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Clarice Lispector

(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

É para lá que eu vou

Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às


pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de
alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se
continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra “tertúlia” e não
sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou
eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver.
Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por
enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma
livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada.
Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu
nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me
responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos
amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos
são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu
segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que
pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras.
Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa
que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de
meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.

in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.


Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

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