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LAVAGEM DE DINHEIRO: A MODERNA MAQUIAVELÍSTICA

Nome do Autor: Daniel Cavalcante Silva


Profissão: Advogado e Sócio da Covac Sociedade de
Advogados (São Paulo Rio de Janeiro e Brasília)
Qualificação: Advogado pós-graduado no MBA em
Direito e Política Tributária pela FGV, Núcleo Brasília;
Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB); Membro honorário
da Associação Internacional dos Jovens Advogados
(AIJA) e membro honorário da Associação Internacional
dos Advogados (AIA).

RESUMO

Trata-se de ensaio monográfico que propõe analisar as causas e efeitos da lavagem de


dinheiro e remessa ilegal de divisas. Para tal desígnio, buscou-se fazer uma decomposição
sistemática e progressiva do tema, perpassando-se pela análise de sua terminologia, escorço
histórico, da legislação internacional e nacional aplicável, com ênfase na minudência
constitucional e infraconstitucional. Outra perspectiva analisada é o objeto jurídico e material
da legislação contra a lavagem de dinheiro, que incidirá diretamente na tutela do bem comum
e interesse público. O procedimento de lavagem de dinheiro é analisado em fases e técnicas,
as quais são esquadrinhadas por intermédio do estudo de uma casuística no cenário nacional.
O estudo também aborda os aspectos gerais de países com tributação favorecida (paraísos
fiscais) e a utilização abusiva dos tratados e convenções internacionais como mecanismos
para lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas. Por outro lado, a cooperação
internacional também é analisada por intermédio dos organismos internacionais e nacionais de
assistência administrativas, que dão suporte à atuação do poder judiciário na repatriação de
ativos. Nesse caso, são examinados os procedimentos de apuração e os mecanismos
probatórios da lavagem de dinheiro. Por fim, o estudo visa correlacionar a Moderna
Maquiavelística e o Teorema das Proporções Definidas, na perspectiva do filósofo italiano
Antonio Gramsci, com a Lavagem de Dinheiro e Remessa Ilegal de Divisas, com o objetivo
de esclarecer elementos sociológicos que se amoldam ao fenômeno da Lavagem de Dinheiro,
a Remessa Ilegal de Divisas e seus agentes interlocutores.
ABSTRACT

An analysis of the causes and effects of money laundering and illegal money transfers
abroad. In order to carry out such analysis, a systematic investigation on the matter was
carried out and its terminology was examined, as well as the relevant historical background
and applicable international and national legislation – with focus on constitutional and infra-
constitutional relevance. Other analysis involves the juridical object and the legislation to curb
money laundering. The process of money laundering is investigated in different phases and
techniques through case studies in an international context. Also considered in this study are
general aspects related to countries with favorable tax law – the so-called “banking paradises”
– and the abusive use of international treaties and conventions as mechanisms to launder
money and transfer money illegally among countries. International cooperation is also
examined in light of international and national cooperation organisms that promote
administrative assistance and support the judiciary when it comes to repatriate assets, where
investigation procedures and mechanisms that prove money laundering are studied. Finally,
the study aims at relating the Modern Machiavelli (Moderna Maquiavelística) and the Theory
of Defined Proportion as proposed by Italian philosopher Antonio Gramsci to issues of money
laundering and illegal money transfers so that the relevant sociological elements are brought
into light.

Palavras-Chave
Lavagem de Dinheiro – Remessa Ilegal – Paraíso Fiscal – Crime – Repatriação – Ativos

2
SUMÁRIO

1 - INTRODUÇÃO ____________________________________________________________ 4
2 – LAVAGEM DE DINHEIRO E A REMESSA ILEGAL DE DIVISAS: CONCEPÇÕES INICIAIS ___ 5
2.1 – Da Legislação Internacional Aplicável _________________________________________ 8
2.2 – Fundamento Constitucional Pátrio e a Legislação Interna ________________________ 11
2.4 – A Tutela do Bem Comum e o Interesse Público _________________________________ 16
2.5 – Fases da Lavagem de Dinheiro _______________________________________________ 19
2.6 – Exemplo de Técnicas de Lavagem ou Reciclagem de Ativos Ilícitos ________________ 22
2.7 – Casuística ________________________________________________________________ 24
3 – OS PAÍSES COM TRIBUTAÇÃO FAVORECIDA (PARAÍSOS FISCAIS): CARACTERÍSTICAS
COMUNS _________________________________________________________________ 27
3.1 – Paraísos fiscais para pessoas físicas ___________________________________________ 30
3.2 – Paraísos fiscais para pessoas jurídicas _________________________________________ 31
4 – A UTILIZAÇÃO ABUSIVA (TREATY SHOPPING) DOS TRATADOS E CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS COMO MECANISMO PARA LAVAGEM DE DINHEIRO E A REMESSA ILEGAL
DE DIVISAS _______________________________________________________________ 32
4.1 – As cláusulas anti-Treaty Shopping ____________________________________________ 34
5 – COOPERAÇÃO INTERNACIONAL: A ASSISTÊNCIA ADMINISTRATIVA EM CASOS DE
FRAUDE TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL, REMESSA ILEGAL DE DIVISAS E LAVAGEM DE
DINHEIRO ________________________________________________________________ 37
6 – ÓRGÃOS NACIONAIS PARA A REPATRIAÇÃO DE ATIVOS E CONTRA A LAVAGEM DE
DINHEIRO ________________________________________________________________ 41
7 – APURAÇÃO DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO E ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
BRASILEIRO ______________________________________________________________ 44
8 – LAVAGEM DE DINHEIRO: A MODERNA MAQUIAVELÍSTICA E O TEOREMA DAS
PROPORÇÕES DEFINIDAS ____________________________________________________ 47
9 – CONCLUSÃO ___________________________________________________________ 50
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ________________________________________________ 53

3
LAVAGEM DE DINHEIRO: A MODERNA MAQUIAVELÍSTICA

“O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua


plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a
submissão e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, a
expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem.”

A Sociedade do Espetáculo – Guy Debord

1 - INTRODUÇÃO

A interdependência das economias mundiais, com a presença de investimentos


estrangeiros em quase todos os países do globo, bem como a revolução tecnológica dos meios
de comunicação, impõe a adoção de políticas internacionais adequadas e eficientes a fim de se
evitar o que se convencionou a chamar de lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas. Os
países de um modo geral, principalmente o Brasil, que ora pretende assumir posição de
destaque no comércio internacional, precisam encarar a problemática da lavagem de dinheiro
e a remessa ilegal de divisas, pois ignorá-las é abrir as portas para graves problemas que
poderão aportar no âmbito social, econômico e, até mesmo, no âmbito da soberania dos
Estados.
Nesse sentido o presente ensaio monográfico propõe analisar as causas e efeitos da
lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas. Para tal desígnio, buscou-se fazer uma
decomposição sistemática e progressiva do tema, perpassando-se pela análise de sua
terminologia, escorço histórico, da legislação internacional e nacional aplicável, com ênfase
na minudência constitucional e infraconstitucional. Outra perspectiva analisada é o objeto
jurídico e material da legislação contra a lavagem de dinheiro, que incidirá diretamente na
tutela do bem comum e interesse público.
O procedimento de lavagem de dinheiro é analisado em fases e técnicas, as quais são
esquadrinhadas por intermédio do estudo de uma casuística no cenário nacional. O estudo
também aborda os aspectos gerais de países com tributação favorecida (paraísos fiscais) e a
utilização abusiva dos tratados e convenções internacionais como mecanismos para lavagem
de dinheiro e remessa ilegal de divisas. Por outro lado, a cooperação internacional também é
analisada por intermédio dos organismos internacionais e nacionais de assistência
administrativas, que dão suporte à atuação do poder judiciário na repatriação de ativos. Nesse
caso, são examinados os procedimentos de apuração e os mecanismos probatórios da lavagem
de dinheiro. Por fim, o estudo visa correlacionar a Moderna Maquiavelística e o Teorema das
Proporções Definidas, na perspectiva do filósofo italiano Antonio Gramsci, com a Lavagem

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de Dinheiro e Remessa Ilegal de Divisas, com o objetivo de esclarecer elementos sociológicos
que se amoldam ao fenômeno da Lavagem de Dinheiro, a Remessa Ilegal de Divisas e seus
agentes interlocutores.
A lavagem de dinheiro é causa determinante de obstáculo ao desenvolvimento, mas
também sugere que se deva, na senda jurídica, estabelecer novas perspectivas para a sua
compreensão, vista como inimiga da democracia e não o seu defluente, capaz de ser
combatida pelo concurso direto de setores do próprio Estado e da sociedade civil organizada.
Desta feita, o presente estudo visa fazer uma análise sistemática dos mecanismos de defesa
contra a lavagem de dinheiro, identificando as formas e os meios de prevenção e repressão à
lavagem de dinheiro no Brasil, objetivo que atualmente tem como pressuposto necessário a
integração das iniciativas internacionais empreendidas pelos diferentes Estados que compõem
o atual cenário comercial e econômico internacional.

2 – LAVAGEM DE DINHEIRO E A REMESSA ILEGAL DE DIVISAS: CONCEPÇÕES INICIAIS

A expressão money laundering foi usada juridicamente pela primeira vez nos Estados
Unidos, no ano de 1982, num caso em que se postulava a perda de dinheiro procedente de
tráfico de entorpecentes. O termo era empregado pelas organizações mafiosas que usavam
lavanderias automáticas para investir dinheiro e encobrir sua origem ilícita1.
Além de outros aspectos contraditórios que envolvem o tema, também não existe um
consenso a respeito da terminologia desta conduta. Enquanto em alguns países empregam a
locução “lavar” (lavagem de dinheiro no Brasil, money laundering nos Estados Unidos e
Inglaterra, Geldwäsche na Alemanha, lavado de dinero na Argentina e México, Gelwäscherei
na Suíça e Áutria), outros preferem “branquear” (blanqueo de dinero na Espanha,
blanchiment de l’argent na França, branqueamento de capitais em Portugal e blanchissage de
l’argent em pare de Suíça). Na Itália o fenômeno é chamado de reciclaggio del denaro
(reciclagem de dinheiro). As diversas nomenclaturas não são imunes às críticas dos mais
diversos doutrinadores, que acham despicienda a distinção entre “dinheiro negro” (que precisa
ser branqueado) e “dinheiro sujo” (que precisa ser lavado).
No Brasil, o conceito de lavagem de dinheiro subsume-se no processo composto por
fases realizadas sucessivamente, que tem por finalidade introduzir na economia ou no sistema
financeiro, bem, direitos ou valores procedentes dos crimes previstos no rol do art. 1º, caput,
da Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou

1
. CORDERO, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de capitales – 2ª Edição. Navarra: Editora Aranzadi, 2002,
p. 86.

5
ocultação de bens, direitos e valores. O ato discriminado no artigo supracitado estriba-se em
ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou
propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime, como
por exemplo: o crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; o crime
de terrorismo e seu financiamento; crime de contrabando ou tráfico de armas; crime de
extorsão mediante seqüestro; crime contra a Administração Pública; crime contra o sistema
financeiro nacional; crime praticado por organização criminosa, entre outros.
Independente da definição adotada, a doutrina aponta as seguintes características
comuns no processo de lavagem de dinheiro: lavagem é um processo onde somente a partida é
perfeitamente identificável, não o ponto final2; a finalidade desse processo não é somente
ocultar ou dissimular a origem delitiva dos bens, direitos ou valores, mas igualmente
conseguir que eles, já lavados, possam ser utilizados na economia legal3.
Uma questão doutrinária polêmica diz respeito ao bem jurídico tutelado em casos de
lavagem de dinheiro. A corrente doutrinaria majoritária no Brasil é patente ao considerar o
crime de lavagem de dinheiro como delito pluriofensivo, ou seja, é um delito que violaria, a
um só tempo, os sistemas econômico e financeiro do país, bem como a administração da
justiça, o que seriam os bens jurídicos tutelados4. Nesse tipo de crime, pode-se aceitar um dos
bens como prevalente e outro como subsidiário.
O fundamento para a compreensão do fenômeno da lavagem de dinheiro reside no fato
de que existe uma particular condição de alteração do sistema econômico-financeiro de um
país. É que nesses sistemas, que dependem de segurança e transparência, são
significavelmente afetados pelo fluxo de recursos de origem delitiva, que colocam em risco
princípios constitucionalmente assegurados, pondo em xeque a própria ordem econômica
nacional. Além disso, com um crescente investimento de capitais ilegais na economia, pode
ocorrer uma perda de confiança nas formas de funcionar a concorrência sobre a qual se baseia
o sistema de livre comércio. Logo, com a atividade ilícita, incrementam-se os riscos de
mercado, pois a livre concorrência e a lealdade estariam comprometidas, da mesma forma que
a estabilidade e solidez do mercado financeiro, ameaçando consequentemente a economia

2
. Carlos Aráguez Sánchez explica que a dificuldade de confirmar o fim do processo de lavagem de dinheiro
deve-se ao fato de que é sempre possível aperfeiçoá-lo, realizando novas operações capazes de distanciar ainda
mais os bens ou valores de sua procedência ilícita. (SÁNCHEZ, Carlos Aráguez, El delito de blanqueo de
capitales. Madrid: Editora Marcial Pons, 2000, p. 33)
3
. CORDERO, Isidoro Blanco. Op. Cit., p. 33.
4
. Nesse sentido: MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de Dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime)
Anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. / BONFIN, Márcia
Monassi Mougenot, e BONFIN, Edílson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

6
pública. Efeitos dessa ordem serão a atividade monopolística e oligopolística de empresas
constituídas ou financiadas pelo capital de origem criminosa.
Para se entender o fenômeno acima, urge analisar a seguinte casuística5: se alguém,
ajudado pelo capital de origem criminosa, baixa os preços normais da venda no setor de
couro, o comprador legal do couro pode produzir sapatos mais baratos e exercer uma
concorrência ilícita sobre outros produtores de sapatos. O mesmo sucederia no plano dos
vendedores de sapatos. Não seria difícil concluir, então, que a pretensão do monopólio no
mercado inerente à atividade das organizações criminosas é fator potencial gerador de
corrupção, chegando-se a afirmar que as organizações criminosas empregam até 40%
(quarenta por cento) de seus ganhos na corrupção e suborno.
Há que se levar em consideração que as empresas criminosas evoluíram na busca dos
ilícitos mais rentáveis economicamente. No início6 atuavam prioritariamente nas atividades de
extorsão (venda de proteção) e nos crimes “sem vítimas” (agiotagem, prostituição, venda
ilegal de bebidas e os jogos de azar). Com o passar do tempo, assumiram a opção preferencial
pelos lucrativos tráficos de armas e de entorpecentes; pela pornografia, inclusive infantil; pelo
controle de sindicatos para incremento de extorsões; pela corrupção de funcionários públicos
e associação com agentes políticos; entre outros. Atualmente, destacam-se pela administração
e aquisição de negócios lícitos como forma de investir os ganhos ilícitos, otimizando-os e,
sobretudo, tornando-os “limpos”, inclusive, como estratégia para prática de ilícitos mais
sofisticados, tais como os crimes contra a economia popular, tradicionalmente cometidos por
criminosos do “colarinho branco”.
Com efeito, as profundas mudanças que ocorreram nas técnicas de aproveitamento dos
produtos do crime (lavagem de dinheiro), para além de assegurarem a própria reprodução e
tornarem possível a ampliação e a perpetuação das atividades criminais, resultaram na
presença massiva de capitais ilícitos no sistema financeiro e na economia nacional,
produzindo um elevado ônus adicional para toda a comunidade, visível e com seqüelas
deletérias. Nesse sentido, o professor Rodolfo Tigre Maia elenca as principais seqüelas
deixadas por esse tipo de procedimento criminoso7:
a) a erosão da legitimidade dos mecanismos tradicionais de representação democrática
e da credibilidade dos representantes populares;

5
. CORDERO, Isidoro Blanco. Op. Cit., p. 223.
6
. MAIA, Rodolfo Tigre. Op. Cit., p. 24.
7
. MAIA, Rodolfo Tigre. Op. Cit., p. 23.

7
b) a desmoralização da administração pública, com a corrupção de seus servidores,
reforçando no imaginário social a liderança dos fora-da-lei e o descrédito do aparelho do
Estado;
c) a impunidade dos criminosos poderosos, desagregadora de valores e geradora de
descrença no sistema judicial;
d) a sonegação fiscal, retirando vultuosos recursos tributários necessários à
implementação de políticas públicas e, desta maneira, de forma indireta, contribuindo no
incremento das desigualdades sociais;
e) a possibilidade de desestruturação da economia nacional, sobretudo de países em
desenvolvimento, sequiosos por investimento externos e destituídos de uma legislação
protetiva eficiente, quando tais capitais têm sua origem desvendada; e, ainda, na sua versão
neoliberal mais perversa;
f) a crise do sistema financeiro, quando por sua volatilidade esses ativos abandonam
inopinadamente o país, na busca de maiores lucros ou por receito de medidas repressivas,
desestabilizando o sistema e deixando atrás de si um rastro de quebras, desemprego e perdas
de poupanças populares.
A concorrência ilegal prejudica a economia nacional à medida que reduz a eficiência e
a qualidade da produção. De um lado, tem a legalidade, a eficiência e a qualidade. De outro, a
ilegalidade, a sonegação, a pirataria, o contrabando. O efeito da lavagem de dinheiro é
perverso sobre a ordem econômica, porque possibilita o controle por parte das organizações
criminosas de diversos setores da economia, além de causar descrédito à Administração
Pública e ao sistema financeiro nacional.

2.1 – Da Legislação Internacional Aplicável

Em face da internacionalização do crime de lavagem de dinheiro e da gravidade do


problema, apenas uma legislação internacional que fosse sincronizada, bem como uma
eficiente cooperação interestadual, poderiam ser eficazes nos âmbitos de prevenção e
repressão dessa prática. Essa evidente constatação desaguou em uma união internacional de
esforços, resultando na celebração de Convenções e Tratados, além de elaboração de
Diretivas, Resoluções e Recomendações, todas elas com o objetivo de informar e prestar
auxílio a diferentes países em alguns casos e, em outros, de obrigá-los a aprovar normas
internas com potencial para fazer frente a este tipo de conduta.
Dentre os vários instrumentos internacionais confeccionados pode-se destacar,
inicialmente, a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e

8
substâncias psicotrópicas, conhecida por “Convenção de Viena”, celebrada em dezembro de
1988, considerada um marco no combate à lavagem de dinheiro. Além de exigir pela primeira
vez que os Estados contratantes incriminassem a lavagem de dinheiro procedente de tráfico de
drogas, estabelecendo para tanto a formulação detalhada de um tipo penal8, previu condutas
agravadas, como por exemplo a “participação no crime de um grupo delitivo delitivo
organizado do qual o delinqüente faça parte”9. Estabeleceu, também, disposições sobre
cooperação internacional para facilitar investigações judiciais e extradição, bem como
inversão do ônus da prova com relação à origem ilícita dos bens10. Ainda, reafirmou o
princípio segundo o qual o sigilo bancário não deve impedir as investigações penais no
âmbito da cooperação internacional11.
Outra grande contribuição foi feita pelo Grupo de Ação Financeira Internacional
(GAFI)12, organismo internacional criado em 1989 pelo grupo dos sete países mais
industrializados à época (G-7)13, no âmbito da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), para combater a lavagem de dinheiro. Desta feita, em
abril de 1990, e já contando com a adesão de outros países, foram publicadas 40
Recomendações para regular conjuntamente questões penais, financeiras e de cooperação
internacional, sem caráter obrigatório, como a própria denominação indica, fato que, ao
contrário do que se possa interpretar, não retira a sua força e respeitabilidade, uma vez que se
trata de instrumento modelo para ações internacionais14. Outras organizações e organismos
internacionais, como o FMI, INTERPOL, EUROPOL, Comissão Européia e Conselho de
Cooperação do Golfo, participam como observadores das reuniões plenárias do Grupo. O
Brasil e membro do GAFI desde junho de 2000.
A Convenção de Estrasburgo é outro instrumento internacional relevante. Trata-se de
uma Convenção relativa à lavagem, seguimento, embargo e confisco de produtos do delito.
Foi aprovada em setembro de 1990, mas entrou em vigor apenas em 1º de setembro de 1993,
em razão de problemas com o número de ratificações. Ademais de ordenar medidas eficazes
de combate a crimes graves, a Convenção exigiu que os signatários criminalizassem a
lavagem de dinheiro e estabelecessem medidas legais de embargo e confisco, com o objetivo

8
. Art. 3.1, “b”, i e ii e “c”, i, da Convenção de Viena.
9
. Art. 3.5 da Convenção de Viena.
10
. Art. 5.7 da Convenção de Viena.
11
. CUISSET, André. “La experiencia francesa y la movilización internacional contra la lucha contra el levado
de dinero.” México, Procuradoría General de la República, 1988, p. 72.
12
. Em inglês: Financial Action Task Force (FATF).
13
. Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido.
14
. SOUTO, Miguel Abel. El blanqueo em la normativa internacional. Santiago de Compostela, Universidad,
Servicio de Publicación e Intercambio Científico, 2002, p. 144.

9
de privar os delinqüentes do proveito econômico do crime. Outrossim, forneceu uma
definição de produto, bens, instrumentos, confisco e delito principal e preencheu alguns
vazios que impediam a assistência judicial recíproca no âmbito penal. Como novidade, a
Convenção de Estrasburgo ampliou o catálogo de delitos previstos a outros crimes que geram
proveito econômico, afastando a exclusividade do narcotráfico disposta na Convenção de
Viena.
Um outro instrumento que deve ser destacado é a Diretiva 308/1991, que foi aprovada
pelo Conselho das Comunidades Européias em 10 de junho d 1991 e estabeleceu medidas
para prevenir e dificultar a utilização do sistema financeiro na lavagem de dinheiro. A
Diretiva tem caráter obrigatório para os Países-Membros e objetiva harmonizar as respectivas
legislações no tocante a previsão de regras mínimas de prevenção à lavagem de dinheiro,
tutelando o sistema financeiro e assegurando o mercado único15. A Diretiva 97/2001,
aprovada pelo Conselho das Comunidades Européias em 4 de dezembro de 2001, modificou a
Diretiva 308/1991. O novo texto alterou o conceito de atividade delitiva da qual procedem os
bens e valores e alargou o rol de atividades e profissionais obrigados ao cumprimento das
medidas preventivas supracitadas, passíveis de serem usadas no processo de lavagem de
dinheiro. Nesse sentido, foram incluídos auditores, agentes de propriedade imobiliária,
notários e advogados quando intervenham em uma série de atividades que possam envolver
outras atividades ilícitas, bem como pessoas que comercializem artigos de elevado valor,
como pedras e metais preciosos, ou objeto de artes e leiloeiros.
Por fim, cumpre destacar também a Convenção das Nações Unidas contra a
Delinqüência Organizada Transnacional, conhecida como “Convenção de Palermo”, que foi
aprovada na Itália em dezembro de 2000. Nessa mesma data foram firmados os Protocolos
para prevenir, reprimir e sancionar o tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea e
o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças. Insistindo na criminalização das
condutas de lavagem de dinheiro, a Convenção previu que a partes ampliem o conceito de
crime antecedente, de forma a abranger a mais ampla gama possível de infrações penais,
especialmente aquelas consideradas mais graves16. Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil
por intermédio do Decreto n.º 231, de 30 de maio de 2003.
O Brasil também ratificou outros instrumentos internacionais, que influenciaram muito
a legislação interna. Dentre esses instrumentos ratificados, cumpre destacar: o regulamento
modelo sobre Delitos de Lavagem relacionados com o Tráfico de Drogas e Delito Conexos,

15
. CORDERO, Isidoro Blanco. Op. Cit., p. 118.
16
. Art. 2º da Convenção de Palermo.

10
elaborado pela Comissão Interamericana para o Controle e Abuso de Drogas (CICAD),
aprovado na XXII Assembléia-Geral da OEA, nas Bahamas entre 18 e 23 de maio de 1992,
com a participação do Brasil; Plano de Ação firmado pelo Brasil em Miami, após a reunião da
Cúpula das Américas no âmbito da OEA, em dezembro de 1994; e, a Declaração de
Princípios sobre Lavagem de Dinheiro, firmada pelo Brasil em Buenos Aires, em dezembro
de 1995, na Conferência Ministerial sobre a Lavagem de Dinheiro e Instrumentos do Crime17.

2.2 – Fundamento Constitucional Pátrio e a Legislação Interna

O crime de “lavagem” de dinheiro, para além de repercutir no jus libertatis, como


qualquer outra figura típica, agrega em seu bojo dispositivos com reverberações evidentes no
direito à intimidade (no que diz respeito ao sigilo bancário), no direito de propriedade privada
e no reconhecimento da livre iniciativa, os últimos como veículos das estratégias econômicas
essenciais ao modelo de organização social escolhido pela sociedade brasileira e consagrado
na Carta Política. Estes valores constitucionais (liberdade, intimidade, propriedade e livre
iniciativa) devem ter a higidez incólume quando confrontada com as normas incriminadoras e
com preceitos complementares.
Na eventualidade de um choque entre preceitos normativos, inclusive com
reverberação constitucional, na hipótese de um contexto de colisão de interesses antagônicos
igualmente resguardados pela ordem jurídica, a solução desejável de compatibilização dos
diferenciados valores envolvidos só poderá ser haurida por intermédio da sua adequada
ponderação, utilizando-se o exegeta essencialmente do princípio da razoabilidade
(reasonableness) ou proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso desdobra-se nos
seguintes aspectos: legitimidade dos fins, significando a relevância constitucional dos fins
buscados; efetividade do meio, pela qual o meio de ser capaz de realizar o fim
constitucionalmente legítimo; imprescindibilidade do meio, de modo que a finalidade
perseguida deve excluir a adoção de outro meio, pelo menos, tão eficiente quanto o tributo
extrafiscal e, por fim, a razoabilidade ou proporcionalidade em sentido estrito, pelo qual o
sacrifício exigido deve estar em relação direta, para mais, com a relevância da finalidade
objetivada. Os aspectos supracitados também se constituem com elementos do princípio da
proporcionalidade, cuja explicação pode detectar ou repelir vícios substanciais da lei em uma

17
. BONFIN, Márcia Monassi Mougenot, e BONFIN, Edílson Mougenot. Op. Cit., p. 23.

11
perspectiva diversa daquela tradicional, quando está em causa a mera compatibilidade lógico-
formal das normas constitucionais.
Desta feita, os elementos que constituem o princípio da proporcionalidade são,
segundo a Professora Suzana de Toledo Barros18: o juízo de adequação ou idoneidade
(medida adotada para respeitar a congruência entre na relação meio-fim – idoneidade à
consecução da finalidade perseguida), juízo de necessidade (meio mais idôneo e de
conseqüências menos gravosas) e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito
(otimização de possibilidade jurídica – exaltação da idéia de equilíbrio entre valores e bens).
Por outro lado, outro fundamento constitucional para abarcar a legislação contra a
lavagem de dinheiro é aferido pela relevância dos bens jurídico protegidos e da adequação
destes aos cânones dos princípios da legalidade e da razoabilidade. Os bens jurídicos
associados aos diversos tipos penais devem possibilitar uma compreensão precisa do conteúdo
de proteção e permitir uma delimitação rígida de seu campo de incidência. Devem, também,
passar pelo crivo da relevância social, preferencialmente por expressos no pacto político
fundamental, qual seja, esses valores terão de ser considerados de extrema relevância à
convivência social e/ou ao interesse público, que, cumpre lembrar, não se confunde com
interesse estatal, para que mereçam a mais amarga das sanções jurídico-protetivas: a privação
da liberdade.
Além disso, a análise individualizada dos dispositivos da lei sob a ótica da melhor
técnica de construção dogmática dos tipos penais em espécie, com ênfase nos princípios da
intervenção mínima, da taxatividade e da função de garantia do tipo, se constitui fundamento
constitucional da legislação contra a lavagem de dinheiro é aferido pela relevância.
Em relação à legislação infraconstitucional, após sete anos da ratificação da
Convenção de Viena (ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n.º 156, de junho de 1991)
foi editada a Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, que, além de tipificar os crimes de lavagem
ou ocultação de bens, direitos e valores, estabeleceu medidas de prevenção da utilização do
sistema financeiro para os ilícitos previstos em lei, bem como criou o Conselho de Controle
de Atividades Financeiras (COAF), órgão que tem por finalidade “disciplinar, aplicar penas
administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas e atividades ilícitas”
(art. 14, caput, da Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998), fiscalizando as atividades financeiras
que pode dar ensejo à lavagem de dinheiro.

18
. BARROS. Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das
Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. 2ª Edição. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 2000, p. 74.

12
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), no cumprimento das suas
atribuições contidas na Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, regulamentou procedimentos
desta Lei por intermédio da elaboração de legislação específica para todos os setores sujeitos
a sua competência. As demais autoridades administrativas encarregadas de promover a
aplicação da Lei também expediram as normas pertinentes, observando as suas respectivas
áreas de atuação. Dentre as Resoluções expedidas pelo COAF, poder-se-ia citar as
seguintes19:
“Resolução nº. 001, de 13 de abril de 1999 – dispõe sobre os procedimentos
a serem observados pelas pessoas jurídicas que exerçam atividades de
promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis.
Resolução nº. 002, de 13 de abril de 1999 – dispõe sobre os procedimentos
a serem adotados pelas empresas de fomento comercial (factoring).
Resolução nº. 003, de 2 de junho de 1999 – dispõe sobre os procedimentos a
serem observados pelas sociedades que efetuem distribuição de dinheiro ou
quaisquer bens móveis ou imóveis mediante sorteio ou método
assemelhado.
Resolução nº. 004, de 2 de junho de 1999 – dispõe sobre os procedimentos a
serem observados pelas pessoas físicas ou jurídicas que comercializem
jóias, pedras e metais preciosos.
Resolução nº. 005, de 2 de julho de 1999 – dispõe sobre os procedimentos a
serem observados pelas pessoas jurídicas que explorem jogos de bingo e/ou
assemelhados.
Resolução nº. 006, de 2 de julho de 1999 – dispõe sobre os procedimentos a
serem observados pelas administradoras de cartões de credenciamento ou de
cartões de crédito.
Resolução nº. 007, de 15 de setembro de 1999 – dispõe sobre os
procedimentos a serem observados pelas Bolsas de Mercadorias e corretores
que nelas atuam.
Resolução nº. 008, de 15 de setembro de 1999 – dispõe sobre os
procedimentos a serem observados pelas pessoas físicas e jurídicas que
comercializem objetos de arte e antiguidades.”

O mecanismo adotado pelo Brasil disciplinou em uma única legislação as normas


penais (art. 1º), processuais (art. 2º a 8º) e administrativas (art. 9º a 17), facilitando,
sobremaneira, o conhecimento e a aplicação de regras relativas ao tema. Enfim, são
indiscutíveis os benefícios que a aprovação da lei contra a Lavagem de Dinheiro aportou,
principalmente porque criminalizou a lavagem de dinheiro seguindo a norma internacional e a
legislação de outros países já experientes no combate a esta prática, interessados em auxiliar e
receber cooperação em nível mundial.
No que se refere aos tipos penais, o legislador pátrio optou por uma mescla das
legislações de segunda e terceira gerações. Vale ressaltar que para a “legislação de primeira
geração”, os bens, direitos e valores só podem ser provenientes de crimes de narcotráfico.
19
. Ministério da Fazenda - Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF): http://www.coaf.gov.br –
acessado em 27 de janeiro de 2006.

13
Para a de “segunda geração”, o objeto material também pode proceder de outros crimes mais
graves. No caso da legislação chamada de “terceira geração” os bens direitos ou valores
podem ser oriundos de qualquer crime. A Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, embora
apresente um rol taxativo de crimes antecedentes, abre espaço para a inclusão de inúmeros
outros delitos não arrolados nessa lista, quando praticados por organizações criminosas.20
Nesse diapasão, a edição da Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, teve por finalidade
política “uma contribuição legislativa que se oferece ao país, visando ao combate sistemático
de algumas modalidades mais freqüentes da criminalidade organizada em nível
transnacional” e “se constitui na execução nacional de compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil, a começar pela Convenção de Viena de 1988” 21.

2.3 – Objeto Jurídico e Objeto Material da Legislação Contra a Lavagem de Dinheiro

Em princípio, os comportamentos incriminados vulneram o interesse estatal em


identificar a providência de bens e os sujeitos ativos de ilícitos que geraram, em desestimular
a sua prática, em reprimir a fruição de seus produtos e em lograr a punição dos seus autores, e,
desta forma, podem afetar o regular funcionamento da justiça. Ao mesmo tempo, nos delitos
antecedentes, de repercussão também na esfera econômica ou patrimonial, cuida-se de
impedir que o criminoso promova o maior distanciamento dos bens obtidos de seus legítimos
titulares. Portanto, em uma análise perfunctória, pode-se observar que a objetividade jurídica
predominante neste tipo penal é a administração da justiça.
Cumpre esclarecer que “dentre os interesses tutelados na legislação penal anti-
reciclagem, deve ser recordado igualmente o bem jurídico ‘ordem econômica’: o
comportamento do reciclador de fato é extremamente prejudicial à ‘par condicio’ dos
22
investidores de mercado livre.” Desta feita, muitas vezes compromete-se a livre
concorrência entre as empresas, pela presença de operadores financeiros que, beneficiando-se
de tais proventos, não precisam necessariamente recorrer aos canais legítimos de
financiamento, como, por exemplo, o crédito bancário.
Observa-se, porém, que a administração da justiça é sempre atingida em qualquer
etapa (conversão, dissimulação e integração) ou variante concreta de lavagem de dinheiro (em
qualquer caso ficam dificultadas a investigação criminal e a aplicação da lei penal), o mesmo

20
. JOBIM, Nelson. A Lei n.9.613/98 e seus aspectos. In Seminário Internacional sobre Lavagem de Dinheiro.
Série Cadernos da Justiça Federal n.º 17. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2000, p.p. 14-15.
21
. Exposição de Motivos n. 692, de 18 de dezembro de 1996, assinada pelos Ministros de Estado da Justiça, da
Fazenda, das Relações Exteriores e da Casa Militar, doravante designada por EM.
22
. ZANCHETTI, Mário. Il Reciclaggio di Denaro Proveniente da Reato. Milano: Giuffrè Editore, 1997, p. 391.

14
não ocorre com outros bens jurídicos mediatamente atingidos, a exemplo da ordem econômica
e o sistema financeiro, valores que, em muitas hipóteses práticas, permanecerão incólumes
diante de determinadas operações de reciclagem, em especial nas de menor potencial
ofensivo.
Em face de sua natureza pluriofensiva, que decorre não só do apontado caráter
multifacetado do processo de “lavagem” de dinheiro, mas da feição acessória do tipo penal
correspondente, cumpre identificar outros valores também mediatamente resguardados.
Assim, em decorrência da taxativa enumeração dos crimes antecedentes, encontram-se
também protegidos no crime de “lavagem” de dinheiro, ainda que de forma indireta, os
seguintes bens jurídicos23: a saúde pública, a segurança nacional, a administração pública, o
sistema financeiro nacional, o patrimônio, a liberdade individual, a integridade física, a vida e
a paz pública.
Já o objeto material do delito compreende-se como o objeto corpóreo, pessoa ou coisa,
sobre a qual recaia a ação punível, e que, no tipo penal se encontra direta ou indiretamente
apontado, não se confundindo, por óbvio, com o objeto jurídico ou bem jurídico tutelado.
A partir da Convenção de Viena, os diversos instrumentos internacionais que mais
influenciaram as diferentes legislações nacionais adotaram sempre uma definição ampla do
objeto material do delito de lavagem de dinheiro. Depois dessa Convenção, que definiu bens
como “os ativos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, tangíveis ou
intangíveis, e os documentos legais que comprovem a propriedade ou outros direitos sobre
referidos ativos.”, a Diretiva n.º 308/1991 (art. 1º) e a Convenção de Estrasburgo (art. 1º, “b”),
também o fizeram no mesmo sentido.
Já no Brasil, de acordo com a Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre
os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, também não deu margem a
restrições do objeto material dos delitos de lavagem de dinheiro. A utilização de expressões
desta ordem na construção típica sabidamente enfraquece a função de garantia do tipo penal,
por remeter a conceitos valorativos, quer culturais (exemplo: “mulher honesta”), que jurídicos
(exemplo: “coisa alheia móvel”). Estes vocábulos, de um lado, tisnam a clareza e a desejável
unicidade das condutas proibidas e, por outro lado, ampliam os limites exegéticos conferidos
ao arbítrio do julgador na tarefa de subsunção do agir comunicante do indivíduo à hipótese
abstrata da norma penal incriminadora. Para que sua aplicação concreta não vulnere a reserva
legal em seus corolários de taxatividade e transparência razoáveis, mister, em primeiro lugar,

23
. MAIA, Rodolfo Tigre. Op. Cit., p. 58.

15
que sua exegese observe estritamente o conteúdo jurídico tradicionalmente atribuído a tais
elementos em nosso ordenamento. E, em segundo lugar, no plano particular, que sua
integração hermenêutica atenda à objetividade do tipo penal em que se inserem tais objetos
materiais e às conseqüências jurídicas decorrentes de sua aplicação.
Por outro lado, embora o termo “bens” compreenda, além dos móveis e imóveis,
corpóreos e incorpóreos, tangíveis e intangíveis, também os direitos e os valores, o legislador
pátrio tratou separadamente cada uma dessas categorias, indicando-as expressamente. Vale
ressaltar que a amplitude do objeto material, no Brasil, inclui não só o produto imediato do
delito, mas também os acréscimos e as sucessivas mudanças e transformações que ele
experimente posteriormente, ou seja, outros ganhos derivados do mesmo24.
Não se pode esquecer que a objetividade jurídica do procedimento de lavagem de
dinheiro é, essencialmente, a administração da justiça, conforme asseverado anteriormente,
interessada em que os criminosos sejam identificados, que não possam auferir vantagens de
seus crimes e que não tenham êxito em turbar a atuação do jus puniendi estatal.
Concomitantemente, não se pode esquecer que o destino destes ativos é o seu perdimento em
prol do Estado. Assim, os objetos materiais dos crimes, supra referidos, deverão preencher
dois requisitos essenciais: a) caracterizam-se, em sentido amplo, como produto de crime; b)
são passíveis de individualização ou especialização in concreto.25

2.4 – A Tutela do Bem Comum e o Interesse Público

Os Fatores Sociais são fundamentais para o desenvolvimento cultural do indivíduo,


contribuindo na sua conduta, caráter, idéias e nos seus instintos. A tendência moderna é de
orientar os indivíduos no interesse coletivo, visando organizar a vida em termos de civilidade
e nivelação dos tipos e modos de viver. Por outro lado, há uma contrapartida do Estado, a sua
natureza jurídica em face da sociedade, como bem leciona o Professor Hely Lopes Meirelles,
veja:
“A natureza da administração pública é a de um múnus público para quem a
exerce, isto é, a de um encargo de defesa, conservação e aprimoramento dos
bens, serviços e interesses da coletividade. Como tal, impõe-se ao
administrador público a obrigação de cumprir fielmente os preceitos do
Direito e da Moral administrativa que regem a sua atuação”.26

24
. AGUADO, Javier Alberto Zaragoza. “El blanqueo de bienes de origen criminal”, in Derecho Penal
Económico. Manuales de formación continuada 14. Madrid: Editora del Consejo General del Poder Judicial,
2001, p. 385.
25
. DANESI, Fabricio Hinna. Provente da Frode Fiscale e Riciclaggio. Apud COVERSE, Ciro G., e SANTORO,
Vittorio. Il Riciclaggio del Denaro nella Legislazione Civile e Penale. Milano: Giuffrè Editore, 1996, p. 284.
26
. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p. 80.

16
A priori, para fundamentar qualquer teoria social aplicada, urge analisar a importância
do princípio do bem comum e do interesse público, o que incide na finalidade do Estado.
Toda a atividade do administrador público deve ser orientada para esse objetivo, que não é um
objetivo meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem conteúdo
determinado, mas um objetivo claro, decorrente da natureza prática das coisas em relação o
convívio social.
O conceito de bem comum incide na eterna dialética do interesse individual e o
interesse coletivo. Ao singularizar o conceito de bem comum, poder-se-ia dizer que seria o
bem particular de cada indivíduo, como ente de um todo social. Mas se, ao contrário, o
conceito de bem comum for ampliado, observar-se-ia que o fim de cada indivíduo seria o fim
do todo. Na realidade ambos os conceitos se complementam, pois o bem da sociedade é o
bem do próprio indivíduo que a compõe. Não basta a substância, requer-se a circunstância, se
o indivíduo deseja o bem da sociedade, deseja o seu próprio bem. Trata-se da arte de mover as
vontades, a destreza da resolução, o bem próprio não está alheio ao bem dos demais.
Se o bem próprio é o bem dos demais, surge uma idéia de unicidade para imperar no
todo orgânico da sociedade, como forma de harmonia das vontades. Neste sentido, o objetivo
que une os homens em sociedade é o bem comum que pretendem alcançar, distinguindo-se do
bem particular buscado individualmente. Desta maneira pode-se observar que nenhum
indivíduo pode alcançar o seu bem particular senão como parte do todo que está inserido. A
unicidade do bem comum era o objetivo do Contrato Social, de Rousseau, estabelecido
precariamente pelo bom senso:
“Enquanto muitos homens reunidos se consideram como um só corpo, sua
vontade é uma, a conservação comum e o bem de todos; as molas do Estado
são vigorosas e simples, seus ditames, claros e luminosos, não há interesses
intrincados e contraditórios, evidente se mostra em toda parte o bem
comum, e para conhecê-lo basta o bom senso.” 27

Vale ressaltar que há uma pequena diferença entre o interesse público e o bem comum.
O interesse público é a relação entre a sociedade e o bem comum por ela perseguido, através
daqueles que, na comunidade, têm autoridade, tais como governantes, administradores
públicos, magistrados, etc. Já o bem comum é o bem uniforme, considerado como parte de um
todo, em analogia ao poema barroco de Gregório de Matos: “O todo sem a parte não é todo; A

27
. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, p. 99.

17
parte sem o todo não é parte; Mas se a parte fez todo, sendo parte; Não se diga que é parte, sendo
todo”.28
A atribuição de promover o bem comum cabe ao Estado, por intermédio de uma
atuação voltada às aspirações sociais, dentre elas o dever de coibir o fenômeno de “lavagem”
de dinheiro e remessa ilegal de divisas. Esses interesses sociais, hodiernamente, foram
diversificados e ampliados em virtude do bem comum da sociedade, como na noção de
interesse público, privado, coletivo, individual, homogêneo e difuso, razão pela qual o Estado
também tem como dever de atuar para repatriar ativos ilegais, que muitas vezes foram
usurpados do próprio Estado e, por conseguinte, dos contribuintes.
No entanto, a atribuição de promover o bem comum não é apenas ao Estado, mas de
cada membro da sociedade no exato momento em que veja no bem comum a sua própria
realização e, por isso, colabore com este bem comum, como na fiscalização da atuação do
poder público e na denúncia de casos de lavagem de ativos ilegais. A participação individual
pressupõe a existência de uma diversidade de soluções, as quais devem ser estudadas em meio
da interação do binômio Estado/Sociedade.
Os interesses públicos, segundo o Professor Hely Lopes Meirelles, são as aspirações
ou vantagens licitamente almejadas por toda a comunidade administrativa, ou parte expressiva
de seus membros. A finalidade do Estado, e outros campos de atuação do homem, repousa no
bem comum, na justiça da igualdade para a utilidade coletiva, como já previa o sábio filósofo
Aristóteles em sua obra “Política”:
“Em todas as ciências, assim como em todas as artes, a finalidade é um
bem; e o maior de todos os bens encontra-se, sobretudo, naquele dentre
todas as ciências que é a mais alta; ora, tal ciência é a política e o bem, em
política, é a justiça, quer dizer, a utilidade coletiva. Explicamos o que vem a
ser justiça, e que aplicação tem; e afirmamos que a igualdade não admite
nenhuma diferença entre os iguais”.29

A justiça seria uma forma de igualdade social e, consequentemente, um objetivo do


Estado. Se o fim do Estado consubstancia-se na defesa do interesse público, cabe ao Estado-
Juiz o conhecimento e solução dos eventuais conflitos de interesses, principalmente no que
tange à divergência entre interesse público e interesse privado. Entretanto, observa-se que o
bem comum é a maximização do bem particular e, por conseguinte, tem primazia sobre o bem
individual, pois o bem de muitos é mais importante do que o bem de um só.

28
. FARACO, Carlos Emílio. & MOURA, Francisco Marto de. Língua e Literatura, Vol. I. São Paulo: Editora
Ática, 1990, p. 256.
29
. ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001, p. 99.

18
O ato estatal realizado sem interesse público, a exemplo da inércia na repatriação de
ativos, configura o desvio da finalidade buscada pelo bem comum. Assim, cabe ao Poder
Judiciário dirimir os conflitos de tais interesses, apreciando o intento popular direto ou por
intermédio do Ministério Público, atribuindo a proteção jurídica à soberania popular no atual
Estado Democrático de Direito.

2.5 – Fases da Lavagem de Dinheiro

Em uma época em que o avanço tecnológico e a globalização são premissas, a


lavagem de dinheiro pode comprometer a estabilidade financeira dos países. Vigilância
constante é necessário por parte de reguladores, bancos, centros financeiros e outras
instituições vulneráveis para evitar que o problema se intensifique. Para disfarçar os lucros
ilícitos sem comprometer os envolvidos, a lavagem de dinheiro realiza-se por meio de um
processo dinâmico que requer: primeiro, o distanciamento dos fundos de sua origem, evitando
uma associação direta deles com o crime; segundo, o disfarce de suas várias movimentações
para dificultar o rastreamento desses recursos; e terceiro, a disponibilização do dinheiro
novamente para os criminosos depois de ter sido suficientemente movimentado no ciclo de
lavagem e poder ser considerado “limpo”.
Contando com aceitação bem mais ampla que os demais, até por sua simplicidade, o
modelo apresentado pelo GATI (Grupo de Ação Financeira Internacional) possui três etapas.
A primeira etapa é a do “placement” ou conversão30: tendo como momentos
anteriores a captação de ativos oriundos da prática de crimes e sua eventual concentração.
Nesta fase busca-se a escamoteação (ocultação) inicial da origem ilícita, com a separação
física entre os criminosos e os produtos de seus crimes. Esta é obtida através da imediata
aplicação destes ativos ilícitos (e.g.: por intermédio de instituições financeiras tradicionais,
com a efetivação de depósito em conta corrente ou aplicações financeiras em agência
bancárias convencionais; pela efetivação de operações de swap, etc; através de troca de notas
de pequeno valor por outras de maior denominação, reduzindo o montante físico de papel-
moeda; mediante a utilização de intermediários financeiros atípicos, com a conversão em
moeda estrangeira por intermédio de doleiros; através da utilização de “mulas” para o
transporte de divisas para o exterior; remetendo estes lucros para fora do país, através de
depósitos ou transferências eletrônicas em “paraísos fiscais”; entre outras).

30
. MAIA, Rodolfo Tigre. Op. Cit., p. 37.

19
Em outras palavras, esta fase visa introduzir as grandes quantidades de dinheiro em
espécie, oriundas de atividades ilícitas, no sistema financeiro. Esta é a fase mais arriscada para
os lavadores, em razão da proximidade do dinheiro com sua origem ilícita31.
A segunda etapa do procedimento chama-se “layering” ou dissimulação
(ocultação/transformação)32: esta fase tem por finalidade dissimular a origem desses valores,
de modo que a procedência deles não seja identificada. Depois das diversas operações que são
comuns nesta fase, começam a surgir dificuldades para se apurar a origem desses valores.
Nessa fase, os grandes volumes de dinheiro inseridos no mercado financeiro na etapa anterior,
para disfarçar sua origem ilícita e para dificultar a reconstrução pelas agências estatais de
controle e representação da trilha do papel (paper trail)33, devem ser diluídos em incontáveis
estratos, disseminados por meio de operações e transações financeiras variadas e sucessivas,
no país e no exterior, envolvendo multiplicidade de contas bancárias de diversas empresas
nacionais e internacionais, com estruturas societárias diferenciadas e sujeitas a regimes
jurídicos variados.
Conforme observa o professo italiano Mário Zanchetti, os inumeráveis métodos de
estratificação envolvem quase sempre um ou mais dos seguintes ingredientes34: a)
transferência internacional dos fundos com a utilização do sistema “via cabo” (em inglês, wire
transfer); b) o estreito suporte de uma sociedade com sede em um país off-shore no qual o
controle estatal é escasso ou inexistente; c) a criação de “pista falsa” do papel, para ludibriar
os investigadores simulando uma origem lícita da riqueza. Cumpre observar que essa etapa
tornou-se extremamente complexa e dinâmica diante da crescente sofisticação dos meios de
telecomunicação e dos artefatos cibernéticos que possibilitam a célere movimentação de
ativos financeiros em escala mundial. Por outro lado, verifica-se que infra-estrutura
propiciada pelos “paraísos-fiscais” e a existência dos novos métodos tecnológicos de
movimentação de ativos desempenham nesta fase um salto de qualidade equivalente ao da
criação da máquina automática de lavagem de roupas.
A última etapa é chamada de “integration” ou integração35: essa fase se caracteriza
pelo emprego dos ativos criminosos no sistema produtivo, por intermédio da criação,
aquisição e/ou investimento em negócios lícitos ou pela simples compra de bens. Poder-se-ia
dizer que os bens direitos ou valores de origem delituosa, já com aparência lícita, em razão do

31
. CAPARRÓS, Eduardo A. Fabián. El delito de blanqueo de Capitales. Madrid: Editora Colex, 1998, p. 111.
32
. BONFIN, Márcia Monassi Mougenot, e BONFIN, Edílson Mougenot. Op. Cit., p. 34.
33
. Entendida como o conjunto de vestígios materiais que possibilita a vinculação do ativo ao ato criminoso
originário. (MAIA, Rodolfo Tigre. Op. Cit., p. 38).
34
. ZANCHETTI, Mário. Il Reciclagio di Denaro Proveniente da Reato. Milano: Giuffrè Editore, 1997, p. 12.
35
. CORDERO, Isidoro Blanco. Op. Cit., p. 64.

20
sucesso nas fases anteriores, são introduzidos novamente nos sistemas econômico e
financeiro, aparentando tratar-se de operações normais. É freqüente que os lucros decorrentes
da atuação de tais empresas sejam reinvestidos em esquemas criminosos (nos mesmos que
geraram os ativos ilícitos e/ou em novos empreendimentos) ou passem a esquentar (rectius:
legitimar) o afluxo de novos volumes de dinheiro “sujo”, agora disfarçados em “lucros do
negócio”, dinheiro “limpo”, ou ainda, que forneçam ao criminoso uma fonte legítima para
justificar seus rendimentos, caracterizando um verdadeiro ciclo econômico.
Todo o ciclo, acima explicitado, pode ser melhor compreendido ao se observar o
seguinte quadro ilustrativo36:

Concluída a última fase, a apuração do delito e a punição dos responsáveis tornam-se


mais difíceis. Este procedimento, ao contrário do que se imagina, considerando sua
dificuldade de apuração, sempre deixa pistas que podem ser seguidos com êxito. Vale
ressaltar, contudo, que nem sempre a lavagem de dinheiro se concretiza com a presença de
todas as fases citadas, a par de que em muitas ocasiões as diversas etapas se sobrepõem ou
não podem ser separadas de forma lógica37.
Por outro lado, não se trata propriamente de “lavagem” do dinheiro, que a esta altura já
está “limpo” mas de uma fase subseqüente, melhor designada pela alcunha de reciclagem
(recycling) e que reflete uma das faces do fenômeno estudado: o processo de “lavagem” e um
custo operacional que se transforma (recicla) em investimento.

36
. Cartilha Contra a Lavagem de Dinheiro elaborada pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(COAF) https://www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/publicacoes/cartilha.htm - acessado em 18 de janeiro de
2006.
37
. Miguel Abel Souto ressalta que as diversas legislações que tentaram separar o processo de lavagem em fases
lógicas e cronologicamente distintas o fizeram de forma inadequada. (SOUTO, Miguel Abel. Op Cit., p. 96)

21
Todas as situações supra-referidas, porém, não retiram a utilidade e necessidade do
estudo, sempre citado pela doutrina, pelos organismos internacionais e pelos demais órgãos
responsáveis pela sua prevenção e combate, na medida em que emprestam uma coerência
lógica à prática do crime, facilitando e identificando não só a idéia do mesmo, como a busca
de provas para a sua configuração, uma vez que estabelece referenciais e modelos para a
investigação, conforme se verá adiante.

2.6 – Exemplo de Técnicas de Lavagem ou Reciclagem de Ativos Ilícitos

Em cada uma das fases do procedimento de lavagem de ativos ilícitos são utilizadas
técnicas ou mecanismos diversos, os quais têm por finalidade ocultar a origem delitiva dos
fundos e impedir que se reconheça a identidade real dos operadores38. Nesse sentido, poder-
se-ia analisar a casuística relacionada com a primeira fase (introdução) por intermédio de uma
das técnicas mais conhecidas e utilizadas internacionalmente, qual seja: o fracionamento de
grandes quantias em valores menores, que ao serem depositados em instituições financeiras
não ficam sujeitos ao dever de informar, determinado por lei, e, portanto, livram-se de
qualquer fiscalização. Pode-se citar, ainda, a troca de moeda, ou seja, a compra de dólares em
pequenas quantidades, especialmente em locais turísticos e o contrabando de dinheiro em
espécie. Há, também, a utilização de empresas de fachadas, onde o dinheiro lícito mistura-se
com o ilícito.
Em outra posologia, na segunda fase (transformação) se realizam inúmeras operações
financeiras, destacando-se as transferências bancárias e eletrônicas, responsáveis pela
movimentação de milhões de dólares em transações internacionais. O professor Isidoro
Blanco Cordero observa que “ainda que os bancos dos Estados Unidos, da Comunidade
Européia, do Canadá, Japão e outros países exijam a identificação de seus clientes, o elevado
volume de transferências eletrônicas, seu caráter instantâneo, e a importância deste meio
financeiro para o comércio internacional, são circunstâncias que determinam que seja uma
área difícil de vigiar.”39
É bem comum na fase supracitada a transformação dessas quantias em bens móveis ou
imóveis. Quanto aos primeiros, costuma-se adquirir bens que possam ser postos em circulação
rápida em diferentes países, como ouro, jóias e pedras preciosas. Este tipo de transação

38
. CUISSET, André. “La experiencia francesa y la movilización internacional contra la lucha contra el levado
de dinero.” México, Procuradoría General de la República, 1988.
39
. CORDERO, Isidoro Blanco. Op. Cit., p. 71.

22
facilita o anonimato e dificulta a apuração, já que não produz movimento de dinheiro ou
geração de documentos, podendo ser empregada para lavar altas somas em ativos ilícitos.
Em relação à terceira e última fase (integração), destacam-se os negócios imobiliários
como um dos mecanismos mais empregados40. Assim, por exemplo, um traficante de drogas
usa produtos de seu crime para comprar uma propriedade imobiliária, parte em dinheiro e o
restante obtido sob a hipoteca do imóvel. Ele, então, vende a propriedade para uma
corporação fechada, que ele controla, por um valor nominal. A corporação aliena a
propriedade para qualquer terceiro de boa-fé pelo preço de compra original. Dessa forma, o
traficante esconde seus produtos do crime em uma corporação e, desta forma, disfarça a
origem dos fundos inicialmente utilizados.
As técnicas usadas para lavar ativos ilícitos modificam-se e se tornam cada vez mais
complexas. Algumas delas foram compiladas por membros do Ministério Público,
procuradores e juízes de diferentes países que merecem ser explicitados: empréstimo
endossado (depósitos em bancos off shore e, em seguida, utilizados para empréstimos em
bancos de outros países), ganhos falsos em jogos (compra de bilhetes premiados) e técnica de
Franklin Jurado (repasse de dinheiro por diversos bancos em paraísos fiscais, até chegar em
um banco de um país confiável, por intermédio do aproveitamento de tratados internacionais
mais benéficos).
Outra casuística pode ser citada para melhor elucidar o procedimento de lavagem de
ativos ilícitos. Uma operação de reciclagem dos cartéis colombianos, desvendada nos Estados
Unidos, desenrolou-se por cerca de dois anos e “esquentou” ativos na ordem de US$ 1,2
bilhão, em um esquema com a seguinte configuração41:
Primeiro passo: numerário oriundo da venda de cocaína era empacotado em caixas
rotuladas ‘jóias’ e estas eram remetidas por intermédio de carros-fortes para a Ropex, uma
joalharia em Los Angeles.
Segundo passo: o dinheiro era contado e depositado em bancos, que preenchiam o
formulário de notificação de transações em moeda corrente, mas poucas suspeitas eram
levantadas em razão de os negócios com ouro normalmente envolverem pagamentos em
espécie.
Terceiro passo: a Ropex, então, transferia o dinheiro para bancos em Nova Iorque, via
cabo, como pagamento por compras fictícias de ouro na Ronel, supostamente uma empresa de
mineração de ouro.

40
. BONFIN, Márcia Monassi Mougenot, e BONFIN, Edílson Mougenot. Op. Cit., p. 35.
41
. MAIA, Rodolfo Tigre. Op. Cit., p. 42.

23
Quarto passo: a Ronel remetia barras de chumbo douradas para a Ropex, para
completar a falsa transação comercial. Este é o “ouro” cuja “venda” para joalharia era usada
pela Ropex para cobrir as outras conversões em moeda corrente.
Quinto passo: a Ronel, então, transferia estes fundos em bancos americanos para
bancos sul-americanos, nos quais o cartel colombiano obtinha acesso aos mesmos.
Em verdade, todos os dias surgem novas técnicas de lavagem de dinheiro,
diferenciando-se das já expostas, a par de que são muito mais complexas, tornando-se
inacabável a listagem de todas as formas de referida prática delitiva.

2.7 – Casuística

A aspiração natural de fazer bons negócios, auferir resultados financeiros positivos,


enfim, de prosperar, é louvável. Entretanto, deve-se observar até que ponto os fins justificam
os meios. Com o advento de negócios desonestos advém os danos a outrem e, sobretudo, à
nação como um todo. A casualidade de quem guarda coisa alheia é ainda pior, em virtude da
confiança gerada. É neste ínterim é que surgem os desmandos administrativos, no que tange a
improbidade. O povo atribui o seu destino e o patrimônio público, por exemplo, nas mãos de
um político não como presente, mas como um encargo, não podendo este político abusar do
encargo que lhe foi atribuído. O que se vê, entretanto, é um jogo de favores, onde tudo é
possível em detrimento do interesse maior.
Essas pessoas sabem, verdadeiramente, como usar a máquina estatal, utilizando-se
muitas vezes do expediente do abuso de poder, ultrapassando os limites de suas atribuições ou
desviando-se das finalidades da administração. O abuso de poder é uma das principais fontes
de iniqüidade e corrupção moral de uma autoridade que detenha o poder para tal intento. Essa
iniqüidade moral começa a existir quando alguém se recusa a aceitar a sua responsabilidade
ao bem-estar dos outros, especialmente pelo bem-estar daqueles naturalmente abaixo de seus
cargos diretos. Reconhece-se o poder de uma pessoa na medida em que esta possa influir
decisivamente na realidade dos outros.
Nesse contexto, pode-se verificar que no Brasil houve um recente escândalo
envolvendo lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas, tudo sob a suspeita de
envolvimento de políticos e diretores de fundos de pensão, os quais são escolhidos por
critérios políticos. Essa casuística foi alvo de investigação pela Comissão Parlamentar de
Inquérito chamada “CPI dos Correios”, eu quebrou o sigilo bancário de 11 (onze) fundos de
pensões que teoricamente estariam envolvidos em lavagem de dinheiro e remessa ilegal de
divisas.

24
Os fundos de pensão são entidades criadas para cuidar da poupança de trabalhadores
que optaram por não depender apenas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para a
concessão da aposentadoria. Como é cediço, o funcionário contribui com um pedaço do
salário todo mês e, na maioria das vezes, a empresa também deposita valores. Os diretores dos
fundos são escolhidos com a missão de administrar o dinheiro com a máxima eficiência, de
maneira que não faltem recursos no momento de pagar as pensões e aposentadorias.
A suspeita é de que, nos casos levantados pela Comissão de Valores Mobiliários e pela
Secretaria de Previdência Complementar, reportado pela Revista “Época”42, os responsáveis
pelos fundos se alinhavavam, muitas vezes em troca de suborno e em virtude de ingerência
política. A desconfiança corrente na CPI era de que o dinheiro perdido pelos fundos fosse
rateado entre especuladores e políticos.
Ao que se subsume das informações da CPI dos Correios, reportado pela Revista
“Época”, o procedimento suspeito iniciou-se em 2003 dentro da Bolsa Mercantil & Futuro
(BM&F), onde se fazem aplicações financeiras em tendências do mercado de dólar, juros e
ações. Como é cediço, as bolsas de valores visam a facilitar a compra e venda de ações e
direitos. Nas bolsas de valores é possível a realização de operações em cinco modalidades: a
vista, a prazo, a termo, a futuro e por opção. Enquanto nas quatro primeiras formas se
negociam ações, no mercado de opções o que se negocia é o direito sobre essas ações. Os
investidores, porém, não compram ações diretamente em uma bolsa. Compram-nas por
intermédio das sociedades corretoras membros daquela entidade. O cliente emite uma ordem
de compra ou venda à sua corretora e esta se encarrega de executá-la no pregão. Para isto as
corretoras mantêm, no recinto de negociação, seus operadores, que são habilitados por meio
de um exame de qualificação. Para fechar uma operação na bolsa, qualquer pessoa, banco ou
empresa tem que usar os serviços de uma corretora, que recebe uma taxa de corretagem por
realizar essa transação.
A suspeita, segundo reportagem da Revista “Época”, era a de que os fundos de pensão
faziam apostas em um produto financeiro conhecido como índice Bovespa. Nesse mercado,
há duas opções: um lado dos investidores acredita na alta da bolsa e compra contratos futuro
de índices. Por outro lado, quem aposta na baixa da bolsa, vende contratos. Na data fina da
operação, por exemplo, se a bolsa sobe, ganha quem compra. Foi nesse mercado em que
operações foram simuladas, segundo a reportagem supracitada, ou seja, a BM&F e a CVM
suspeitam que os fundos optaram propositadamente pelo lado perdedor e, ao final, o prejuízo

42
. Revista Época, n.º 380, 29 de agosto de 2005, Rio de Janeiro: Globo Cochrane Gráfica e Editora Ltda., p. 30.

25
ficava sempre com as fundações e o lucro com os especuladores (envolvidos com políticos) e
empresas em paraísos fiscais.
O procedimento tinha dois objetivos: arrancar dinheiro dos fundos de pensão e levar
recursos para fora do país (remessa ilegal de divisas). A simulação da aposta no mercado
financeiro servia para justificar a saída do dinheiro dos fundos. No mercado financeiro esse
tipo de procedimento ilegal é muito popular, até mesmo para incriminar os responsáveis,
sendo um procedimento que é objeto de investigação pelo COAF43 e de legislação interna da
Comissão de Valores Mobiliários44. Como as operações na BM&F são muito complicadas e
todo dia há gente ganhando e perdendo milhões, quando alguém é apanhado em um delito
financeiro costuma se defender dizendo que errou na hora de aplicar e que isso faz parte da
ciranda financeira. Grande parte desses valores foram enviados para paraísos fiscais no Caribe
por intermédio dos corretores, que eram responsável pelas aplicações dos fundos de pensão.
As bolsas de valores oferecem condições propícias para se efetuarem operações de
lavagem de dinheiro, tendo em vista que: permitem a realização de negócio com
características internacionais; possuem alto índice de liquidez; as transações de compra e
venda podem ser efetuadas em um curto espaço de tempo; as operações são realizadas, em sua
grande maioria, por intermédio de um corretor; e, existe muita competitividade entre os
corretores.
Vale ressaltar que a casuística acima galga patamares mais voláteis ao considerar que a
negociação de valores mobiliários pode ser efetivada por meio da Internet.
“É certo que os mercados financeiros e de capitais foram os primeiros a
utilizar com habitualidade os meios eletrônicos de transmissão de dados, de
molde a possibilitar a realização de contratos. E, hoje, também é certo que
existem os ‘Agentes Intervenientes’, tais como os provedores, os quais
interferem indiretamente esses mercados em relação aos processos
operacionais que as bolsas virtuais - e, atualmente, através das corretoras
virtuais, estão realizando.” 45

A principal preocupação dos órgãos reguladores e fiscalizadores do mercado de


valores mobiliários está na garantia de um sistema seguro de regras, para viabilizar as ofertas
de valores mobiliários pela Internet capaz de elidir a ocorrência de fraudes, a prática de
43
. Cartilha Contra a Lavagem de Dinheiro elaborada pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(COAF) https://www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/publicacoes/cartilha.htm - acessado em 18 de janeiro de
2006.
44
. Instrução CVM n.º 301, de 16 de abril de 1999 - Dispõe sobre a identificação, o cadastro, o registro, as
operações, a comunicação, os limites e a responsabilidade administrativa de que tratam os incisos I e II do art.
10, I e II do art. 11, e os arts. 12 e 13, da Lei nº. 9.613, de 3 de março de 1998, referente aos crimes de
“lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores.
45
. LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (coordenadores) & NORONHA, Ilene Patrícia de. Direito &
Internet – aspectos jurídicos relevantes / Aspectos Jurídicos da Negociação de Valores Mobiliários Via Internet.
Bauru, SP: Editora EDIPRO, 2000, p. 181.

26
ilícitos de mercado e, sobretudo, operacionalização de lavagem de dinheiro e remessa ilegal
de divisas.

3 – OS PAÍSES COM TRIBUTAÇÃO FAVORECIDA (PARAÍSOS FISCAIS): CARACTERÍSTICAS COMUNS

As instituições financeiras multinacionais localizadas em paraísos fiscais constituem


uma importante ferramenta no procedimento de “lavagem” de ativos ilícitos. Utilizados
inicialmente de forma intensa apenas no curso da evasão fiscal, os paraísos fiscais são
utilizados atualmente nas etapas de conversão, dissimulação e integração do dinheiro sujo,
ficando a mercê do alto grau de proteção do sigilo bancário e das modalidades societárias ali
admitidas, que possibilitam o anonimato dos titulares.
Estas atividades envolvem o “depósito de ativos ilícitos em contas numeradas secretas
e o retorno destes ativos aos Estados Unidos como empréstimos do banco estrangeiro ou de
uma corporação de fachada, montada sob as leis de um país estrangeiro. Não só a renda ilegal,
assim como suas fontes, são ocultadas do ‘Internal Revenue Service’ e agencias de aplicação
da lei, como o custo destes empréstimos fictícios é frequentemente deduzido como despesas
negociais na declaração do imposto de renda do criminoso”46.
Denominados “tax haven” na língua inglesa , “paradis fiscal” na francesa,“steuer
oase” na alemã, “paradiso fiscale” na italiana, ‘paraiso fiscale” na espanhola e paraíso fiscal
na nossa, apresentam algumas das características a seguir47:
a) Ausência de ou reduzida tributação direta (imposto de renda, impostos
sobre a riqueza, ganhos de capital e sucessão);
b) Inexistência de controle cambial;
c) Eqüidade no tratamento a estrangeiros;
d) Estabilidade política;
e) Facilidade de comunicações rápidas e de transporte;
f) Leis locais atrativas, principalmente as tributárias, comerciais e sobre
companhias;
g) Sigilo bancário e possibilidade de depósito em moeda estrangeira;
h) Baixo custo de formação, registro e manutenção das companhias;
i) Serviços financeiros, legais e de auditoria com elevado padrão de
profissionalismo;
j) Infra-estrutura desenvolvida.

De utilização freqüente no planejamento tributário internacional, procuram os países


desenvolvidos restringir a possibilidade do recurso a eles, estabelecendo regras diferenciadas
quanto à tributação de rendimentos de empresas que neles tenham suas sedes, ou quanto às

46
. SWANSON, Charles R., CHAMELIN, Neil C., e TERRITO, Leonard. Criminal Investigation. New York:
Editora McGraw-Hill, 1996, p. 528.
47
. TAVOLARO, Agostinho Toffoli. Paraísos Fiscais. “in” Resenha Tributária, Imposto sobre a Renda,
Comentário, nº 30/84, p. 702, palestra proferida na ABDF – Associação Brasileira de Direito Financeiro.

27
regras de preços de transferência aplicáveis. Ao editar regras sobre tributação no caso de
preços de transferência, adotam vários países a sistemática de enumerá-los nominalmente, no
chamado “designation jurisdiction approach”48 como faz o Brasil que os qualifica de países
com tributação favorecida, definidos na Lei n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996, art. 24
(Dispõe sobre a legislação tributária federal, as contribuições para a seguridade social, o
processo administrativo de consulta e dá outras providências), como países que não tributem a
renda ou a tributem com a alíquota máxima de 20% e edita lista dos países que assim
considera.
O critério adotado pela Secretaria da Receita Federal aplica a distinção que o Brasil
entender ser mais relevante, mas tal não significa que os 53 países elencados pela Secretaria
da Receita Federal na Instrução Normativa SRF nº 188, de 06 de agosto de 2002 (D.O.U de
9.8.2002) sejam os únicos a estarem caracterizados como países de regime tributário
favorecido. Importante, também, lembrar que cada Estado, a partir de seus pressupostos
internos de legislação e administração política e administrativa conforma os padrões que
julgam inerentes aos paraísos fiscais. A Instrução Normativa SRF nº 188, de 06 de agosto de
2002, dispõe:
Consideram-se países ou dependências que não tributam a renda ou
que a tributam à alíquota inferior a 20% ou, ainda, cuja legislação interna
oponha sigilo relativo à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua
titularidade as seguintes jurisdições:
Andorra; Anguilla; Antígua e Barbuda; Antilhas Holandesas; Aruba;
Comunidade das Bahamas; Bahrein; Barbados; Belize; Ilhas
Bermudas;Campione D’Italia; Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey e
Sark); Ilhas Cayman; Chipre; Cingapura; Ilhas Cook; República da Costa
Rica; Djibouti; Dominica; Emirados Árabes Unidos; Gibraltar; Granada;
Hong Kong; Lebuan; Líbano; Libéria; Liechtenstein; Luxemburgo (no que
respeita às sociedades holding regidas, na legislação luxemburguesa, pela
Lei de 31 de julho de 1929); Macau; Ilha da Madeira; Maldivas; Malta; Ilha
de Man; Ilhas Marshall; Ilhas Maurício; Mônaco; Ilhas Montserrat; Nauru;
Ilha Niue; Sultanato de Omã; Panamá; Federação de São Cristóvão e Nevis;
Samoa Americana; Samoa Ocidental; San Marino; São Vicente e
Granadinas; Santa Lúcia; Seychelles; Tonga; Ilhas Turks e Caicos;
Vanuatu; Ilhas Virgens Americanas; Ilhas Virgens Britânicas.

Os paraísos fiscais elencados pelo Brasil são similares aos elencados no mundo todo,
conforme se infere do seguinte mapa:

48
. Expressão utilizada no relatório geral de BRIAN J. ARNOLD E PATRICK DIBOUT ao tema “Limits on the
use of low-tax regimes by multinational businesses: currente measures and emerging trends” no Congresso da
IFA – International Fiscal Association de 2001, em San Francisco ( The Netherlands : Kluwer, 2001, p. 45.)

28
Em relação à lista supracitada, urge verificar, como o faz José Roberto Pisani49 que
utiliza o Brasil o vocábulo “jurisdição” nas listas publicadas, ao invés de país, a fim de
abranger regiões de países beneficiadas com regimes especiais de tributação, não obstante o
país a que estão integradas não seja um país de tributação mais favorecida, como é o caso da
ilha da Madeira em relação a Portugal, lembrando o professor Alberto Xavier a cláusula que
consta do item 9 do Protocolo à Convenção com Portugal, pela qual “fica entendido que os
benefícios desta Convenção não serão atribuídos a qualquer pessoa que tenha direito a
benefícios fiscais relativos ao imposto sobre o rendimento de acordo com os dispositivos da
legislação e outras medidas relacionadas com as Zonas Francas da Ilha da Madeira, da Ilha de
Santa Maria, de Manaus, a SUDAM e a SUDENE ou a benefícios similares àqueles
concedidos, disponíveis ou tornados disponíveis segundo qualquer legislação ou outra medida
adotada por qualquer Estado Contratante”50.
Cumpre observar que, com o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, vem se
adotando cada vez mais medidas restritivas quanto ao fluxo de capitais desses países,
principalmente em função da existência do sigilo bancário, o que se fazia anteriormente
quanto à lavagem de dinheiro para se coibir o narcotráfico.

49
. PISANI, José Roberto. Relatório nacional do Brasil ao tema “Limits.” do Congresso da IFA, supracitado, op.
cit., p. 23.
50
. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, 6a. ed., p. 169.

29
3.1 – Paraísos fiscais para pessoas físicas

Seguindo a definição da OCDE (Organização para Cooperação Econômica e


Desenvolvimento)51, paraísos fiscais são jurisdições nas quais os tributos são nulos ou
diminutos e que permitem a não-residentes escapar de impostos e fiscalização de seus países
de origem, mediante disposições legais ou práticas administrativas que impeçam ou
dificultem a obtenção externa de informações. Os paraísos fiscais e os centros off-shore, com
seu sigilo e sua regulamentação “frouxa”, naturalmente constituem-se em elo importante no
circuito do dinheiro, muitas vezes, dinheiro sujo.
Dependendo das vantagens oferecidas os paraísos fiscais podem ser mais interessantes
para as pessoas físicas ou para as pessoas jurídicas. A maioria dos paraísos fiscais é mista, ou
seja, podem ser utilizados tanto por pessoas físicas quanto jurídicas, é o caso de Bahamas,
Bermudas, Ilhas Cayman, Ilhas Turks, Ilhas Caicos e San Marino, mas existem também
paraísos especializados em um ou outro grupo.
Os paraísos fiscais para pessoas físicas são aqueles nos quais é necessário que o
investidor esteja fisicamente presente para se beneficiar da legislação fiscal favorável. Neste
caso, a escolha pelo paraíso fiscal se realiza em função de variáveis como a residência, o
domicílio e a nacionalidade dos indivíduos. Na verdade, o investidor busca um meio de se
defender contra imposições excessivas e controles rigorosos do seu país de origem, se
instalando em países cuja imposição é nula ou pouco elevada, onde ele poderá levar vantagem
nos impostos sobre a renda, sobre ganhos no capital e sobre as sucessões, ou em países cujo
sistema fiscal taxe apenas os rendimentos obtidos em seu território, isentando os rendimentos
de origem estrangeira.
É o caso daqueles países que exoneram os impostos de determinadas categorias de
contribuintes, como os aposentados na Costa Rica e os artistas na Irlanda, e também daqueles
em que certos tipos de rendas são parcialmente ou totalmente isentos de impostos. A ausência
de impostos pode ser acompanhada por condições financeiras constrangedoras e custo de vida
elevado, as pessoas que se exilam em paraísos fiscais enfrentam grandes obstáculos
psicológicos e familiares. Porém, mesmo quando os problemas pessoais são superados, os
paraísos fiscais para pessoas físicas são um atrativo em virtude da totalidade de impostos
economizados e os custos com a execução do projeto particular, como a instalação no país, a
administração anual, as taxas de viagem, os honorários contábeis e jurídicos e a transferência
de país. Embora não existem muitos paraísos fiscais exclusivos para pessoas físicas, pode-se
51
. Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento - www.oecd.org – Acessado em 23 de janeiro
de 2006.

30
citar os seguintes: Andorra, Mônaco, Campione D’Italia, Irlanda, Polinésia Francesa e Saint-
Barthélemy.

3.2 – Paraísos fiscais para pessoas jurídicas52

Quando se trata dos paraísos fiscais para as pessoas jurídicas o leque de possibilidades
é muito maior, pois existem inúmeros instrumentos jurídicos utilizáveis. O investidor,
residente ou não no paraíso fiscal, pessoa física ou jurídica, poderá se utilizar de uma série de
entidades jurídicas nas quais a residência, o local de constituição e a localização da atividade
podem permitir uma imposição mais vantajosa.
É na faculdade de se utilizar de tais entidades que está a origem e a proliferação dos
paraísos fiscais em todos os continentes. Desde o término da II Guerra Mundial eles se
tornaram cada vez mais importantes nas operações comerciais e financeiras mundiais. Há
formação deste tipo de paraísos quando um grupo de sociedades de países diferentes, mas
com atividades similares decidem economizar reagrupando suas compras em uma central
única de compras, a utilização de um paraíso permite o não pagamento de impostos sobre os
lucros obtidos.
É o caso das sociedades que fornecem produtos provenientes de países desenvolvidos
para países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, a presença de filiais em paraísos fiscais
facilita a confecção dos documentos, não ofende as leis do país importador e evita o
pagamento de impostos pela sociedade intermediária. Para limitar os lucros destas empresas,
alguns países tentam implantar um sistema de controle de preços na origem e de limitação das
margens comerciais.
Em tempos onde as operações de câmbio são uma preocupação constante para as
empresas que operam no mercado internacional, o uso de contas estrangeiras, que conferem
anonimato, em divisas conversíveis facilita o trabalho dos administradores, que se tornou
difícil face à instabilidade monetária e a grande variação das taxas e dos juros.
As sociedades marítimas utilizam os paraísos fiscais para evitar os impostos sobre os
benefícios de suas atividades e escapar às regulamentações sociais referentes à tripulação. A
indústria petrolífera utiliza os paraísos, criando sociedades para assegurar as funções de
transporte, refinamento e venda do petróleo bruto e dos derivados refinados. Os paraísos
fiscais para pessoas jurídicas interessam às sociedades em função da residência, da atividade

52
. XAVIER, Alberto. Op Cit., p. 174.

31
comercial e do endereço da sede social, são eles: Bahkein, Crypre, Jersey, Guernesey, Hong-
Kong, Libéria, Liechtenstein, Ilha de Man, Nauru e Panamá53.

4 – A UTILIZAÇÃO ABUSIVA (TREATY SHOPPING) DOS TRATADOS E CONVENÇÕES


INTERNACIONAIS COMO MECANISMO PARA LAVAGEM DE DINHEIRO
E A REMESSA ILEGAL DE DIVISAS

Especificamente quanto ao abuso das Convenções Internacionais, o Professor italiano


Pasquale Pistone o vê como o fenômeno pelo qual um cidadão pátrio, com o fim de obter uma
economia de imposto e fazer uma remessa ilegal de divisas, pretende os benefícios de um
tratado aos quais não faz jus em razão de sua situação substancial.54
Foi a expressão, segundo Veronica Alessi55 utilizada pela primeira vez no congresso
americano, sendo conceituado por Luis Eduardo Schoueri56 como o uso de um Tratado ou
Convenção de Direito Tributário por alguém, através da interposição de uma pessoa, obtém a
proteção de um acordo de bitributação que, de outro modo, não seria devida, enfatizando que
não há que se falar em treaty shopping quando o contribuinte é movido por motivos
extrafiscais, necessário assim que a interposição de terceira pessoa seja feita com o fim
específico de haurir as vantagens da Convenção ou Tratado.
Nasceu a locução da similitude de circunstâncias com o chamado “fórum shopping”
do direito americano, que consiste no buscar a parte a corte que lhe parece a em que melhor
teria acolhida seu pleito judicial.
Extreme-se, desde logo, o conceito de treaty shopping do conceito de “rule
shopping”, que consiste, segundo o Professor Pasquale Pistone57, na busca da regra mais
favorável, por contribuinte sujeito ao Tratado de Direito Tributário (por exemplo, dentro de
um grupo de empresas, fazendo-se distribuição de dividendos mas dando-se-lhe o título de
juros, a fim de se obter tributação mais favorável), apontando com propriedade Heleno
Torres58, que no âmbito subjetivo estão as partes indicadas como beneficiários, porém,
visando ampliar ainda mais as possibilidades do acordo, promovem escolha da “melhor
regra”, e de qualificações mais favoráveis, tratando-se assim de casos de qualificação objetiva

53
. Instrução Normativa SRF nº 188, de 06 de agosto de 2002.
54
. PISTONE, Pasquale. L’abuso delle convensione internazionale in matéria fiscale. “in” Corso de Diritto
Tributário Internazionale. Coord. VICTOR UCKMAR, Cedam : Padova, 1999, p. 498.
55
. ALESSI, Verônica. Treaty shopping – Abuso a los Convênios Internacionales, www.aaef.org.ar. Acesso em
01de outubro de .2005.
56
. SCHOUERI, Luis Eduardo. Planejamento Fiscal através de Acordos de Bitributação: Treaty Shopping. São
.Paulo : Revista dos Tribunais, 1995, p. 20, nº 1.2.1.
57
. PISTONE, Pasquale. Op. cit. p. 492.
58
. TORRES, Heleno. Direito Tributário Internacional: Planejamento Tributário e Operações Transnacionais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 321.

32
razão porque conceitua rule shopping (ou escolha da melhor regra) como “o planejamento
tributário que tem como finalidade derrogar as qualificações aplicáveis aos rendimentos ou
definições previstas na convenção, adotando uma outra qualificação com regime tributário
mais favorável.”59.
Surge, no direito tributário internacional, a expressão “beneficial owner” trazida para
o vernáculo como beneficiário efetivo, para designar aquele que na realidade auferirá as
vantagens decorrentes do tratado, no caso de interposição de terceira pessoa. Expressão
nascida no direito inglês, tem, segundo o Black’s Law Dictionary o significado de alguém
reconhecido como proprietário por equidade, por lhe pertencerem o uso e título da coisa,
embora o título legal pertença a outra pessoa (Beneficial owner - 1. One recognized in equity
as the owner of something because use and title belong to that person, even though legal title
may belong to someone else; esp., one for whom property is held in trust. - Also termed
equitable owner. 2. A corporate shareholder who has the power to buy or sell the shares, but
who is not registered on the corporation´s books as the owner)60.
O treaty shopping designa o termo aquele que por interposta pessoa aufere as
vantagens da Convenção Internacional Tributária, sem nele aparecer, cabendo lembrar,
conforme Klaus Vogel61, que o mesmo se concretiza quando preencha ele dois requisitos:

a) possua o direito de decidir se seu investimento (capital e ativos) deve ou


não produzir rendimento;
b) possua o direito de dispor livremente desse rendimento.

O Professor Heleno Torres detalha que essa caracterização se faz pela presença de
quatro elementos62:
a) busca planejada do melhor Tratado de Direito Tributário, visando o
resultado fiscal mais favorável;
b) planejador (beneficiário efetivo) não residente nos países signatários do
Tratado ou Convenção em matéria tributária;
c) interposição de terceiro residente no país destinatário dos rendimentos;
d) afastamento da tributação no país da fonte dos rendimentos por força do
Tratado de Direito Tributário.

A fértil e criativa imaginação dos contribuintes vem criando, ao longo dos anos,
esquemas, formas, estruturas e modos de atuação para aproveitar os Tratados de Direito
Tributário, de tal forma que a OCDE (Organização para Cooperação Econômica e

59
. TORRES, Heleno. Op. cit., p. 337.
60
. Black’s Law Dictionary, West: St. Paul, 7ª ed., 1999.
61
. VOGEL, Klaus et. al. Klaus Vogel on doublé taxation conventions. Kluwer : The Hague, 3a. ed., 1997, pré.
Art. 10-12, nº 9, p.562.
62
. TORRES, Heleno, Op. cit., p. 329.

33
Desenvolvimento), dedicou comentários ao artigo primeiro de seu modelo de tratado ao uso
impróprio dos tratados.
A utilização abusiva (Treaty Shopping) das convenções internacionais, inicialmente
em matéria tributária, passou a ser um mecanismo para Lavagem de Dinheiro e a Remessa
Ilegal de Divisas, conquanto tal utilização abusiva dá ensejo para que criminosos tenham o
condão de decidir se seu investimento (capital e ativos) deve ou não produzir rendimento, ou
seja, o criminoso se aproveita de cláusulas de convenções internacionais para poder auferir
vantagens escusas do benefício que são concedidos aos mais diversos países.

4.1 – As cláusulas anti-Treaty Shopping

Procurando combater a elisão fiscal que o treaty shopping propicia, e


consequentemente a remessa ilegal de divisas, os diferentes Estados têm procurado incluir em
seus Tratados ou Convenções Internacionais as chamadas cláusulas de salvaguarda (anti-
Treaty Shopping), ou fazendo-o por intermédio de medidas unilaterais contidas em suas
legislações internas nacionais.
Cumpre esclarecer o posicionamento do jurista Tulio Rosembuj63, para quem na
inexistência de cláusula antiabusiva no Tratado ou Convenções Internacionais impede a
aplicação das leis nacionais, que seria contrária ao principio “pacta sunt servanda”,
constituindo-se assim em violação ao direito internacional, com o qual coincide com o
professor Heleno Torres. No afã de obstar o treaty shopping, são utilizadas comumente as
seguintes cláusulas64:
a) Cláusula de abstinência – pela qual um país se abstém de concluir
Tratado e Convenções Internacionais, principalmente aqueles relacionados
com o Direito Tributário, ou denuncia os existentes com países de
tratamento fiscal favorecido (paraísos fiscais);
b) Cláusula de transparência (look through approach) – pela qual os
benefícios dos Tratados e Convenções Internacionais somente se aplicam a
uma sociedade sempre que seu capital pertença a residentes do país em que
está domiciliada;
c) Cláusula de exclusão – incluída nos Tratados e Convenções
Internacionais a fim de deixar fora dos seus benefícios as empresas de um
dos Estados contratantes que gozem de regime fiscal privilegiado ou se
situem em área geográfica incentivada;
d) Cláusula de sujeição efetiva – consiste em conceder os benefícios dos
Tratados e Convenções Internacionais somente a empresas que esteja
realmente submetida à tributação no outro Estado contratante;

63
. ROSEMBUJ, Túlio. Treaty Shopping: El abuso de tratado. “in” Corso de Diritto Tributatio Internazionale.
Coord. VICTOR UCKMAR, Cedam : Padova, 1999, p. 551.
64
. CAMPAGNALE, Norberto Pablo, CATINOT, Silvia Guadalupe e PARRONDO, Alfredo Javier, El Impacto
de la Tributación sobre lãs Operaciones Internacionales. B. Aires : La Ley, 2000, p. 76.

34
e) Cláusula de prevenção do uso de sociedades interpostas – busca-se a
tributação efetiva das sociedades interpostas (conduit companies, stepping
stones, sociedades canais, etc.);
f) Cláusula da boa-fé – que visa ressalvar as empresas nascidas de um
planejamento tributário legal, por intermédio dos testes de motivação
(motive test), segundo o qual se verifica se existe um motivo razoável para a
existência da empresa interposta (substancial interest) e de atividade
(activity test) segundo o qual se constata o efetivo exercício de uma
verdadeira atividade comercial ou industrial no país de fonte dos
rendimento pela sociedade interposta.
65
A Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) , em seus
Comentários ao art. 1º , sugere as seguintes cláusulas:
Cláusula Geral de Boa Fé (general bona fide provision): é a cláusula segundo a qual
as medidas contra o uso impróprio dos Tratados e Convenções Internacionais se não aplicarão
se a empresa demonstrar que as principais razões da criação da companhia e suas atividades
são razões de negócio (sound business reasons) e não tem como objetivo principal a obtenção
de benefícios decorrentes de Tratados e Convenções Internacionais;
Cláusula de Atividade (activity provision): segundo a qual não haverá consideração de
treaty shopping quando as operações desenvolvidas pela empresa estiverem conectadas com
as atividades por ela desenvolvidas;
Cláusula Quantitativa (amount of tax provision): Aplicável quando a redução do
imposto reclamado não for maior que o imposto efetivamente devido ao Estado de residência
da empresa;
Cláusula de Cotação Em Bolsa (stock exchange provision): Aplicável quando a
companhia estiver registrada em uma bolsa de valores aprovada se a empresa da qual seja
subsidiária integral estiver registrada;
Cláusula de Exclusão Alternativa (alternative relief provision): Prevê a exclusão das
normas anti abuso de residentes de terceiros estados que também tenham Tratados e
Convenções Internacionais, principalmente relacionados com o direito tributário, com o
Estado Contratante em relação ao qual a aplicação da redução de tributação é requerida.
Em muitos Estados, a aplicação dos Tratados e Convenções Internacionais encontra,
pela frente, a normas anti-abuso da legislação doméstica. Na Austrália aplicam-se normas
internas para evitar o treaty shopping quando assume a feição de conduit company, segundo
afirma Verônica Alessi em sua obra referida. A mesma autora refere ainda Singapura, que
aplica o critério de propósito comercial (business purpose) para determinar se uma
determinada operação é artificial ou fictícia, o que se afere determinando-se se a transação em

65
. Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento - www.oecd.org – Acessado em 23 de janeiro
de 2006.

35
exame é uma operação comercial ordinária e a preço de mercado, através do critério do arm’s
lenght transaction66.
Nos Estados Unidos, o modelo de Tratado de Direito Tributário adotado, do qual a
redação vigente é do modelo de 1996, tem inserida uma cláusula anti-shopping, consistente na
limitação dos benefícios decorrentes de Tratados e Convenções Internacionais a uma empresa
que preencha os requisitos alinhados em seu art. 22, dentre eles a cláusula de cotação em
bolsa ou os requisitos de residência ali previstos para ambos os Estados contratantes.
No Brasil, em relação ao direito tributário internacional, por exemplo, pode-se citar a
Lei Complementar n.º 104, de 10 de janeiro de 2001, veio acrescentar um parágrafo único ao
art. 116 do Código Tributário Nacional, com a seguinte redação :
“Art. 116.
...
Parágrafo Único – A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou
negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência
do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da
obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em
lei ordinária.”

Chamada de norma anti-elisão, cumpre desde logo advertir que a mesma, para Luis
Eduardo Schoueri67, profliga inteiramente, não teria, se constitucional fora, essa característica,
pois se trataria, isto sim, de norma antievasão. O descortino do panorama descrito mostra que
a utilização abusiva dos Tratados e Convenções Internacionais, por intermédio do treaty
shopping, vem sendo objeto de combate constante e crescente por parte principalmente dos
países desenvolvidos, preocupados com a alarmante difusão do procedimento de lavagem de
dinheiro e a remessa ilegal de divisas.
Como foi explicado anteriormente, a lavagem de dinheiro constitui um conjunto de
operações comerciais ou financeiras que procuram a incorporação na economia de cada país,
de modo transitório ou permanente, dos recursos, bens e serviços que geralmente se originam
e estão conexos com transações de macro e micro tráfico de drogas. Portanto, analisar o uso
abusivo das Convenções e Tratados Internacionais é importante no contexto das investigações
sobre lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas.

66
. ALESSI, Verônica. Op. Cit. p. 25.
67
. SCHOUERI, Luis Eduardo. Planejamento tributário – Elisão e Evasão - Simulação – Abuso de forma –
Interpretação Econômica – Negocio Jurídico Indireto – Norma Antielisiva. “in” Curso de Direito Tributário,
Coord. Antonio Carlos Rodrigues Do Amaral. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 300.

36
5 – COOPERAÇÃO INTERNACIONAL: A ASSISTÊNCIA ADMINISTRATIVA EM CASOS DE
FRAUDE TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL, REMESSA ILEGAL DE DIVISAS
E LAVAGEM DE DINHEIRO

No enfrentamento da criminalidade organizada não se trata mais de apenas decretar o


simples perdimento dos produtos do crime, classicamente preconizado pelo Código Penal,
mas de incriminar o próprio emprego destes ativos pelo criminoso ou por terceiros. Inúmeras
razões aferem essa constatação. A primeira remete à própria objetividade jurídica do modelo
legal clássico da receptação. O objetivo exclusivo deste tipo é proteger o patrimônio (público
ou particular) contra violações sucessivas perpetradas por indivíduos que almejam alcançar
um determinado lucro. Ocorre que, diante do formidável aparato das quadrilhas
contemporâneas e das gravíssimas conseqüências da reciclagem de ganhos ilegais por elas
encetadas, tornou-se imperioso elaborar um novo tipo criminal que ampliasse a finalidade
protetiva da norma nesses casos. Em segundo lugar, atualmente há uma alteração substancial
na qualidade dos crimes praticados por organizações criminosas e na quantidade de ganhos
ilícitos deles decorrentes. Esta transformação ocasionou uma profunda mudança nos
esquemas de aproveitamento dos produtos de crime.
Por essas razões, a prevenção e repressão do crime de lavagem de dinheiro e remessa
ilegal de divisas tiveram que se adaptar às exigências modernas, conquanto tais crimes
tenham se sofisticado com o decorrer do tempo, razão pela qual cooperação internacional é
essencial para coibir esse tipo de crime. Nesse diapasão, a cooperação jurídica internacional
consiste na interação entre os Estados com o objetivo de dar eficácia extraterritorial a medidas
processuais provenientes de outro Estado. A cooperação jurídica pode se basear em tratado ou
em pedido de reciprocidade.
Questão relevante é o incremento dos instrumentos de cooperação internacional com
os Estados que estejam situados em continentes com maior número de Paraísos Fiscais.
Espera-se que, progressivamente, tanto pela aplicação dos comandos normativos, como
também pela natural conseqüência do efeito globalizado de parcerias legislativa e fiscal,
diminuam a quantidade de Estados vocacionados a tal liberalidade fiscal e legal.
Nos tratados e convenções internacionais pode-se destacar, inicialmente, a cláusula da
troca de informações entre as Administrações Tributárias, essencial para a aplicação de tais
tratados e para assegurar correta e célere aplicação da legislação interna, principalmente no
sentido de se averiguar a remessa ilegal de divisas. O intercâmbio de informações constitui,
ademais, importante mecanismo de prevenção ou eliminação da lavagem de dinheiro, remessa
ilegal de divisas e fraude tributária internacional. Tal forma de cooperação internacional tem-

37
se tornado a cada dia mais necessária, considerando o número crescente de pessoas que obtêm
rendas e dispõem de capitais no exterior.
Reveste-se de especificidades, todavia, o intercâmbio de informações previsto em
tratados internacionais sobre matéria tributária. Com efeito, todas as convenções
internacionais destinadas a evitar a dupla tributação, a prevenir a evasão tributária em matéria
de impostos sobre a renda e a remessa ilegal de divisas, firmadas pelo Brasil, contêm a
cláusula da troca de informações, formulada seguindo o disposto no artigo 26 do modelo de
convenção da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico e da Organização
das Nações Unidas (OCDE), cuja redação é a que segue:
“Artigo 26º
Troca de informações

1. As autoridades competentes dos Estados Contratantes trocarão entre si as


informações necessárias para aplicar esta Convenção ou as leis internas dos
Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos por esta Convenção,
na medida em que a tributação nelas prevista não seja contrária a esta
Convenção. A troca de informações não é restringida pelo disposto no
Artigo 1º. As informações obtidas por um Estado Contratante serão
consideradas secretas, do mesmo modo que as informações obtidas com
base na legislação interna desse Estado, e só poderão ser comunicadas às
pessoas ou autoridades (incluindo tribunais e autoridades administrativas)
encarregadas do lançamento ou cobrança dos impostos abrangidos por esta
Convenção, ou dos procedimentos declarativos ou executivos relativos a
esses impostos ou de decisão de recursos referentes a estes impostos. Essas
pessoas ou autoridades utilizarão as informações assim obtidas apenas para
os fins referidos. Essas informações poderão ser reveladas no decurso de
audiências públicas de tribunais ou de sentença judicial.

2. O disposto no nº 1 nunca poderá ser interpretado no sentido de impor a


um Estado Contratante a obrigação:
a) De tomar medidas administrativas contrárias à sua legislação e à
sua prática administrativa ou às do outro Estado Contratante;
b) De fornecer informações que não possam ser obtidas com base na
sua legislação ou no âmbito da sua prática administrativa normal ou das do
outro Estado Contratante;
c) De transmitir informações reveladoras de segredos ou processos
comerciais, industriais ou profissionais, ou informações cuja comunicação
seja contrária à ordem pública.”

Do dispositivo convencional redigido de acordo com o modelo acima transcrito,


verifica-se que as trocas de informações tributárias têm lugar exclusivamente entre as
administrações tributárias centrais, e, embora possam ser realizadas por meio de
requerimento, de ofício, ou espontaneamente, as convenções firmadas pelo Brasil contemplam
apenas a troca de informações por meio de provocação. Ademais, o dever de cada Estado
prestar informações comporta restrições ou limites, que podem ser sintetizados em:

38
a) limites em razão dos tributos: informações podem ser prestadas apenas quanto aos
impostos objeto da convenção;
b) limites em razão da competência: os Estados contratantes não são obrigados a
adotar medidas administrativas contrárias a sua legislação ou prática administrativa, ou às do
outro Estado contratante, nem a fornecer informações que não poderiam ser obtidas com base
na sua própria legislação ou no âmbito da sua prática administrativa normal, ou das do outro
Estado contratante;
c) limites em razão da matéria: os Estados contratantes não podem fornecer
informações que revelem segredo comercial, industrial, profissional, processo comercial ou
industrial, ou informações cuja comunicação seja contrária à ordem pública.
Mister lembrar que a cláusula relativa à troca de informações é essencial para a
aplicação dos tratados internacionais sobre matéria tributária e para assegurar a correta e
célere aplicação da legislação tributária interna, constituindo, todavia, sobretudo meio
destinado a solucionar o problema da fraude tributária internacional e remessa ilegal de
divisas, que projeta as suas nefastas conseqüências não apenas no campo de tributação, mas,
também, no da economia do Estado de onde as rendas se evadem.
Novo e grande impulso à fraude tributária internacional e a remessa ilegal de divisas
tem dado a colocação em circulação de uma massa gigantesca de capitais internacionais a ser
empregada onde possa gerar os maiores lucros com os menores custos. Diante das suas tão
grandes proporções, a fraude tributária internacional e a remessa ilegal de divisas suscitam,
obviamente, sérias apreensões por parte dos Estados que delas são vítimas, motivo pelo qual
estes Estados têm o interesse e a necessidade de adotar medidas tendentes a evitar, eliminar
ou diminuir os efeitos do fenômeno. Entre tais medidas, as de caráter unilateral encontram
limite na soberania territorial dos demais Estados.
A repressão à fraude tributária internacional e a remessa ilegal de divisas requer, pois,
estreita colaboração entre as administrações tributárias dos Estados, levada a efeito por meio
de medidas multilaterais, sempre que possível, ou, pelo menos, com a adoção de medidas
bilaterais, entre as quais se insere a cláusula da troca de informações tributárias prevista nas
convenções internacionais bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação e a prevenir a
evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda.
Por outro lado, conforme asseverado anteriormente, existe, no âmbito internacional, o
o Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI/FATF), que tem por
finalidade de examinar, desenvolver e promover políticas de combate à lavagem de dinheiro.
Essas políticas têm por objetivo impedir que os produtos dos crimes de tráfico de drogas e

39
outros delitos graves sejam utilizados em futuras atividades criminosas e afetem as atividades
econômicas legais dos países68. A partir da XI Reunião Plenária do GAFI/FATF, realizada em
setembro de 1999, o Brasil passou a integrar esse organismo como membro observador.
Dentre os organismos internacionais de cooperação contra a lavagem de dinheiro há
também o chamado Grupo de Egmont69. Trata-se de é um organismo internacional informal,
que foi criado pela Unidade Financeira de Inteligência belga (CTIF) e norte-americana
(FINCEN) para promover, em âmbito mundial, a troca de informações, o recebimento e o
tratamento de comunicações suspeitas relacionadas à lavagem de dinheiro proveniente dos
outros organismos financeiros. O objetivo do Grupo Egmont é promover um foro onde as
Unidades Financeiras de Inteligência (FIU) encontrem soluções para ampliar o apoio a seus
respectivos programas nacionais de combate à lavagem de dinheiro, incluindo a expansão e a
sistematização do intercâmbio de informações financeiras, a ampliação dos programas de
capacitação de funcionários das FIU, e o aperfeiçoamento de uma melhor comunicação entre
as FIU por intermédio da aplicação de tecnologia.
Unidade Financeira de Inteligência (FIU), de acordo com o Grupo Egmont, é a
“agência nacional, central, responsável por receber (e requerer), analisar e distribuir às
autoridades competentes as denúncias sobre as informações financeiras com respeito a
procedimentos presumidamente criminosos conforme legislação ou normas nacionais para
impedir a lavagem de dinheiro”70. A FIU tem como principal função a prevenção e controle
do delito de lavagem de dinheiro, por intermédio da proteção dos setores financeiros e
comerciais passíveis de serem utilizados em manobras ilegais. Essas unidades podem ser de
natureza judicial, policial, mista (judicial/policial) ou administrativa. O Brasil optou pelo
modelo administrativo.
As Unidades de Inteligência Financeira (FIU), na qualidade de organismo
administrativo, recebem, analisam e transformam as informações em dados sobre atividades
suspeitas, tendo em vista o caráter transnacional do crime de lavagem, fica evidente a
importância do inter-relacionamento entre as FIU, correlacionando-se com as autoridades
competentes de cada país, para o sucesso de uma operação de combate a este crime. O
processo, resumidamente, ocorre da seguinte forma: a partir do exame de indícios que

68
. BONFIN, Márcia Monassi Mougenot, e BONFIN, Edílson Mougenot. Op. Cit., p. 17.
69
. Grupo Egmont, Ministério da Fazenda: https://www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/sobrecoaf/Egmont.htm. -
Acessado em 3 de fevereiro de 2006.
70
. Cartilha Contra a Lavagem de Dinheiro elaborada pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(COAF) https://www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/publicacoes/cartilha.htm - acessado em 18 de janeiro de
2006.

40
permitem comprovar a existência de um delito, as FIU remetem a informação às autoridades
competentes que dão início aos procedimentos cabíveis.
Por outro lado, dentre os mecanismos de cooperação jurídica internacional, cumpre
destacar a homologação de sentença estrangeira, a carta rogatória e o pedido de assistência
jurídica. A homologação de sentença estrangeira é destinada a dar eficácia, em um Estado, a
decisões jurídicas definitivas provenientes de outro Estado. No Brasil, é processo de
competência do Superior Tribunal de Justiça, conforme o artigo 105, inciso I, alínea “i”, da
Constituição da República Federativa do Brasil. Já a Carta Rogatória é a solicitação feita pela
autoridade judiciária de um Estado à autoridade judiciária de outro Estado para impulsionar o
processo nos casos de: citação, intimação, inquirição, oitiva de testemunhas, exames, perícias,
vistorias, avaliações, diligências, entre outros. Por fim, o pedido de assistência jurídica é a
atividade de cooperação jurídica entre Estados que permite executar, em dada jurisdição, atos
solicitados por autoridades estrangeiras. Tais atos têm fundamento em investigação ou
instrução de ações jurídicas em território estrangeiro.
Esses são, em suma, os organismos e os mecanismos internacionais de cooperação e
combate à lavagem de dinheiro, cujos objetivos principais são a assistência contínua a
instituições, organizações e entidades comprometidas com o controle da lavagem de dinheiro,
principalmente por meio do oferecimento de programas de treinamento e cooperação técnica.

6 – ÓRGÃOS NACIONAIS PARA A REPATRIAÇÃO DE ATIVOS


E CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO

Conforme explicado alhures, após sete anos da ratificação da Convenção de Viena foi
editada a Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, que, dentre várias atribuições acima
explicadas, criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) 71, dentro do
Ministério da Fazenda, com a finalidade de “disciplinar, aplicar penas administrativas,
receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas e atividades ilícitas” (art. 14, caput, da
Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998), fiscalizando as atividades financeiras que pode dar
ensejo à lavagem de dinheiro. O trabalho do COAF está em consonância com as orientações
que vêm sendo adotadas internacionalmente pelos organismos encarregados de promover o
combate à lavagem de dinheiro e, considerando que seu funcionamento segue o modelo de
uma Unidade Financeira de Inteligência (FIU), tem ampliado seus vínculos com organismos
internacionais e agências congêneres de outros países empenhados na luta contra delitos dessa

71
. Decreto nº 2.799, de 08 de outubro de 1998 - Aprova o Estatuto do Conselho de Controle de Atividades
Financeiras – COAF.

41
natureza, estabelecendo um amplo relacionamento com entidades no Brasil e no exterior para
uma rápida e eficaz troca de informações.
O Ministério da Fazenda, sabedor da gravidade dos problemas relacionados ao crime
de lavagem de dinheiro, tem oferecido amplo suporte ao COAF, com o escopo de que o
Conselho tenha à sua disposição todos os instrumentos necessários ao melhor desempenho de
suas funções. O resultado concreto dessa ação se materializa nas propostas de assinatura de
Memorandos de Entendimento com vários países. A implantação do Sistema de Informações
COAF (SISCOAF) auxilia nos processos internos de tomada de decisão, representando um
veículo rápido e eficaz de captação, tratamento, disponibilização e guarda dos dados72.
Todas essas ações visam a fazer com que o Conselho de Controle de Atividades
Financeiras cumpra sua missão e seja um eficiente agente na luta contra a lavagem de
dinheiro e suas ilícitas conexões, reforçando seu compromisso de contribuir com a eficácia
global das medidas de prevenção/repressão, pois este crime representa uma ameaça, não só à
integridade e à estabilidade dos Estados e de seus sistemas econômicos, mas também à
própria democracia.
O COAF assumiu a condição de uma Unidade Financeira de Inteligência (FIU), cuja
definição, segundo o Grupo de Egmont, é a “agência nacional central responsável por receber
(e requerer), analisar e distribuir às autoridades competentes as denúncias sobre as
informações financeiras com respeito a procedimentos presumidamente criminosos conforme
legislação ou normas nacionais para impedir a lavagem de dinheiro”73.
Por outro lado, de forma tão atuante quando o COAF, exurge o Departamento de
Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. O Governo Federal mudou
alguns paradigmas no combate à lavagem de dinheiro no país ao transformar o tema, antes
responsabilidade do sistema financeiro, em eixo estratégico de desmonte do crime organizado.
Nesse sentido, o Ministro da Justiça criou o Departamento de Recuperação de Ativos e
Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), que tem como objetivo principal colaborar com os
diversos órgãos envolvidos no combate à lavagem de dinheiro.
O Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional
(DRCI) foi criado por intermédio do Decreto n.º 4.991, de 18 de fevereiro de 2004, e está
subordinado à Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) do Ministério da Justiça. Este recente
Departamento tem como principais funções “analisar cenários, identificar ameaças, definir

72
. Ministério da Fazenda, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) www.coaf.gov.br –
Acessado em 3 de fevereiro de 2006.
73
. Grupo Egmont, Ministério da Fazenda: https://www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/sobrecoaf/Egmont.htm. -
Acessado em 3 de fevereiro de 2006.

42
políticas eficazes e eficientes, bem como desenvolver cultura de combate à lavagem de
dinheiro”74. Essas funções têm como objetivo a recuperação de ativos enviados ao exterior de
forma ilícita e de produtos de atividades criminosas, tais como as oriundas do tráfico de
entorpecentes, do tráfico ilícito de armas, da corrupção e do desvio de verbas públicas. Além
disso, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional é
responsável pelos acordos internacionais de cooperação jurídica internacional, tanto em
matéria penal quanto em matéria civil, figurando como autoridade central no intercâmbio de
informações e de pedidos judiciais por parte do Brasil.
Dentre as competências do Departamento, conforme estabelece o Decreto n.º 4.991, de
18 de fevereiro de 2004, estão a articulação, integração e proposição de ações do governo nos
aspectos relacionados com o combate à lavagem de dinheiro, ao crime organizado
transnacional, à recuperação de ativos e à cooperação jurídica internacional, bem como a
articulação dos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, inclusive dos
Ministérios Públicos Federal e Estaduais, no que se refere ao combate à lavagem de dinheiro e
ao crime organizado transnacional.
A diferença que se encontra com o COAF é que o Departamento de Recuperação de
Ativos e Cooperação Jurídica Internacional tem o condão de negociar acordos e coordenar a
execução da cooperação jurídica internacional, exercendo a função de autoridade central para
a tramitação de pedidos de cooperação jurídica internacional. Com essas atribuições,
diferentes do COAF, é que o DRCI pode coordenar a atuação do Estado brasileiro em foros
internacionais sobre prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado
transnacional, recuperação de ativos e cooperação jurídica internacional, além de poder
instruir, opinar e coordenar a execução da cooperação jurídica internacional ativa e passiva,
inclusive cartas rogatórias.
Na área de inteligência, o responsável continua sendo o COAF, criado pela Lei 9.613,
de 1998, com a recomendação de mais atuação de seu colegiado na definição das ações de
inteligência. Quanto à área operacional, a manutenção das operações de prevenção e combate
à lavagem de dinheiro no âmbito de competência do DRCI. Tais operações devem ser
articuladas, caso a caso, a partir da criação de forças-tarefa específicas.
Além do mais, o DRCI pode, internamente, colaborar e articular com órgãos públicos
nacionais para combater a lavagem de dinheiro e as organizações criminosas, com o objetivo
de recuperar os ativos derivados de atividades ilícitas. Pode, até mesmo, receber e analisar

74
. Art. 1º do Decreto n.º 4.991, de 18 de fevereiro de 2004.

43
denúncias e informações sobre a existência de fatos que possam configurar o crime de
lavagem de dinheiro e de bens obtidos em decorrência de tal delito.

7 – APURAÇÃO DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO


E ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Conforme explicado acima, os órgãos nacionais para a repatriação de ativos e contra a


lavagem de dinheiro desempenham importante papel na atividade estatal de recuperação de
ativos relacionados à prática de atividades criminosas. No intuito de tornar mais efetivas as
ações públicas para a recuperação de ativos, tanto no exterior quanto no país, tais órgãos são
responsáveis em colaborar com as polícias, o Ministério Público, o Judiciário e os órgãos
competentes para recuperar, no Brasil e no exterior, ativos derivados de atividades ilícitas.
Vale ressaltar que, dentro dos órgãos acima, existe a participação efetiva de órgãos
ligados estritamente ao Poder Judiciário no gerenciamento integrado de prevenção e combate
à lavagem de dinheiro. Dentre esses órgãos estão75: Advocacia-Geral da União; Agência
Brasileira de Inteligência, Banco Central do Brasil; Conselho da Justiça Federal; Conselho de
Controle de Atividades Financeiras; Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do
Ministério Público dos Estados e da União; Controladoria-Geral da União; Departamento de
Polícia Federal; Departamento de Polícia Rodoviária Federal; Departamento de Recuperação
de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional; Instituto Nacional do Seguro Social;
Ministério da Fazenda; Ministério da Justiça; Ministério Público Federal; Procuradoria-Geral
da Fazenda Nacional; Secretaria da Receita Federal; Secretaria de Direito Econômico;
Secretaria Nacional Antidrogas; Secretaria Nacional de Justiça; Secretaria Nacional de
Segurança Pública; Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Contas da União.
Esses órgãos formulam políticas públicas criminais para evitar a lavagem de dinheiro e
a remessa ilegal de divisas. Desta feita, a política criminal está circunscrita, principalmente,
em granjear elementos para iniciar um processo criminal e, sobretudo, repatriar ativos
ilicitamente remetidos ao exterior. Nesse esteio, é cediço que a maioria das sentenças que
existem em matéria de lavagem de dinheiro trata de investigações que surgiram de uma prévia
apuração do tráfico de drogas, pois as comunicações impostas por lei às instituições
financeiras e outras pessoas “raramente têm utilidade como via para que a notitia criminis

75
. Ministério da Justiça (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional)
http://www.mj.gov.br/drci/default.asp , acesso em 3 de fevereiro de 2006.

44
chegue ao órgão encarregado da persecução.”76 Isso denota a complexidade na investigação
dos delitos, que debalde a intenção legislativa em tentar novos meios de apuração dos crimes
em tela, como é o caso da obrigatoriedade das comunicações impostas por lei às instituições
financeiras e outras pessoas, delitos esses que, em verdade, são descobertos como
conseqüência acidental da investigação de outras infrações, para a qual não concorreu
nenhuma nova previsão legislativa, retratando simplesmente a antiga técnica investigatória
policial e, quando não, a mais pura coincidência no esclarecimento dos mesmo.
Nesse diapasão, aproveita-se a lição e experiência de um dos membros de uma das
Promotorias Especializadas da Espanha (Fiscalía Especial para la Represión de los Delitos
Económicos relacionados con la Corrupción)77, que esclarece dividir-se geralmente em três
etapas as investigações desses crimes, fases estas correspondentes àquelas do processo de
lavagem de dinheiro, como já analisado (introdução, ocultação/transformação e integração).
Em cada uma dessas fases, os investigadores costumam atentar para os seguintes e principais
aspectos78:
“a) apurações em torno das pessoas implicadas e as tramas societárias
utilizadas (principais investigações e seus familiares, testas-de-ferro,
pessoas de confiança, mandatários ou administradores de sociedades,
sócios, acionistas, etc.);
b) investigações sobre bens, capitais, instrumentos ou direitos suscetíveis de
serem utilizados nas técnicas de lavagem, tais como: imóveis rústicos ou
urbanos; bens e direitos afetos a atividades empresariais; valores
mobiliários (ações, participações, dívida pública, fundos de investimento,
obrigações, investimentos em futuro, etc.); depósitos em contas correntes ou
de poupanças; direitos reais; arrendamento; concessões administrativas;
cartões de crédito; operações exteriores; avais, empréstimos, créditos, etc.”

Ao lado dos meios tradicionais de apuração, imprescindível a utilização de


instrumentos modernos e especiais de investigação, conforme estabelecido na Convenção de
Viena. Nesse sentido, pode-se citar a quebra de sigilo fiscal, bancário e financeiro, que se
constitui um dos meios mais utilizados (art. 1º, §1º, da Convenção de Viena). As instituições
financeiras, que quase sempre são usadas para dar aparência de licitude aos produtos e
benefícios de origem delitiva, documentam as diversas operações e efetuam, simplificando o
trabalho da investigação79. Essas instituições, pois, ainda que não utilizadas no processo de

76
. NAVAS, Miguel Campos. La experiencia práctica de la Fiscalía antidroga en las investigaciones de
blanqueo de capitales. In ZARAGOZA AGUADO, Javier Alberto (org.). Prevención y represión del blanqueo
de capitales. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2000, p. 381-382.
77
. SANZ-ARAGUEZ, Luís M. López. La investigación y actuación de la Fiscalía Especial para la represión
de los delitos económicos relacionados con la corrupción en el delito de blanqueo de capitales. In.
ZARAGOZA AGUADO, Javier Alberto (org.)., Op. Cit., p. 410-411.
78
. BONFIN, Márcia Monassi Mougenot, e BONFIN, Edílson Mougenot. Op. Cit., p. 68.
79
. ZARAGOZA AGUADO, Javier Alberto (org.)., Op. Cit., p. 406.

45
lavagem, constituem ponto essencial para se detectar as diversas operações que são utilizadas
no processo de lavagem, constituindo-se ponto essencial para se detectar as diversas
operações que são executadas. As declarações de renda ou outras informações prestadas ao
Fisco, do mesmo modo, podem revelar enriquecimento ilícito, além de fornecer elementos
que, analisados em conjunto com outros, podem indicar os mecanismos do processo de
lavagem e seus responsáveis. Por sua vez, as escutas telefônicas, a delação premiada
(colaboração dos autores, co-autores e partícipes) e a interceptação ambiental permitem
identificar os protagonistas da rede de lavagem e eventuais colaboradores, bem como os
métodos por ela empregados.
Por outro lado, dentre alguns pontos sobre os procedimentos especiais adotados pela
Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro, o
processo penal esclarece que “para que seja possível a apresentação de denúncia é essencial
indícios de autoria e prova da materialidade do crime”. Entretanto, a Lei de Lavagem de
Dinheiro inovou ao exigir apenas os indícios do crime antecedente. O descrito no art. 2º, §1º,
da Lei supracitada, é uma proposta de política criminal expansionista, como vem sendo
analisado na maioria das leis brasileiras em nome da segurança pública. Com a apresentação
da denúncia apenas com base em indícios, mesmo sem ter o conhecimento da autoria do
crime precedente, se for aplicado de forma extremada ferirá o Princípio da Presunção de
Inocência e Ampla Defesa.
Para que se possa apresentar a denúncia os indícios devem ser plenamente seguros
(não são válidas meras probabilidades), deve haver a concorrência de uma pluralidade de
indícios e a existência de razões dedutivas. Entre os indícios provados e os fatos que se
inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segundo as
regras do critério humano, bem mais que isso, é necessária a prova real do delito precedente.
Com relação aos aspectos processuais específicos, extraídos do próprio texto
normativo, pode-se inferir que a competência para processar e julgar o crime da lavagem de
dinheiro é da Justiça Federal, quando os bens jurídicos atingidos forem aqueles expressos no
art. 2º, III, alínea “a” (sistema financeiro, ordem econômico-financeira, bens serviços ou
interesses da União Federal, entidades autárquicas ou empresas públicas federais) ou quando a
Justiça Federal for competente para o processamento do crime antecedente. Já à Justiça
Estadual cabe, por sua vez, a competência residual.

46
Em relação ao procedimento80, que é o comum para os crimes punidos com reclusão,
do juiz singular, lamenta-se a não previsão da defesa preliminar. Ressalte-se que parte
respeitável da doutrina pátria tem apregoado a adoção da defesa preliminar em todos os tipos
de delito. Conforme explicitado alhures, a denúncia deve ser instruída com indícios
suficientes da existência do crime antecedente. Propõe-se a necessidade de efetiva
observância aos seguintes desdobramentos. Já os indícios são da real probabilidade de
ocorrência de um fato delituoso. Não se restringem, assim, a meras suspeitas, mas ao
convencimento do órgão acusatório. A existência do crime antecedente refere-se ao suporte
probatório da prática do crime (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, afastada esta pela
2ª parte do §1º, do art. 2º, da norma em tela), não se contentando com a materialidade, apenas.
Por fim, a justa causa figura-se como instrumento de tutela da dignidade, uma vez que esta já
é atingida pela mera instauração do processo. A verificação desta deve fundamentar o
oferecimento da denúncia ou o arquivamento do inquérito e, na primeira hipótese, o
recebimento ou a rejeição da denúncia pelo órgão julgador.

8 – LAVAGEM DE DINHEIRO: A MODERNA MAQUIAVELÍSTICA


E O TEOREMA DAS PROPORÇÕES DEFINIDAS

A presente análise tem como paradigma o pensamento de Antonio Gramsci em sua


obra “Cadernos do Cárcere”, Volume Três, a qual analisa Maquiavel e Notas Sobre o Estado
e a Política. O pano de fundo desta análise visa correlacionar a Moderna Maquiavelística e o
Teorema das Proporções Definidas, de Antonio Gramsci, com a Lavagem de Dinheiro e
Remessa Ilegal de Divisas. Ao explicitar algumas idéias do que seria a Nova Maquiavelística
e o Teorema das Proporções Definidas, Gramsci esclarece elementos sociológicos que se
amoldam ao fenômeno da Lavagem de Dinheiro, a Remessa Ilegal de Divisas e seus agentes
interlocutores.
Inicialmente, para Gramsci, o caráter utópico do Príncipe consiste no fato de que o
“príncipe” não existia na realidade histórica, não se apresentava ao povo italiano com
características de imediaticidade objetiva, mas era pura abstração doutrinária, o símbolo do
poder, do condottiero ideal. Seriam os elementos passionais, míticos, contidos em todo o
pequeno livro, com movimento dramático de grande efeito, sintetizam-se e tornam-se vivos
na conclusão, na invocação de um príncipe “realmente existente”.

80
. SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Da competência nos delitos de lavagem de dinheiro. In Revista Brasileira de
Ciências Criminais, a. 9, n. 36, dez. 2001, p. 308.

47
O moderno príncipe, o mito-príncipe não poderia ser uma pessoa real, um indivíduo
concreto, só poderia ser um organismo, um elemento complexo da sociedade no qual já tenha
tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na
ação. Para Gramsci:
“O moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de
relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa
de fato que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou
criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência
próprio moderno Príncipe e serve ou para aumentar seu poder ou para opor-
se a ele. O Príncipe toma o lugar, nas conseqüências, da divindade ou do
imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno ou de uma
completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume.”81

Na verdade, nas entrelinhas do pensamento de Gramsci, a nova maquiavelística estaria


em atividades a par do direito, incluindo aquelas atividades que hoje são compreendidas na
fórmula do “indiferente jurídico” e que são de domínio da sociedade civil, que atua sem
“sanções” e sem “obrigações” taxativas, mas que nem por isso deixa de exercer uma pressão
coletiva e de obter resultados objetivos de elaboração nos costumes, nos modos de pensar e de
atuar, na moralidade, etc.
Nesse sentido, o príncipe seria, por exemplo, a empresa que atua de modo ilegal em
paraísos fiscais, utilizando-se abusivamente dos Tratados e Convenções Internacionais como
mecanismo para lavagem de dinheiro e a remessa ilegal de divisas. O príncipe seria o político
que escolhe um agente administrativo ímprobo para gerenciar fundos de pensão e, por
intermédio de aplicações enviesadas na bolsa de valores, fazer lavagem de dinheiro. Portanto,
a nova maquiavélica seria a arte de formular inverdades com lógica e verossimilhança,
conhecida por sofisma, não obstante resultar sistematicamente em grave desvio de realidade.
Já o Teorema das Proporções Definidas pode ser empregado com utilidade para tornar
mais claros e mais bem esquematizados muitos raciocínios relacionados à ciência da
organização (o estudo do aparelho administrativo, da composição demográfica, etc) e também
à política em geral (nas análises de situações, das relações de força, no problema dos
intelectuais, etc)82. É evidente que se deve sempre recordar que o recurso do teorema das
proporções definidas tem um valor esquemático metafórico, isto é, pode ser aplicado
mecanicamente, já que nos agregados humanos o elemento qualitativo (ou de capacidade
técnica e intelectual de cada um de seus componentes) tem uma função predominante, mas
não pode ser mensurado matematicamente.

81
. GRAMSCI. Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3 – Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política. 3ª
Edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002, p. 19.
82
. GRAMSCI. Antonio. Op. Cit., p. 83.

48
Politicamente, para Gramsci, o teorema pode ser aplicado aos partidos, aos sindicatos,
às fábricas e empresas, para ver como cada grupo social tem uma lei própria de proporções
definidas, que varia de acordo com o nível de cultura, independência mental, espírito de
iniciativa e senso de responsabilidade e de disciplina de seus membros mais atrasados e
periféricos83. Seria possível usar metaforicamente o teorema das proporções definidas para
compreender como um ‘movimento’ ou tendência de opiniões se torna partido, isto é, política
eficiente do ponto de vista do exercício de um determinado poder (estatal ou privado). Seria a
forma de se utilizar legalmente os meios para se alcançar os fins, que, em regra, seria ilegal.
Faz-se, agora, uma analogia ao “Príncipe”, famosa obra de Nicolau Maquiavel. Esta
obra política suscitou muitas polêmicas, com interpretações problemáticas, debatidas, em
certos momentos obscuros e paradoxais. A obra levantou questões fundamentais, como a
conquista do poder, a preservação do mandato e os cuidados para não perdê-lo, a obtenção de
alianças, negociações e acordos políticos, relações entre Estado e povo, corrupção, nepotismo
e favorecimento, bem como outros temas secundários não menos importantes. A idéia do
“Príncipe” é bastante conhecida pelo cínico amoralismo traduzido por: “os fins justificam os
meios”, senão vejamos:
“Trate, pois, o príncipe de conservar o poder; os meios serão sempre
julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo sempre se deixa
levar pela aparência e pelo resultado das coisas; e no mundo só existe o
vulgo e a minoria não tem lugar quando a maioria tem onde se apoiar.
Triunfai sempre, pouco importando como, e sempre terás razão.” 84

Assim, por exemplo, um agente público, enquanto “Príncipe”, não mede


conseqüências para alcançar a sua finalidade precípua, qual seja, locupletar-se com o
patrimônio público, utilizando-se, inclusive, de mecanismos para reciclar dinheiro público.
Utiliza-se inadvertidamente a teoria realista de Maquiavel, que visava implantar uma nova
ordem dominada pela liberdade moral e física e capaz de tornar o homem despido de seu
natural sentimento de inferioridade, para auferir-se do patrimônio público em detrimento da
sociedade. As degenerações eventualmente enfrentadas pela Administração Pública são
provocadas pela degeneração da virtude em corrupção, tanto por parte dos agentes públicos,
como de parte da população.
A questão da moderna maquiavelística e o teorema das proporções definidas pode ser
melhor evidenciadas por Schopenhauer, que “aproxima a lição de ciência política de
Maquiavel daquela do mestre de esgrima que ensina a arte de matar (mas também de não se

83
. GRAMSCI. Antonio. Op. Cit., p. 85.
84
. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe: com notas de Napoleão Bonaparte – 2 ª Ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1997, pág. 115.

49
deixar matar) mas nem por isso ensina a se tornar sicário ou assassino”85. Em outras palavras,
o agente que faz a lavagem de dinheiro se utiliza desse expediente por intermédio de
mecanismos que podem, muitas vezes, não ser considerados ilícitos. Trata-se, parafraseando
Gramsci, da arte de matar sem se tornar assassino.
Enfim, há mais relação entre crise da Justiça e crise econômica do que supõe a maioria
de nossa classe dominante. O Direito é a base sobre a qual se assenta o regime democrático.
Quando falha, tudo mais sofre as conseqüências. Esse eixo de gravidade sempre está presente
em crises econômico-financeiras, que tem por base uma atitude de negligência do Estado em
relação ao Direito e seus fundamentos.
A Lavagem de Dinheiro e a Remessa Ilegal de Divisas, como moderna maquiavelística
e a conseqüente teorema das proporções definidas, expõem anomalias e perversões do sistema
jurídico pátrio, permeando todo o tecido moral, social e cultural do país. A análise da
moderna maquiavelística e do teorema das proporções definidas, no âmbito do tema
“Lavagem de Dinheiro”, evidencia qual seria o bem jurídico tutelado, conquanto se busque
alcançar a proteção de interesses metapessoais ou interindividuais, evitando, por conseguinte,
a erosão do sistema democrático com o comprometimento do destino econômico de toda a
sociedade.
A Lavagem de Dinheiro, enquanto crise da democracia, abala a vida social, ensejando
o descrédito popular contra a classe dirigente em geral, minando os princípios básicos do
Estado Democrático de Direito. A crise da democracia, perpetrada em fenômenos como a
Lavagem de Dinheiro, é a incessante discussão do certo e do errado, do bem e do mal,
proposta por Nietzsche: “Na verdade, o Eu astuto, o Eu egoísta, que procura seu bem no bem
de muitos, este não é a origem do rebanho, mas a sua destruição”.86

9 – CONCLUSÃO

O evoluir do direito, na globalização crescente das relações econômicas e do contato


humano que se incrementa com a facilidade das comunicações e dos transportes, nos leva a
antever uma harmonização dos sistemas legais no mundo ocidental. Observa-se que os meios
e instrumentos de coibição do crime de lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas, por
vezes, não conseguem acompanhar a engenhosidade e aperfeiçoamento tecnológico aplicado a
essa modalidade de infração, em particular àquelas infrações praticadas em um Estado com
repercussão em outro, sendo certo que, concomitantemente à globalização do conhecimento,

85
. GRAMSCI. Antonio. Op. Cit., p. 26.
86
. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 1999, p. 59.

50
da informação e da tecnologia, globalizaram-se, também, as técnicas e procedimentos
criminosos, aí estando presentes os ilícitos em tela.
Nesse cenário, a lavagem de dinheiro representa, induvidosamente, eixo de interesse,
na medida em que, por intermédio dessa conduta, verifica-se ser decorrente de grande parte de
outros ilícitos (ilícito antecedente). Por via de pessoas jurídicas, em particular, têm-se
desenvolvido sofisticados esquemas de práticas materiais, intelectuais e tecnológicas que
funcionam no interesse da fraude ou da simulação com escopo de reciclar dinheiro.
O objetivo almejado para adoção de procedimentos contra a lavagem de dinheiro e a
remessa ilegal de divisas está sendo mais amplamente empregado devido a globalização.
Contudo, como todas as distorções ocorridas no Brasil, as medidas adotadas pelo legislador
pátrio são realizadas homeopaticamente e de forma não sistêmica. A política criminal no
Brasil deve ser dotada de um maior critério preventivo, além do repressivo já tão entabulado.
A tão-só repressão pode levar ao descontrole por parte das autoridades, as quais, tendo em
mente um direito emergencial de exceção, colocarão as garantias fundamentais dos cidadãos
em um patamar inferior ao colimado pela Carta Magna brasileira.
É certo ser a sociedade regulamentada para sua própria proteção. Os interesses sociais
nem sempre se coadunam com os dos indivíduos per si. Portanto, nem sempre a manutenção
das garantias individuais é interessante para a defesa da sociedade. A fim de que
arbitrariedades não aconteçam, porque, para o próprio bem da sociedade, devem seus
indivíduos ser protegidos, é que o operador do direito se vale do princípio da
proporcionalidade. Este princípio sempre deve ser acatado com parcimônia, moderação e
respeito à dignidade da pessoa humana. Ao adotar uma postura que vele pelo social, o
governo agirá de forma mais firme na prevenção à criminalidade. Saúde, emprego e,
principalmente, educação são as principais armas para essa luta. A repressão sem a prevenção
gera resultados fugazes e a prevenção sem a repressão, impunidade.
Ao compasso da globalização das informações e práticas econômicas e comerciais,
esses procedimentos envidados contra a lavagem de dinheiro e remessa ilegal de dividas
ganham contornos externos de grande expressão, o que obriga os diferentes Estados a se
aproximarem política e administrativamente, buscando, assim, a obtenção de melhores
resultados em suas práticas de controle contra a criminalidade. Essa criminalidade
materializada na lavagem de dinheiro, sob a alcunha de moderna maquiavelística, causa
erosão do sistema democrático e o comprometimento do destino econômico da sociedade.
A lavagem de dinheiro é causa determinante de obstáculo ao desenvolvimento, mas
também sugere que se deva, na senda jurídica, estabelecer novas perspectivas para a sua

51
compreensão, vista como inimiga da democracia e não o seu defluente, capaz de ser
combatida pelo concurso direto de setores do próprio Estado e da sociedade civil organizada.
Por fim, pode-se concluir que a temática “Lavagem de Dinheiro: A Moderna
Maquiavelística” é muito abrangente, de forma a englobar uma série de conteúdos morais,
éticos, sociológicos, antropológicos, etc., os quais fazem da mesma uma matéria do direito,
além de importante, por deveras motivante. Motivação expressa de modo mais agradável por
Erich Fromm, em “A Arte de Amar”87:
“Quem pouco conhece, pouco ama. Quem pouco pode fazer, pouco
compreende. Quem pouco compreende, pouco vale. Mas quem
compreende também ama, observa, vê... Quanto mais conhecimento
houver inerente numa coisa, tanto maior amor... Aquele que imagina
que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo como as cerejas,
pouco sabe a respeito das uvas.”

87
. FROMM, Erich. A arte de amar. Belo horizonte: Ed. Itatiaia, 1995.

52
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