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A revolução biotecnológica do século XXI.


Reflexões éticas e jurídicas

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Publicado em 04/2011

Laura Lícia de Mendonça Vicente

Resumo: O avanço da biotecnologia e a real possibilidade da intervenção científica na


matéria viva têm aguçado os debates políticos, econômicos, filosóficos e jurídicos que
florescem a partir de questões polêmicas decorrentes destas novas tecnologias. Lidar com
avanços biotecnológicos implica enfrentar situações problemáticas e controversas que se
originam de realidades que, embora em princípio não passem de meras pretensões
científicas, tornam-se efetivas no cotidiano, clamando por um amplo e público debate da
matéria, uma vez que possuem reflexos diretos na própria existência da vida humana, nos
seus valores éticos e morais e, por conseguinte, no tratamento jurídico que se pretende
dar a tais transformações. O fato é que o acelerado desenvolvimento da biotecnologia
trouxe para o direito questões até então desconhecidas e que merecem ser melhor
estudadas e debatidas pela comunidade jurídica e pela sociedade, fazendo-se necessário
refletir sobre os aspectos éticos e jurídicos que permeiam o tema, devendo-se tomar
sempre como premissa o princípio da dignidade da pessoa humana, como um novo
paradigma bioético humanista.

Palavras-chave: Biotecnologia – Biodireito –Bioética.

Sumário: 1. Contextualização da problemática – 2. O século da biotecnologia: 2.1.


Avanços científicos; 2.2. Retrocesso ético –3. A dignidade da pessoa humana como
balizador da liberdade científica – 4. Reflexões éticas e jurídicas – 5. O futuro da bioética e
do biodireito: o desafio do século XXI – 6. Considerações finais – 7. Referências
bibliográficas.

1. Contextualização da problemática
Em "Admirável Mundo Novo" (Brave New World), livro publicado em 1932, Aldous Huxley
narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e
condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais,
dentro de uma sociedade organizada por castas.

Hoje, quase oitenta anos depois, esse "admirável mundo novo", antevisto por Huxley, saiu
do papel, da utopia ou da ficção, passando a tornar-se uma realidade para a sociedade
atual, que passa a conviver com os riscos e benefícios dessas transformações.

Os constantes avanços na área da biotecnologia e a real possibilidade de intervenção


científica na matéria viva têm aguçado os debates políticos, econômicos, filosóficos e
jurídicos que florescem a partir de questões polêmicas decorrentes destas novas
tecnologias.

Segundo Maria Helena Diniz [01], os avanços tecnológicos na seara da medicina e da


saúde, o anúncio de resultados fantásticos da biologia molecular e da engenharia
genética, inclusive no meio ambiente, e as novas práticas biomédicas resultantes do
descobrimento do DNA recombinante podem colocar em risco o futuro da humanidade,
uma vez que trazem, em si mesmos, tanto os poderes de criação, como de destruição da
vida e da natureza.

Apesar do risco que podem acarretar, é certo que não se podem afastar por completo os
benefícios que a biotecnologia traz ao ser humano, a quem é inerente o desejo e o direito
de melhoria da qualidade de vida.

Lidar com avanços biotecnológicos implica enfrentar situações problemáticas e


controversas que se originam de realidades que, embora em princípio não passem de
meras pretensões científicas, tornam-se efetivas no cotidiano, clamando por um amplo e
público debate da matéria, uma vez que possuem reflexos diretos na própria existência da
vida humana, nos seus valores éticos e morais e, por conseguinte, no tratamento jurídico
que se pretende dar a tais transformações.

O fato é que o acelerado desenvolvimento da biotecnologia trouxe para o direito questões


até então desconhecidas, falando-se já nos direitos de quarta geração.

Neste contexto, o Direito chegou ao século XXI e colocou o jurista frente ao desafio de
enfrentar e harmonizar conflitos ou perplexidades decorrentes do avanço biotecnológico,
de modo a impor limites entre o que é cientificamente possível fazer e o que é moralmente
desejável realizar.

As questões debatidas no presente estudo não pretendem formular proposições contrárias


aos avanços da biotecnologia, mas apenas convidar o leitor a aprofundar o tema em seu
íntimo e levá-lo a refletir acerca da repercussão ética, filosófica e jurídica do impacto do
século biotecnológico sobre a humanidade.
2. O século da biotecnologia

O final do século XX e início do século XXI foram marcados por profundas transformações
científicas e tecnológicas.

Hoje já se encontra ao alcance do homem tecnologias voltadas ao desenvolvimento de


espécies transgênicas, quimeras animais e clones, fabricação de órgãos humanos, novas
tecnologias conceptivas, mapeamento seqüencial do genoma humano, intervenções
genéticas, experimentos com células-tronco embrionárias, experiências farmacológicas e
clínicas com seres humanos, e muitos outros.

Mas será que o ser humano está realmente preparado para tão significativa e aparente
irrefreável revolução biotecnológica?

Jeremy Rifkin [02], em sua obra O Século da Biotecnologia, já havia expressado sua
preocupação com o rápido avanço da biotecnologia, afirmando que o mapeamento de
doenças genéticas poderia ensejar discussões sobre a discriminação genética praticada
por empregadores, companhias de seguros e escolas, além disso, outra questão
preocupante no século biotecnológico seria a crescente comercialização do banco de
genes nas mãos de empresas do setor farmacêutico, químico e biotécnico, bem como os
impactos, a longo prazo, dos organismos geneticamente planejados em contato com o
meio ambiente.

Compartilha de semelhante preocupação a jurista Maria Helena Diniz, que alerta para o
fato de que tais avanços tecnológicos, embora surjam em prol do homem:

"(...) dão ensejo à exploração econômica, ante o irresistível fascínio de desvendar os mistérios que
desafiam a argúcia da ciência, e à imposição de uma perigosa e injustificada autoridade científica,
que podem gerar resultados esteticamente desastrosos e problemas ético-jurídicos voltados à vida,
à morte, ao paciente terminal, à sexualidade, à reprodução humana, às tecnologias conceptivas, à
paternidade, à maternidade, à filiação, ao patrimônio genético, à correção de defeitos físicos e
hereditários, ao uso de material embrionário em pesquisas, à eugenia, às experiências
farmacológicas e clínicas com seres humanos, ao equilíbrio do meio ambiente, à criação de seres
transgênicos, à clonagem, ao transplante de órgãos e tecidos humanos, à transfusão de sangue, ao
mapeamento seqüencial do genoma humano, ao patenteamento da vida, à mudança de sexo, etc"
[03]
.

Segundo Jeremy Rifkin, as mudanças econômicas da história ocorreram quando várias


forças sociais e tecnológicas se juntaram para criar uma nova "matriz operacional". Para
ele, o século biotecnológico estaria estruturado em sete importantes fatores, que seriam a
base da nova economia. Seriam eles:
1.A "capacidade de se isolar, identificar e recombinar genes", ou seja, os genes são os
recursos primários para a futura atividade econômica porque as técnicas de recombinação
de DNA e outras biotecnologias permitiriam a exploração de recursos genéticos para fins
econômicos específicos;

2."Concessão de patentes de genes, linhas de células, tecido geneticamente


desenvolvido, órgãos e organismos, bem como os processos usados para alterá-los", que
fomentam e incentivam a exploração comercial desses recursos;

3."Globalização do comércio", que permite o aparecimento da "Gênesi de laboratório",


onde a ciência cria uma natureza bioindustrial capaz de afetar áreas que vão da agricultura
à medicina, e que estão sendo consolidadas por "gigantescas empresas da vida";

4."O mapeamento de aproximadamente 100 mil genes que compõe o genoma humano,
novas descobertas sobre a seleção genética, incluindo os chips de DNA, terapia somática
de genes e a iminente perspectiva da engenharia genética em ovos humanos, esperma e
células embrionárias", que levará necessariamente à redefinição da espécie humana e ao
nascimento de uma civilização comercialmente eugênica;

5."A grande quantidade de estudos científicos sobre a base genética do comportamento


humano e a nova sociobiologia que favorece a natureza em relação à alimentação estão
promovendo um contexto favorável a uma ampla aceitação de novas biotecnologias";

6.Utilização do computador como instrumento de comunicação e organização para a


administração da informação genética, que compõe a economia biotecnológica;

7."Uma nova narrativa cosmológica sobre a evolução", que se justifica pela agregação das
novas tecnologias à estrutura de uma nova ordem econômica global.

Essa nova matriz operacional veio, de fato, para transformar o século biotecnológico,
assim como o próprio mercado global, ressemeando o planeta com o que Rifkin chamou
de "segunda Gênese artificial". Segundo ele: "juntos, genes, biotecnologias, patentes da
vida, a indústria global da ciência da vida, a seleção do gene humano e cirurgia, as novas
correntes culturais, computadores e as revisadas teorias da evolução estão começando a
refazer o nosso mundo" [04].

2.1. Avanços científicos

Jeremy Rifkin já prenunciava: "as revoluções na genética e na informática estão chegando


juntas na forma de uma verdadeira falange científica, tecnológica e comercial, uma
poderosa nova realidade que terá profundo impacto em nossas vidas nas próximas
décadas".

E ele estava certo. As descobertas feitas nas últimas décadas pela engenharia genética
impressionaram e maravilharam muitos de nós e aproximou os cientistas de respostas
para a cura de muitas enfermidades, trazendo-nos, acima de tudo, esperanças de uma
melhor qualidade de vida no futuro.

Marcando sobremaneira os avanços na biogenética, em 1978, foi noticiado o nascimento


de Louise Brown, primeira criança gerada em um tubo de ensaio (fertilização in vitro),
notícia esta que chocou a opinião pública e sinalizou o início de uma nova era na
reprodução humana.

Hoje já são várias as técnicas científicas para reprodução humana assistida e incontáveis
os bebês que foram gerados a partir desses procedimentos. Crianças engenheiradas
dentro de laboratórios tornou-se comum na sociedade atual.

Há cinqüenta anos a identidade química do material genético era totalmente


desconhecida. Desde então, a biologia molecular progrediu revelando os segredos do
DNA, desvelando o código genético, transferindo e manipulando genes.

Em 1983, Ralph Brinster, da Faculdade de Veterinária da Universidade da Pensilvânia,


inseriu genes humanos de hormônio do crescimento em embriões de ratos. Estes, por sua
vez, manifestaram os genes humanos e cresceram duas vezes mais rápido e quase duas
vezes mais o tamanho de qualquer outro rato. Esses "super-ratos" transmitiram o gene
humano do hormônio do crescimento para suas crias.

No começo de 1984, os cientistas lograram êxito numa experiência que consistia em fundir
células embrionárias de uma cabra e de uma ovelha e colocaram o embrião num animal
substituto que gerou uma quimera cabra-ovelha. O primeiro exemplo de "mistura" de duas
espécies animais distintas na história humana.

A biotecnologia está sendo vista também como uma das grandes aliadas no combate à
poluição, trazendo novas técnicas que contribuem para a limpeza do meio ambiente. A
biorremediação, por exemplo, é uma dessas técnicas, que consiste no uso de organismos
vivos para remover ou transformar poluentes perigosos e lixo contaminado em inofensivo.
Uma nova geração de microorganismos geneticamente modificados está sendo
desenvolvida para converter materiais tóxicos em substâncias benignas.

O setor da silvicultura também está lançando mão dos recursos genéticos para melhorar o
seu desempenho florestal, estudando novos genes que possam ser inseridos em mudas
de árvores para fazê-las crescer mais rapidamente, mais resistentes a doenças e mais
toleráveis ao calor, frio e seca e com maior rendimento energético.

Na agricultura, os avanços biotecnológicos se mostram mais latentes, com o


desenvolvimento de alimentos geneticamente modificados.

Em 1990, foi lançado o audacioso Projeto Genoma Humano, um dos mais importantes
empreendimentos científicos dos séculos XX e XXI e um dos mais fascinantes estudos que
poderia ser realizado nessa nova era científica. Inicialmente liderado por James Watson,
na época chefe do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), tinha o projeto
como meta o conhecimento de todo o código genético humano e de suas alterações, que
são as causas de mais de quatro mil doenças hereditárias. O resultado desse estudo foi
divulgado em 2003, anunciando o sucesso do projeto.

De acordo com Maria Helena Diniz, o Projeto Genoma pode ser considerado o superstar
da big science "em virtude do seu potencial para alterar, com profundidade, as bases da
biologia, por ser uma revolucionária tecnologia de seqüenciamento genético baseada em
marcadores de ADN, que permitem a localização fácil e rápida dos genes". E continua a
jurista:

"Com isso, o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da
humanidade (art. 1° da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos),
passará a ser base de toda pesquisa genética humana nos próximos anos. Esse projeto, ao
descobrir e catalogar o código genético da espécie humana, efetuando um mapeamento completo
do genoma humano, possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando as diferenças entre
[05]
uma célula maligna e uma normal para obter diagnósticos de terapias melhores" .

Em 1997, outro marco na emergente era biotecnológica foi anunciado ao mundo científico:
o nascimento da ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado da história. A notícia causou
enorme impacto e frisson na comunidade científica e empolgou o mundo.

A divulgação pela imprensa de determinadas experiências de clonagem, principalmente da


sofrida por Dolly, suscitou o debate sobre a possibilidade de sua aplicação dentro das
técnicas de reprodução assistida, a seres humanos e as conseqüências que dela poderiam
derivar, despertando a reação de cientistas, teólogos, juristas, de diferentes entidades e
organismos internacionais, em busca de respostas viáveis e de uma tomada de posição
contrária à clonagem humana.

Segundo Rifkin, as descobertas acerca da habilidade de identificar, estocar e manipular as


estruturas químicas dos organismos vivos tornou-nos engenheiros da própria vida:
"começamos a reprogramar os códigos genéticos de coisas vivas para adaptá-las às
nossas necessidades e desejos econômicos e culturais. Assumimos a tarefa de criar uma
segunda Gênese, dessa vez uma sintética, voltada para os requisitos de eficiência e
produtividade".

É certo que essas grandes transformações biotecnológicas estão sendo acompanhadas


por uma transformação filosófica igualmente relevante: "a humanidade está começando a
remodelar sua visão da existência humana para coincidir com sua nova relação
organizacional com a Terra" [06].

2.2. Retrocesso ético


No seio das intensas transformações contemporâneas, avanços biotecnológicos e
retrocessos éticos marcaram profundamente o século XX e, certamente, o século XXI dará
continuidade às discussões.

Apesar da empolgação e esperança proporcionada pelo progresso científico na área da


biotecnologia, especialmente no âmbito da engenharia genética, todo esse avanço levou-
nos a refletir ainda mais sobre o caminho sem volta que estaríamos trilhando para as
futuras gerações.

Maria Helena Diniz chega a alertar que, no século biotecnológico, estaríamos diante de
uma receita infalível para a coisificação do ser humano e de um "terrível processo para
liquidação da humanidade a longo prazo".

De fato, os procedimentos laboratoriais de manipulação de células germinais humanas,


principalmente a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos
destinados a servir como material biológico disponível, confundem sujeito com objeto,
afetando uma das mais importantes distinções jurídicas de todos os tempos: o ser humano
enquanto sujeito de direito não pode estar, ao mesmo tempo, considerado como objeto.

Revelam também tentativa de coisificação do ser humano as pretensões de criação, por


meio de técnicas de engenharia genética, de seres humanos com características
específicas, voltadas para determinadas funções na sociedade, a chamada eugenia
positiva, como a criação de seres humanos com compleição física específica para
determinados trabalhos, ou a criação de seres humanos com alto potencial de
desenvolvimento intelectual, etc.

Esse entrecruzamento da ética com as ciências da vida e com o progresso biotecnológico


provocou uma radical mudança nas formas tradicionais de agir dos profissionais da saúde
e na forma da pensar da sociedade em geral.

No prefácio de sua obra O Estado Atual do Biodireito,Maria Helena Diniz discorre que:

"Com essa nova faceta criada pela biotecnologia, que interfere na ordem natural das coisas para
"brincar de Deus", surgiu uma vigorosa reação da ética e do direito, que, aqui, procuramos ressaltar,
fazendo com que o respeito à dignidade da pessoa humana seja o valor-fonte em todas as
[07]
situações, apontando até onde a manipulação da vida pode chegar sem agredir" .

Em que pese vislumbrarmos, no século biotecnológico, a perspectiva de grandes avanços


num futuro repleto de esperanças, é certo que a manipulação da vida do homem pelo
próprio homem traz riscos incomensuráveis à humanidade. A criação da vida pelo homem
dá-lhe poderes nunca antes experimentados.

Os riscos, sem dúvida, são sedutores diante das maravilhas que o mundo científico pode
nos proporcionar, mas qual o preço que estaríamos dispostos a pagar por tais riscos?
Quais os impactos que as nossas decisões de agora trarão para as futuras gerações?
Ernest-Wolfgang refletindo sobre os problemas trazidos pelo progresso da biomedicina e
da biotecnologia dá alguns exemplos merecedores de maior reflexão:

"A fecundação e o desenvolvimento de embrião prematuro pelo homem, hoje, podem se realizar
fora do corpo humano; intervenções cirúrgicas tecnológicas, por razões genéticas, podem ser
efetuadas junto aos núcleos das células embrionárias. Não é mais utopia a idéia de seleção da
prole. Existe a possibilidade real de se fazer uma seleção negativa, que é orientada pelos defeitos
genéticos, bem como de efetuar uma seleção positiva, que se baseia nas características desejadas
para o descendente. (...) O que Adous Huxley formulou com evidência em seu admirável mundo
novo como utopia negativa, apontando a produção de homens, cujas respectivas características
foram estabelecidas de antemão; que forma fabricados, sim, em sentido real, apresenta-se hoje
[08]
como opção possível, e não mais como utopia irreal" .

Mas é isso realmente que a sociedade almeja para as próximas décadas? Fabricação de
pessoas com características predefinidas, para fins específicos? Nesse contexto, não
poderiam os bebês "personalizados" ser a base para o surgimento de uma civilização
eugênica no século XXI?

Para Rifkin, esse novo movimento eugênico diferiria do reinado de horror que resultou do
holocausto, na medida em que a antiga eugenia (que buscava a pureza racial),
capitaneada por Adolf Hitler, se calcava em uma ideologia política e era motivada pelo
medo e pelo ódio. Ao contrário, a nova eugenia seria impulsionada pelas forças de
mercado e pelos desejos do consumidor.

Mas será que esses movimentos eugênicos seriam mesmo tão diferentes assim? A longo
prazo, será que não haveria uma predileção natural por seres humanos engenheirados,
altamente eficientes e tecnicamente infalíveis, ao invés de seres humanos "normais"?
Quem pode garantir que não haverá marginalização e perseguição dos homens "comuns"?
Será que não serão vistos como "raça inferior" à luz do antevisto por Huxley em "Admirável
Mundo Novo"?

Diante de toda essa revolução, onde fica o direito fundamental à identidade genética? À
dignidade da pessoa humana? Teríamos que reformular e redefinir esses preceitos? Ou
todos esses questionamentos não passariam de mero alarmismo? Ficam no ar as
reflexões.

Na opinião de Jeremy Rifkin, apesar de todos os esforços e progressos biotecnológicos, a


tentativa dos cientistas de se igualarem a Deus é inútil e sempre fracassará diante de uma
natureza implacável e imprevisível, onde a vida sempre encontra uma forma de se
superar. E complementa: "a natureza é vigorosa, complexa e variável demais para ser
previsivelmente modelada pelos cientistas. No final, podemos acabar perdidos e à deriva
nesse novo mundo artificial que estamos criando para nós mesmos no século
biotecnológico".
É essa nova maneira de pensar sobre a natureza da vida que certamente determinará o
rumo da próxima grande era da história.

3. A dignidade da pessoa humana como balizador da liberdade científica

As complexas questões ético-jurídicas trazidas pelo rápido e intenso avanço das


descobertas biotecnológicas impõem uma reação imediata e igualmente ágil do Direito,
diante dos riscos a que a espécie humana está sujeita, impondo limites à liberdade de
pesquisa, assegurada pelo art. 5°, inciso IX da Carta Constitucional.

Mas a questão é: como, no século biotecnológico, traçar os contornos à liberdade de ação


de um cientista? Quais os limites que, em pleno século XXI, poderiam ser impostos à
ciência?

É certo que as intensas transformações no modo de vida da humanidade através das


inovações científico-tecnológicas produzem novas situações e relações não previstas
diretamente no ordenamento jurídico, reclamando, portanto, do aplicador do Direito que ele
busque a adequação normativa fundada em regras e princípios que promovam a dignidade
humana.

Segundo Maria Helena Diniz, a liberdade da atividade científica, em que pese se


apresentar como um direito fundamental assegurado constitucionalmente, não pode ser
considerado absoluto. Seu entendimento é o de que, havendo conflito entre a livre
expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução
ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento
do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1°, inciso III, da Constituição Federal.
Para ela, "nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em
perigo a pessoa humana e sua dignidade" [09].

Para Ernest-Wolfgang o conteúdo da dignidade da pessoa humana teria um núcleo


reconhecido por todos, que poderia ser descrito com base na fórmula kantiana "fim em si
mesmo". Para ele, esse núcleo da dignidade da pessoa humana abrange a posição e o
"reconhecimento do homem como sujeito individualizado; a proibição da
instrumentalização do homem, como se fosse uma coisa meramente disponível e
desfrutável e, formulado de forma positiva, o direito a ter direitos, que devem ser
considerados e protegidos" [10].

Ainda, segundo Ernest-Wolfgang, a dignidade que qualifica um ser pronto, não pode ser
cindida ou destacada da própria história deste ser, mas, ao contrário, deve abrangê-la:

"Ao se procurar uma fase determinada do processo da vida, em que o respeito e a consideração são
devidos ao homem em razão de sua dignidade, para se excluir ou se graduar processualmente tal
consideração ou respeito (seja porque, por exemplo, haja apenas um embrião de dezesseis ou
dezoito células, ou porque tenha ocorrido uma nidação incerta), abre-se uma lacuna no
desenvolvimento do homem concreto e individualizado. Se o respeito à dignidade deve valer para
todos os homens como tais, então ela deve ser concedida ao homem desde o início, no primeiro
instante de sua vida e alcançar esse momento, e não apenas ser atribuída ao homem somente se
este sobrevier ileso por determinado período de tempo, após, portanto, ter estado desprotegido
contra uma coisificação e a dispossibilização arbitrária. Aqui se tornam relevantes conhecimentos e
fatos científicos, não especificamente como fonte ou fundamento, mas como substrato para
argumentações e valorações jurídico-normativas". [11]

Dessa forma, considerando os enormes avanços da biotecnologia já alcançados e os que


ainda se encontram por serem desvendados, faz-se imprescindível a imposição de limites
à atividade científica, instituindo parâmetros normativos balizadores de sua conduta. Para
tanto, o respeito ao ser humano, em todas as suas fases evolutivas, se mostra em primeiro
lugar; e esse respeito só é alcançado quando o trabalho desenvolvido é pautado à luz do
princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre o respeito a esse princípio, Norberto Bobbio, citado por Maria Helena Diniz, escreve:

"Mais que um renascimento do jusnaturalismo, se deveria falar do retorno daqueles valores que
tornam a vida humana digna de ser vivida e que os filósofos proclamam, com o fim de justificar
segundo os tempos e as condições históricas, com argumentos tomados da concepção geral do
[12]
mundo prevalecente na cultura de uma época" .

A única certeza, portanto, é que o respeito à vida humana digna, paradigma bioético, deve
estar presente na ética e no ordenamento jurídico de todas as sociedades.

As novas biotecnologias representam, inegavelmente, um desafio para o direito, tendo


este por tarefa primordial não somente assegurar o direito à vida e à dignidade humana,
mas também a de garantir a integridade das gerações futuras.

4. Reflexões éticas e jurídicas

O ritmo acelerado das inovações tecnológicas, notadamente na seara da medicina, trouxe


um grande poder de intervenção do homem sobre a vida e a morte. Um poder, pode-se
dizer, assustador, especialmente quando se sabe que, muitas vezes, esse progresso
científico é impulsionado por interesses econômicos, reclamando, por tal razão, da
sociedade, um debate amplo e público dessas transformações, por meio de uma reflexão
bioética do comportamento humano na área das ciências da vida.

Na percepção de Teresa Rodrigues Vieira:

"a ciência está caminhando mais rápido do que a reflexão ética por parte da sociedade. A
humanidade ainda não encontrou respostas para diversas questões éticas. Muitos requerem a
discussão e a elaboração de leis sobre a bioética para legitimar a sua prática ou para proibir
experiências julgadas abusivas. No entanto com o progresso veloz das pesquisas biológicas, corre-
[13]
se o risco de já estarem defasadas no momento da sua promulgação" .

De fato, o avanço biotecnológico despontou de tal forma que as ciências do "dever ser",
em especial, a ética e o direito, não puderam se desenvolver na mesma velocidade.

É certo que ao direito não cabe impor barreiras ou estabelecer divisas morais e religiosas
intransponíveis, mas sim disciplinar fatos que inevitavelmente venham a surgir em
decorrência da evolução humana.

Mas como disciplinar fatos que estão constantemente em mudança e que repercutem tão
fortemente na própria existência da pessoa humana e, por conseguinte, no ordenamento
jurídico vigente?

A biotecnologia e o ressurgimento da perspectiva do ser humano como espécie vêm


colocar importantes questionamentos para o cientista e para o jurista.

As possibilidades quase ilimitadas que se abrem com os conhecimentos da biomedicina,


biotecnologia e biogenética levantam urgentemente a questão sobre os pontos de
referência e orientações que levem em conta o modo e os limites de como nós homens
queremos nos relacionar uns com os outros, de como queremos que seja o convívio entre
os indivíduos.

Questões como a clonagem, eugenia e a manipulação genética criam um conflito ético-


jurídico entre as perspectivas do ser humano como indivíduo, espécie e sociedade.

Segundo Rifkin, os defensores da engenharia genética humana defendem que seria cruel
e irresponsável, por exemplo, deixar de utilizar essa nova tecnologia para eliminar sérios
"distúrbios genéticos". O problema com esse argumento afirma o The New York Times em
editorial intitulado "Whether to make perfects humans" (Construir ou não ser humanos
perfeitos), é que "não existe uma linha divisória clara entre corrigir defeitos genéticos que
podem ser herdados e aprimorar a espécie" [14].

E aqui se levanta mais uma polêmica: a de se definir o que seria considerado "defeito"
genético. Daniel Callahan, citado por Jeremy Rifkin, atinge o cerne do problema quando
observa: "por trás do horror que o defeito genético inspira esconde-se (...) uma imagem do
ser humano perfeito. Os próprios termos ‘defeito’ ‘anormalidade’, ‘doença’ e‘risco’
pressupõem uma imagem, um certo protótipo de perfeição".

A indagação que se faz, por fim, é se devemos ou não iniciar o processo de construir
futuras gerações de seres humanos em laboratório e seguindo um projeto tecnológico.
Quais as conseqüências potenciais de se tomar um caminho cujo objetivo final é a
"perfeição" da espécie humana?
Frente a tantos avanços científicos, carência de regulamentação legal e incertezas da
sociedade, a autora italiana Laura Palazzani, citada em artigo de Ricardo Stanziola Vieira
[15]
, menciona a emergência de novos direitos visando reconhecer "a justa expectativa
objetiva do homem em função da coexistência humana". Estes novos direitos, em seu
entender, consistiriam no direito à integridade física e à não manipulação do patrimônio
genético, o direito a não ser geneticamente predeterminado; o direito à própria identidade
e também à diferença (isto é, à biodiversidade); o direito de ser concebido
heterossexualmente em uma família com duas figuras genitoras.

Seriam esses os direitos de quarta geração, que são justamente aqueles decorrentes das
repercussões biotecnológicas na vida das pessoas.

Como já mencionado, estes ideários ético-jurídicos vêm se conflitando com o paradigma


científico e a noção de ser humano enquanto espécie, por isso Rifkin enfatiza sempre que
a "autonomia científica deverá terminar quando estiver em jogo o direito de outrem, pois
há prioridade da pessoa humana sobre qualquer interesse da ciência, que somente terá
sentido se estiver a serviço do homem" [16].

5. O futuro da bioética e do biodireito: o desafio do século xxi

Para a bioética e o biodireito, a vida humana não pode ser uma questão de mera
sobrevivência física, mas sim de vida com dignidade.

Nesse cenário, a bioética tem a função de problematizar as questões suscitadas pela


biomedicina, cabendo ao biodireito regulamentar como essas soluções deverão ser
encontradas.

Segundo Maria Helena Diniz, a "bioética e o biodireito caminham ‘pari passu’ na difícil
tarefa de separar o joio do trigo, na colheita de frutos plantados pela engenharia genética,
pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até
onde as ciências da vida poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa
humana" [17].

Reconhece-se, portanto, o importante papel do biodireito e da bioética como controladores


do desenvolvimento das ciências da vida, como verdadeiros paradigmas para a construção
do século biotecnológico, pois somente ações balizadas nesses pilares poderão assegurar
o surgimento de uma sociedade calcada no respeito à dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, o grande desafio do século XXI será desenvolver uma bioética e um
biodireito que corrijam os exageros provocados pelos experimentos e pesquisas
científicas, resgatando e valorizando a dignidade da pessoa humana, verdadeiro
paradigma bioético humanista [18].
6. Considerações finais

O desenvolver do século biotecnológico deixa ainda muitas incógnitas, por isso mesmo, ao
final dessa breve exposição, muitas perguntas permanecem sem respostas. Não são
questões simples de serem tratadas, envolvem aspectos econômicos, filosóficos, jurídicos,
religiosos, éticos e morais que devem ser melhor debatidos pela sociedade.

Quanto mais discussão houver sobre o assunto, melhor absorvida e compreendida será a
matéria pela sociedade. Não se pode mais conceber que os debates acerca dos avanços
da biomedicina fiquem restritos às academias e aos laboratórios, afastando das
discussões o cidadão comum. Não. As mudanças biotecnológicas estão transformando o
cotidiano das pessoas, influenciando em sua relação umas com as outras, razão pela qual
toda a sociedade deve estar integrada e engajada nesse debate, não podendo mais ele
ser adiado.

Contudo, alerta-se para que as reflexões éticas e jurídicas que permeiam o tema sejam
sempre realizadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, considerado
verdadeiro paradigma bioético humanista, de forma que seja esse princípio a orientar a
evolução do novo século biotecnológico.

7. Referências bibliográficas

BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang.Dignidade humana como principio normativo: os


direitos fundamentais no debate bioético. Direitos fundamentais e biotecnologia.
Organização Ingo Wolfgang Scarlet, George Salomão Leite. São Paulo: Método, 2008.

BORGES, Roxana. Direito e patrimônio genético humano.Disponível em:


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VIEIRA, Teresa Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo: Editora jurídica brasileira, 1999.

Notas

1. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6ª. ed.


rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

2. RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. Tradução e


revisão técnica Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books,
1999.

3. Op. Cit.

4. Op. cit.

5. Op. cit.

6. RIFKIN, Jeremy. op. Cit.

7. Op. cit.

8. BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang.Dignidade humana


como principio normativo: os direitos fundamentais no
debate bioético. Direitos fundamentais e biotecnologia.
Organização Ingo Wolfgang Scarlet, George Salomão Leite.
São Paulo: Método, 2008.

9. Op. cit.

10. Op. cit.

11. Op. cit.

12. Op. cit.

13. VIEIRA, Teresa Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo:


Editora jurídica brasileira, 1999.

14. Op. cit.

15. VIEIRA, Ricardo Stanziola. Polêmicas colocadas pela


biotecnologia ao debate do direito moderno – uma breve
reflexão ética e jurídica.

16. Op. cit.


17. Op.cit.

18. Op. cit.

Sobre o autor

 Laura Lícia de Mendonça Vicente

Advogada. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos


pela PUC/SP. Especialista em Direito Ambiental pela
PUC/SP.

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT

VICENTE, Laura Lícia de Mendonça. A revolução biotecnológica do século XXI. Reflexões


éticas e jurídicas. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2855, 26 abr. 2011. Disponível em:
<http://jus.uol.com.br/revista/texto/18976>. Acesso em: 27 abr. 2011.

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