
manchas de sal na nossa pele.
- Devia ter posto creme antes de sair de casa - lembrei-me.
- Estou a ver que hoje o sol pegou-me.
Deu uma gargalhada.
- Estás preocupada com aquilo do ozono?
- Se sabes dessa tragédia, também tu devias preocupar-te,
Dunas. É um assunto sério.
- Pois é, mas a mim não me afecta. Eu e o sol somos amigos
de longa data, como diz a minha avó. Nunca fiquei com
queimaduras. Isso dos cremes é mais para as pessoas que vêm
das cidades. Eu não preciso. Nasci aqui...
- Tens sorte... Mas, mesmo assim, deves ter cuidado.
A tua pele, por baixo desse bronzeado invejável, é com
certeza muito branca.
- Por acaso até é - disse, rindo-se. - Vê-se onde os calções
tapam.
Gostei de ter razão, pelo menos uma vez.
- Foi na escola que te falaram do buraco na camada de ozono?
- Foi e estou farto de olhar lá para cima a tentar descobrir
esse tal buraco, que eu vejo muito bem até de noite! Mas...
nada. O céu continua liso para mim.
- Nem tudo se vê só com os olhos, Dunas.
- Pois, mas eu não sou cientista. Não tenho, como é que se
chama, microscópios para ver o que se passa no cé u.
- Telescópios! - corrigi.
Ele, contudo, não pareceu ligar importância À minha
correcção e levantou-se de repente. Depois, mansamente
concluiu:
- Se eu tivesse esses tais telescópios, ficava À espera de
noite, o tempo que fosse preciso!
- Preciso para quê?
- Para ver Deus a deitar-se.

114 115

Capítulo XVII

PASSADO E FUTURO

Dois ou três dias mais tarde, ouvi uma tosse aflitiva vinda
do terraço. Era manhã. Levantei-me de um salto e fui ver,
temendo o pior. Virado para o muro, o Dunas esforçava-se para
respirar e, sem qualquer cerimónia, mal me sentiu aproximar,
parou de tossir, fez uma cara muito séria e depois largou uma
gargalhada estridente.
- Indecente, Dunas! Isso não se faz! Acreditei mesmo que
estavas com um ataque! - indignei-me, falando tão alto como
onda em dia de tormenta.
- E achas que eu teria um ataque ao pé do mar?!
Ainda exaltada, retorqui:
- Não sabia disso, mas não devias ter feito uma coisa
daquelas. Pensei que...
- Eu morria? - troçou. - Deixa lá, quando eu morrer, podes
ficar com a minha caveira - acrescentou brincando novamente
com a morte.
- Credo! Que obsessão!

117

- Quê?
- Essa tua mania de falares de coisas que magoam!
Ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, como quem
está a reflectir, concluiu:
- Morrer não dói nada. Eu sei... Já morri uma vez e vou
morrer outra vez quando te fores embora.
Calei-me, compreendendo que a primeira vez se deveria ter
dado aquando da partida do pai para a América.
- Sabes perfeitamente que um dia vou ter de voltar para
minha casa, Dunas - disse-lhe com a maior serenidade de que
fui capaz.
- Ora! Só voltas se quiseres. Tu és crescida, por isso não
tens quem mande em ti.
- Não é bem assim...
- Não?! Então quem é que manda em ti? - inquiriu muito
surpreendido.
- Não se trata de haver ou não quem mande em mim.
Precisamente porque sou crescida, como tu disseste, assumi
certas responsabilidades, compromissos, percebes? São coisas a
que não posso virar as costas definitivamente.
- Tretas...
- Não, não são tretas, Dunas. São coisas sérias. É a minha
vida!
Retirou-se para o outro extremo do terraço e eu fui para
dentro. Tomei um duche, vesti-me e voltei ao terraço com um
copo de leite frio na mão.
- Queres comer alguma coisa? - perguntei-lhe, encostando-me
ao muro, junto dele.
- Espero que não te vás embora já... - murmurou, sem me
olhar.

118

- Não, ainda fico por mais algum tempo.


- Até acabares o livro?
- Hum-hum - respondi, sorrindo.
- Então espero que não acabes nunca! - riu-se.
Passei-lhe a mão sobre os cabelos e olhei-o atentamente.
- Sabes, Dunas, para mim também não vai ser fácil ir-me
embora, como para o teu pai não deve ter sido.
- Ora! Para o meu pai foi a coisa mais fácil do mundo.
Foi de camioneta até À cidade e apanhou um avião, pronto.
- O que eu quis dizer foi que lhe deve ter custado muito
separar-se de ti. Tenho mesmo a certeza disso.
- Não. Quando ele escreveu À minha avó até disse que não
estava preocupado porque me tinha deixado bem entregue... O
meu pai não gosta de se preocupar. Acho que não aguenta certas
coisas...
Baixei os olhos, perante aquela perspicácia toda.
- Bom, falando de outro assunto, hoje tenho de ir À vila,
aos correios. Preciso de fazer um telefonema para a minha
editora. Queres vir?
- Que é que vais dizer ao telefone?
- Vou dar notícias do meu livro.
- Que notícias?
- Mas que interrogatório! Afinal, queres vir comigo ou não?
Pensou um pouco e declarou:
- Hoje tenho de ir À mata, buscar umas ervas para a minha
avó. Não posso ir contigo.
Achei que mentia, mas não quis contradizê-lo.
- Então vemo-nos amanhã, pode ser?
Ia a saltar o muro, mas recuou.

119

- Quanto é que falta para acabares o teu livro?


- Hã?
- Quantas páginas é que ainda te falta escrever?
Não contive um sorriso.
- Não sei, Dunas.
- Não sabes?!
- Quando se começa uma história, mesmo que se saiba como vai
acabar, é difícil prever quanto tempo e quantas páginas vamos
ocupar. É assim...
Torceu o nariz.
- Quer dizer que ainda pode demorar, não pode?
Voltei a sorrir-Lhe, para o tranquilizar. Depois, saltou
então o muro e dirigiu-se À praia. Lá de baixo, gritou-me:
- Hoje não vale a pena escreveres. Já vi que não estás muito
inspirada.

* * *

Depois de sair dos correios, resolvi ir tomar um café antes


de fazer algumas compras para a casa. Então, ao atravessar a
rua, cruzei-me com o velho da mata, que vinha com uma garrafa
de vinho tinto entalada no braço, certamente comprada na
taberna que ficava ao lado da mercearia. Cumprimentei-o, mas
não obtive resposta. Acho que nem me ouviu, entretido como ia
nos seus pensamentos. Quem não deixou de reparar foi o
empregado do café, que logo quis meter a sua colherada:
- Já conhece o velho?! Quase nunca sai da toca.
Não gostei do desrespeito com que ele falara.
- Já conheço, sim senhor. E não vive em nenhuma toca. É um
homem muito gentil até.

120

O empregado franziu o sobrolho e perguntou:


- É só o cafezinho?
- Só - respondi secamente.
Depois, quando trouxe o café, voltou À carga:
- Ele não é homem para se meter em alhadas, não, mas...
- Como? - perguntei, levantando os olhos do jornal que
comprara À porta do café.
- O velho, estava a falar do velho. Só é pena beber tanto,
sabe...
- Não, por acaso não sabia - retorqui, tentando mostrar o
maior desinteresse em prolongar aquela conversa.
- Pois é, se não fosse o álcool, a velhota até era bem capaz
de lhe lavar as meias...
Não me contive:
- O senhor parece saber tudo de toda a gente! É fantástico!
Porém, o empregado entendeu as minhas palavras como o maior
elogio que poderia receber e apressou-se a dar razão ao meu
comentário:
- Sempre cá vivi, compreende... Mas, voltando ao velho,
dizem que ele ficou pior desde que o filho se foi embora.
Também não é para admirar. Dizem que gostava muito dele.
Subitamente, a conversa começou a interessar-me.
- E o filho? Também gostava dele?
- Ná. Aquele só gostava era da estrangeira. Mais nada. Foi
isso que deu cabo dele. Endoideceu de todo. Parecia um lobo.
Andava por aí a vaguear pelas ruas sem olhar para nada que se
visse, de olhos muito abertos...

121

Virou do juízo, compreende? Agora, parece que já lhe passou.


Dizem que arranjou outra lá na América, mas eu só acredito
quando vir com estes que a terra há-de comer. Um homem que faz
o que ele fez nunca mais pode regular bem! É o que eu acho.
Coitada da mãe dele... Não é que essa também tenha os
parafusos todos, mas aquilo foi do desgosto, que ela dantes
até era simpática. Vinha muitas vezes cá À vila e tudo, até À
escola ela ia saber notícias do neto, para ver como ele ia nos
estudos.
- E agora já não vai?
- Ná. Também já tem muita idade, não é? E o reumático é o
diabo, eu sei, que o meu pai também sofre como um cão,
desgraçado...
- E que é que o senhor acha que vai acontecer depois de ela
morrer?
- A velhota? Oh, sabe-se lá. Talvez a segunda mulher do
filho venha buscar o miúdo, sabe-se lá. Aquela gente é um
bocado esquisita, compreende? Não é gente normal, como nós.
Apaguei a custo o sorriso que me invadiu a cara sem me
avisar.
- Compreendo... Bem, queria pagar.
Voltei para casa na minha bicicleta, sempre a pensar no que
o futuro reservaria ao Dunas. E tudo era realmente muito
incerto, como o empregado dissera. De facto, tudo poderia
acontecer, no entanto, acalentei uma esperança de que o pai
viesse buscá-lo quando chegasse o momento e o levasse
finalmente para viver com ele. Depois, uma angústia veio
afogar-me os pensamentos: que faria o Dunas longe da sua
praia, do seu mar?!...

122

Capítulo XVIII

O INCëNDIO

A minha curiosidade em relação ao velho da mata tinha


crescido após a conversa com o empregado do café. E depois
havia também aquela história de ele me achar parecida com a
mãe do Dunas. Era uma ideia que me incomodava e que eu
precisava de apagar. Assim, naquela tarde acabei a escrita
mais cedo e fui de bicicleta até À mata. Podia ser que tudo
não passasse de confusão do velho ou da influência da bebida.
De qualquer forma, ao penetrar pelos caminhos estreitos entre
os pinheiros , fui invadida por um mal-estar, um arrepio.
Depois, À medida que me fui aproximando, comecei a sentir um
cheiro a queimado. Com o coração cada vez mais pequeno,
pedalei energicamente até chegar À clareira. De lá, pude
distinguir as chamas e a fumarada intensa que pairava no ar,
trazendo a notícia que logo adivinhei. Avancei um pouco mais,
depois desmontei da bicicleta e fui a correr até À casa do
velho pescador.

123

As chamas iam altas e não pude conter uma tosse que mal me
deixava respirar. Chamei, gritei, mas, na verdade, nem sabia o
nome dele. Despi o casaco de malha, coloquei-o sobre a cabeça
e, com muito custo, entrei pela porta já escuríssima do fogo.
O velho estava deitado, junto a uma das paredes, encolhido
como um feto, e foi difícil chegar até ele por entre as chamas
e o fumo. Então, convocando todas as minhas forças, arrastei-o
até À porta e depois para fora da casa. Estava ainda vivo,
mas, de tão bêbado, não conseguia mexer-se nem falar. Tinha a
cara e as mãos queimadas, e a roupa chamuscada e negra. Era
urgente que alguém aparecesse e me ajudasse a levá-lo até ao
posto, mas, por mais que eu gritasse por socorro, só os
pássaros, assustados com o fumo, emitiam uns trinados
aflitivos, cruzando-se com o som da madeira que estalava aos
poucos. Tentei pela milionésima vez levantá-lo, mas em vão. O
corpo era pesado e ele não estava em condições de ajudar.
Desesperada, corri até À lagoa, deixando o homem estendido na
terra. Ao ver o barco a remos, pensei se valeria a pena
atravessar para o outro lado, no intuito de chamar o Dunas ou
a avó. Acabei por entrar no barquito e remar o mais depressa
que pude até À outra margem. Chegada À casa branca, bati À
porta. Ele não estava, e a avó veio atender-me. Rapidamente,
expliquei-lhe o que estava a passar-se e ela, para meu
espanto, prontificou-se a ajudar-me. Regressámos ambas no
barco, que ela fez questão de remar, com uma mestria
invejável. Depois, quando chegámo junto do velho, ela
aproximou-se, ajoelhou-se ao lado dele e ficou a observá-lo,
tentando tomar-lhe o pulso. No entanto, como os braços estavam
demasiado queimados, não foi possível sentir-lhe a pulsação e
foi então que Sara se curvou sobre o rosto do pescador, para
ver se ele respirava. Durante este tempo, mantive-me de pé,
sem saber que fazer.
Quando, por fim, sugeri que ela ficasse ali enquanto eu ia
de bicicleta pedir ajuda, Sara abanou a cabeça e respondeu,
quase sem mexer os lábios:
- Não vale a pena...
Ajoelhei ao seu lado, sobre a terra quente. Só então olhei
para a casa, em completo estado de ruína. O fogo estava
extinto, mas o ar era ainda uma fornalha. Quando voltei a
virar-me, percebi que ela rezava baixinho. Depois, suavemente,
como quem acaricia o rosto de uma criança, fechou os olhos do
pescador.
- Deve ter adormecido e deixado a vela ou o candeeiro
aceso... - opinei, olhando para o velho.
- Eu sabia que o vinho ia dar cabo dele - disse ela,
levantando-se devagar. - Graças a Deus que as chamas não
chegaram Às árvores! - Depois, virando-se para o corpo,
acrescentou: - Tantas vezes lhe pedi... Tantas vezes...
Falava com uma sinceridade e uma ternura que me comoveram.
- Ele tem família, quero dizer, para além do filho?... -
perguntei, limpando a cara da fuligem que se colava a todos os
poros.
- Família? Não... Era só ele e um irmão que morreu no mar.
Respirei fundo, tentando controlar a tosse.
- Nesse caso, será melhor ir À aldeia pedir que telefonem
aos bombeiros para que venham buscá-lo - sugeri.
Ela, contudo, encolheu os ombros. Depois, limpando uma
lágrima imprevista, anuiu:

124 125

- Vá lá então, que eu fico aqui...


O Sol estava a pôr-se. As pernas doíam-me do esforço que
fizera e não me deixaram pedalar tão depressa quanto eu
desejava. Na minha cabeça começava a formar-se com nitidez a
imagem do velho, do seu sorriso, no dia em que estivéramos a
pescar na lagoa. Depois, aquela imagem foi dando lugar ao
rosto do Dunas, iluminado pelo mesmo sorriso. Que fazer se me
cruzasse com ele a caminho da aldeia? Porém, não o vi nem
quando passei pela praia. Talvez tivesse ido nadar para longe
ou andasse a mergulhar em busca daquelas coisas bonitas que
depois guardava no sítio.
Os bombeiros lá foram buscar o velho e levá-lo para a vila.
Não se surpreenderam com a notícia do incêndio, sabendo como
ele bebia. De facto, foram até de uma frieza que me magoou. Eu
assisti a tudo, como se a minha presença se tivesse, de
súbito, tornado inevitável. Na verdade, percebi que tinha de
estar ali até ao fim. Era como se as escassas horas que
passara com o velho da mata me tivessem ligado a ele para
sempre, mas, no fundo, eu sabia que tudo partira daquele
sorriso familiar que jamais me sairia da memória.

126

Capítulo XIX

CONTANDO ESTRELAS

No fim-de-semana que se seguiu ao enterro do velho (ao qual


quase ninguém assistiu), um bando vermelhuço de turistas
nórdicos invadiram novamente a praia dos pescadores. Sentada
no terraço em frente da minha velha máquina, pude ver
nitidamente a presença loira do meu amigo, sentado À beira-mar
como quem guarda a praia. Chamei-o duas ou três vezes, mas fez
que não me ouvira , só para não largar o posto de vigia.
Desconfiado e atento , seguia os passos de cada turista, de
rosto sobranceiro e incómodo. Só quando o grupo arrumou a
tralha e partiu no autocarro de dois andares, ele se levantou.
Depois, olhando a praia toda, começou a recolher o lixo
deixado no areal. Então, como já não pudesse ficar por mais
tempo a vê-lo sem nada fazer, desci até À praia e, em
silêncio, ajudei-o na recolha dos papéis, pacotes e frascos
vazios.
- O velho morreu - disse-me ao cabo de muito tempo.

127

- Eu sei.
- Estive a pensar numa coisa - murmurou, sentando-se ao meu
lado depois de ter despejado os últimos detritos no caixote. -
Era capaz de reconstruir a casa da mata...
- A que ardeu?
- Sim. Aquilo não é de ninguém...
- Mas para quê, Dunas?
- Ora, para ir para lá quando me apetecesse.
- Olha que não há-de ser fácil. Ficou tudo em ruínas.
- Eu fazia aos poucos. Talvez o Miguel e o Pedro me
ajudassem. O pai deles tem uma carpintaria.
- Ouve lá, Dunas, tu sabias quem era o velho, não sabias?
- Toda a gente sabe isso - replicou, encolhendo os ombros. -
Mas a mim ele não me era nada. Nunca falou comigo...
- Talvez não tenha tido oportunidade...
- Não interessa.
Os olhos estavam húmidos e a voz vinha não sei donde.
- Nunca tiveste vontade, curiosidade de falar com ele? Era
um homem interessante, sabes?
- O meu pai e ele não se davam. E a minha avó não o gramava.
- E... tu?
- Eu quê?
- Tu também não gostavas dele?
- Sei lá. Acho que uma vez estive com ele, quando era
pequeno, tinha aí uns cinco ou seis anos. Foi um dia em que o
meu pai me deixou lá com ele, não me lembro porquê.

128

- E então?
- Então o quê?
- Ele foi simpático contigo?
- Acho que sim, sei lá. Deu-me uma cana de pesca e um chapéu
velho, tão velho que já não tinha cor. Um chapéu todo
enrugado, que cheirava a sal.
- Eu gostava dele, Dunas. Conversámos algumas vezes e, uma
ocasião, ajudou-me muito. Era um homem simples e muito só.
- Tens pena?
- Não, não tenho pena dos mortos, Dunas. Seria uma
estupidez.
- Quem é que o mandou beber assim como ele bebia! A culpa
era dele.
- Talvez não fosse só dele, talvez...
- Agora não importa. Já morreu.
- Quer dizer que nunca pensas nos que... já morreram? -
arrisquei.
Pôs os olhos na areia molhada. Do Sol apenas já se via uma
risca intermitente e brilhante.
- Vou dar um mergulho - anunciou, levantando-se de repente.
- Mas antes vais responder À minha pergunta, não vais? -
insisti.
- Não, não vou.
Dizendo isto, com a cara subitamente serena, caminhou em
frente e entrou no mar. Fiquei a vê-lo mergulhar como um
golfinho sedoso entre as pequenas ondas que a maré formava.
Depois, cansado e feliz, voltou a sentar-se ao meu lado,
sacudindo os cabelos para me molhar.
- Dunas!

129

Riu-se, voltando a sacudir-se para me fazer zangar.


- Hoje vou jantar a tua casa - comunicou-me com a maior
descontracção.
- Ai sim?...
- Hum-hum.
- E porquê? Posso saber? - perguntei, forçando um ar
refilão.
- Porque quero que me faças aquela mousse de chocolate que
estavas a comer no outro dia.
Dito isto, levantou-se, vestiu as calças e a camisa de
riscas e, puxando-me por um braço, levou-me para casa.

* * *

Depois do jantar, sentou-se comodamente no parapeito da


cozinha, de pernas a abanar sobre o terraço, enquanto eu
lavava os pratos.
- Cento e vinte e seis - ouvi-o dizer.
- É o teu número da sorte? - perguntei-lhe.
Riu-se. Depois, ficou em silêncio até eu arrumar tudo no
armário e juntar-me a ele no parapeito.
- Que é que tu estavas a contar, diz lá!
- As estrelas que se vêem daqui quando não há nuvens. São
cento e vinte e seis.
Parei a olhá-lo. Um raio fugido do lado mais branco da Lua
pousava-lhe sobre o cabelo, dourando-o.
- Tu vinhas aqui muitas vezes, quero dizer, antes de eu cá
chegar, não era?
- Antes e depois - respondeu sorrindo, sempre sem tirar os
olhos do azul-escuro.
- Contar estrelas não deve ser tarefa fácil...

130

- Daqui vêem-se bem. Os meus olhos vêem muito melhor de


noite, sabes, para mim, é fácil.
- Como os gatos... - brinquei.
As pernas continuavam a balançar num ritmo cadenciado, como
se estivesse a seguir o compasso de uma música.
- Este lugar é o melhor do mundo para se verem estrelas -
comentou, absolutamente convicto. - Eu sei que há um lugar na
América, que até apareceu na televisão, onde puseram um tubo
gigante com uma lente especial para ver as estrelas por dentro
e por fora, mas , como eu não posso lá ir, tenho de treinar os
olhos. Treinar-me para ver muito longe, percebes? E, como
comecei muito pequeno, já consigo até contar os bicos das
estrelas.
- Parece-me uma tarefa bastante solitária, essa de te pores
a observar as luzinhas que há no céu...
- É que eu nunca tenho muito sono e, além disso, a olhar lá
para cima podem-se imaginar muitas coisas. Por exemplo, uma
vez imaginei que havia uma mulher muito branca naquela estrela
ali À direita da maior, estás a ver? - perguntou, esticando o
indicador.
- Hum-hum.
- E pus-me a pensar que essa mulher branca me ia convidar a
subir para a estrela onde ela mora e depois era tudo muito
mais simples.
Não percebi de que falava.
- O que é que era mais simples, Dunas?
- Ora, vigiar a minha praia. Lá de cima era canja. Via tudo,
como aqueles pássaros enormes que têm unhas em forma de bico.

131

- As águias?
- Pois.
- Tu sabes que a praia não é só tua, não é, Dunas? Também
pertence aos pescadores.
- Sim, mas eles só lá vão para trabalhar - disse, com um
certo desdém.
- E tu?... - arrisquei.
- Ora, eu vou lá para fazer coisas muito mais importantes.
- Nadar?...
Olhou-me como se achasse que eu estava a troçar do que ele
acabara de dizer. Depois, enraivecido, saltou do parapeito e
atravessou o terraço até ao muro que dava para a praia.
Segui-o, hesitante. Talvez o tivesse magoado. Quando
finalmente o alcancei, coloquei-lhe uma mão sobre o ombro e,
com a outra mão, virei-lhe o rosto para mim. Os olhos estavam
prestes a explodir, mas continha-se o mais que podia.
- Desculpa, não quis ofender-te. Julguei que era para ti
muito claro que entre amigos não há nunca a vontade de fazer
sofrer, Dunas. E eu sou tua amiga, tu sabes isso, não sabes?
- E tu sabes muito bem porque é que eu tenho de ir sempre À
praia - murmurou, quase amuado.
- Não, Dunas. na verdade, não sei muito bem o que vais lá
fazer assim de tão especial - avancei, com o coração nas mãos,
mas com uma vontade imperiosa de tocar no assunto proibido. -
Quero dizer, eu percebo que tu gostes muito de mergulhar e
nadar e essas manobras todas que tu fazes como um golfinho.
Também já percebi que não gostas que poluam a areia nem a
água. Só acho que... é um bocado de mais.

132

Não há dia nenhum que não vás lá. É assim... como é que eu
hei-de dizer... é um certo exagero, não concordas? E depois há
outra coisa: quando se vai demasiadas vezes a um lugar, esse
lugar acaba por perder o seu encanto e podemos até deixar de
tentar ir conhecer outros sítios, estás a entender?
- Estou, mas não me interessa ir a outros sítios.
Estava difícil arrancar-lhe a verdade. No entanto, havia que
prosseguir.
- Essa tua teimosia...
Não me deixou acabar a frase. Gritou:
- Eu tenho de guardar a praia, percebes ou não?! É lá que
está a... - E desabou num choro convulsivo que abafou por
completo o rugir das ondas contra o pontão.
Passei os dedos sobre aqueles cabelos feitos de luz e seda,
cabelos de anjo. E chorei baixinho, com ele, a sua perda.
Depois, para o consolar, disse-lhe palavras pequeninas, vindas
da minha infância palavras que queriam enxugar-lhe as
lágrimas e preencher o vazio redondo que Lhe perfurava a alma.
- Pronto, Luís, não chores mais. Eu só queria que soubesses
que admiro muito o teu amor pela tua mãe. É muito bonito. É
muito mais do que bonito... É maior do que as estrelas maiores
que vês no céu, é...
Subitamente, respirou fundo e ergueu a cabeça do meu ombro.
Depois, olhou a praia e suspirou:
- Se eu soubesse onde ela está mesmo...
- Não faz mal, Du...
- Faz, sim senhora! Não vês que alguém pode descobrir?!
Alguém pode até sujar esse lugar!! Mesmo um cão...

133

Compreendi o seu horror.


- Já foi há muito tempo, Dunas. Sabes que todos, um dia, nos
transformamos em pó, não é?...
Olhou para mim como se eu tivesse acabado de dizer uma
loucura.
- pó?! pó?!
- É. Pó. O corpo não vale grande coisa. Um dia, deixa de ter
importância, meu amigo. Repara no que acontece Às conchas, por
exemplo.
- Que é que têm?
- Quando passa muito tempo, acabam por transformar-se em
fósseis e, mais tarde, desfazem-se e misturam-se com os grãos
de areia, como esses milhões de grãozinhos que ali estão em
baixo.
Um sorriso de esperança inundou-lhe a cara.
- E depois vão para o mar?
- Suponho que sim.
- Então quer dizer que tudo o que está enterrado na areia
acaba por ir parar ao fundo do mar, não é? - continuou,
visivelmente feliz.
- Claro - respondi sem hesitar.
Contudo, uma sombra voltou a toldar-lhe o pensamento e a
crispar-lhe a testa lisa:
- E se não for, que é que pode acontecer?
- Mas vai, Dunas, estou certa disso.
- Como é que podes ter a certeza? Leste nalgum livro?
- Li, evidentemente que li. Eu leio imenso, Dunas.
Voltou a olhar-me com uma certa esperança.
- Então posso ficar mais descansado?
- Podes. Descansadíssimo.
- E esses tais sítios que eu devia ir conhecer, quais são?
- Bem, há muitos lugares bonitos para ver por esse mundo
fora, Dunas. E pessoas também! Amanhã, se quiseres, vamos até
À cidade e vou levar-te À biblioteca para tu veres alguns
desses lugares maravilhosos que há na Terra, queres? Vamos os
dois abrir um atlas e fazer uma viagem muito grande até ao fim
do mundo, queres?
- Mesmo até ao Japão?
- Até ao Japão!
E sorriu. Aquele sorriso que eu queria ver nascer havia
tanto tempo. O sorriso que faltava À enorme colecção que ele
tinha para oferecer.

134 135

Capítulo XX

LIÇÃO DE GEOGRAFIA

A bibliotecária era uma mulher enrugada e zangada com a


vida, dessas mulheres de cara azeda que murmuram pequenos
insultos, porque não se atrevem nunca a levantar a voz.
Deu-nos o atlas, arqueando as sobrancelhas cinzentas e fez um
trejeito suspeito com os lábios.
- Não se pode falar alto - recomendou-nos.
O meu amigo e eu sorrimos cumplicemente e fomos sentar-nos a
uma das longas mesas de cerejeira. Apenas dois senhores de
idade se encontravam na biblioteca, um folheando um livro de
capa muito deteriorada, e outro que lia um jornal, como se
estivesse numa esplanada. Ao fundo, atrás do balcão austero, a
vigilante olhava-nos, À espera de poder a todo o momento
repreender-nos por qualquer motivo.
- Isto é que é um atlas? - perguntou o Dunas.
- Hum-hum.
- Deixa-me abri-lo.

137

- Tens de falar mais baixo ou então somos corridos -


expliquei-lhe com um sorriso.
- É só mapas! - exclamou, parecendo um pouco desapontado.
- E é por aí que vamos. Ora fecha-o lá - pedi-lhe. - Agora,
abre-o num sítio ao calhar. - Assim fez. - Pronto. Fecha os
olhos e deixa cair o dedo num lugar qualquer, Dunas.
- Onde é que estamos? - perguntou mais entusiasmado.
- Deixa cá ver... Nem imaginas! Na Grécia!
- Chui - sentenciou a bibliotecária, olhando-me de soslaio.
- Na Grécia? Como é?
- Não sei muito bem, Dunas, nunca lá fui, mas posso
contar-te uma história muito interessante de um grego que
tinha um grande problema com um calcanhar...
- Estás a brincar... - riu-se.
- Qual quê! Ora ouve só...
O Dunas ouviu com a maior atenção do mundo a tragédia de
Aquiles, que lhe contei com o mesmo prazer com que o meu pai
contava as suas histórias depois do jantar. Depois, falei-lhe
do Olimpo, dos jogos, dos argonautas...
- Quero ir para outra terra. Já sei tudo da Grécia. Posso
abrir noutra página? - perguntou o meu amigo, curioso por
conhecer novos mundos.
- Podes, Dunas, mas só mais uma, porque temos de apanhar a
camioneta das cinco.
A seguir, o indicador foi pousar sobre a Suíça, e falámos de
chocolate, relógios, banqueiros e montanhas cobertas de neve.

138

Imaginámo-nos a subir num teleférico , olhando de cima os


picos gelados e as pistas de esqui, onde, no instante
seguinte, já estávamos a deslizar velozmente, de gorro na
cabeça e mãos enluvadas contra o frio.
A tarde passou a correr, alheia aos chius da bibliotecária e
ao cheiro a pó e a papel. Foram horas inesquecíveis, de
aventura e prazer. Por uma tarde, o Dunas e eu viajámos
juntos, numa biblioteca mal iluminada. E descobrimos como é
bom saber que tantos lugares na Terra esperam por nós. E
aprendemos a outra Geografia, a que não nos deixam explorar na
escola...

139

Capítulo XXI

NO FUNDO DO MAR

O tempo estava a chegar ao fim. Eu sabia-o e o Dunas


pressentia, como sempre. Quando finalmente acabei o último
capítulo do meu romance, guardei todas as folhas sem as reler,
arrumei a máquina e fui ao terraço ver se o descobria lá em
baixo na praia. E lá estava ele, sentado À beira-mar, de
costas para o areal branco. Havia ondas pequeninas que
desenhavam bainhas de espuma sobre a areia molhada. O Sol
riscava o céu de cor de laranja e preparava-se, como eu, para
a despedida.
Desci até ao areal. Pé ante pé, aproximei-me sem que o Dunas
virasse a cabeça para trás. Porém, quando me sentei ao seu
lado, falou-me como se soubesse há muito da minha presença;
como se soubesse há muito de tudo o que eu tinha para lhe
dizer.
- E agora? - perguntou.
- Agora, tenho de voltar - respondi-lhe, olhando a linha
azul molhada lá ao fundo.

141

- Tens a certeza de que acabaste mesmo?


- O livro?
- Hum-hum.
- Tenho, Dunas.
Levantou-se num ápice e correu para a água, sem sequer tirar
a camisola de manga curta. Sem pensar, segui-o também mesmo
vestida e mergulhei atrás dele, receando nunca mais o ver,
perdê-lo para sempre ali no mar. Quando voltei À superfície,
olhei em frente e vi-o já bem longe, a nadar rumo ao céu que
descia, agora mais escuro, sobre as águas. Nadei
desenfreadamente para o apanhar e, não fosse o seu cansaço,
tê-lo-ia perdido no meio do azul. Então, a menos de dois
palmos de distância, estendi-lhe a mão e mergulhámos ambos até
ao fundo, ao mais fundo do mar e de nós mesmos. Não sei
descrever as inúmeras sensações que se apoderaram do meu
corpo, recordo apenas que não tive medo. Nem frio. Nem vontade
de voltar À superfície. Mas voltei. Voltámos. Ao mesmo tempo.
E tinham já passado muitas vidas. Era como se ambos tivéssemos
acabado de chegar de uma viagem pelo tempo, em que tudo nos
tinha sido revelado. Todos os segredos do Universo, todos os
mistérios da vida e da morte. E tudo o que havia na nossa
memória era agora apenas uma luz branca que saía pelos nossos
olhos e faiscava em cada gota de água sobre a pele do nosso
rosto, que era um só.
Olhámo-nos em silêncio. Acho que chorámos, mas não tenho a
certeza. Se o fizemos, foi porque toda a água de que éramos
feitos, se evaporou de nós, À passagem do último raio de Sol.
E permanecemos assim por muito tempo, de corpo enraizado no
mar e cabeça À flor da água, a boiar como plantas aquáticas.
Tudo se havia desprendido de nós, como se a água em que
havíamos mergulhado não fosse apenas água mas um filtro
absorvente, com o poder de tudo reter que fosse supérfluo,
como as palavras. Depois, vazios de tudo o que fôramos antes,
nadámos em silêncio até à praia.
Suavemente. Sem pressas. Sabíamos que, ao chegar, a praia
nos receberia como sempre, mas nada seria como dantes. Nada.
De pé, olhámos então a praia e o muro da casa que fora
nossa. Duas ou três gaivotas acompanhavam o voo guerreiro de
um albatroz. O ar cheirava já a Outono. Era o fim do Verão.
Soubemo-lo ali mesmo, naquela hora de nudez total. A casa
esperava-me para o ritual de esvaziar gavetas e prateleiras.
Tudo ficaria vazio de novo, como eu. E a casa chamou-me,
apressando os meus passos, encurtando a despedida.
Subi ao terraço, sem olhar para trás. Lembro-me claramente
de que não senti o coração. Não apenas o bater, mas todo o
coração. E percebi que o tinha deixado ficar na praia onde
aportara, de alma nova, vinda de uma viagem muito longa com o
meu companheiro de sempre. E soube que ele o guardaria na
praia imensa e generosa do seu peito. Para sempre.

FIM

Scannerização e Arranjo

Amadora, Janeiro de 2000

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