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Narrativa de "Paisagem com

Dromedário" é marcada por egoísmo,


culpa e medo da palavra

Numa ilha sem nome em algum canto do mundo, uma mulher revê sua história depois
que uma fatalidade muda o rumo de sua vida. Érika, a personagem, se apossa de um
antigo gravador num período de refúgio e usa sua voz e os sons que a cerca para
mostrar-se. Seu maior esforço é ser, talvez pela primeira vez, absolutamente sincera. Em
“Paisagem com Dromedário” (Companhia das Letras), lançamento de Carola Saavedra
--presença confirmada na Flip 2010--, o leitor faz um mergulho na vida íntima de uma
mulher desolada. Tomada pela culpa e pela incerteza com o futuro, Érika é toda dúvida.

O formato escolhido pela autora para desenvolver o enredo é bastante original.


Aparentemente, trata-se da transcrição das 22 gravações, todas endereçadas a Alex, seu
(ex) namorado, com quem mantinha uma relação de dependência que ela julga ser
mútua e que ultrapassa em muito a esfera do sentimentalismo. Artistas, suas criações se
confundem. E mesmo o modo de ver o mundo passa a ser questionado pela narradora,
uma vez que tudo como era deixa de existir.

Resumidamente, essa é a história de um trio amoroso desfeito após a descoberta de uma


doença grave, e logo a morte, de Karen --a estudante de arte que se transforma na
terceira ponta do triângulo. À medida que se avança na leitura, os personagens são
apresentados de forma mais clara, sempre pela ótica de Érika.

Interessante como Carola descreve esse relacionamento. Karen, o terceiro indivíduo,


não destrói o duo estabelecido. Ao contrário, ela o fortalece. E o completa. Sua presença
não divide o casal, mas o une ainda mais, como se os dois precisassem daquela figura
entre eles para, enfim, serem eles mesmos.

Karen é descrita como uma garota frágil, enigmática, nem bela, nem perfeita. Sua
fragilidade desperta em Érika ternura e, na mesma medida, o desejo de machucá-la. “O
corpo de Karen era um corpo contraditório, ao mesmo tempo que pedia para ser tocado
com delicadeza, exigia no desejo do outro uma determinação inabalável, e até certa
brutalidade.”

Atraída por essa contradição, Érika toma uma atitude extrema (e inesperada) quando
sabe que aqueles são os últimos dias de vida de Karen. A personagem vai contra o que
se espera de um comportamento humano. Foge da dor da despedida aceitando seu
egoísmo. E simplesmente foge de qualquer contato com a garota. Sim, a narradora de
Carola é uma anti-heroína clássica, que nem se esforça em justificar sua atitude. E
cativa o leitor justamente por sua condição desumana.
Modo de narrar

Como uma transcrição literal da gravação, a narrativa é marcada por descrições de sons.
A autora exercita sua capacidade de criar imagens a partir do que se poderia ouvir. Uma
primeira tentativa de explicar o título, por exemplo, é frustrada pela falta de palavras.
Os dromedários estão na paisagem de Érika, mas não se entende bem nem como, nem
por que. Escreve a autora: “(longo trecho inaudível”).

A linguagem oral, aliás, se torna uma ferramenta de oposição à própria palavra escrita.
O medo da palavra verbalizada é um assunto recorrente no livro, até que a personagem
parece conseguir domá-la. E encaminha o leitor à dúvida sobre a gravação como origem
do texto. Ao final, a impressão que se tem é de se tratar de uma narração clássica, sem
gravador e sons. O que fica é a palavra, agora proferida com certo pudor, mas sem
medo.

Sinopse
Autoexilada numa ilha, Érika grava mensagens endereçadas a Alex, seu amado. Nas 22
gravações que compõem 'Paisagem com dromedário', ela tenta reconstituir e compreender
seu passado. Artistas plásticos, Érika e Alex se envolveram durante anos em experiências
estéticas e existenciais, que incluíam obras em parceria e um triângulo amoroso com a jovem
Karen. A perplexidade diante da morte de Karen, e do seu próprio comportamento em relação
à amiga, da qual se afastou ao saber que ela estava com câncer, parece ser uma das
motivações para o exílio voluntário de Érika e para rememoração do passado. No centro das
inquietações da narradora está a questão da identidade. Onde começava a sua personalidade
de artista e de mulher e onde terminava a influência ao mesmo tempo fecunda e opressora de
Alex? Érika se entrega a esse exercício retrospectivo, em que se misturam a memória, a
imaginação e um raciocínio crítico.

CAROLA SAAVEDRA, autora de “Paisagem com dromedário”: “Minha ‘má influência’ foi sem
dúvida Clarice Lispector. Comecei com ‘Perto do coração selvagem’, ainda adolescente. Aos
vinte e poucos anos eu tinha lido quase toda a sua obra. Lembro do espaço enorme que esses
livros ocupavam na minha estante. E tudo o que eu escrevia ficava com jeito de Clarice, por
sorte eu tinha noção de que o resultado era sofrível. Um dia, peguei todos os seus livros,
coloquei numa caixa, e fechei bem fechada. Só fui abri-la quase uma década mais tarde.”

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