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MARIA CRISTINA FRIAS

COLUNISTA DA FOLHA

VINICIUS MOTA

SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Atualizado às 06h58.

"Não estou mais disposto a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua
história", disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),
ontem, em entrevista no instituto que leva seu nome, no centro de SP.

Presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique defende que o partido


anuncie dois anos antes das eleições presidenciais seu candidato. "O PSDB
não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou D."

O ex-presidente diz que Lula "desrespeitou a lei abundantemente" na


campanha e que promove "um complexo sindical-burocrático-industrial, que
escolhe vencedores, o que leva ao protecionismo".

Para FHC, a tradição brasileira de "corporativismo estatizante está voltando".


Lula é uma "metamorfose ambulante que faz a mediação de tudo com tudo".

Folha - José Serra aproveitou a oportunidade do segundo turno como


deveria?
Fernando Henrique Cardoso - Cada um tem um estilo e Serra foi fiel ao estilo
dele. Tomou as decisões dele na campanha, com o [marqueteiro Luiz]
Gonzalez. Não fez diferente do que se esperaria de Serra como um candidato
persistente, que define uma linha e, aconteça o que acontecer, vai em frente.

O PSDB, e não o Serra, tem outros problemas mais complicados. Não é falta
de bons candidatos. O problema é ter uma noção do coletivo, uma linguagem
que expresse o coletivo, que não pode ser fechado no partido. Numa
sociedade de 130 milhões de eleitores, a mensagem conta muito --no conteúdo
e no modo que se transmite.
Como o Lula ficou muito fixado numa comparação para trás, os candidatos
esqueceram a campanha e não definiram o futuro. Esse é o desafio --para o
PSDB também.

O nosso futuro vai ser, outra vez, fornecer produtos primários? Ou vamos
desenvolver inovação, modificar a educação, continuar a industrialização. Isso
não foi posto [na campanha]. Qual será nossa matriz energética. Preocupa-me
muito a discussão do petróleo.

Nesse campo, o seu governo quebrou o monopólio da Petrobras e


implantou o modelo de concessão. A fórmula proposta por Lula, de
partilha, para o pré-sal, que traz novos privilégios à Petrobras, é melhor?
Não posso responder, porque não vi a discussão. Preocupa-me esse modelo
porque força uma supercapitalização [da Petrobras] sem que se saiba bem
qual será o modelo de venda desse petróleo. Essa forma de partilha proposta é
uma estatização do risco. O risco quem corre é o Estado, ao contrário do
modelo de concessão.

O que estamos fazendo é uma dívida. Isso obriga a sobrecapitalizar a


Petrobras. Parece que não temos mais problemas de poupança no Brasil.
Entramos numa ilusão tremenda nessa matéria. O Tesouro faz a dívida com o
mercado e empresta para o BNDES ou para a Petrobras. É como se não
precisássemos mais poupar. Mas a dívida está aí. Essa questão o PSDB não
politizou.

O governo Lula mobiliza fundos públicos e paraestatais e patrocina a


formação de grandes empresas no país, uma espécie de complexo
"industrial-burocrático", parodiando o "industrial-militar" do Eisenhower
[em 1961, ao deixar o governo, o então presidente dos EUA Dwight
Eisenhower alertou para os riscos de uma influência excessiva do
complexo industrial-militar para o processo democrático]. Há mais
ruptura ou continuidade em relação ao processo que se iniciou no seu
governo, quando o BNDES e os fundos de pensão das estatais
viabilizaram as privatizações?
Tudo é uma questão de medida. Os fundos [de pensão] entraram na
privatização porque já tinham ações nas teles e participar do grupo de controle
lhes dava vantagem. Fizeram um bom negócios Mas tive sempre o cuidado da
diversificação. No mundo integrado de hoje, convém que a economia tenha um
setor público eficiente e que tenha um setor privado, nacional e estrangeiro.
Tentamos equilibrar isso.

O problema agora é de tendência, de gigantismo de uns poucos grupos, nesse


complexo, que na verdade é sindical-burocrático-industrial, com forte
orientação de escolher os vencedores. Isso é arriscado do ponto de vista
político e leva ao protecionismo.

A máxima "política tem fila" foi usada para defender a precedência de


Serra sobre Aécio na eleição de 2010. A fila andou ontem? Chegou a vez
de Aécio Neves no PSDB?

Eu não posso dizer que passou a primeiro lugar, mas que o Aécio se saiu bem
nessa campanha, se saiu. Não posso dizer que passou a primeiro lugar porque
o Serra mostrou persistência e teve um desempenho razoável.

Não diria que existe um candidato que diga: "Eu naturalmente serei". Mas o
PSDB também não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou
D. Dentro de dois anos temos de decidir quem é e esse é tem de ser de todo
mundo, tem de ser coletivo.

Não estou disposto mais a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua
história. Tem limites para isso, porque não dá certo. Tem de defender o que
nós fizemos. A privatização das teles foi bom para o povo, para o Tesouro e
para o país. A privatização da Vale foi um gol importante, porque, além do
mais, a Vale é uma empresa nacional. A privatização da Embraer foi ótima.

Então por que não dizer isso? Por que não defender? Privatizar não é entregar
o país ao adversário, pegar o dinheiro do povo e jogar fora. Não. É valorizar o
dinheiro do país. Tudo isso criou mais emprego, deu mais renda para o Estado.
Do ponto de vista econômico, as questões estão bem encaminhados. Os
motores da economia são fortes. Os problemas maiores são em outras áreas:
educação, segurança, democracia, igualdade perante a lei, droga. Não é para
saber se a economia vai crescer, é se a sociedade vai ser melhor.

Sobre a democracia no Brasil, o sr. escreveu, recentemente, que é uma


maquinaria institucional em andamento, mas que lhe falta o "espírito": "a
convicção na igualdade perante a lei, a busca do interesse público e de
um caminho para maior igualdade social". Sinais desse espírito no
processo eleitoral que se encerrou?

Francamente não vejo. O presidente Lula desrespeitou a lei abundantemente.


Do ponto de vista da cultura política, nós regredimos. Não digo do lado da
mecânica institucional --a eleição foi limpa, livre. Mas na cultura política, demos
um passo para trás, no caso do comportamento [de Lula] e da aceitação da
transgressão, como se fosse banal.

Houve abuso do poder político, que tem sempre um componente de poder


econômico. Quantos prefeitos foram cassados aqui em São Paulo, por exemplo
em Mauá, por abuso do poder econômico? Por nada, comparado com esse
abuso a que assistimos agora. Não posso dizer que houve progresso da cultura
democrática brasileira.

Aqui está havendo outra confusão. Pensar que a democracia é simplesmente


fazer com que as condições de vida melhorem. Ela é também, mas não se
esqueça que as ditaduras fazem isso mais depressa.

Como o sr. vê a volta de temas como religião na campanha?

Com preocupação. O Estado é laico, e trazer a questão religiosa para primeiro


plano de uma discussão política não ajuda. Todas as religiões têm o direito de
pensar o que queiram e de pregar até o comportamento eleitoral de seus fieis.
Mas trazer a questão como se fosse um debate importante, não acho que
ajude.
A dose dos chamados marqueteiros nas campanhas tucanas está
exagerada?
Sim, em todas as campanhas. Nós entramos num marquetismo perigoso, que
despolitiza. Hoje a campanha faz pesquisas e vê o que a população quer
naquele momento. A população sempre quer educação, saúde e segurança, e
então você organiza tudo em termos de educação, saúde e segurança.

Sem perceber que a verdadeira questão é como você transforma em


problema uma coisa que a população não percebeu ainda como
problema. Liderar é isso. Aí você abre um caminho. A pesquisa é útil não
para você repetir o que ela disse, mas para você tentar influenciar no
comportamento, a partir de seus valores.

Suponha uma pesquisa sobre privatização em que a maioria é contra. A


posição do líder político é tentar convencer a população [do contrário]. O que
nós temos na campanha é a reafirmação dos clichês colhidos nas pesquisas.
Onde é que está a liderança política, que é justamente você propor valor novo.
O líder muda, não segue.

Como mostrar as diferenças entre PT e PSDB? As ideias tucanas não são


difíceis de assimilar?

Você se lembra de quando fui presidente? A ambição de todo mundo era cortar
a burocracia. Por quê? Porque foi politizado.

É preciso politizar, e não é na hora da campanha.O PSDB, quando digo que


tem que ter por referência o coletivo e ter um projeto, é agora. Não é para
daqui a quatro anos. Daqui a quatro anos é tarde. Ou durante quatro anos você
martela os seus valores e transforma os seus valores em algo que é
compartilhado por mais gente, ou chega lá e não consegue. É tarde.

Mas o PSDB deixou o Lula falando sozinho um bom tempo.

Não foi só o PSDB. Foi todo mundo. Quando o nosso sistema presidencialista
é exercido a partir de uma pessoa carismática como o Lula e que tem por trás
um partido organizado, ele quase se torna um pensamento único.
Aqui, fora da campanha, só o governo fala. Quando fala sem parar, o caso
atual, e sob forma de propaganda, fica difícil de controlar. No meu tempo,
também era o governo que falava. Como não tenho o mesmo estilo e não
usava uma visão eleitoreira o tempo todo, não aparecia tanto. Mas isso é da
cultura brasileira.

Jornal dá o "outro lado", mas a TV não dá --só dá na campanha. O que a mídia


em geral transmitiu ao longo desses oito anos? Lula, violência e futebol.

A oposição, liderada pelo PSDB, ficou mais forte nos Estados e mais
fraca no Congresso. Como fará para resistir à força gravitacional do
Planalto?

Não é fácil, porque os Estados têm interesses administrativos. Mas um pouco


mais de consistência oposicionista pode. No regime militar, Montoro e
Tancredo eram governadores e se opunham. É preciso recuperar um pouco
essa dimensão política.

Mas o carro chefe para puxar [a oposição] não pode ser o governador. Tem de
ser o partido. E não é o PSDB só. Esses 44 milhões [votação de Serra no
domingo] não são do PSDB. É uma parte da sociedade brasileira que pensa de
outra maneira. E não se pode aceitar a ideia de que são os mais pobres contra
os mais ricos. Nunca vi uma elite tão grande: 44 milhões de pessoas.

A polarização nacional entre PT e PSDB completou 16 anos. Tem feito


mais bem ou mais mal ao Brasil?

O que o Chile fez na forma da Concertação [a aliança entre o Partido Socialista


e a Democracia Cristã que governou o Chile de 1990 a 2010], fizemos aqui sob
a forma de oposição. Há muito mais uma linha de continuidade que de quebra.
Queira ou não queira, o pessoal do PT aderiu, grosso modo, ao caminho aberto
por nós. Isso é que deu crescimento ao Brasil. A briga, na verdade, é pelo
poder, não é tanto pelo conteúdo que se faz. No tempo que cheguei lá, eu
escrevi o que ia fazer e fiz. Nunca mudei o rumo. O Lula mudou o rumo. Agora
acho que tem aí o começo de um rumo que não é o mesmo meu, que é esse
mais burocrático-sindical-industrial. E tem uma diferença na concepção da
democracia, e o PSDB tem de acentuar essa diferença.

Mas o que seria essa social-democracia?

Social-democracia, vamos devagar com o ardor. O sujeito da social-


democracia europeia eram a classe trabalhadora e os sindicatos. Aqui são os
pobres. O Lula deixou de falar em trabalhador para falar em pobre. Mudou. Nós
descobrimos uma tecnologia de lidar com a pobreza, mas estamos por
enquanto mitigando a pobreza.

Tem de transformar o pré-sal em neurônio. Esse é o saldo para uma sociedade


desenvolvida. Social-democracia hoje é isso. É inclusão social, respeitando o
mercado, sabendo que o Estado terá um papel importante, mas não é tudo, e
que o mercado tem de ser regulado de olho numa inclusão que não seja só de
mitigação. Não pode ter predomínio do olhar do Estado. Está se perfilando, no
PT e adjacências, uma predominância do olhar do Estado, como se o Estado
fosse a solução das coisas. Continuo achando que o Estado é indispensável,
mas a sociedade deve ter uma participação mais ativa. Os movimentos sociais
estão todos cooptados.

Então a diferença entre PT e PSDB, para o sr., se dá em relação ao papel


do Estado.

Mas não no sentido de não ter papel para o Estado. No sentido de que esse
papel tenha de ser de um Estado que se abra para a sociedade. Não de um
Estado burocrático, que se imponha à sociedade.

A nossa tradição é de corporativismo estatizante, e isso está voltando. É uma


mistura fina, uma mistura de Getúlio, Geisel e Lula. O Lula é mais complicado
que isso, porque é isso e o contrário disso. Como é a metamorfose ambulante,
faz a mediação de tudo com tudo.

Lula sempre faz a mediação para que o setor privado não seja sufocado
completamente. Não sei como Dilma vai proceder.
O sr. sente que isso tende a se aprofundar nesse novo governo?

Sim, a segunda parte do segundo mandato de Lula foi assim. A crise global
deu a desculpa para o Estado gastar mais. E o pobre do Keynes pagou o
preço. Tudo é Keynes [O economista britânico John Maynard Keynes (1883-
1946) defendeu, em sua obra "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda",
a intervenção do Estado na economia para controlar as crises econômicas].
Investimento não cresceu, gasto público se expandiu, foi Keynes.

Não acho que o Brasil vá no sentido da Venezuela porque a sociedade nossa é


mais forte. Aqui há empresas, imprensa, universidades, igrejas, uma sociedade
civil maior, mais forte. Isso leva o governo a também ter cautela. Veja o
discurso da Dilma de ontem [domingo]. Ela beijou a cruz.

Como todo mundo percebia uma tendência nesse sentido, ela disse: "Olha
aqui, vou respeitar a democracia, vou dar a mão a todos". Ela tem que dizer
isso, porque senão ela não governa.

O que esperar de Dilma Rousseff, que estreia num cargo eletivo logo na
Presidência, no dia 1º de janeiro?

Nós não sabemos não só o que ela pensa, mas como é que ela faz. O Brasil
deu um cheque em branco para a Dilma. Vamos ver o que vai acontecer com a
conjuntura econômica, mundial e aqui. Há um problema complicado na balança
de pagamentos, um deficit crescente, uma taxa de juros elevada e uma taxa de
câmbio cruel.

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