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Estamos, hoje, perante um modelo de sociedade em que é cada vez menor o número de
pessoas que participam na tomada de decisões sobre as formas de produção, distribuição
e consumo de bens sociais, económicos e culturais; assim como enfrentamos um défice
profundo de debate democrático sobre os conteúdos e os procedimentos das decisões
políticas, nomeadamente no sistema de ensino, segurança social e sustentabilidade
económica e social do país para o futuro (a questão da parceria com a União Europeia e o
secretismo de algumas decisões parlamentares são casos flagrantes).
Isso para além do necessário debate sobre os valores que devem enformar a sociedade
cabo-verdiana que, ao que se constata, ainda se encontra enformada de um mofo moral e
de um utilitarismo avalorativo que urge atentar – em particular pela sociedade civil.
Se não é mofo, é um novo conservadorismo – aliado a um pânico moral que a morte das
ideologias (ocorrida de facto em 1992, com a nova República cabo-verdiana) fez emergir
– sustentado na busca de uma redefinição da acção política, da sua função e da
dimensão e sentido das intervenções sociais.
Tem, nalguns aspectos, algumas razões válidas. Não há que saber muito: num Mundo em
crise a racionalidade económica e a sua utilidade é aferida pela medida dos benefícios
económicos que se adquirem; isso – não raras vezes – em detrimento do benefício social
e moral.
É por esta razão que o Estado tem tido o monopólio do ensino (que, segundo Ernest
Gellner, é o maior poder do Estado – em contraposição à «violência legítima» de Max
Weber –, o que concordo, pois tem uma dimensão «formatadora» da pessoa) e, agora, ao
passá-lo para o plano privado (mantendo o monopólio dos sentidos dos conteúdos), fá-lo
em prejuízo do serviço público mas em benefício da economia. É que, convenhamos,
Educação pública não é o mesmo que serviço público de educação; neste plano estamos
perante uma falha sistémica, numa deriva de modelo – do ensino básico à Universidade.
O que se procura, hoje, é formar pessoas para o emprego, para terem ferramentas para
poderem «ganhar mais dinheiro» e terem «uma vida melhor» (e assim ter dados
macroeconómicos e de desenvolvimento humano que satisfaçam as organizações
internacionais e alguns programa de «ajuda ao desenvolvimento») em vez de formar as
pessoas para serem pessoas melhores – em termos humanos e técnicos –, logo, mais
capazes.
Bastará ver os relatórios anuais das grandes instituições financeiras do Mundo, como o
FMI, a OCDE, o BAD e o Banco Mundial para verificarmos a sua preocupação com a
questão da Educação e percebermos a sua dimensão estruturante na economia global.
Daí o «brain drain» global e as políticas de imigração dos novos países de imigração que
dão prevalência às competências adquiridas pelos candidatos a migrantes,
nomeadamente ao nível formal e os demais, ao «menos competentes» em termos
formativos só servirem para o trabalho sazonal...
«Educar uma mulher é educar uma família; educar um homem, é educar apenas uma
pessoa», é lógica que impera entre a comunidade internacional na sua relação com o
terceiro mundo ou «países em vias de desenvolvimento» no âmbito dos programas de
desenvolvimento – sob o paradigma assistêncialista – para estes países.
E assim é porque, como bem diz o Professor Santiago Nino, os direitos fundamentais ou
direitos humanos, constituem a «meta-discurso» do discurso democrático. Assentando,
assim, o Estado moderno e democrático na dignidade humana que fundamenta e confere
unidade aos direitos fundamentais (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição
da República Portuguesa Anotada, 2ª. Edição revista e ampliada, 1º. Volume, Coimbra
editora, anotação ao Artº.1º., Coimbra, 1984, p.70). Sobre a dignidade humana e a sua
intangibilidade, vide, ainda e por todos, JÜRGEN MOLTMANN, La Dignidad Humana,
Ediciones Sigueme, Salamanca, 1983).
Sobre esta matéria, ROBERT ALEXY diz-nos que «Se llega a una vinculación concreta
del legislador sólo si la formula “Hay que tratar igual a lo igual y desigual a lo desigual” no
es interpretada como exigencia dirigida a la formula lógica de las normas mas sino como
exigencia a su contenido, es decir, no en el sentido de un mandato de igualdad formal
sino material» (ibidem, p.386). [..] «La igualdad material conduce, pues, necessariamente
a la cuestión de la valoración correta y, con ello, a la cuestión de qué es una legislación
correcta, razonable o justa.» (ibidem, p.388).
Isto é, se o Estado tem as suas razões legítimas, ela devem ser prosseguidas com
racionalidade e justiça social, com respeito pelos direitos humanos dos cidadãos. O que
não é legítimo nem aceitável é o utilitarismo amoral que desconsidera a pessoa como fim
mas a vê como mero «objecto» de política social, como «exemplo» no âmbito de uma
política de prevenção geral (factor de exemplo para as colegas) e prevenção especial (em
relação à pessoa em concreta impedida de frequentar a Escola – o que funciona como
sanção e é análoga à uma pena feridora do direito à liberdade...) a fim de evitar mais
grávidas nas escolas.
Essa perspectiva, quando vista de um ponto de vista meramente utlitarista (os decisores
políticos deveriam reler Stuart Mill e Bentham com correcção civilizacional e humanismo),
constitui uma violação grosseira dos direitos fundamentais das mulheres e um atentado
profundo aos valores que enformam o Estado de Direito Democrático e plasmados na
Constituição de Cabo Verde.
E não seria preciso sair das fronteiras jurídicas de Cabo Verde para se perceber isso. A
Constituição da República é clara ao vedar quaisquer tipos de normas ou decisões
política e administrativas que afectem o conteúdo essencial do direito de aprender
(Artº.49º., nº.s 1 e 2 e Artº.17º. da Constituição da República de Cabo Verde).
Somente uma miopia aguda, social e jurídica, impede que se veja o «status negativus» –
o mandato constitucional de «non facere» – nesta matéria e o seu contraponto, o
mandado constitucional de optimização do direito e a liberdade fundamentais de
aprender.
E, diga-se an passant, qualquer norma que a Assembleia nacional produzisse com esse
sentido seria materialmente inconstitucional, assim como qualquer regra criada pelo
executivo sofreria o mesmo vício – mas agora não somente material, mas também
orgânica e formal, pois é matéria reservada à competência legislativa da Assembleia
Nacional. Do mesmo modo que qualquer acto administrativo com tal conteúdo é
juridicamente inexistente, assim como – nos termos em que foi feito com a cidadã do
Concelho do Paul, Ana Rodrigues – constitui um crime de discriminação e de coação.
Mais do que isso, o Governo deve(ria) proceder a um estudo adequado sobre esta
matéria e, a seu tempo, apresentar uma proposta de lei à Assembleia Nacional em que,
no âmbito de uma «escolha certa» (a decisão adequada), pondere e trate todas as
questões conexas com a gravidez precoce, nomeadamente no período de formação
escolar e de desenvolvimento da personalidade das jovens mulheres.
Estamos, quando falamos desta questão, a falar de direitos humanos e da sua violação
grosseira pelo Estado e seus agentes. O Artigo 49º da Constituição da República de Cabo
Verde (Liberdade de aprender, de educar e de ensinar) é claro no seu enunciado:
Ora, colocada a questão nestes termos, claro resulta que uma legislação correcta,
razoável e justa só pode ter uma aplicação consentânea com ela. Se ela não for correcta,
razoável e justa não pode ser aplicada. E a prática de impedir as jovens mulheres
grávidas de exercerem a liberdade e o direito de estudar é, claramente, injusta.
Aos pais que dizem que «têm o direito» de não ver as filhas nas escolas ao lado de uma
jovem grávida, lembro-lhes o que diz João Paulo II: «Não é difícil verificar que no mundo
actual despertou em grande escala o sentido de justiça...» Será o despertar da justiça
desses pais.
Mas o Papa de cujus acrescenta que, em nome de uma pretensa justiça ou bem, se limita
a liberdade e impõe-se uma dependência total que contrasta com a essência de justiça.
«Este uso abusivo da ideia de justiça e da sua adulteração na prática demonstram que a
acção humana pode afastar-se da justiça, até mesmo quando empreendida em seu
nome» (Encíclica «Dives in Misericordia» de João Paulo II, Vaticano, 1980). Poderia
perguntar a esses pais: – «E onde fica o direito e a liberdade dos outros?» Bem, acho que
bastará pedir aos mesmos que leiam com atenção o que acabo de escrever e lembrá-los
do imperativo categórico (Kant) e da regra de ouro (Jesus Cristo)…
Ah, como dizia WILL ROGERS, It is great to be great, but it is greater to be human
(GREENBERG, SIDNEY (Editor), A Treasury of the Art of Living, Hartmore House,
Hartford, 1963). Podemos procurar «estar na moda», ter bons números para o ego e para
a comunidade internacional; mas nunca, nunca seremos uma grande nação, se não
formos humanos nas nossas decisões – percepcionarmos o «outro» – e não respeitarmos
as nossas normas fundamentais, a nossa gente e as suas necessidades.