Você está na página 1de 6

CONCURSO DE REDAÇÃO ASSIS CHATEAUBRIANDT

“Há muito tempo nas águas da Guanabara


O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu”

Aldir Blanc e João Bosco em “O mestre-sala dos mares”, música imortalizada na voz de Elis Regina.

CENA I - INTRODUÇÃO

Imagine e vislumbre! O espancamento covarde de um companheiro de trabalho.


Macabro castigo público. Duzentos e cinqüenta chibatadas frente a seus olhos. O cheiro
de sangue adentrando suas narinas. O horror no rosto do morto-vivo, a dor alucinante
evidente pelo corpo todo contraído.
A morte na espreita. A luz esvaindo dos olhos. Boca seca de medo. Filetes de
sangue cobrindo as pernas, as costas, os braços e o rosto. Um mar de saliva, suor,
sangue, excrementos, fluidos corporais mesclando-se no convés. Carpaccio humano ao
sal, vento e molho madeira, feito de sangue, não de vinho. Imagine você a presenciar
tudo isso. Na iminência de que, caso cometa erro ou conduta parecida, será o próximo...
Qualquer pensamento padece. O companheiro de profissão reduzido à condição
de animal humilhado, maltratado, quase mortalmente ferido. Os algozes não param nem
com o desmaio do infeliz. Continuam cumprindo as ordens da oficialidade branca. Um
exemplo para o resto da marujada, quase toda negra.
Coloque-se no lugar, viaje no tempo: ano 1910. Desprovidos da popularização
da de artigos da revolução industrial, os brasileiros humildes, de costumes rurais,
sentem-se realizados com o emprego público, no entanto a teoria na prática é diferente.
Os zunidos das chibatadas são como a trilha sonora de mosquitos vindos do inferno.
Trazendo sofrimento permanente ao espírito e promessas de calvário
onipresentes aos corpos, que ora os contemplam, ora os sofrem. Bando de pobres-
diabos, os marujos rezam, mas nada adianta. Torturas apagam a felicidade de trabalhar
na Marinha. Os açoites são prática recorrente. Convencem-se de que a ação em conjunto
é a única esperança concreta que lhes resta. Uma mobilização, uma greve, um
movimento, uma revolta se faz necessária!
A vivência de diversas cenas como essa funcionou como estopim de uma
pequena, porém fundamental e vitoriosa, revolução liderada por João Cândido, o
almirante negro. Um verdadeiro herói brasileiro, com carisma e elegância digna de um
mestre-sala dos mares e também protagonista de uma vida com teor trágico-dramático
digno de filme de terror.
A Marinha de Guerra do Brasil, uma esquadra de navios negreiros, cujos
integrantes eram tratados às turras pelo governo do marechal Hermes da Fonseca,
jamais seria a mesma. Mesmo que isso custasse maldição vitalícia ou assassinato de
todos os participantes da pequena revolução que extinguiu o uso da chibata nas
embarcações oficiais.
O protagonista da Revolta da Chibata nasceu na Província do Rio Grande do Sul
em 1880, era filho de escravos de uma fazenda e ingressou na Escola de Aprendizes-
Marinheiros do Rio Grande, da Marinha, aos 13 anos. Em novembro de 1910 liderou a
Revolta, com o objetivo de abolir os castigos corporais na Marinha de Guerra do Brasil.
No estrangeiro essa forma de repreensão já havia sido abolida: a Espanha os extinguiu
em 1823, a França em 1860, os EUA em 1862, a Alemanha em 1872 e a Inglaterra em
1881.
A Revolta da Chibata foi um suspiro do nascituro Direito Humano. Os
marinheiros lutavam em prol da utopia que buscamos até hoje e provavelmente
estaremos fadados a buscar enquanto perdurar a vida humana: tornar universal e real o
ideal comum de respeito a direitos e liberdades. Como diz a Declaração Universal
celebrada durante a 3ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em Paris,
França, em 10-12-1948: “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da familia humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo, CONSIDERANDO que o desprezo e o desrespeito pelos
direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
Humanidade, e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de
palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade. (...)”.
João Cândido e seus confrades viveram o temor e a necessidade para que a Marinha e o
Brasil evoluíssem para o rumo da justiça e da paz social em terras tupiniquins.
Os bravos revoltosos obtiveram sucesso apenas no intuito específico de abolir o
uso do chicote (ou chibata). Até a anistia prometida o governo federal não cumpriu ,
João Cândido – alcunhado como Almirante Negro pela imprensa - e os outros
envolvidos na manifestação foram presos.

Pouco tempo depois, um novo levante entre os marinheiros, ocorrido no quartel da Ilha
das Cobras, no Rio de Janeiro, foi reprimido pelas autoridades. João Cândido se
declarou contra a manifestação, mas assim mesmo foi expulso da Marinha, sob chibata
a acusação de ter favorecido os rebeldes. Seria absolvido apenas em 1912. João
Cândido morreu aos 89 anos, no Rio de Janeiro.

APOTEOSE TARDIA

A nação tem uma dívida histórica irreparável com João Cândido e seus
familiares. É um absurdo o poder público negar a reintegração póstuma do almirante
negro à Marinha. A alegação de que a proposta não indicava dotação orçamentária para
o pagamento dos salários e proventos retroativos à família é uma piada. De humor
negro, corrosivo e sem graça alguma.
O Presidente da República deveria olhar pessoalmente essa questão. Com o
feitio de utilizar em coloquiais discursos a expressão “nunca na história desse país”,
Luís Inácio Lula da Silva bem que poderia empregar com propriedade a expressão tendo
João Cândido como sujeito: nunca na história desse país existiu um personagem heróico
tão perseguido, esquecido e vilipendiado pelo Estado.
Sem correr riscos de cometer nenhuma gafe, ao contrário, tentando dirimir uma
das maiores injustiças da história da República Federativa do Brasil. A população de
bem, os negros, os marinheiros, os cidadãos merecem conhecer e reconhecer a história e
o valor incalculável do almirante João Cândido!
A Revolta da Chibata (João Cândido)

Uma das instituições na qual o comportamento escravista dos seus superiores mais se
evidenciava era a marinha de Guerra do Brasil. O uso do açoite como medida disciplinar
continuou sendo aplicado nos marinheiros, como no tempo em que existia o pelourinho.
Todos os marinheiros, na sua esmagadora maioria negros, continuavam a ser açoitados às
vistas dos companheiros, por determinação da oficialidade branca.

Os demais marujos eram obrigados a assistir à cena infamante no convéns das belonaves.
Com isto, criaram-se condições de revolta no seio da marujada. Os seus membros não
aceitavam mais passivamente esse tipo de castigo. Chefiados por Francisco Dias, João
Cândido e outros tripulantes do Minas Gerais, navio capitânia da esquadra, organizaram-
se contra a situação humilhante de que eram vítimas. Nos outros navios a marujada
também se organizava: o cabo Gregório conspirava no São Paulo, e no Deodoro havia o
cabo André Avelino.

Dia 22 de novembro de 1910. Final praticamente de mais um ano do início do governo do


marechal Hermes da Fonseca. A informação chega até o presidente: a esquadra se
sublevara. O movimento que vinha sendo articulado pelos marinheiros foi antecipado em
face da indignação dos marujos contra o espancamento de mais um companheiro. O
marinheiro negro Marcelino recebeu 250 chibatadas aos olhos de toda a tripulação,
formada no convés do Minas Gerais. Desmaiou, mas os açoites continuaram.

Os marinheiros, tendo João Cândido como líder, resolveram sublevar-se imediatamente.


Num golpe rápido, apoderaram-se dos principais navios da Marinha de Guerra brasileira e
se aproximaram do Rio de Janeiro. Em seguida mandaram mensagem ao presidente da
República e ao ministro da Marinha exigindo a extinção do uso da chibata.

O governo ficou estarrecido. Supôs tratar-se de um golpe político das forças inimigas. O
pânico apoderou-se de grande parte da população da cidade. Muitas pessoas fugiram.
Somente em um dia correram 12 composições especiais para Petrópolis, levando 3 000
pessoas. Todos os navios amotinados hastearam bandeiras vermelhas. Alguns navios fiéis
ao governo ainda tentaram duelar com os revoltosos, mas foram logo silenciados. Com isto
os marujos criaram um impasse institucional. De um lado a Marinha, que queria a punição
dos amotinados, em conseqüência da morte de alguns oficiais da armada. Do outro lado, o
governo e os políticos, que sabiam não ter forças para satisfazer essa exigência. Mesmo
porque os marinheiros estavam militarmente muito mais fortes do que a Marinha de
Guerra, pois comandavam, praticamente, a armada e tinham os canhões das belonaves
apontados para a capital da República.

Depois de muitas reuniões políticas, nas quais entrou, entre outros, Rui Barbosa, que
condenou os “abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a
indignação dos nossos compatriotas”, foi aprovado um projeto de anistia para os
amotinados. Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras vermelhas dos mastros dos
seus navios. A revolta havia durado cinco dias e terminava vitoriosa. Desaparecia, assim,
o uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.

As forças militares, não-conformadas com a solução política encontrada para a crise,


apertam o cerco contra os marinheiros. João Cândido, sentindo o perigo, ainda tenta
reunir o Comitê Geral da revolução, inutilmente. Procuram Rui Barbosa e Severino Vieira,
que defenderam a anistia em favor deles, mas sequer são recebidos por esses dois
políticos. Unem-se, agora, civis e militares para desafrontar os “brios da Marinha de
Guerra” por eles atingidos. Finalmente vem um decreto pelo qual qualquer marinheiro
podia ser sumariamente demitido. A anistia fora uma farsa para desarmá-los.

São acusados de conspiradores, espalham boatos de que haveria uma outra sublevação.
Finalmente, afirmam que a guarnição da ilha das Cobras havia se sublevado. Pretexto para
que a repressão se desencadeasse violentamente sobre os marinheiros negros. O
presidente Hermes da Fonseca necessitava de um pretexto para decretar o estado de
sítio, a fim de sufocar os movimentos democráticos que se organizavam. As oligarquias
regionais tinham interesse em um governo forte. Os poucos sublevados daquela ilha
propõem rendição incondicional, o que não é aceito. Segue-se uma verdadeira chacina. A
ilha é bombardeada até ser arrasada. Estava restaurada a honra da Marinha.
João Cândido e os seus companheiros de revolta são presos incomunicáveis, e o governo e
a Marinha resolvem exterminar fisicamente os marinheiros. Embarca-os no navio Satélite
rumo ao Amazonas.
Os 66 marujos que se encontravam em uma masmorra do Quartel do Exército e mais 31,
que se encontravam no Quartel do 1º Regimento de Infantaria, são embarcados junto
com assassinos, ladrões e marginais para serem descarregados nas selvas amazônicas. Os
marinheiros, porém, tinham destino diferente dos demais embarcados. Ao lado dos
muitos nomes da lista entregue ao comandante do navio, havia uma cruz vermelha, feita a
tinta, o que significava a sua sentença de morte. Esses marinheiros foram sendo
parceladamente assassinados: fuzilados sumariamente e jogados ao mar.

João Cândido, que não embarca no Satélite, juntamente com alguns companheiros foram
recolhidos a uma masmorra da ilha das Cobras, onde viviam como animais. Dos 18
recolhidos ali, 16 morreram. Uns fuzilados sem julgamento, outros em conseqüência das
péssimas condições em que viviam enclausurados. João Cândido enlouqueceu, sendo
internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e na miséria, consegue, contudo,
restabelecer-se física e psicologicamente. Perseguido constantemente, morre como
vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem
aposentadoria e até sem nome, este herói que um dia foi chamado, com mérito, de
Almirante Negro.

Em 1908, para acompanhar o final da construção de navios de guerra encomendados


pelo governo brasileiro, João Cândido foi enviado para a Inglaterra, onde tomou
conhecimento do movimento realizado pelos marinheiros britânicos entre 1903 e 1906,
reivindicando melhores condições de trabalho.

O uso da chibata como castigo na Armada brasileira já havia sido abolido em um dos
primeiros atos do regime republicano. Todavia, o castigo cruel continuava de fato a ser
aplicado, a critério dos oficiais. Num contingente de maioria negra, centenas de marujos
continuavam a ter seus corpos retalhados pela chibata, como no tempo do cativeiro.
Entre os marinheiros, insatisfeitos com os baixos soldos, com a má alimentação e,
principalmente, com os degradantes castigos corporais, crescia o clima de tensão.

No dia 22 de novembro de 1910, João Cândido deu início ao levante, assumindo o


comando do Minas Gerais, pleiteando a abolição dos castigos corporais na Marinha de
Guerra brasileira. Foi designado à época, pela imprensa, como Almirante Negro. Por
quatro dias, os navios de guerra Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro apontaram
os seus canhões para a Capital Federal. No ultimato dirigido ao Presidente Hermes da
Fonseca, os revoltosos declararam: "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e
republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira".
Embora a rebelião tenha terminado com o compromisso do governo federal em acabar
com o emprego da chibata na Marinha e de conceder anistia aos revoltosos, João
Cândido e os demais implicados foram detidos.

Expulsão da Marinha

Pouco tempo depois, a eclosão de um novo levante entre os marinheiros, agora no


quartel da ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, em 9 de Dezembro de 1910, foi reprimida
pelas autoridades.

Apesar de não haver participado deste levante, João Cândido foi expulso da Marinha,
sob a acusação de ter favorecido os rebeldes. Em Abril de 1911 foi detido no Hospital
dos Alienados, como louco e indigente, de onde foi solto em 1912, absolvido das
acusações juntamente com os seus companheiros. À época, o seu defensor foi o rábula
Evaristo de Moraes, contratado pela Ordem de Nossa Senhora do Rosário e dos Homens
Pretos, que declinou o recebimento dos honorários que lhe eram devidos.

Banido da Marinha, João Cândido sofreu grandes privações, vivendo precariamente,


trabalhando como estivador e descarregando peixes na Praça XV, no centro do Rio de
Janeiro.

De acordo com a sua ficha, nos quinze anos em que permaneceu na Marinha, foi
castigado em nove ocasiões, preso entre dois a quatro dias em celas solitárias "a pão e
água", além de ter sido duas vezes rebaixado de cabo a marinheiro. A sua ficha registra
ainda dez elogios por bom comportamento, o último três meses antes da revolta.

A sua vida pessoal foi profundamente abalada pelo suicídio de sua segunda esposa
(1928). Em 1930 foi novamente detido, acusado de subversão.

Em 1959 voltou ao Sul do País para ser homenageado, mas a cerimônia foi suspensa por
interferência da Marinha do Brasil.
Falecimento

Discriminado e perseguido até ao fim de sua vida, faleceu de câncer no Hospital


Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, pobre e esquecido, em 1969, aos 89 anos de idade.

Você também pode gostar