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17 AGOSTO 2006

"Anjos do Sol"

"Os nossos" apenas chegam no cinema de Hollywood. É só um truque de marqueteiro?

ESTRÉIA AMANHÃ "Anjos do Sol", de Rudi Lagemann.

O filme conta a história de Maria, uma menina do sol que se torna menina da noite. A cada ano,
centenas de meninas, mal chegadas à adolescência, são vendidas pelos pais, leiloadas a notáveis
famintos de carne virgem (carne do sol, não é?) e entregues a cafetões que as escravizam pelas zonas
rurais e pelos garimpos do país.

A existência desse pequeno exército foi denunciada pelo dossiê "Crianças da Amazônia" e, logo, em
1991-92, pelas reportagens de Gilberto Dimenstein nesta Folha, que confluíram no livro "Meninas da
Noite". Agora, as meninas da noite têm uma cara em nosso imaginário coletivo: a cara de Maria.

"Anjos do Sol" é terno e brutal, narrado com simplicidade e sem simplismo. Os atores são notáveis:
além de Fernanda Carvalho (Maria), é preciso mencionar Antônio Calloni (Saraiva, o cafetão do
garimpo), Bianca Comparato (Inês) e Mary Sheila (Celeste). A história prende, comove e indigna. Na
saída do cinema, fiquei questionando um pensamento que me acompanhou ao longo do filme.
Enquanto assistia a "Anjos do Sol", "sabia" que ninguém ajudaria Maria e suas companheiras. Um
trunfo final da justiça me pareceria "falso". No entanto, eu não parava de esperar que, naquele
garimpo perdido, aparecesse um Bruce Willis que esvaziasse sua Colt 45 automática na cara do
Saraiva e do torvo guardinha sentado na entrada do bordel com um calibre 12 na mão.

Esperava pela chegada de John Wayne e do sétimo regimento de cavalaria, dos médicos de "ER", de
Arnold Schwarzenegger ou da turma de "Law and Order". O Inspetor Clouseau teria sido suficiente.
CADÊ OS NOSSOS? Fora a irritação contida de um agente de saúde reduzido ao silêncio pelas
ameaças veladas de Saraiva, não chegou ninguém. Você, leitor, dirá que olho para o mundo pelos
moldes colonizadores das narrativas hollywoodianas típicas.

Concordo. E admito que as narrativas hollywoodianas parecem ser construídas para gratificar nosso
narcisismo: mesmo nas piores, podemos nos identificar com o herói salvador que nunca falta no
elenco. Mas essa retórica hollywoodiana talvez não seja apenas estratégia de marketing. Explico. Em
"Anjos do Sol", há uma longa fila de adultos que têm o destino de Maria nas mãos: família,
intermediário, transportadores, cafetina e cafetão, capataz, deputado, fazendeiro com seu filho
adolescente, garimpeiros, agente de polícia vendido. Como disse, parecia-me verossímil que nessa fila
não houvesse ninguém para dizer: "Basta".
Não penso que, em outras latitudes, Maria teria tido mais chances de esbarrar em alguém que, além de
se indignar, decidisse arriscar, agir, se meter. Ao contrário, quem leu "Meninas da Noite" lembra que,
no fim, Dimenstein conseguiu levar a Polícia Federal até o bordel. Alguém, um jornalista, não se
contentou em registrar os fatos e se indignar: tomou posição, disse "não" e desfez uma corrente de
perversidades. Por que, então, ao assistir a "Anjos do Sol", parecia-me verossímil que ninguém
resistisse? A sensação de verossimilhança (como já notou Aristóteles) não depende dos fatos e de sua
probabilidade.
Ela é, por assim dizer, o efeito de uma expectativa cultural. Para nós, no caso, é mais verossímil uma
narrativa sem Dimenstein chegando de helicóptero. Alguém dirá: "Melhor assim, não estamos aqui
para gratificar nossos sonhos de glória, mas para enxergar a feiúra do mundo". Legal, mas pergunto: a
chegada dos "nossos" no cinema hollywoodiano é só um achado de marketing para alegrar o público?
Ou será que corresponde à expectativa cultural de que o homem comum se sinta compelido a erguer a
cabeça e encarar o que lhe parece errado?
O final hollywoodiano pode parecer inverossímil, feito para nos seduzir com o devaneio de nosso
próprio heroísmo. Mas seu contrário talvez alimente uma cinismo das belas almas, em que a
indignação importa mais do que a ação. Um olhar pretensamente mais "maduro" e menos "alienado"
por finais felizes pode ser a armadilha de uma disposição cultural em que a indignação serve
sobretudo para inocentar: indignei-me, logo, fiz minha parte.

E os atos, cara pálida? Cá entre nós: Inês teria gostado caso, na ausência de Bruce Willis, ao menos o
helicóptero de Dimenstein chegasse a tempo.

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