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Uma Hora da Manhã

Vou contar uma história, talvez “A” história, talvez só “outra” história, não sei.

Lhes conto essa história já tarde na madrugada de um dia chuvoso, não creio que exista
clima melhor para contá-la. Como toda história, essa começa com um nome, Roberto,
um homem de bem, um homem calmo e sereno. Ou pelo menos era assim...
Aproveitem-na, vou estar bem aqui quando acabarem para conversarmos mais. Por hora
fico aqui ouvindo a chuva batendo na janela lá fora.

***

Ele está lá. Sim, sei que está, só esperando que eu vá lá apagar a luz para me pegar. Ah
o fim, que bela maneira de partir... E pensar que alguns dias atrás estava feliz e
confortável em minha sala de visitas/sala de TV, só aproveitando um bom filme do
começo dos anos 90.

O que... Um miado? Mas como? Bóris se jogou da janela uns dias atrás, ele... Será que
ele quer me enlouquecer com isso? Talvez. Talvez esteja conseguindo.

No começo eram as luzes, entende? Elas acendiam sozinhas quando eu não estava
olhando... Achei que quem as estava acendendo era eu mesmo e qye só esquecia...
Sempre fui esquecido...

Então... Então o escorredor começou a mudar de lado da pia, algo idiota, mas como eu
poderia ter feito aquilo se sempre o deixava de um lado? E continuava acontecendo, de
novo e de novo. Comecei a me assustar, achei que o lugar estava assombrado, que eu
podia lutar contra o que está naquele corredor. O que está naquele corredor? O que está
naquele corredor? O que... Água benta e crucifixos, achei que estaria protegido com
água enta e crucifixos. Vi em um documentário no discovery channel uma vez que
coisas assim funcionavam e conseguiam ao menos enfraquecer as assombrações, achei
que valia a pena tentar. Lavei tudo com água benta, chão, paredes, teto. Preguei um
crucifixo. Outro. Quando fui pregar o terceiro... Nada. Não conseguia atravessar. O
prego não entrava além do reboque da parede, era como se eu estivesse martelando aço
no aço, algo absurdo... A furadeira devia dar conta do serviço. Deu. Com uma leve
pressão no gatilho a broca girou, entrando fundo na parede. Então a parede sangrou. Em
vez de poeira branca e avermelhada, um líquido espesso saiu do buraco, algo vermelho
cheirando levemente a ferro. Não jorrava, escorria lentamente, lentamente manchando a
tinta da parede.

Não consegui tirar aquela mancha por nada nesse mundo.

O síndico disse que eu tinha furado um cano que não devia estar lá, que devi estar na
parede oposta. Insistiu em dizer como aquele cano era velho como estava enferrujado e
como o trocariam em agosto. Posso acreditar que acertei um cano e posso acreditar que
estava enferrujado, mas não posso acreditar nessa história.
Não jorrava, escorria.

Moro no sexto andar de um prédio com 14 andares, se eu tivesse simplesmente acertado


um cano, teria manchas até no teto por causa da pressão monstruosa que estaria
acumulada na água, entretanto... Não jorrava... Escorria...

O encanador viria consertar na quarta feira. As luzes acendiam sozinhas. O escorredor


mudava de lugar. A parede sangrava. Eu entrava em desespero.

Desde que o trouxe para o apartamento, Bóris ficava encarando a parede que sangrava
dua horas por dia, todo dia. Nunca entendi porque ele fazia aquilo, mas achei que ele
tmbém não entendia por que eu passava quatro horas por dia encarando uma caixa de
luzes colorida. Naquele dia Bóris viu algo(ou sentiu algo) e teve uma súbita vontade de
virar pavê. Ou pelo menos foi isso que entendi. Bóris virou pavê. Eu começei a chorar.

Tanta coisa acontecia, mas só acontecia à noite, só... Só de noite. Ouço algo no
corredor, só rezo para que essa noite acabe, não quero ficar aqui, durmo em um banco
na praça, não importa, não quero ficar aqui. Não quero...

O encanador consertou o cano na sexta feira e eu não consegui mais dormir. Nunca
dormi muito, mas depois daquele dia não consegui dormir nem dez minutos, sempre*
que começo a adormecer acordo com um pulo, como se despertasse de um pesadelo do
qual não pudesse me lembrar.

Comecei a ver vultos, vultos por toda parte, toda vez que desvio o olhar para alguma
coisa muito rápido vejo algo... Algo se escondendo... Algo... Minha respiração... Não
consigo controlar... Não consigo... Aquela luz, tenho que apagar aquela luz, tenho que
apagar... Mas ele está lá, ele quer que eu apague a luz, ele... Que foi isso? Tem alguém
aqui? Tem alguém... Tenho que apagar aquela luz, eu... Eu... Vou apagar aquela luz.

***

Sozinho e sujo com a própria urina, Roberto foi encontrado em seu apartamento. Hoje
ele já não mora mais no sexto andar daquele prédio, hoje ele mora em uma bela salinha
cúbica branca estofada em uma casa térrea, sempre veste seu belo macacão branco de
gala com as mangas amarradas atrás das costas. Médicos e psiquiatras dizem que ele
entrou em um estado onde sua mente recria os mesmos episódios de novo e de novo e
de novo. Pobre Roberto, preso para sempre em seu pesadelo.

Alguns dizem que Roberto apresentava sinais de esquizofrenia já antes do ocorrido,


afirmam que foi tudo obra de sua mente senil. Outros apelam para o sobrenatural, dizem
que o apartamento tem um histórico desde seu primeiro dono, que Roberto apenas
escolheu morar no lugar errado, grande erro.

Não sei dizer quem está certo e quem está errado, comprei esse apartamento já faz
alguns meses e não vi nada de tão assustador assim. Mentira, já tomei vários sustos com
meu guarda roupas; Ele é de madeira envernizada e bem polida a um ponto em que fica
parecendo um espelho marrom embaçado e dependendo do jeito que olho pra ele parece
que tem alguém mais no quarto. Que coisa, tenho mais medo do meu guarda roupas do
que desse apartamento.

Bom, acho que é só isso, espero que tenham gostado da história. Voltem quando
quiserem. Agora vou dormir, só vou apagar aquela luz do corredor.

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