Você está na página 1de 14

4 - ANALISE O CONTRIBUTO DAS TEORIAS FEMINISTAS, EM PARTICULAR DAS TEORIAS DA

DESIGUALDADE DO GÉNERO E DA OPRESSÃO ESTRUTURAL, PARA A RENOVAÇÃO DA TEORIA SOCIAL.

Os primeiros estudos feministas que surgiram na modernidade estão em estreita


interrelação com a militância feminista. Numa revisitação crítica da sua obra, Thinking
about Woman , Margaret Anderson (2005) refere vários percursos de autores que se
dedicaram a estes estudos e que permitem entender a emergência das teorias no seio dos
movimentos das mulheres. Estes percursos podem, de algum modo, ajudar a explicar
alguns dos contornos dessas teorias. Enquanto alguns autores, nos quais Anderson se
inclui, estavam envolvidos na luta pelos direitos reprodutivos, outros faziam parte dos
movimentos de defesa dos direitos civis e outros, ainda, estavam envolvidos com a nova
esquerda, discutindo-se, no interior desses grupo, problemáticas como a raça e a classe
(Anderson, 2005: 440).

No meio académico, são diversos os temas que animam os estudos sobre as mulheres.
Se é certo que a reivindicação de uma legitimidade académica é uma preocupação
inacabada dos autores que se dedicam a esses estudos, um dos principais
empreendimentos analíticos dos estudos das mulheres esteve associado ao
estabelecimento da distinção entre as categorias sexo e género. A este nível o contributo
da sociologia é inegável. De acordo com Walby, a teorização das relações de género, no
interior do espaço disciplinar da sociologia, vem trazer um impulso fundamental para os
estudos feministas. Diz a autora: “ the analytic separation of sex and gender represents a
key intervention, changing language…” (Walby, 2005: 368).

Com efeito, a distinção entre sexo biológico e género, enquanto categoria socialmente
construída, abre novas possibilidades para o reconhecimento e análise das diferentes
relações de género e da variabilidade destas relações (Walby, 2005: 368). Como
consequência, as explicações de tipo biológico sobre a diferença de sexos eram
amplamente questionadas. No meio académico insiste-se na dimensão social dos papéis
sexuais e o vocábulo género é apropriado como forma de acentuar a relação social que
ele encerra. A questão da linguagem não é de somenos importância, uma vez que esta se
constitui como elemento ideológico por excelência. Sob impulso dos trabalhos
académicos, vocábulo género transpõe os limites da academia e generaliza-se na
política e em outros espaços discursivos (Walby, 2005:368). Note-se que esta mudança

1
vai para além uma substituição semântica. O reconhecimento do carácter
eminentemente social das relações de género coloca em causa alguns argumentos
determinísticos associados a pressupostos de tipo naturalista. Reduz-se o espaço para
universalismos fáceis, como por exemplo a existência de “instituições” mais naturais do
que outras, designadamente da instituição familiar, e transformam-se também os modos
de pensar, sentir e valorizar outros fenómenos, tais como a cultura das mulheres. No
entanto, como refere Isabel Dias: “ A prevalência do argumento biológico permanece
considerável: Continuamos a explicar e a naturalizar a posição inferior das mulheres na
sociedade pela retórica das diferenças biológicas inultrapassáveis e universais” (Dias,
2009:169).

Anderson, apoiando-se em Gilkes, sintetiza, do seguinte modo, os temas mais


recorrentes dos estudos iniciais sobre as mulheres:

The early themes guiding feminist scholarship can be summed up as


conceptualizing gender in social, not biological, terms; documenting
and analyzing the status of women in different social institutions;
situating women’s lives in the context of other forms of inequality;
and asking how women resist, such as through social movements or
everyday acts of rebellion (Townsend Gilkes 1980).

(Anderson, 2005: 441)


Assumindo, com Maria Isabel Dias, que as teorias feministas contemporâneas têm como
objectivo a descrição e explicação das experiências humanas de acordo com a
focalização do olhar nas mulheres, utilizamos aqui a tipologia, proposta pela a autora,
que reposiciona as perspectivas feministas de acordo com as respostas que estas tentam
avançar à interrogação: “qual a situação das mulheres nas nossas sociedades?” (Dias,
2009).

Ao contrário das teorias que sublinham a diferença entre género, as teorias da


desigualdade defendem que o género é socialmente construído, está associado à
desigualdade e, nessa medida, a posição social dos homens é privilegiada em relação às
mulheres. É possível observar algumas ideias comuns às perspectivas teóricas e que
apoiam esta generalização.

2
Para além de se transferir a diferença para desigualdade enquanto conceito central na
abordagem das relações de género, as teorias da desigualdade recusam os pressupostos
naturalistas, rompendo com o biologismo ou o psicologismo na explicação das relações
entre sexos. A questão é agora a de saber quais os contextos e organizações, mais
igualitários, susceptíveis de favorecer a capacidade de resposta de cada um dos sexos, e
já não a simples constatação de que, ao existirem as diferenças, algumas situações de
desigualdade apresentam-se quase como inelutáveis. Ao mesmo tempo que o
pressuposto de mudança permite combater o fixismo da estrutura, é deixado um espaço
de possibilidades ao agenciamento do sujeito, o que parece ser uma das características
distintivas destas correntes.

O feminismo liberal manifesta-se a partir de valores como a igualdade, liberdade e


racionalidade humanas, valores celebrados pelas revoluções democráticas, e que são
recuperados para reivindicar a igualdade de oportunidades. Oportunidades que se
reclamam para o mundo do trabalho, mas também na esfera privada. Esta articulação
entre público e privado assume um interesse acrescido no feminismo liberal. Com
efeito, a mulher envolve-se no espaço público sem se ausentar do espaço privado. Mas
esta dicotomia público/privado é questionável no caso das mulheres, de um modo muito
particular, nas sociedades capitalistas contemporâneas. Como mostra Maria Isabel Dias:
“ A capacidade da mulher competir profissionalmente encontra-se obstruída pelas
necessidades da esfera privada. As exigências essencialmente patriarcais de
compromisso total que é exigido na esfera pública intensificam a tensão vivida em
ambas as esferas…” (2009:190).

Não obstante, e de acordo com o feminismo liberal, qualquer negação à mulher dos
direitos fundamentais dos indivíduos, ou impedimento da participação social e o não
respeito dos valores básicos do liberalismo – liberdade, igualdade e justiça – são
associados à violação da lei natural, às práticas sociais sexistas e discriminatórias ou a
ideologias que subjazem à dominação patriarcal. Este formalismo das feministas liberais
parece, no entanto, subestimar um conjunto de estruturas e relações sociais com lógicas
masculinas e as próprias singularidades históricas, que vão para além da acção moral e
racional, dos ditames das leis, ou do Estado que deve fazer respeitar essas leis.

3
Mas, antes de tudo, é necessário reconhecer que o feminismo liberal encontra um maior
significado na convicção de que a situação da mulher era injusta e, por essa razão, urgia
modificá-la. De acordo com isto, o feminismo mobiliza-se e luta pelos valores
igualitários susceptíveis de contradizer ou negar os valores do patriarcado.

Os rumos de mudança definidos pelo feminismo liberal orientam-se para necessidade de


superar a exclusão feminina a partir dos princípios universais de igualdade e da
eliminação do género como princípio de organização dos bens sociais; procuram na
transformação das leis, da razão e da moral as possibilidades de igualdade; as
reivindicações de igualdade recobrem várias dimensões da vida social e do indivíduo
que vão desde a economia, à educação, responsabilidades na vida familiar, até ao
combate de mensagens sexistas veiculadas pelos meios de comunicação e no quotidiano
(Dias, 2009: 192).

Enquanto movimento social, podemos equacionar os contributos destas perspectivas na


teoria social, antes de mais, pela riqueza manifesta das suas críticas às realidades sociais
contemporâneas e pelo potencial de transformação que apresenta no plano das relações
sociais entre homens e mulheres, ou pessoas do mesmo sexo. Para essas transformações
concorrem também as mudanças sociais e políticas, nas quais estes movimentos tiveram
um papel bastante activo, sobretudo, no que respeita à introdução de leis que combatem
a discriminação sexual no trabalho e na educação. Ao se dar prioridade aos princípios
da igualdade e à questão da cidadania, produziram-se reflexões igualmente importantes
no mundo académico que terão contribuído para consolidar o princípio teórico da
pluralidade das representações sociais.

No entanto, não é possível fazer desaparecer as relações de opressão das relações de


género apenas transformando as leis existentes, ou introduzindo outras novas. A
opressão é sistematicamente reproduzida nas e pelas relações sociais e estruturas
económicas, políticas e culturais. Este é o argumento central das teorias de opressão
estrutural que defendem que a dominação de determinados indivíduos ou grupos resulta
de mecanismos da estrutura social e se efectiva a partir da interacção social. Nas
questões de género, estas teorias “Centram-se nas estruturas do patriarcado, do
capitalismo, do racismo e situam a realização da dominação e a experiência da opressão

4
na interacção destas estruturas e no modo como se reforçam umas às outras” (Dias,
2009: 199).

No interior deste conjunto de teorias destacam-se o feminismo socialista e o feminismo


intersectorial.

O feminismo socialista acusa importantes influências do feminismo marxista que se


inclui, com maior rigor, no conjunto de teorias da desigualdade de género. Connel
esclarece que o feminismo marxista se identifica pela estreita associação entre classe e
género. De acordo com o autor, este feminismo procura as causas da opressão das
mulheres nas relações de classe, no sistema capitalista ou nas relações de produção
(Connell,1992: 42). O argumento pode ser considerado simples: se o capitalismo é o
grande responsável pelas desigualdades de género, então a libertação da mulher só pode
ser feita pela luta de classes. No entanto, tal como questiona o mesmo autor, se o cerne
do problema se encontra no sistema capitalista, que parece beneficiar amplamente da
opressão da mulher na sociedade, então como explicar a opressão daquelas mulheres
que historicamente nunca viveram sob o regime capitalista? E a permanência dessa
opressão em mulheres que viveram mas deixaram de viver neste regime? (Connell,
1992: 42). Entende-se a pertinência crítica destas interrogações, já que a subordinação
da mulher parece ter surgido muito antes da emergência do capitalismo. E daí também
se explica a pretensão, por parte do feminismo socialista, de fazer uma síntese teórica do
feminismo radical e das teorias marxistas, com a vista à sua superação (Dias, 2009:
199).

É importante notar que o feminismo socialista não deixa de parte a perspectiva marxista
sobre as relações de género. Na verdade, para as feministas socialistas as relações de
classe capitalistas são efectivamente um dos poderosos veículos de dominação. A
grande questão reside em saber se poderemos assumir esta variável isoladamente. De
facto, o feminismo socialista não reconhece a classe como o único elemento susceptível
de condicionar a experiência das mulheres. Preferem antes considerar um conjunto de
características sociais que estruturam a opressão das mulheres e, dentro destas
características, observam que a opressão do patriarcado pode constituir-se como
categoria independente. A par da influência do capitalismo, a opressão do patriarcado
permite realizar uma teorização global sobre o conjunto de elementos estruturais que

5
constituem as forças da opressão social. E é segundo esta perspectiva que “usam o
termo patriarcado capitalista” (Dias, 2009:201).

No âmbito do feminismo socialista, a estrutura de dominação é trazida para primeiro


plano, pensada enquanto relação de poder incorporada na acção e reproduzida a partir
dela. A relação de dominação e a experiência da subordinação podem ser assim melhor
compreendidas pelas mulheres não obstante se reconhecer, no seio destas teorias, que
esta relação está presente em diferentes grupos sociais e pode ser protagonizada por
diversos sujeitos.

A exploração teórica da noção, das relações e das estruturas de dominação nas


sociedades pode ser considerada com um dos maiores contributos das feministas para a
ampliação da teoria social. Refira-se, no entanto, que a interacção teórica entre as
teorias feministas e outras análises sociais, não foi sempre pacífica ou directa
Justamente, a propósito das questões de poder, Amâncio observa, com Kathy Davis,
que a conceptualização, por parte das teorias feministas, da categoria de poder como
associada aos homens e entendida numa relação assimétrica, mas unidireccional, “de
cima para baixo, tem os seus riscos. De acordo com Davis, “ esta visão impediu a
articulação da agenticidade com as relações de dominação, no quadro da qual se torna
possível recolocar as mulheres no lugar de sujeitos” (Amâncio, 2003.699).

Maria Isabel Dias (2009), observando a centralidade do materialismo histórico nas


concepções das feministas socialistas, acrescenta que estas concepções ampliaram e
reformularam alguns dos princípios do materialismo histórico através de três percursos
teóricos centrais.

Um dos principais desenvolvimentos teóricos do feminismo socialista está, sem dúvida,


na ampliação do conceito de condições materiais. Este não pode limitar-se às condições
económicas mas dever-se-ão integrar outras materialidades que podem articular as
práticas produtivas e reprodutivas da vida da mulher e que se organizam na casa e na
fábrica, ao nível da emoção e da razão, nos espaços de trabalho ou da família. Esta
abertura à diversidade de estruturas é uma temática, como se sabe, constantemente
trabalhada e renovada na análise dos modos de vida e relações sociais.

6
A um outro nível, mas naturalmente interligado à questão anterior, também os
significados das questões ideológicas sofrem reformulações nas teorias feministas
socialistas. Estas pesquisas são sensíveis a um conjunto de factores – consciência,
motivação, ideias, definições sociais das situações, conhecimentos e ideologias – que
influenciam a personalidade e acção humana (Dias, 2009:202).

As desigualdades são igualmente perspectivadas segundo outros vectores


interpretativos. Já não faz sentido pensar nas desigualdades exclusivamente de acordo
com as diferenças de classe. Para as feministas socialistas, as desigualdades são
observadas a nível das diferentes estruturas interligadas. A desigualdade de acesso aos
recursos materiais e não materiais concorre para a reprodução dos processos de
dominação (Dias, 2009:202). Se é certo que o reconhecimento da diversidade das
desigualdades afasta o risco de fragmentação das teorias entre si, uma vez que aqui já
não está em causa a questão de saber qual é a fonte ou a causa da subordinação da
mulher, Dias (2009) observa a existência de três correntes diferentes dentro da teoria
global do feminismo socialista. Cada uma destas categorias coloca a ênfase num ou em
outro aspecto para explicar os processos de dominação.

O feminismo materialista articula as relações do género com as dinâmicas do


capitalismo global. Neste âmbito os temas mais recorrentes são a desigualdade de
salários e a tradução das desigualdades de género em benefícios para o sistema
capitalista global. Mesmo que de um modo complementar na análise social, este é um
argumento teórico recorrente, por exemplo, nas análises do sistema-mundo, quando se
identifica a actividade de subsistência como uma das fontes de rendimento para a
unidade doméstica. Os autores do sistema-mundo reconhecem muito frequentemente
que algumas das tarefas comummente desempenhadas pelas mulheres representam um
rendimento fundamental nas unidades doméstica, que ajuda a manter os níveis de
salários baixos, regulando o funcionamento do sistema capitalista (Wallerstein, 2005).

As relações de dominação constituem a segunda categoria, dentro das teorias feministas


socialistas. Neste âmbito, as questões mais enfatizadas estão associadas aos processos
de dominação patriarcal que podem ser observados, através das mais diversas
manifestações, no quotidiano social das mulheres.

7
Por seu lado, o materialismo cultural situa-se ao nível das análises das ideologias,
mensagens, políticas e das representações que se constroem socialmente, afectando de
um modo particular e parcial a subjectividade humana.

O potencial de transformação e mudança social destas teorias reside, segundo estas


perspectivas, na solidariedade global que sustenta o compromisso de luta contra os
efeitos perversos do capitalismo global na vida das mulheres. A mobilização, em
resposta aos efeitos combinados do capitalismo e aos poderes institucionais patriarcais,
só pode ser conseguida a partir da consciência das condições sociais desiguais em que
vivem as mulheres, e é para essa consciência que a teoria feminista deverá contribuir.

Finalmente, cabe referir uma outra corrente integrada nas teorias de opressão estrutural,
denominada como teoria feminista da intersectorialidade. Estas perspectivas
distinguem-se das demais teorias por considerarem que as mulheres não são todas
sujeitas à mesma forma e ao mesmo grau de opressão. Por essa razão, torna-se
necessário explicitar quais os dispositivos de desigualdade social. Para estas feministas,
esses dispositivos - baseados no sexo, mas também na idade, na classe social, na raça,
situação geográfica e preferência sexual – são considerados como “vectores de opressão
e privilégio” (Dias, 2009:204).

Nesta linha teórica, é importante ter em conta a ideologia de quem define e o poder
dessa definição. Assim, parece que a representação das diferenças –de género e outras –
são construídas e legitimadas por quem domina. A diferença pode ser apropriada para
definir posições de poder – de inferioridade ou superioridade. Para além disso, Dias
observa o fenómeno de « “alterização”enquanto acto de definição de um grupo
subordinado para estabelecer que o membro de um grupo não é aceitável de acordo com
certos critérios» (2009:204) que não só estende o fenómeno de discriminação e
segregação a um vasto campo social, como “oculta os processos de opressão”
(2009:204). A variação do processo de opressão articula-se, desta forma, com a
diversidade de posições, situações, geografias e identidades incorporada pelas mulheres
nas sociedades. Pretendendo ser uma perspectiva inclusiva pode ser também percebida
como uma teoria mais fragmentária e, correndo assim o risco de fragilizar a acção
colectiva dos movimentos feministas. De qualquer modo, não é de subestimar os
contributos desta corrente para o pensamento sociológico, sobretudo, no que se refere

8
ao conceito de “alterização”. Porque, num sentido divergente ao denunciado pelas
feministas, é importante na análise das estruturas sociais essa relação do eu o outro,
enquanto relação de instersubjectividade.

As perspectivas feministas contribuíram para a acção colectiva com vista às mudanças


sociais, mas também para a construção de novas formas de pensar as realidades sociais.
Em primeiro lugar, pelas transformações sociais que ajudaram a consolidar, depois,
pelas novas questões sociológicas que colocam e pelo olhar que, a partir dessas
questões, reflecte.

Vimos já como o debate entre sexo/género se introduziu no campo da sociologia e os


desenvolvimentos conceptuais e teóricos que se realizaram a partir de então. Lígia
Amâncio, ao remeter esta questão para a área das ciências sociais, sistematiza do
seguinte modo esses desenvolvimentos:

Ao considerar o sexo um construto a explicar, em vez de factor


explicativo, o conceito de género correspondia, no plano teórico, ao
propósito de colocar a questão das diferenças entre os sexos na agenda
da investigação social, retirando-a do domínio da biologia, e orientava
a sua análise para as condições históricas e sociais de produção das
crenças e dos saberes sobre os sexos e de legitimação das divisões
sociais baseadas no sexo. Mas a emergência do género inscrevia-se
num processo que tornava, ao mesmo tempo, visível uma relação
social marcada pela desigualdade que a investigação, a reflexão
teórica e a acção política tinham ignorado ou ocultado.

(Amâncio, 2003:687)

Entende-se, a partir das palavras da autora, como a introdução conceptual e a


apropriação do género enquanto instrumento de análise por parte das ciências sociais
significou, por um lado, a possibilidade de equacionar a questão das condições sociais
das relações entre homem e mulher, erigindo-se, por outro lado, como uma poderosa
ferramenta da acção social e política. Quer dizer, ao se transcender a sua definição
biológica, o género emergiu como uma categoria central da análise da realidade social
em contextos históricos e culturalmente situados, alterando as representações e a análise
dessa realidade. Mas é possível reconhecer outras consequências em termos analíticos.

9
A expressão de “relações de género”, generalizada nas ciências sociais associa-se a uma
vertente analítica de pendor culturalista onde as distinções sexuais não são mais
percebidas como associadas a uma natureza masculina ou feminina. É assim posto em
causa o carácter abstracto e universalista das diferenças. A categoria género teve de
procurar os significados sociais e culturais do “ser homem” ou “ser mulher”,
convocando, para tal, um conjunto diversificado de teorias sociais. A importância destas
definições conceptuais parece bem ilustrada pelas palavras de Schiebinger (2000). Diz a
autora:

People often conflate the terms Women, gender, female, feminine,


and feminist. These terms, of course, have distinct meanings. A
woman is a specific individual; gender denotes power relations
between the sexes and includes men as much as it does women;
female designates biological sex; feminine refers to idealized
mannerisms and behaviours of women in a particular time and place;
and feminist defines a political outlook or agenda. Emphasizing
Women as the crucial element in the process of change within the
sciences...

. (Schiebinger, 2000:1173)

Se recordarmos os pressupostos das diferentes correntes das teorias feministas, desde as


perspectivas associadas à diferença de género até às concepções pós-modernas, é
possível identificar um conjunto de aspectos temáticos que enriquecem, complementam
ou despertam novas interrogações por parte das ciências sociais, independentemente dos
diferentes percursos teóricos que cada uma dessas ciências adopta. Refira-se, apenas em
termos indicativos, os temas relacionados com a divisão de trabalho, a produção e a
reprodução, a desigualdade, a dominação e as relações de poder, o cruzamento de
diferentes estruturas socais, a definição da diferença a partir da intersecção entre género,
raça e classe. Não sendo possível observar aqui as diversas incursões realizadas entre a
sociologia e as teorias feministas, vale a pena sistematizar algumas das questões mais
gerais que são retomadas pelos estudos sociológicos e por estes transformados. A
problemática sociológica do trabalho é sem dúvida uma das áreas que mais beneficiou
com os debates e conquistas dos feminismos, impulsionando uma reflexão sobre a
necessidade de se articular diferentes aspectos, designadamente os condicionamentos
sociais das relações e práticas de trabalho e emprego. Walby apresenta-nos alguns
exemplos: “The debates of new forms of flexibility at work have been gendered, and
use to inform a range of empirical studies (…) Occupational segregation was

10
investigated as a tenacious feature of the gendered labour forms” (Walby,
2005:372).Com efeito, a incorporação das mulheres no mundo do trabalho vai revelar-
se um fenómeno com uma complexidade social acrescida para a análise. Não só se torna
necessário questionar a identidade da mulher no mundo do trabalho, como se levantam
novas problemáticas dentro da sociologia do trabalho, da sociologia da família e do
género, entre outras áreas de especialização da sociologia.

No entanto, as perspectivas feministas remetem, ainda, para diferentes áreas do saber.


Neste ponto, importa notar que, constituindo-se como um conjunto de saberes
interdisciplinares, estas teorias conduziram igualmente a abordagens interdisciplinares
dentro da própria sociologia (Walby, 2005). A interdisciplinaridade, em especial nas
ciências sociais, é tanto mais importante quanto ela se implica num movimento
constante de troca e diálogo entre os movimentos sociais e os meios académicos e abre
espaço, dentro das ciências, para a pluralidade de pensamentos, conceitos e formas de
apreensão das realidades e das experiências sociais.

Por outro lado, não há como negar a participação das teorias feministas num movimento
mais amplo, quer na sociologia, quer no interior dos estudos culturais e literários, a
favor da democratização da produção do conhecimento a partir de um outro olhar sobre
o mundo.

Ao trazer questões metodológicas e epistemológicas essenciais à problematização do


conhecimento sociológico, Harding, por exemplo, reivindica uma maior profundidade e
objectividade das ciências sociais a partir da experiência e da voz da mulher (Walby,
2005:372). No entanto a questão parece ser mais complexa na voz crítica de
Schiebinger (2000) que vale a pena escutar:

Bringing feminism successfully into science will require difficult


battles and a complex process of political and social change. Science
departments cannot solve the problems themselves because the
problems are deeply cultural. That does not, however, let them off the
hook. Change must occur in many areas: conceptions of knowledge
and research priorities, domestic relations, attitudes in schools,
university structures, classroom practices, the relationship between
home life and the professions, and the relationships between different
nations and cultures.
(Schiebinger, 2000, 174)

11
Na realidade, e num contexto mundial de crescentes desigualdades sociais, a questão do
género não é apenas uma questão de justiça social, nem de se observar os efeitos
combinados das desigualdades de género, raça e classe (Anderson, 2005). Como mostra
Shiebinger há todo um percurso histórico, político e social que é necessário fazer-se a
partir de uma perspectiva crítica. Os estudos feministas propuseram fazê-lo mas este é
um processo inacabado. Esta crítica deve, segundo Anderson (2005:452-53), distanciar-
se das instituições dominantes, para não ser por elas limitada.

Em certa medida, assistimos na actualidade, a uma tentativa de distanciamento, embora


feita com algum segurança, de modelos e perspectivas de conhecimento legitimadas na
academia. A destabilização de conceitos e categorias que já há muito servem o
pensamento sociológico tem vindo a ser realizada, na sequência das teorias. Referimo-
nos às designadas teorias pós-modernas.

São teorias que com um maior enfoque epistemológico do que propriamente teórico e
cujos pressupostos se baseiam na ideia de que as sociedades vivem, hoje, sob condições
da pós-modernidade.

No feminismo pós-moderno a questão colocada já não é a de saber qual é a situação das


mulheres na sociedade, mas antes de questionar a construção da categoria e conceito de
mulher. Como estratégia narrativa e posição social e de conhecimento, encontramos
aquilo que se vem designando como “epistemologia de oposição”. Trata-se de
questionar as verdades estabelecidas, colocando novas interrogações que vão ao cerne
dos processos de construção do conhecimento social; “a verdade de quem? A história de
quem? A versão da verdade de quem?” (Dias, 2009)

A rejeição de dos dualismos, a recusa da razão moderna como o única estratégia capaz
de alcançar o conhecimento objectivo, a subalternização da mulher enquanto sujeito da
narrativa, a invisibilidade, a importância de dar voz aqueles que foram historicamente
oprimidos são alguns dos tópicos que este feminismo resgata , em primeiro lugar, das
teorias pós-modernas e, depois, das teorias pós-coloniais. A ideia de que a história
integra processos de ocultação e apagamento de outras lógicas e outras racionalidades e

12
a denúncia dos processos de poder implícitos em categorias e conceitos formulados nas
teorias, faz desta crítica um importante ponto de partida para a reflexão epistemológica.
Tal como as restantes perspectivas, o feminismo pós-moderno tem chamado críticos e
adeptos.

13
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- AMÂNCIO, L. (2003). O género do discurso nas ciências sociais.


Análise Social. Vol. XXXVIII (168), pp. 697-714.

- ANDERSON, Margaret L. (2005). Thinking About Women: A quarter


century review. Gender & Society. Vol. 19, No.4 Agosto, pp
437-455.

- CONNELL, R. W. (1998). Gender & Power. Cambridge: Polity Press.

- DIAS, M. Isabel (2009). Relatório da Unidade Curricular:


Sociologia da Família e do Género. Porto:FLUP disponível em
…. , acedido em

- SCHIEBINGER, L. (2000). Has Feminism Changed Science? Signs, Vol. 25, No. 4,
Feminisms at a Millennium, pp. 1171-1175.

- WALBY, Sílvia (2005). The sociology of gender relations. in


Calhoun C.J., Rojeck, C. e Bryan, S.. The Sage Handbook of
Sociology. Londres, California e Nova Deli: Sage Publications,
pp.367-380.
-

- WALLERSTEIN, Immanuel (2005). Análisis de sistema-mundo: una introducción.


Trad. de Carlos Daniel Schroeder. Cierro del Agua: Siglo XXI Editores.

14

Você também pode gostar