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Índice
Capítulo I
CARTA DE DESPEDIDA
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O homem que veio buscar-me disse que eu vou num dos grandes,
com dois andares, cinema e coca-cola que não se paga. Deixo
aqui o cofre, que agora é para ti. As coisas que aqui estão
também são para ti. Levo a tua concha comigo. Sei que vai dar
sorte. Agora, vou conhecer a América. Depois, hei-de voltar e
contar-te tudo. Prometo. Não te esqueças de mim e acaba o teu
livro depressa para eu o ler quando voltar.
Um beijo do
Luís
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Capítulo II
O PRIMEIRO ENCONTRO
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Capítulo III
A CONCHA
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Capítulo IV
O CONVITE
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Capítulo V
A AULA DE MERGULHO
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Fui vestir o fato de banho e desci para a praia. Quando lá
cheguei, não vi ninguém. Olhei em todas as direcções e, quando
estava quase a vir-me embora, vislumbrei uma cabeça a flutuar
lá longe, atrás da formação das ondas. Acenei-lhe na esperança
de ser vista. O Dunas reparou em mim e nadou em direcção À
beira-mar. Deslizava com uma rapidez olímpica, um À-vontade
que me deixava sem fôlego.
- Anda! - gritou-me, de braço no ar, perto da rocha que
parecia um vulcão.
Um arrepio invadiu-me novamente, mas não era o momento de
recuar.
Entrei lentamente na água, tentando adaptar-me À temperatura
(gélida, Àquela hora), esforçando-me por acalmar o coração,
que desvairava de indignação. Quando perdi o pé, comecei a
nadar bruços (o estilo em que melhor me desenvencilhava) e
fui-me aproximando da rocha, tentando a todo o custo evitar a
rebentação forte, que me assustava cada vez mais. O Dunas
sentou-se sobre o vulcão e esperou-me, com cara de troça.
- Mais depressa! Pareces uma alforreca... - E ria a
bandeiras despregadas.
Lá cheguei por fim ao rochedo e agarrei-me o melhor que
pude, embora os limos o tornassem escorregadio como pele
viscosa.
- E agora? - inquiri, temendo o pior.
- Agora, vês-me mergulhar duas vezes com atenção. A seguir,
sobes para aqui e atiras-te - declarou, como se se tratasse da
coisa mais simples do mundo.
O coração começou a bater novamente num ritmo alucinante. O
Dunas levantou-se e, sem vacilar, assumiu a posição correcta
para um mergulho de cabeça - esticou os braços, elevou-se nos
ares entre a névoa da manhã e fendeu o azul a pique, como um
golfinho, sem fazer saltar uma única gota de água. Observei-o,
impassível, tentando registar todos os seus movimentos, para
não fazer má figura quando chegasse a minha vez. O segundo
mergulho foi idêntico ao primeiro, mas tão rápido que quase
não pude seguir-lhe a trajectória. No fim da sessão de
demonstração, colocou-se ao lado da rocha e incitou-me:
- Vá, sobe! Viste como se faz, não viste?
Acenei-lhe afirmativamente, embora estivesse consciente de
que iria ser um autêntico desastre. Contudo, subi a custo para
o rochedo, apoiei os pés com toda a força para não escorregar
e, quando me senti finalmente direita, parei, sustendo a
respiração. Aquilo era uma perfeita loucura. Eu só podia estar
demente. Não havia sequer um banheiro que pudesse vir
salvar-me, caso tudo desse para o torto, como era de prever. O
Dunas, sempre vigilante, leu-me os pensamentos e quis
tranquilizar-me:
- Vá lá! Eu estou aqui!
Fechei os olhos, respirei o mais fundo que pude, tão fundo
que senti o mar inteiro invadir-me a alma. Recordo que rezei
mentalmente uma oração curta que inventei na altura e estiquei
os braços. No instante seguinte, estava debaixo de água,
lutando para voltar À superfície. Quando consegui abrir os
olhos, senti um ardor intenso no peito e na barriga.
- Que grande chapão! - riu-se o meu instrutor. - Entraste
mal. Agora tens de repetir.
Estava demasiado atordoada para falar e nem ousei
contrariá-lo ou ralhar-lhe pela falta de cortesia.
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Nadei até À rocha, subi com uma força nova (nascida toda do
despeito que acabara de sentir), coloquei-me em posição e
saltei. Sem preparação psicológica. Sem me dar tempo a
qualquer arrependimento.
- Foi um bocado melhor - disse-me, quando me viu irromper
das profundezas. - Mas os pés não estavam juntos.
Irritei-me:
- Olha lá, Dunas, não achas que já chega de críticas?! Eu
não sou como tu. Nunca fiz isto na vida! Só saltei de pranchas
em piscinas municipais e foi há muito tempo, tanto que já nem
me lembro.
Porém, o Dunas já não ouviu a última frase, mergulhou
novamente e aproximou-se de mim por baixo de água. Depois,
ergueu-se como um peixe voador e deu uma gargalhada:
- Grande cagaço, hã? Nem abriste os olhos nem nada...
Era verdade, mas eu tinha esperanças de que ele não tivesse
reparado.
- Nunca abro os olhos debaixo de água. Faz-me impressão -
expliquei.
Resolvemos então regressar À praia, mas, quando olhei o mar,
sobressaltei-me. As ondas tinham aumentado consideravelmente e
era preciso passá-las para chegar À areia.
- Dunas! - chamei-o, em pânico.
- Que foi? - perguntou, sem parar de nadar.
- Tu já viste aquelas ondas?...
- Que é que têm?
Perante aquela desfaçatez, dispus-me a segui-lo, agora em
crawl para ver se não o deixava afastar-se demasiado. A
passagem pelo Bojador foi um autêntico pesadelo. Engoli tanta
água que me doía a garganta. Chapadas de espuma varriam-me os
cabelos, e eu sem tempo para parar e poder exprimir todo o
horror que me congelava as ideias.
Cheguei À praia exausta. Atirei-me para a areia molhada e
deixei-me ficar, como um náufrago. De todos os meus sentidos
só funcionava a audição. Ouvia o chiar das ondas e o riso
gostoso do meu instrutor, numa tal mistura de vozes que se
tornava impossível distingui-las. Talvez fosse apenas o
próprio mar a rir-se de mim.
Quando finalmente consegui levantar-me, vi o Dunas ao longe,
a vasculhar na areia seca. Foi então que olhei o mar que eu
havia heroicamente atravessado. Pareceu-me estranhamente
calmo. Talvez a turbulência que eu sentira tivesse sido
somente fruto do meu medo. E, subitamente, senti-me vencedora
ao olhar o rochedo em forma de vulcão. No momento seguinte,
uma mão quente poisou no meu ombro molhado.
- Pega, é para ti - disse, entregando-me um búzio. - Não
foste lá grande coisa, mas, pelo menos, tentaste. Amanhã
ensino-te outro salto. Da rocha do pontão.
Peguei no búzio e, instintivamente, colei-o À orelha.
- É mudo este búzio - reclamei, provavelmente para me vingar
dos risos que ouvira.
- Os búzios não falam, ora!
- Claro que falam. Conheço búzios que falam pelos cotovelos
- retorqui, olhando-o a sorrir. - Este é que deve ter apanhado
tal susto que perdeu a voz...
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Capítulo VI
UM CESTO DE MAÇÃS
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Capítulo VII
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Capítulo VIII
NO POSTO MÉDICO
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- O quê? - quis saber, desejosa de poder ser-lhe útil.
- Se alguma vez vires a minha avó, não lhe contes.
- Que viemos aqui ao posto?
- Sim.
- Fica descansado, Dunas. É um segredo só nosso - respondi,
com a cumplicidade de um criminoso que acaba de se envolver
num delito grave.
- Prometes?
- Claro.
Só então sorriu, devolvendo aos olhos aquele brilho de água
que só uma criatura marinha poderia ter.
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Capítulo IX
BICHOS DO MAR
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Capítulo X
O VELHO DA MATA
No dia seguinte, não vi o Dunas e confesso que senti a sua
falta, embora nunca soubesse ao certo se ele viria ou a hora a
que chegaria. Levantei-me mais cedo do que o costume, preenchi
a manhã com a escrita e, depois do almoço, pedalei até À
aldeia, pois, pela primeira vez desde que ali chegara, tive
saudades de um cafezinho antes de voltar ao trabalho.
Havia apenas um café na aldeia, que tinha uma televisão
estrategicamente colocada numa prateleira pouco abaixo do
tecto para que todos pudessem ver. O som estava altíssimo e
foi difícil encontrar uma mesa vaga, mas o cafezinho soube-me
bem, muito melhor do que os instantâneos que eu fazia em casa.
Quando chamei o empregado para pagar, ele sorriu como se me
conhecesse e, porque ficou tempo de mais a olhar-me, tive de
perguntar-lhe se queria saber alguma coisa.
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Capítulo XI
A TROCA
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Capítulo XII
NA ESQUADRA
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- Não faz mal. Já não dói. A sério! Só doeu foi ter de sair
da praia com o outro, o gigante alemão ou lá o que era, a
agarrar-me o braço. Ele nem me aleijou, só que eu queria
dar-lhe um pontapé e não consegui. Ele era mais alto do que o
meu pai!
- Já passou, Dunas. E daqui para a frente vai tudo correr
bem, tenho a certeza - disse-Lhe, passando a mão sobre os seus
cabelos loiríssimos e lisos como fios de seda doirada.
- Agora é melhor ires-te embora. A minha avó já deve estar
quase aí...
- Está bem, Dunas, eu vou. Mas promete que, assim que
puderes, vais visitar-me.
- Promete-me também uma coisa.
- É só dizeres - pedi-Lhe, esforçando-me por lhe mostrar que
qualquer coisa que eu pudesse fazer por ele me daria o maior
gosto.
- É a gaivota...
- Aquela que já não consegue procurar alimento e que vai ter
contigo atrás da rocha grande?
- Hum-hum...
- Que posso fazer, Dunas? Diz!
- É que os guardas vão dizer À minha avó para me pôr de
castigo em casa, não sei quantos dias, percebes?
Engoli em seco.
- Percebo, Dunas, mas talvez a tua avó não faça isso. Talvez
não.
- Bom, ela come qualquer peixe, estás a ver? Carapau,
sardinha, chicharro... Partes aos bocados e pões lá ao pé, mas
não te chegues muito perto, que ela pode morder... Não é por
mal, mas as gaivotas têm aqueles bicos muito duros e, sem
querer, a brincar, percebes?
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Capítulo XIII
PALAVRAS À BEIRA-MAR
Querida concha:
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Impacientei-me:
- Chiu! Importas-te de me deixar falar?
Riu-se descaradamente, a desafiar-me.
- Estás zangada?!
- Por enquanto não, mas vou ficar, se não me deixares falar!
Detesto que me interrompam.
- Já sei tudo - atalhou com o maior descaramento.
- Sabes o quê, afinal, hein?!
- Ora, que gostaste do meu poema e que até o sabes de cor.
Levantou-se para sacudir a areia dos calções ruços. Eu
fiquei boquiaberta, mas não me dei por vencida:
- Por acaso enganaste-te. Não era isso que eu ia dizer-te,
embora seja verdade...
Com a ponta do pé atirou-me areia para o colo e voltou a
enfrentar-me:
- Era isso que me ias dizer, sim senhora. Eu sei.
- Então não vale a pena dizer-te o resto, pronto. E, nesse
caso, posso voltar para casa, não é?
Novo pontapé de areia, desta vez para a blusa.
- Se queres ir-te embora, vai. Não me importo.
Irritou-me aquela desfaçatez e foi a minha vez de lhe atirar
areia, mas, por azar, acertei-lhe em cheio na cara e nos
olhos. O Dunas correu para o mar e eu fui atrás para lhe pedir
desculpa. Como ele mergulhou, mergulhei também e fui apanhá-lo
um pouco antes da rebentação.
- Mostra os olhos! - pedi, receando tê-lo magoado com a
areia.
- Não faz mal...
- Desculpa - disse em voz baixa, tremendo de frio.
- Só se me disseres o que ias contar há bocado...
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Capítulo XIV
A VISITA
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Mal saí da casa do Dunas, dei uma corrida até ao areal e fiz
uma cova onde enterrei o saco das ervas.
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- É a vida.
- Não entendo.
- A velha é osso duro de roer.
- Bem sei, mas o Luís havia de gostar de passar algum tempo
consigo.
- Mal me conhece. Além de tudo, acho que tem medo de mim...
Devem ter sido as patranhas que a avó Lhe contou. Aquela nunca
me perdoou.
Sabia que estávamos a pisar terreno escorregadio, mas
senti-me suficientemente À-vontade para continuar o meu
inquérito.
- O senhor fez-lhe alguma...
- Um filho...
- De quem ela parece gostar muito.
- O rapaz ficou maluco com a morte da estrangeira.
- Não tem tido notícias dele?
- Sei que está lá para as Américas. Parece que tem um
restaurante, onde vende esparguete... Pf! Esparguete!...
- E a segunda mulher do seu filho?
- Não tem muito que se lhe diga. Deixou-o. Compreende-se. O
rapaz andava doido de todo. Aquele casamento não lhe serviu
para nada. A outra sim, fazia-o feliz. - Olhou longamente para
mim e, observando-me seriamente, rematou: - Já lhe disseram
que faz lembrar a estrangeira?
Parei de respirar.
- Como?
- Só que ela tinha o cabelo muito escuro e mais comprido.
Mas o rosto, os olhos, essa tristeza que vem de dentro, são
iguais. A Sara não lhe disse isso?
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Capítulo XV
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Riu-se.
- Também gosto. Foi a minha mãe que ma deu quando fiz anos.
- A tua mãe? - inquiri, para logo de seguida me arrepender.
- Pois teve bom gosto.
- Não é a minha mãe verdadeira, sabes?
Quis mudar de assunto, mas já não fui a tempo.
- Quando será que vamos ter sol outra vez? Diz lá, tu que
sabes tudo!
- A minha mãe verdadeira tinha um vestido azul, que ficou lá
em casa.
Engoli em seco. Como desviar o rumo da conversa?
- Ainda não te contei: estou quase a acabar o meu livro!
- Tu devias ficar bem com o vestido dela. Uma vez, há muito
tempo, tirei-o Às escondidas da arca e peguei nele com as duas
mãos. Depois, levantei-o no ar e fui pôr-me À frente do
espelho que a minha avó tem no quarto dela. E foi fácil!
- Que é que foi fácil, Dunas? - balbuciei.
- Imaginá-la dentro dele, ali mesmo À minha frente, no
espelho. - E repetiu o gesto que fizera com o vestido.
Comecei a sentir outra vez um nó na garganta que queria À
viva força desfazer-se e desfazer-me em seguida.
- Tu tens é muita imaginação, Dunas - respondi, desviando a
cara e forçando um sorriso.
Ele, porém, continuou o seu discurso, alheio Às minhas
intervenções:
- As mulheres ficam quase todas melhor de vestido.
- Achas? - voltei a encará-lo, um pouco mais tranquila.
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Capítulo XVI
A DUNA SECRETA
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- Porquê? Uma caveira não tem nada de especial. É feita de
ossos feios. Toda a gente tem caveiras. Tu, eu, todas as
pessoas. Não há quem escape.
Arrepiei-me, ao mesmo tempo que me deu alguma vontade de rir
o sem-cerimónia com que o Dunas falava da nossa condição de
mortais.
- Uma caveira não é coisa que valha a pena esconder, por
isso mesmo que tu disseste. Não tem nada de especial.
- Então porque foi que tiveste medo? Até te arrepiaste...
- Medo? Eu? Ora, Dunas, apenas achei a ideia... bizarra -
respondi, sabendo que ele iria mudar o rumo da conversa para
aquela palavra, certamente nova para ele.
- Bizarra quer dizer esquisita, não é? Pois mas, como eu
estava a dizer, eu sei que tu tens medo dos mortos, e eles não
fazem mal nenhum.
Comecei a sentir-me um pouco agoniada. E o calor apertava.
- E se fôssemos dar um mergulho, Dunas, hein? Está um bocado
abafado, não concordas?
Levantou-se e, sempre a sorrir com algum sarcasmo , deu-me a
mão e levou-me até À beira-mar. Aí, tirámos a roupa e, em fato
de banho, entrámos depressa na água, onde nadámos até não
termos mais forças. De regresso À praia, sentámo-nos na areia
a secar o corpo.
- Soube-me muito bem este banho, Dunas. Melhor do que nenhum
outro até hoje!
- Passou-te?
- O quê? - inquiri, fingindo não perceber a que se referia o
meu perspicaz interlocutor.
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Capítulo XVII
PASSADO E FUTURO
Dois ou três dias mais tarde, ouvi uma tosse aflitiva vinda
do terraço. Era manhã. Levantei-me de um salto e fui ver,
temendo o pior. Virado para o muro, o Dunas esforçava-se para
respirar e, sem qualquer cerimónia, mal me sentiu aproximar,
parou de tossir, fez uma cara muito séria e depois largou uma
gargalhada estridente.
- Indecente, Dunas! Isso não se faz! Acreditei mesmo que
estavas com um ataque! - indignei-me, falando tão alto como
onda em dia de tormenta.
- E achas que eu teria um ataque ao pé do mar?!
Ainda exaltada, retorqui:
- Não sabia disso, mas não devias ter feito uma coisa
daquelas. Pensei que...
- Eu morria? - troçou. - Deixa lá, quando eu morrer, podes
ficar com a minha caveira - acrescentou brincando novamente
com a morte.
- Credo! Que obsessão!
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- Quê?
- Essa tua mania de falares de coisas que magoam!
Ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, como quem
está a reflectir, concluiu:
- Morrer não dói nada. Eu sei... Já morri uma vez e vou
morrer outra vez quando te fores embora.
Calei-me, compreendendo que a primeira vez se deveria ter
dado aquando da partida do pai para a América.
- Sabes perfeitamente que um dia vou ter de voltar para
minha casa, Dunas - disse-lhe com a maior serenidade de que
fui capaz.
- Ora! Só voltas se quiseres. Tu és crescida, por isso não
tens quem mande em ti.
- Não é bem assim...
- Não?! Então quem é que manda em ti? - inquiriu muito
surpreendido.
- Não se trata de haver ou não quem mande em mim.
Precisamente porque sou crescida, como tu disseste, assumi
certas responsabilidades, compromissos, percebes? São coisas a
que não posso virar as costas definitivamente.
- Tretas...
- Não, não são tretas, Dunas. São coisas sérias. É a minha
vida!
Retirou-se para o outro extremo do terraço e eu fui para
dentro. Tomei um duche, vesti-me e voltei ao terraço com um
copo de leite frio na mão.
- Queres comer alguma coisa? - perguntei-lhe, encostando-me
ao muro, junto dele.
- Espero que não te vás embora já... - murmurou, sem me
olhar.
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Capítulo XVIII
O INCëNDIO
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As chamas iam altas e não pude conter uma tosse que mal me
deixava respirar. Chamei, gritei, mas, na verdade, nem sabia o
nome dele. Despi o casaco de malha, coloquei-o sobre a cabeça
e, com muito custo, entrei pela porta já escuríssima do fogo.
O velho estava deitado, junto a uma das paredes, encolhido
como um feto, e foi difícil chegar até ele por entre as chamas
e o fumo. Então, convocando todas as minhas forças, arrastei-o
até À porta e depois para fora da casa. Estava ainda vivo,
mas, de tão bêbado, não conseguia mexer-se nem falar. Tinha a
cara e as mãos queimadas, e a roupa chamuscada e negra. Era
urgente que alguém aparecesse e me ajudasse a levá-lo até ao
posto, mas, por mais que eu gritasse por socorro, só os
pássaros, assustados com o fumo, emitiam uns trinados
aflitivos, cruzando-se com o som da madeira que estalava aos
poucos. Tentei pela milionésima vez levantá-lo, mas em vão. O
corpo era pesado e ele não estava em condições de ajudar.
Desesperada, corri até À lagoa, deixando o homem estendido na
terra. Ao ver o barco a remos, pensei se valeria a pena
atravessar para o outro lado, no intuito de chamar o Dunas ou
a avó. Acabei por entrar no barquito e remar o mais depressa
que pude até À outra margem. Chegada À casa branca, bati À
porta. Ele não estava, e a avó veio atender-me. Rapidamente,
expliquei-lhe o que estava a passar-se e ela, para meu
espanto, prontificou-se a ajudar-me. Regressámos ambas no
barco, que ela fez questão de remar, com uma mestria
invejável. Depois, quando chegámo junto do velho, ela
aproximou-se, ajoelhou-se ao lado dele e ficou a observá-lo,
tentando tomar-lhe o pulso. No entanto, como os braços estavam
demasiado queimados, não foi possível sentir-lhe a pulsação e
foi então que Sara se curvou sobre o rosto do pescador, para
ver se ele respirava. Durante este tempo, mantive-me de pé,
sem saber que fazer.
Quando, por fim, sugeri que ela ficasse ali enquanto eu ia
de bicicleta pedir ajuda, Sara abanou a cabeça e respondeu,
quase sem mexer os lábios:
- Não vale a pena...
Ajoelhei ao seu lado, sobre a terra quente. Só então olhei
para a casa, em completo estado de ruína. O fogo estava
extinto, mas o ar era ainda uma fornalha. Quando voltei a
virar-me, percebi que ela rezava baixinho. Depois, suavemente,
como quem acaricia o rosto de uma criança, fechou os olhos do
pescador.
- Deve ter adormecido e deixado a vela ou o candeeiro
aceso... - opinei, olhando para o velho.
- Eu sabia que o vinho ia dar cabo dele - disse ela,
levantando-se devagar. - Graças a Deus que as chamas não
chegaram Às árvores! - Depois, virando-se para o corpo,
acrescentou: - Tantas vezes lhe pedi... Tantas vezes...
Falava com uma sinceridade e uma ternura que me comoveram.
- Ele tem família, quero dizer, para além do filho?... -
perguntei, limpando a cara da fuligem que se colava a todos os
poros.
- Família? Não... Era só ele e um irmão que morreu no mar.
Respirei fundo, tentando controlar a tosse.
- Nesse caso, será melhor ir À aldeia pedir que telefonem
aos bombeiros para que venham buscá-lo - sugeri.
Ela, contudo, encolheu os ombros. Depois, limpando uma
lágrima imprevista, anuiu:
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Capítulo XIX
CONTANDO ESTRELAS
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- Eu sei.
- Estive a pensar numa coisa - murmurou, sentando-se ao meu
lado depois de ter despejado os últimos detritos no caixote. -
Era capaz de reconstruir a casa da mata...
- A que ardeu?
- Sim. Aquilo não é de ninguém...
- Mas para quê, Dunas?
- Ora, para ir para lá quando me apetecesse.
- Olha que não há-de ser fácil. Ficou tudo em ruínas.
- Eu fazia aos poucos. Talvez o Miguel e o Pedro me
ajudassem. O pai deles tem uma carpintaria.
- Ouve lá, Dunas, tu sabias quem era o velho, não sabias?
- Toda a gente sabe isso - replicou, encolhendo os ombros. -
Mas a mim ele não me era nada. Nunca falou comigo...
- Talvez não tenha tido oportunidade...
- Não interessa.
Os olhos estavam húmidos e a voz vinha não sei donde.
- Nunca tiveste vontade, curiosidade de falar com ele? Era
um homem interessante, sabes?
- O meu pai e ele não se davam. E a minha avó não o gramava.
- E... tu?
- Eu quê?
- Tu também não gostavas dele?
- Sei lá. Acho que uma vez estive com ele, quando era
pequeno, tinha aí uns cinco ou seis anos. Foi um dia em que o
meu pai me deixou lá com ele, não me lembro porquê.
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- E então?
- Então o quê?
- Ele foi simpático contigo?
- Acho que sim, sei lá. Deu-me uma cana de pesca e um chapéu
velho, tão velho que já não tinha cor. Um chapéu todo
enrugado, que cheirava a sal.
- Eu gostava dele, Dunas. Conversámos algumas vezes e, uma
ocasião, ajudou-me muito. Era um homem simples e muito só.
- Tens pena?
- Não, não tenho pena dos mortos, Dunas. Seria uma
estupidez.
- Quem é que o mandou beber assim como ele bebia! A culpa
era dele.
- Talvez não fosse só dele, talvez...
- Agora não importa. Já morreu.
- Quer dizer que nunca pensas nos que... já morreram? -
arrisquei.
Pôs os olhos na areia molhada. Do Sol apenas já se via uma
risca intermitente e brilhante.
- Vou dar um mergulho - anunciou, levantando-se de repente.
- Mas antes vais responder À minha pergunta, não vais? -
insisti.
- Não, não vou.
Dizendo isto, com a cara subitamente serena, caminhou em
frente e entrou no mar. Fiquei a vê-lo mergulhar como um
golfinho sedoso entre as pequenas ondas que a maré formava.
Depois, cansado e feliz, voltou a sentar-se ao meu lado,
sacudindo os cabelos para me molhar.
- Dunas!
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- As águias?
- Pois.
- Tu sabes que a praia não é só tua, não é, Dunas? Também
pertence aos pescadores.
- Sim, mas eles só lá vão para trabalhar - disse, com um
certo desdém.
- E tu?... - arrisquei.
- Ora, eu vou lá para fazer coisas muito mais importantes.
- Nadar?...
Olhou-me como se achasse que eu estava a troçar do que ele
acabara de dizer. Depois, enraivecido, saltou do parapeito e
atravessou o terraço até ao muro que dava para a praia.
Segui-o, hesitante. Talvez o tivesse magoado. Quando
finalmente o alcancei, coloquei-lhe uma mão sobre o ombro e,
com a outra mão, virei-lhe o rosto para mim. Os olhos estavam
prestes a explodir, mas continha-se o mais que podia.
- Desculpa, não quis ofender-te. Julguei que era para ti
muito claro que entre amigos não há nunca a vontade de fazer
sofrer, Dunas. E eu sou tua amiga, tu sabes isso, não sabes?
- E tu sabes muito bem porque é que eu tenho de ir sempre À
praia - murmurou, quase amuado.
- Não, Dunas. na verdade, não sei muito bem o que vais lá
fazer assim de tão especial - avancei, com o coração nas mãos,
mas com uma vontade imperiosa de tocar no assunto proibido. -
Quero dizer, eu percebo que tu gostes muito de mergulhar e
nadar e essas manobras todas que tu fazes como um golfinho.
Também já percebi que não gostas que poluam a areia nem a
água. Só acho que... é um bocado de mais.
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Não há dia nenhum que não vás lá. É assim... como é que eu
hei-de dizer... é um certo exagero, não concordas? E depois há
outra coisa: quando se vai demasiadas vezes a um lugar, esse
lugar acaba por perder o seu encanto e podemos até deixar de
tentar ir conhecer outros sítios, estás a entender?
- Estou, mas não me interessa ir a outros sítios.
Estava difícil arrancar-lhe a verdade. No entanto, havia que
prosseguir.
- Essa tua teimosia...
Não me deixou acabar a frase. Gritou:
- Eu tenho de guardar a praia, percebes ou não?! É lá que
está a... - E desabou num choro convulsivo que abafou por
completo o rugir das ondas contra o pontão.
Passei os dedos sobre aqueles cabelos feitos de luz e seda,
cabelos de anjo. E chorei baixinho, com ele, a sua perda.
Depois, para o consolar, disse-lhe palavras pequeninas, vindas
da minha infância palavras que queriam enxugar-lhe as
lágrimas e preencher o vazio redondo que Lhe perfurava a alma.
- Pronto, Luís, não chores mais. Eu só queria que soubesses
que admiro muito o teu amor pela tua mãe. É muito bonito. É
muito mais do que bonito... É maior do que as estrelas maiores
que vês no céu, é...
Subitamente, respirou fundo e ergueu a cabeça do meu ombro.
Depois, olhou a praia e suspirou:
- Se eu soubesse onde ela está mesmo...
- Não faz mal, Du...
- Faz, sim senhora! Não vês que alguém pode descobrir?!
Alguém pode até sujar esse lugar!! Mesmo um cão...
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Capítulo XX
LIÇÃO DE GEOGRAFIA
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Capítulo XXI
NO FUNDO DO MAR
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FIM
Scannerização e Arranjo