Você está na página 1de 3

Um nu

O portão de grade ainda não havia rangido e seu silêncio fez o dr. Ivo Caldas
acordar com um susto. Virou-se no travesseiro, pestanejando na escuridão.
Enquanto não ouvisse o grito rouco do portão, e logo depois o estampido do ferrolho
ao chocar-se contra o muro, não poderia voltar a dormir sossegado. Olhou o
despertador que mantinha sobre o criado-mudo com puxadores de madrepérola,
mas o relógio estava virado para a porta, e não a quarenta e cinco graus da cama,
como já havia explicado mil vezes a Mariinha. Que horas seriam? Maldizendo-a outra
vez, fez um esforço descomunal para mover-se debaixo do lençol de renda, que
continuava ajustado ao corpo, e esticou o braço até sentir o vidro frio na ponta dos
dedos. Girou o relógio até a posição correta, onde podia consultá-lo tanto dali,
deitado na cama, como quando saísse do banheiro ou entrasse no quarto. Pronto.
Dez para as cinco da manhã. Era tarde, Mariinha estava atrasada apesar do tanto
que a advertiu e repreendeu e explicou novamente. Não havia jeito. Se não saísse
para buscar o gelo antes das cinco, melhor nem ir.
A casa o observou de longe e com certa timidez naquela manhã. Apenas os
ruídos dos pratos, da panela de pressão e das gavetas pareciam conversar diante da
presença dele. A cozinheira e sua filha Iara, de doze anos, notaram que o Dr. Caldas
não usava os chinelos de sábado; não ousaram comentar. Ele não perguntou por
Mariinha, passou pela ampla sala com o janelão aberto sem se deter. Não parou
para conferir se o cabo de vassoura que escorava a janela da frente estava firme,
nem para admirar a moldura do pequeno quadro que havia chegado do marceneiro
na véspera, e não correu a mão ao longo do encosto da namoradeira de palhinha.
Apenas o retrato da falecida, pendurado no prego da parede por uma fitinha azul,
permanecia imperturbável nesta manhã. Felizmente estava tudo em ordem, sem o
menor vestígio de pó.
Avançou pelo corredor em direção à copa. Não disse uma só palavra.
Encontrou o café servido, queijo de coalho assado sem casca, inhame com manteiga
e sal, suco de acerola no copo coberto com um lenço. Passou pela mesa sem
enxergá-la. As mulheres se ocuparam às pressas, para não ter que lhe dirigir o
olhar.
— Estão lembradas que vem visita?

Quando esteve no Rio de Janeiro, por ocasião de um curso de quatro dias, e


com as despesas pagas pela empresa, invejou a praia de Copacabana. Nada dos
coqueiros, ou de ruas de terra, nada de ratos atravessando as vielas, roendo cocos e
subindo nos troncos, sem pescadores na praia ao pé de samburás fedorentos, com
suas linhas a atrapalhar os banhistas, se é que se podia chamar banhistas àqueles
moleques de Olinda, que desciam correndo para o mar cobertos de areia e davam
cambalhotas por sobre as ondas, aos berros. O Rio não sabia de nada disso. Voltou
pródigo em elogios. Foram oito dias de puro deleite, dizia.
Lá conheceu outros colegas, de escritórios de todo o Nordeste. Contadores,
arquivistas e até alguns chefes de setor. Por coincidência, era em companhia destes
últimos que o doutor mais se encontrava. Ora nos jantares, ou nos intervalos das
palestras, ou no saguão do hotel. Achou-os de fino humor e ótima conversa.
Cuidava de ir servir-se de água ou sair para fumar sempre que um deles fazia o
mesmo, e não demoravam a engrenar num assunto. Nenhum o tratava por doutor,
era apenas Ivo. Um sinal de intimidade, quem sabe. O subgerente de uma filial
modesta, mas ali mesmo no Rio, era especialmente simpático. Chamava-se
Hollanda. Não deixaram de trocar endereços e telefones na última noite, depois que
esta feliz idéia ocorreu ao doutor Ivo Caldas.
Quem o visse rir naquele coquetel de despedidas e abraços não haveria de
achar possível uma manhã como esta. Subiu ao quarto depois de ler os jornais e
cruzou com a menina Iara. Parou no último degrau da escada e perfilou-se para que
a negrinha passasse. Seu humor era tal que não teve ânimo para sentir-lhe as
formas do corpo. Ela percebeu, e achou esta falta ainda mais amedrontadora do que
as surdas apalpadelas. Ao menos ele encontrou sua camisa de linho perfeitamente
engomada e dobrada sobre a cadeira, de onde pendiam as calças azuis que havia
mandado lavar e borrifar com água de laranjeira especialmente para o dia. A
negrinha era danada, além de tudo. Se ela não fosse tão jovem, o doutor já teria
feito alguma coisa. Ou mandado buscar o gelo na peixaria no lugar da outra.
Mariinha voltou à casa com o sol bem alto. Na peixaria, Naldo depositava os
peixes da madrugada no freezer quando ela chegou. O gelo já cheirava a peixe, e
Mariinha teve que buscar em outro lugar. Andou até o Varadouro, onde ficava o
posto de gasolina de seu Souto, que vendia gelo em cubos dentro de sacos
plásticos. Ali não era de graça, como na peixaria, onde Naldo embutia o custo nas
encomendas de cioba, tainha e cavala que o doutor pedia com boa freqüência. Às
vezes comprava até camarão; valia a pena mimar o freguês. No posto o gelo era
vendido, e por um bom preço: era feito com água potável. Mariinha teve que
comprar com dinheiro do próprio bolso. Depois, descontaria o valor nos trocos do
supermercado.
Doutor Ivo ouviu o portão bater denunciando a chegada dela. Mas não se
animou, havia perdido a vontade. Deixaria para depois da visita, e encerraria o
sábado relaxando merecidamente após tanta concentração e aborrecimento. Agora,
devia ver como andava o almoço e a ordem da casa. Hollanda chegaria a qualquer
momento.
O subgerente apareceu atrasado, por volta das onze e meia. Só mesmo sua
vinda fez o doutor trocar a carranca pelo sorriso, com uma alegria fácil e larga.
Foram para a varanda do sobrado, onde já os esperava a mesinha redonda de
azulejos, com azeitonas e cubinhos de queijo. Hollanda sentou-se de frente para a
treliça da balaustrada, por onde se entrevia o mar e o céu de Olinda por cima dos
telhados vermelhos.
— É a única vista do mundo em que o mar está acima das casas — disse o
carioca.
Conversaram sobre as diferenças entre o Rio e Pernambuco, entre os
sotaques, entre os sabores. No fim do almoço, depois da carne de sol com molho de
cerejas, quando Iara veio trazer mais suco de graviola e bolo de rolo, seu colega
dizia:
— Mas de todas as coisas que eu provei aqui, — o doutor Ivo preparou-se para
um elogio à sua recepção. O outro continuou: — sem dúvida a melhor delas foi o
banho de mar.
O doutor olhou para Iara, que seguiu depositando suas coisas sobre a
mesinha, não pareceu ter notado. Ivo Caldas deu seguimento à conversa, sem
demonstrar surpresa à menina, ou ao outro.
— O banho de mar...
— É quente. O mar daqui é morno, uma delícia. O oposto do Rio.
Agora sim, Iara percebeu. Pelo olhar, ainda que fortuito, que dirigiu ao dono da
casa, e pela rapidez com que terminou de recolher a bandeja e saiu, estava claro.
Mais do que claro.
O doutor Ivo embrulhou a conversa, e dali a poucos minutos os dois homens já
se despediam na porta, com um aperto de mão.
Mais tarde, às seis horas, o doutor estava nu diante do espelho. Fitava a
banheira cheia, e na flor d’água via flutuarem as pedrinhas de gelo. Ali, pensou em
desistir. Seu esforço e orgulho de tomar banho todos os dias como se estivesse no
mar de Copacabana tinha perdido um pouco o sentido. No fundo interior do mito, na
neblina que preenche as sensações, algo havia se cristalizado ao ponto de rachar. O
que teria sido? Talvez o comentário, ou o olhar da menina, ou alguma revelação
interna, acessível somente a ele próprio. Não conseguia definir. Enquanto isso,
mirava sua nudez de corpo inteiro no espelho do banheiro azulado.

****

André Laurentino
www.andrelaurentino.blogspot.com

Você também pode gostar