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Publicado em 04/2011
1. Contextualização da problemática
Em "Admirável Mundo Novo" (Brave New World), livro publicado em 1932, Aldous Huxley
narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e
condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais,
dentro de uma sociedade organizada por castas.
Hoje, quase oitenta anos depois, esse "admirável mundo novo", antevisto por Huxley, saiu
do papel, da utopia ou da ficção, passando a tornar-se uma realidade para a sociedade
atual, que passa a conviver com os riscos e benefícios dessas transformações.
Apesar do risco que podem acarretar, é certo que não se podem afastar por completo os
benefícios que a biotecnologia traz ao ser humano, a quem é inerente o desejo e o direito
de melhoria da qualidade de vida.
Neste contexto, o Direito chegou ao século XXI e colocou o jurista frente ao desafio de
enfrentar e harmonizar conflitos ou perplexidades decorrentes do avanço biotecnológico,
de modo a impor limites entre o que é cientificamente possível fazer e o que é moralmente
desejável realizar.
O final do século XX e início do século XXI foram marcados por profundas transformações
científicas e tecnológicas.
Mas será que o ser humano está realmente preparado para tão significativa e aparente
irrefreável revolução biotecnológica?
Jeremy Rifkin [02], em sua obra O Século da Biotecnologia, já havia expressado sua
preocupação com o rápido avanço da biotecnologia, afirmando que o mapeamento de
doenças genéticas poderia ensejar discussões sobre a discriminação genética praticada
por empregadores, companhias de seguros e escolas, além disso, outra questão
preocupante no século biotecnológico seria a crescente comercialização do banco de
genes nas mãos de empresas do setor farmacêutico, químico e biotécnico, bem como os
impactos, a longo prazo, dos organismos geneticamente planejados em contato com o
meio ambiente.
Compartilha de semelhante preocupação a jurista Maria Helena Diniz, que alerta para o
fato de que tais avanços tecnológicos, embora surjam em prol do homem:
"(...) dão ensejo à exploração econômica, ante o irresistível fascínio de desvendar os mistérios que
desafiam a argúcia da ciência, e à imposição de uma perigosa e injustificada autoridade científica,
que podem gerar resultados esteticamente desastrosos e problemas ético-jurídicos voltados à vida,
à morte, ao paciente terminal, à sexualidade, à reprodução humana, às tecnologias conceptivas, à
paternidade, à maternidade, à filiação, ao patrimônio genético, à correção de defeitos físicos e
hereditários, ao uso de material embrionário em pesquisas, à eugenia, às experiências
farmacológicas e clínicas com seres humanos, ao equilíbrio do meio ambiente, à criação de seres
transgênicos, à clonagem, ao transplante de órgãos e tecidos humanos, à transfusão de sangue, ao
mapeamento seqüencial do genoma humano, ao patenteamento da vida, à mudança de sexo, etc"
[03]
.
4."O mapeamento de aproximadamente 100 mil genes que compõe o genoma humano,
novas descobertas sobre a seleção genética, incluindo os chips de DNA, terapia somática
de genes e a iminente perspectiva da engenharia genética em ovos humanos, esperma e
células embrionárias", que levará necessariamente à redefinição da espécie humana e ao
nascimento de uma civilização comercialmente eugênica;
7."Uma nova narrativa cosmológica sobre a evolução", que se justifica pela agregação das
novas tecnologias à estrutura de uma nova ordem econômica global.
Essa nova matriz operacional veio, de fato, para transformar o século biotecnológico,
assim como o próprio mercado global, ressemeando o planeta com o que Rifkin chamou
de "segunda Gênese artificial". Segundo ele: "juntos, genes, biotecnologias, patentes da
vida, a indústria global da ciência da vida, a seleção do gene humano e cirurgia, as novas
correntes culturais, computadores e as revisadas teorias da evolução estão começando a
refazer o nosso mundo" [04].
E ele estava certo. As descobertas feitas nas últimas décadas pela engenharia genética
impressionaram e maravilharam muitos de nós e aproximou os cientistas de respostas
para a cura de muitas enfermidades, trazendo-nos, acima de tudo, esperanças de uma
melhor qualidade de vida no futuro.
Hoje já são várias as técnicas científicas para reprodução humana assistida e incontáveis
os bebês que foram gerados a partir desses procedimentos. Crianças engenheiradas
dentro de laboratórios tornou-se comum na sociedade atual.
No começo de 1984, os cientistas lograram êxito numa experiência que consistia em fundir
células embrionárias de uma cabra e de uma ovelha e colocaram o embrião num animal
substituto que gerou uma quimera cabra-ovelha. O primeiro exemplo de "mistura" de duas
espécies animais distintas na história humana.
A biotecnologia está sendo vista também como uma das grandes aliadas no combate à
poluição, trazendo novas técnicas que contribuem para a limpeza do meio ambiente. A
biorremediação, por exemplo, é uma dessas técnicas, que consiste no uso de organismos
vivos para remover ou transformar poluentes perigosos e lixo contaminado em inofensivo.
Uma nova geração de microorganismos geneticamente modificados está sendo
desenvolvida para converter materiais tóxicos em substâncias benignas.
O setor da silvicultura também está lançando mão dos recursos genéticos para melhorar o
seu desempenho florestal, estudando novos genes que possam ser inseridos em mudas
de árvores para fazê-las crescer mais rapidamente, mais resistentes a doenças e mais
toleráveis ao calor, frio e seca e com maior rendimento energético.
Em 1990, foi lançado o audacioso Projeto Genoma Humano, um dos mais importantes
empreendimentos científicos dos séculos XX e XXI e um dos mais fascinantes estudos que
poderia ser realizado nessa nova era científica. Inicialmente liderado por James Watson,
na época chefe do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), tinha o projeto
como meta o conhecimento de todo o código genético humano e de suas alterações, que
são as causas de mais de quatro mil doenças hereditárias. O resultado desse estudo foi
divulgado em 2003, anunciando o sucesso do projeto.
De acordo com Maria Helena Diniz, o Projeto Genoma pode ser considerado o superstar
da big science "em virtude do seu potencial para alterar, com profundidade, as bases da
biologia, por ser uma revolucionária tecnologia de seqüenciamento genético baseada em
marcadores de ADN, que permitem a localização fácil e rápida dos genes". E continua a
jurista:
"Com isso, o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da
humanidade (art. 1° da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos),
passará a ser base de toda pesquisa genética humana nos próximos anos. Esse projeto, ao
descobrir e catalogar o código genético da espécie humana, efetuando um mapeamento completo
do genoma humano, possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando as diferenças entre
[05]
uma célula maligna e uma normal para obter diagnósticos de terapias melhores" .
Em 1997, outro marco na emergente era biotecnológica foi anunciado ao mundo científico:
o nascimento da ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado da história. A notícia causou
enorme impacto e frisson na comunidade científica e empolgou o mundo.
Maria Helena Diniz chega a alertar que, no século biotecnológico, estaríamos diante de
uma receita infalível para a coisificação do ser humano e de um "terrível processo para
liquidação da humanidade a longo prazo".
No prefácio de sua obra O Estado Atual do Biodireito,Maria Helena Diniz discorre que:
"Com essa nova faceta criada pela biotecnologia, que interfere na ordem natural das coisas para
"brincar de Deus", surgiu uma vigorosa reação da ética e do direito, que, aqui, procuramos ressaltar,
fazendo com que o respeito à dignidade da pessoa humana seja o valor-fonte em todas as
[07]
situações, apontando até onde a manipulação da vida pode chegar sem agredir" .
Os riscos, sem dúvida, são sedutores diante das maravilhas que o mundo científico pode
nos proporcionar, mas qual o preço que estaríamos dispostos a pagar por tais riscos?
Quais os impactos que as nossas decisões de agora trarão para as futuras gerações?
Ernest-Wolfgang refletindo sobre os problemas trazidos pelo progresso da biomedicina e
da biotecnologia dá alguns exemplos merecedores de maior reflexão:
"A fecundação e o desenvolvimento de embrião prematuro pelo homem, hoje, podem se realizar
fora do corpo humano; intervenções cirúrgicas tecnológicas, por razões genéticas, podem ser
efetuadas junto aos núcleos das células embrionárias. Não é mais utopia a idéia de seleção da
prole. Existe a possibilidade real de se fazer uma seleção negativa, que é orientada pelos defeitos
genéticos, bem como de efetuar uma seleção positiva, que se baseia nas características desejadas
para o descendente. (...) O que Adous Huxley formulou com evidência em seu admirável mundo
novo como utopia negativa, apontando a produção de homens, cujas respectivas características
foram estabelecidas de antemão; que forma fabricados, sim, em sentido real, apresenta-se hoje
[08]
como opção possível, e não mais como utopia irreal" .
Mas é isso realmente que a sociedade almeja para as próximas décadas? Fabricação de
pessoas com características predefinidas, para fins específicos? Nesse contexto, não
poderiam os bebês "personalizados" ser a base para o surgimento de uma civilização
eugênica no século XXI?
Para Rifkin, esse novo movimento eugênico diferiria do reinado de horror que resultou do
holocausto, na medida em que a antiga eugenia (que buscava a pureza racial),
capitaneada por Adolf Hitler, se calcava em uma ideologia política e era motivada pelo
medo e pelo ódio. Ao contrário, a nova eugenia seria impulsionada pelas forças de
mercado e pelos desejos do consumidor.
Mas será que esses movimentos eugênicos seriam mesmo tão diferentes assim? A longo
prazo, será que não haveria uma predileção natural por seres humanos engenheirados,
altamente eficientes e tecnicamente infalíveis, ao invés de seres humanos "normais"?
Quem pode garantir que não haverá marginalização e perseguição dos homens "comuns"?
Será que não serão vistos como "raça inferior" à luz do antevisto por Huxley em "Admirável
Mundo Novo"?
Diante de toda essa revolução, onde fica o direito fundamental à identidade genética? À
dignidade da pessoa humana? Teríamos que reformular e redefinir esses preceitos? Ou
todos esses questionamentos não passariam de mero alarmismo? Ficam no ar as
reflexões.
Ainda, segundo Ernest-Wolfgang, a dignidade que qualifica um ser pronto, não pode ser
cindida ou destacada da própria história deste ser, mas, ao contrário, deve abrangê-la:
"Ao se procurar uma fase determinada do processo da vida, em que o respeito e a consideração são
devidos ao homem em razão de sua dignidade, para se excluir ou se graduar processualmente tal
consideração ou respeito (seja porque, por exemplo, haja apenas um embrião de dezesseis ou
dezoito células, ou porque tenha ocorrido uma nidação incerta), abre-se uma lacuna no
desenvolvimento do homem concreto e individualizado. Se o respeito à dignidade deve valer para
todos os homens como tais, então ela deve ser concedida ao homem desde o início, no primeiro
instante de sua vida e alcançar esse momento, e não apenas ser atribuída ao homem somente se
este sobrevier ileso por determinado período de tempo, após, portanto, ter estado desprotegido
contra uma coisificação e a dispossibilização arbitrária. Aqui se tornam relevantes conhecimentos e
fatos científicos, não especificamente como fonte ou fundamento, mas como substrato para
argumentações e valorações jurídico-normativas". [11]
Sobre o respeito a esse princípio, Norberto Bobbio, citado por Maria Helena Diniz, escreve:
"Mais que um renascimento do jusnaturalismo, se deveria falar do retorno daqueles valores que
tornam a vida humana digna de ser vivida e que os filósofos proclamam, com o fim de justificar
segundo os tempos e as condições históricas, com argumentos tomados da concepção geral do
[12]
mundo prevalecente na cultura de uma época" .
A única certeza, portanto, é que o respeito à vida humana digna, paradigma bioético, deve
estar presente na ética e no ordenamento jurídico de todas as sociedades.
"a ciência está caminhando mais rápido do que a reflexão ética por parte da sociedade. A
humanidade ainda não encontrou respostas para diversas questões éticas. Muitos requerem a
discussão e a elaboração de leis sobre a bioética para legitimar a sua prática ou para proibir
experiências julgadas abusivas. No entanto com o progresso veloz das pesquisas biológicas, corre-
[13]
se o risco de já estarem defasadas no momento da sua promulgação" .
De fato, o avanço biotecnológico despontou de tal forma que as ciências do "dever ser",
em especial, a ética e o direito, não puderam se desenvolver na mesma velocidade.
É certo que ao direito não cabe impor barreiras ou estabelecer divisas morais e religiosas
intransponíveis, mas sim disciplinar fatos que inevitavelmente venham a surgir em
decorrência da evolução humana.
Mas como disciplinar fatos que estão constantemente em mudança e que repercutem tão
fortemente na própria existência da pessoa humana e, por conseguinte, no ordenamento
jurídico vigente?
Segundo Rifkin, os defensores da engenharia genética humana defendem que seria cruel
e irresponsável, por exemplo, deixar de utilizar essa nova tecnologia para eliminar sérios
"distúrbios genéticos". O problema com esse argumento afirma o The New York Times em
editorial intitulado "Whether to make perfects humans" (Construir ou não ser humanos
perfeitos), é que "não existe uma linha divisória clara entre corrigir defeitos genéticos que
podem ser herdados e aprimorar a espécie" [14].
E aqui se levanta mais uma polêmica: a de se definir o que seria considerado "defeito"
genético. Daniel Callahan, citado por Jeremy Rifkin, atinge o cerne do problema quando
observa: "por trás do horror que o defeito genético inspira esconde-se (...) uma imagem do
ser humano perfeito. Os próprios termos ‘defeito’ ‘anormalidade’, ‘doença’ e‘risco’
pressupõem uma imagem, um certo protótipo de perfeição".
A indagação que se faz, por fim, é se devemos ou não iniciar o processo de construir
futuras gerações de seres humanos em laboratório e seguindo um projeto tecnológico.
Quais as conseqüências potenciais de se tomar um caminho cujo objetivo final é a
"perfeição" da espécie humana?
Frente a tantos avanços científicos, carência de regulamentação legal e incertezas da
sociedade, a autora italiana Laura Palazzani, citada em artigo de Ricardo Stanziola Vieira
[15]
, menciona a emergência de novos direitos visando reconhecer "a justa expectativa
objetiva do homem em função da coexistência humana". Estes novos direitos, em seu
entender, consistiriam no direito à integridade física e à não manipulação do patrimônio
genético, o direito a não ser geneticamente predeterminado; o direito à própria identidade
e também à diferença (isto é, à biodiversidade); o direito de ser concebido
heterossexualmente em uma família com duas figuras genitoras.
Seriam esses os direitos de quarta geração, que são justamente aqueles decorrentes das
repercussões biotecnológicas na vida das pessoas.
Para a bioética e o biodireito, a vida humana não pode ser uma questão de mera
sobrevivência física, mas sim de vida com dignidade.
Segundo Maria Helena Diniz, a "bioética e o biodireito caminham ‘pari passu’ na difícil
tarefa de separar o joio do trigo, na colheita de frutos plantados pela engenharia genética,
pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até
onde as ciências da vida poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa
humana" [17].
Dessa forma, o grande desafio do século XXI será desenvolver uma bioética e um
biodireito que corrijam os exageros provocados pelos experimentos e pesquisas
científicas, resgatando e valorizando a dignidade da pessoa humana, verdadeiro
paradigma bioético humanista [18].
6. Considerações finais
O desenvolver do século biotecnológico deixa ainda muitas incógnitas, por isso mesmo, ao
final dessa breve exposição, muitas perguntas permanecem sem respostas. Não são
questões simples de serem tratadas, envolvem aspectos econômicos, filosóficos, jurídicos,
religiosos, éticos e morais que devem ser melhor debatidos pela sociedade.
Quanto mais discussão houver sobre o assunto, melhor absorvida e compreendida será a
matéria pela sociedade. Não se pode mais conceber que os debates acerca dos avanços
da biomedicina fiquem restritos às academias e aos laboratórios, afastando das
discussões o cidadão comum. Não. As mudanças biotecnológicas estão transformando o
cotidiano das pessoas, influenciando em sua relação umas com as outras, razão pela qual
toda a sociedade deve estar integrada e engajada nesse debate, não podendo mais ele
ser adiado.
Contudo, alerta-se para que as reflexões éticas e jurídicas que permeiam o tema sejam
sempre realizadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, considerado
verdadeiro paradigma bioético humanista, de forma que seja esse princípio a orientar a
evolução do novo século biotecnológico.
7. Referências bibliográficas
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6ª. ed. rev., aum. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2009.
RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. Tradução e revisão técnica Arão Sapiro. São
Paulo: Makron Books, 1999.
SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. São Paulo:
Editora Pillares, 2008.
VIEIRA, Ricardo Stanziola. Polêmicas colocadas pela biotecnologia ao debate do direito
moderno – uma breve reflexão ética e jurídica. Disponível em:
<http://anppas.org.br/encontro_anual/encontro1/gt/sustentabilidade_risco/Ricardo
%20Stanziola%20Vieira.pdf>. Acesso em: 13/10/2009.
VIEIRA, Teresa Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo: Editora jurídica brasileira, 1999.
Notas
3. Op. Cit.
4. Op. cit.
5. Op. cit.
7. Op. cit.
9. Op. cit.
Sobre o autor