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A GRANDE DEPRESSÃO: DA EUFORIA AO DESESPERO

«(…) Um retrato realista da América do final dos anos 30. Uma obra feita de situações
extremas que se transformou num inquietante clássico do século XX.

Percorrendo as estradas poeirentas, entre Oklahoma e a Califórnia, uma família de


agricultores procura, com tenacidade, uma vida melhor. Pelo caminho, longo e
sinuoso, os Joad - símbolos da coragem americana, num período marcado por uma
grave crise económica que conduziu milhões de pessoas à fome e ao desespero (a
Grande Depressão) – encontram outros migrantes apostados em mudar de rumo,
dispostos a trocar as suas modestas terras de cultivo, afectadas pela seca ou por
chuvas intensas, por uma promessa de futuro, por mais incerta que seja. É neste
cenário de extremos que decorre a acção de "As Vinhas da Ira", de John Steinbeck, um
dos romances-ícone do século XX (…)»

(Por Lucinda Canelas, Colecção Mil Folhas, Jornal Público)

«Os pequenos fazendeiros observam como as dívidas sobem


insensivelmente, como o crescer da maré. Cuidaram das árvores sem
vender a colheita, podaram e enxertaram e não puderam colher as frutas.
Este pequeno pomar, para o ano que vem, pertencerá a uma grande
companhia, pois o proprietário será sufocado por dívidas.
Este parreiral passará a ser propriedade do banco. Apenas os grandes
proprietários podem subsistir, visto que também possuem fábricas de
conservas. Quatro peras descascadas e partidas pelo meio, cozidas e
postas em latas custam sempre quinze cêntimos. E
as peras enlatadas não se estragam. Conservam-se anos.
A podridão alastra por todo o Estado e o cheiro doce torna-se uma grande
preocupação nos campos. Os homens que sabem enxertar as árvores e
tornar fecundas e fortes as sementes não encontram meios de deixarem a
gente esfaimada comer os seus produtos. Homens que criaram novas
frutas para o mundo, não sabem criar um sistema pelo qual as tais frutas
possam ser comidas. E o malogro paira sobre o Estado como um grande
desgosto.
As operações praticadas nas raízes das vinhas e das árvores devem ser
destruídas, para que sejam mantidos os preços elevados. É isto o mais
triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas para o
chão. Homens armados de mangueiras derramam querosene por cima das
laranjas e enfurecem-se contra o crime, contra o crime daquela gente que
veio à procura das frutas. Um milhão de criaturas com
fome, de criaturas que precisam de frutas... e o querosene derramado
sobre as faldas das montanhas douradas.
O cheiro da podridão enche o país.
Queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para
aquecer; o milho dá um lume excelente. Atiram batatas aos rios,
colocando guardas ao longo das margens, para evitar que o povo faminto
intente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e deixam a putrescência
penetrar na terra.
Há nisto tudo um crime, um crime que ultrapassa o entendimento
humano. Há nisto uma tristeza, uma tristeza que o pranto não consegue
simbolizar. Crianças atingidas de pelagra têm de morrer porque a laranja
não pode deixar de proporcionar lucros. Os médicos legistas devem
declarar nas certidões de óbito: "Morte por inanição", porque a comida
deve apodrecer, deve, por força, apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas
impedem-nos. Os homens vêm nos carros ruidosos apanhar as laranjas
caídas no chão, mas as laranjas estão untadas de querosene. E ficam
imóveis, vendo as batatas passarem flutuando; ouvem os gritos dos
porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as
montanhas de laranja, rolando num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos
homens reflecte-se o malogro. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na
alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente,
pesadamente amadurecendo para a vindima. As pessoas que até aí
tinham vivido no seu pedaço de terra, que até então tinham vivido e
morrido nos seus quarenta acres, que haviam comido deles ou neles
passado fome, todas essas famílias tinham agora o Oeste inteiro, para
nele vaguearem à vontade. E corriam pelo país fora, à procura de
trabalho. As estradas estavam metamorfoseadas em caudais de homens e
nas valas, à beira das estradas, formigavam multidões de homens. Atrás
deles vinham outros a caminho. Era um povo que ainda não sentira as
contradições da indústria; um povo de sentidos ainda bastante
penetrantes para perceber o ridículo da vida industrial.
Reinou o pânico no Oeste, quando se multiplicaram os homens nas
estradas. Os homens receavam pelas suas propriedades. Homens que
nunca tinham tido fome viam os olhos dos esfaimados. Homens que nunca
na sua vida tinham sentido verdadeira necessidade de qualquer coisa viam
a chama da necessidade arder nos olhos dos homens das estradas. Na
Califórnia, as estradas estão cheias de gente alucinada, que corre como
formigas, à procura de algo para puxar, para arrancar, para erguer, para
trabalhar, enfim. Para cada carga a levantar, cinco braços se estendiam;
para receber cada mão-cheia de comida, cinco bocas famintas se
escancaravam.
E os grandes proprietários, que têm de perder as suas terras na primeira
rebelião, os grandes proprietários que estudam a História, que têm olhos
para ler a História, deviam conhecer este grande facto: a propriedade,
quando acumulada em muito poucas mãos, está destinada a ser
espoliada. E também este outro facto paralelo: quando uma maioria passa
frio e fome, tomará à força aquilo que necessita. E também o facto
gritante, que ecoa por toda a História: a repressão só conduz ao
fortalecimento e união de todos os oprimidos. Os poderosos proprietários
ignoram os três gritos da História.»

John Steinbeck, As Vinhas da Ira, Edição Livros do Brasil, Lisboa, tradução de Virgínia Motta

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