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Poderia começar dizendo que os epistemólogos usados pelo autor foram muito bem
escolhidos. O primeiro capítulo consiste em uma apresentação das concepções
epistemológicas de cada um e do estabelecimento de relações entre eles; ou melhor, da
tentativa de estabelecer relações entre eles, devido às dificuldades da tarefa que o autor
se impôs, o que ele mesmo reconhece e, apesar das limitações inerentes a tal tarefa,
devemos aplaudir o modo como tenta construir estas relações, explorando possíveis
pontos de contato e não avançando mais do que a prudência permite. Creio que, devido
ao nosso especial interesse no tema, posso me delongar um pouco mais no que é
desenvolvido pelo autor neste primeiro capítulo.
Quanto às relações entre Kuhn e Bachelard, afirma que “ambos têm na história da
ciência um referencial privilegiado, o que permite situar suas contribuições na
classificação de ‘epistemologias históricas da ciência’” (p. 30-1). Com a intenção de
ressaltar a importância da história das ciências, o autor escolhe bem os epistemólogos
trabalhados. Kuhn é considerado o autor que iniciou o processo de historicização da
epistemologia anglo-saxã, influenciando muitos outros epistemólogos, como Lakatos e
Feyerabend, e amenizando o caráter prescritivo presente nas propostas de Popper e do
Círculo de Viena. Vale dizer que há apenas uma menção a Popper, en passant, sem
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Resenha por André Mattos, graduando em Psicologia (UFBA), membro do Grupo de Pesquisa CONES.
sequer a necessidade de fazer críticas a ele. O caso de Bachelard talvez seja um pouco
mais delicado, por estar situado na tradição epistemológica francesa. Creio que a sua
epistemologia merece uma menção especial por ser uma abordagem historicizada que
antecede a de autores como Kuhn e Feyerabend. Podemos dizer que Bachelard é
contemporâneo de Popper, mas temos aí duas tradições epistemológicas que não
conversaram, e Bachelard permaneceu pouco conhecido durante algum tempo. A sua
epistemologia, entretanto, compartilha com a de Kuhn o fato de ser uma espécie de
híbrido entre história e filosofia da ciência, agregando ainda contribuições ao ensino.
Isto está refletido na crítica que Kuhn recebeu de estabelecer uma confusão entre o
descritivo e o normativo, sendo que o primeiro se deve às contribuições históricas que
trazia e o segundo ao modo de ser da filosofia das ciências a-históricas. Esta confusão
resulta em problemas sérios, pois passamos a não diferenciar bem a atividade de dizer
como a ciência é e de dizer como ela deve ser, apesar de ser muito importante a
contribuição histórica na filosofia das ciências. O autor ainda afirma que a idéia de
progresso histórico da ciência é um elo de ligação entre Bachelard e Kuhn, e que ambos
trabalham com o binômio ruptura-continuidade. Isto parece correto em Kuhn, mas não
sei se se pode dizer de Bachelard, dado que a sua grande ênfase e insistência está na
questão da ruptura e em afirmar a descontinuidade do progresso científico. Elyana
Barbosa, por exemplo, apresenta-o como “o filósofo da ruptura”.
Quanto a relações entre Kuhn e Feyerabend, o autor afirma que Feyerabend se aproxima
das idéias de Kuhn no que se refere a uma caracterização do fazer científico, tendo sua
epistemologia este caráter descritivo. Kuhn influenciou Feyerabend nesse e outros
aspectos, de modo que veremos em alguns aspectos da epistemologia de Feyerabend
respostas à concepção de Kuhn. Eles divergem com relação à questão da proliferação de
teorias, por exemplo, que para Kuhn eram sintomas de crise, dado que ocorriam no
período pré-paradigmático do desenvolvimento de uma ciência, de modo que tal
proliferação deveria cessar tão logo um paradigma fosse estabelecido. Feyerabend, por
outro lado, encoraja a elaboração de teorias alternativas, que seriam benéficas para o
progresso científico tanto por fornecer parâmetros de comparação com as teorias
vigentes como por estimular a pluralidade de pontos de vista, reduzindo a hegemonia da
teoria estabelecida. Em termos gerais, para Kuhn esta proliferação deveria ocorrer em
momentos especiais, enquanto para Feyerabend deveria fazer parte da atividade corrente
da ciência. Outro ponto de contato entre os dois autores está na questão da
incomensurabilidade, que em Kuhn se dá entre os paradigmas, enquanto em Feyerabend
se dá entre as teorias.
No quarto capítulo, por fim, o autor retomará Kuhn, Bachelard e Feyerabend, para
problematizar um determinado período histórico, como um “exemplar”, como ele
mesmo denomina, no intuito de fazer uma espécie de síntese, envolvendo
epistemologia, história das ciências e educação, depois de ter apresentado as concepções
históricas sobre o tempo. Ele examina o período compreendido entre os séculos IV a.C e
XVII d.C., com o propósito de “analisar como o conceito de tempo foi introduzido de
forma definitiva no estudo dos movimentos” (p. 112). Aqui há, de certo modo, uma
retomada da apresentação histórica das concepções sobre o tempo, sendo que alguns
pontos são mais aprofundados, como a cosmologia aristotélica e a revolução científica
que resulta na ciência moderna, com Copérnico, Kepler, Galileu e Newton como
protagonistas. Apesar de também tecer articulações epistemológicas (com a noção de
“perfil epistemológico, p. ex.) e considerações sobre ensino, o capítulo é
predominantemente histórico, e algumas vezes se confunde com uma apresentação
histórica da revolução copernicana. Seria de esperar um maior desenvolvimento do tema
que intitula a dissertação — o ensino do conceito de tempo. O autor faz muito bem as
apresentações epistemológicas, educacionais e históricas, mas me parece que não houve
uma articulação satisfatória que contemplasse o ensino do conceito de tempo.