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O CONSTITUINTE AUSTENITA-MARTENSITA (AM)

J.M.A. REBELLO (e-mail: jmarcos@metalmat.ufrj.br)


A. SAUER (e-mail: asauer@metalmat.ufrj.br)

Professores, PEMM/COPPE/EE
Engenharia Metalúrgica e de Materiais
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Rio de Janeiro, RJ Brasil

1 - Introdução

A soldagem configura-se há muito tempo como um dos principais processos de fabricação


mecânica. Neste contexto, os processos de fusão a arco elétrico destacam-se como os mais
empregados face a sua versatilidade, baixo custo e qualidade da união metálica que
permitem obter. As exigências de projetos de equipamentos cada vez mais sofisticados,
impõe requisitos de qualidade aos materiais e suas soldas cada vez mais severos. Um destes
requisitos trata da tenacidade, isto é, a exigência de comportamento dútil mesmo em
presença de defeitos. Assim, o controle desta propriedade passa a ter conotação bastante
importante, principalmente no caso de aços, não só pela sua grande aplicação industrial
como pela sua conhecida tendência de exibir comportamento frágil a temperaturas mesmo
moderadamente baixas. Vários são os fatores que controlam a tenacidade dos aços,a saber:
microestrutura, teor e natureza das inclusões presentes, presença de defeitos, constituintes e
fases, etc.. Um destes fatores que tem sido o objeto de preocupação dos metalurgistas é o
constituinte AM, não só pelo seu alto poder fragilizante mesmo em baixos teores como pela
dificuldade de detectá-lo face as suas dimensões reduzidas.

A importância de seu estudo decorre principalmente de seu efeito destacado como


controlador da tenacidade de aços bainíticos C-Mn de baixa liga e dos respectivos cordões
de solda.
O presente trabalho objetiva expor uma breve revisão dos aspectos microestruturais do
constituinte AM, os fatores condicionantes de sua presença nos aços C-Mn e baixa liga, e
sua influência na tenacidade.
Uma atenção especial será dada ao emprego da microscopia eletrônica de transmissão e de
varredura, como equipamentos essenciais a sua detecção. Como sua presenca e natureza
estão associadas a bainita, uma breve abordagem deste constituinte será igualmente feita.

2 - Histórico

Denomina-se constituinte ou microconstituinte AM ou ainda microfase AM, às regiões de


dimensões microscópicas presentes nos aços C-Mn e baixa liga, constituídas de células de
austenita estabilizada. Da presença frequente, e em teores elevados, de martensita nestas
"ilhas" de austenita, decorre sua denominação Austenita-Martensita

Bain e Davenport[1] em 1930, estudando as transformações de um aço eutectóide por


tratamentos térmicos de têmpera isotérmica, colocaram em evidência uma microestrutura
intermediária entre a martensita e a perlita, a qual recebeu, posteriormente, a denominação
de bainita. Coube porém a Habraken[2] bem mais tarde em 1957, realizar um estudo
bastante completo da transformação bainítica envolvendo uma análise de microscopia
eletrônica de transmissão de réplicas de formvar ou metil-meta crilato de silício, que
permitiu determinar mais claramente os mecanismos desta transformação, bem como um
conhecimento mais aprofundado das suas fases constituintes. Como será visto ao longo
deste trabalho, o constituinte AM desempenha um papel preponderante entre as fases
componentes das bainitas.

3 - Morfologia e Formação

Nos aços C-Mn baixa liga, resfriados da região austeníticas a taxas suficientemente
elevadas para suprimir a formação da microestrutura ferrita-perlita, é possível a ocorrência
do constituinte bainita. Quando este se forma a partir da decomposição a altas temperaturas
(superiores a 350°C) da austenita, recebe o nome de bainita superior. Sua formação pode
assim ser descrita: uma lamela de ferrita supersaturada em carbono se forma nos contornos
de grãos da austenita prévia e seu crescimento posterior implica na rejeição de carbono que
ela contém. Graças às temperaturas elevadas, o carbono difunde facilmente para as regiões
austeníticas envolvendo a ferrita. Tem-se portanto uma microestrutura formada de austenita
em lamelas aprisionada por outras lamelas de ferrita. Estas lamelas de austenita poderão
permanecer puramente austeníticas, decompor-se parcialmente em austenita e martensita ou
decompor-se em ferrita e carbetos.(Figs.1-3)

A decomposição da austenita a temperaturas menos elevadas (inferiores a 350°C), dando


origem ao constituinte bainita inferior, ocorre de maneira bem diversa. Com efeito, devido
à pouca mobilidade dos elementos de liga e das interfaces, a primeira lamela de ferrita se
forma por um mecanismo de cisalhamento puro, conduzindo à formação de uma interface
coerente ferrita-austenita, mecanismo este análogo à formação martensítica. Como a bainita
inferior se forma a uma temperatura superior a Ms, a progressão da reação austenita-ferrita
não poderá ocorrer mais por um mecanismo de cisalhamento puro. Será preciso que as
tensões na rede provocadas pela formação da primeira lamela de ferrita supersaturada em
carbono sejam reduzidas pela precipitação deste elemento sob forma de carbetos. Estes são
do tipo epsilon e se precipitam direcionalmente, fazendo um ângulo próximo de 60° com o
eixo principal da lamela de ferrita.(Figs.4-6)

Coube ainda a Habraken, uma notável contribuição ao estudo das bainitas anisotermas [apud
3]
. Estas bainitas são obtidas por resfriamento contínuo e apresentam um aspecto granular,
de onde deriva sua denominação preferencial, ou seja, bainita granular. Nelas, a disposição
em lamelas da ferrita é substituída por uma disposição poligonal e globular. (Figs.7-9) O
constituinte AM toma frequentemente a forma poligonal.(Figs.10-13).

Além de ter sua formação frequentemente associada à da bainita, o constituinte AM pode se


formar isoladamente em presença de outras fases, como a ferrita. Nestes casos, a formação
específica do constituinte AM, pode ser descrita pelo seguinte processo já correntemente
aceito: [4] no resfriamento a partir da região austenítica, forma-se a ferritica bainítica
(Fig.14), tornando estável a austenita remanescente, devido ao seu enriquecimento em
carbono provocado pelo crescimento nas regiões adjacentes desta própria ferrita bainítica,
que é inerentemente pobre em carbono. Este enriquecimento termina a temperaturas em
torno de 400-350°C, momento em que o teor de carbono da austenita remanescente atinge
0,5-0,8%. No resfriamento que segue, parte desta austenita decompõe-se em ferrita e
carbetos, no intervalo 300-350°C. Caso o resfriamento seja rápido, esta decomposição pode
não ocorrer, e então, a austenita não decomposta transforma-se em martensita em ripas ou
maclada, a mais baixas temperaturas, e uma pequena quantidade de austenita permanecerá
retida. Este é o processo aceito de formação do constituinte AM (Fig.15).

4 - Ocorrência em Cordões de Solda

Os cordões de solda são constituidos de regiões com microestruturas no estado bruto de


solidificação, onde a ocorrência do constituinte AM é bastante frequente, sendo muitas
vezes controladora da sua tenacidade. Nas regiões dos cordões de solda que tenham sido
reaquecidas a altas temperaturas quando da deposição dos passes de soldagem, é possível
que o constituinte venha a sofrer algum tipo de decomposição total ou parcial. Paranhos[5]
realizou um estudo bastante completo sobre a influência da composição química (elementos
C, Mn, Ni, Mo) e do revenimento provocado pela deposição dos passes de soldagem, na
microestrutura e tenacidade de cordões de solda de aços C-Mn baixa liga. Deste estudo
destaca-se a importância que o constituinte AM exerceu sobre a tenacidade. Quando
presente preponderantemente sob forma de lamelas (Fig.16) confere baixa tenacidade ao
cordão de solda.
Uma microestrutura reconhecidamente tenaz é a ferrita conhecida como acicular (Fig.17).
Sua granulação fina, aliada a um aspecto entrelaçado, com contornos de grãos de alto
ângulo e com elevada densidade de discordâncias, lhe conferem alta resistência e boa
tenacidade.

A presença do constiuinte AM em altos teores, pode reduzir drasticamente a tenacidade da


ferrita acicular (Fig.18)
Neste caso, Paranhos [5] mostrou que o revenimento causado pela deposição dos passes de
soldagem tem como efeito decompor o constituinte AM em ferrita e carbetos (Figs.19, 20)
recuperando desta maneira a tenacidade da ferrita acicular.

Os mecanismos pelos quais o constituinte atua negativamente sobre a tenacidade dos aços
não é ainda totalmente esclarecido. É já aceito [6] que a subestrutura do constituinte AM
constituída de alta densidade de discordâncias e/ou maclas, lhe confere alta fragilidade e
alta dureza. O que parece ser ainda objeto de controvérsia seria o local de início de fratura
frágil em caso de solicitação mecânica submetida a microestruturas contendo o constituinte
AM. Este poderia ser no próprio constituinte AM ou na sua interface com a matriz ferrítica.
Mais ainda, a diferença de dureza entre o constituinte AM e a matriz ferrítica, provoca
concentração de tensões e um estado triaxial de tensões na matriz ferrítica em torno do
constituinte AM, já que somente esta poderia acumular deformações.

Souza [7], em estudo sobre a influência do elemento cromo em metal de solda de aço C-Mn,
verificou que o aumento do teor de cromo propiciou um refino da ferrita acicular até
1,18%Cr, sendo que a partir deste teor observa-se o a formação de AM prejudicando a
tenacidade. Adicionalmente, os autores [7] realizaram uma adaptação de uma técnica de
ataque, proposta por Ikawa[4] para metal de base, afim de observar e quantificar os
microconstituintes AM em microscopia eletrônica de varredura, a qual consistiu em aplicar
um ataque eletrolítico seletivo. O uso do ataque seletivo tem por objetivo evitar que
carbetos sejam confundidos com o constituinte AM. A figura 21 mostra o mesmo metal de
solda atacado com reagente convencional e com o ataque seletivo.

Alé[8][10] mostrou que a influência deletéria do constituinte AM na tenacidade de aços se


estende igualmente à região do metal de base adjacente ao cordão afetada pelo calor
desprendido pela soldagem, conhecida como ZAC. Uma contribuição porém interessante de
seu estudo se refere à possibilidade de detectar o constituinte AM por microscopia ótica,
em baixos aumentos, sem confundi-los com carbetos. Alé[8] desenvolveu um ataque
específico para separar carbetos do constituinte AM, e que consiste em aplicar um ataque
eletrolítico a base de ácido pícrico e hidróxido de sódio, após a aplicação do ataque de
LePera [apud 9]. Assim, os carbetos são preferencialmente atacados formando depressões na
matriz tornando, portanto, sua imagem escura. O constituinte AM, menos atacado que a
fase ferrita, aparece em alto relevo, permanecendo portanto claro (Fig.22).

5 - Considerações Finais

A presença do constituinte AM em metais de base e em cordões de solda de aços C-Mn é


de fundamental importância como fator controlador da tenacidade. Trazendo fragilidade à
matriz onde esteja formado, pode comprometer seriamente sua tenacidade. Este fato é
preocupante na medida em que esforços tem sido realizados pelos especialistas que
desenvolvem novos produtos siderúrgicos, no sentido de aumentar a sua resistência
mecânica sem perda de tenacidade. Para tanto, limita-se a presença de elementos
fragilizantes ao aço C-Mn, como o carbono, e adiciona-se elementos de liga que propiciam
a formação de microestruturas tenazes, como a ferrita acicular. Além disso, nos produtos
laminados, buscam-se técnicas sofisticadas de laminação controlada que assegurem refino
de grão. Ora, todo este esforço pode ficar comprometido se a possível presença do
constituinte AM não for levada em conta. Isto porque sua formação é facilitada pela
presença destes elementos que são adicionados para aumentar a resistência mecânica dos
produtos siderúrgicos. Além disso, sua formação se dá em um intervalo relativamente
grande de temperaturas, e a taxas de resfriamento que são correntemente encontradas na
prática de fabricação de aços, e em soldagem.
Suas dimensões reduzidas são um fator agravante ao quadro descrito, já que sua detecção se
torna mais difícil. Neste aspecto, a primeira técnica de detecção empregada, a de
microscopia eletrônica de transmissão, já foi substituída com vantagens pela técnica mais
simples e que emprega a microscopia eletrônica de varredura. Como mostrado, alguns
passos importantes foram dados no sentido de conseguir a detecção do constituinte AM via
microscopia ótica, mediante ataques metalográficos específicos.

O aspecto prático do problema reside no fato que o constituinte AM, embora esteja
inevitavelmente ligado à constituição das microestruturas bainíticas de aços e de seus
cordões de solda, deve ter sua presença controlada dentro de certos limites. Isto sem
dúvida, decorrente de seu efeito fragilizante e deletério à tenacidade.

Restam contudo diversos aspectos do problema que permanecem abertos dentro os quais
podemos citar alguns para discussões futuras:
(i) Como o conhecimento da metalurgia física da formação do constituinte AM pode
contribuir no controle de sua presença ?

(ii) Em quais tipos de aços o constituinte AM seria de ocorrência mais frequente e mais
prejudicial ?

(iii) Em cordões de solda, a presença do constituinte ferrita acicular, sempre desejável em


virtude de sua alta tenacidade, é assegurada pela presença de elementos de liga como o
Mn, Ni, Mo, etc... Estes mesmos elementos, conferindo maior temperabilidade aos cordões
de solda, favorecem a formação do constituinte AM, o que de certa maneira, pode a vir a
anular o efeito benéfico da ferrita acicular. Assim a dosagem em teores ideais destes
elementos é fundamental, no sentido de que sua presença deverá apenas conferir melhor
tenacidade sem acarretar fragilização.

(iv) O tratamento térmico de alívio de tensões em cordões de solda de aços é conduzido a


temperaturas entre 600 e 650°C. Em alguns casos, onde o constituinte AM se encontra
pouco ligado, este tratamento poderia dissolvê-lo, tal como o faz o aquecimento dos passes
de soldagem sobre os passes depositados previamente. Este é igualmente um tema pouco
estudado e do qual pouco se encontra como referências bibliográficas.

6 - Bibliografia

1 - Davenport, E. S. and Bain, E. C.- Transaction of the AIME, v. 70, n. 117, 1930.
2 - Habraken, L. - "Essai de synthèse sur la transformation bainitique des aciers". Comptes
Rendus de Recherche, nº 19, novembre 1957, pp. 1-122. Ed. IRSIA, Bruxelles, Belgique.
3 - Rebello, J. M. A. - Tese de Doutorado, ULB-Université Libre de Bruxelles, Bélgica,
junho1975.
4 - Ikawa, H., Oshige, H. and Tanoue, T. - IIW Doc. IX-1156-80,11p.
5 - Paranhos, R. P. R. - "Microestrutura, Composição Química e Tenacidade ao Impacto
de Soldas Multipasse Obtidas por Arco Submerso". Tese de Mestrado. Coordenação dos
Programas de Pós Graduação em Engenharia, COPPE/UFRJ. Fevereiro de 1984.
6 - Habraken, L. and Economopoulos, M. - "Bainitic microstructure in low-carbon alloy
steels and their mechanical properties". Symposium: Transformation and Hardenability in
Steels, Ann Arbor, Michigan, USA, pp. 69-108, 1967. Ed. CLIMAX MOLYBDENUM Co.
7 -Souza, L. F. G, Jorge, J. C. F., Rebello, J. M. A. e Sauer, A. S. - "Efeito do Elemento
Cromo nas Propriedades de Metais de Solda C-Mn Baixa Liga", Anais do XIX Encontro
Nacional de Tecnologia da Soldagem, pp. 127-142, Outubro. 93.
8 - Alé, R. M. - "Efeito da Adição de Elementos de Liga (Cu e Ni) nas Propriedades
Mecânicas e Microestrutura da ZAC de Aços C-Mn Microligados am Nb". Tese de
Doutorado. Coordenação dos Programas de Pós Graduação em Engenharia, COPPE/UFRJ.
Dezembro de 1994.
9 - Shui, C.K., Reynolds, W.T., Shiflet, G.J. and Aaronson, H.I - "A Comparison of
Etchants for Quantitative Metallography of Bainite and Martensite Microstructures in Fe-C-
Mo Alloys". Metallography, v. 21, pp. 91-102, 1988.
10 -Alé, R.M., Rebello, J.M.A. e Charlier,J. - "Efeito da Adição de Cu e Ni na
Microestrutura e Propriedades Mecânicas da ZAC de um Aço C-Mn Microligado ao Nb",
Revista Soldagem & Inspeção, Ano 2, N° 2, pp.27-38, Ed. ABS/SENAI/ABENDE -
BRASIL, jun/jul 1996.

7 -Alguns Sítios de Soldagem Recomendados

THE WELDING ENGINEER'S WELD POOL


American Welding Society
Instituto de Soldadura e Qualidade - ISQ
Netherlands Institute of Welding
The Edison Welding Institute Webserver (EWI,USA)
The Welding Institute (UK)
agosto de 1996 - Rio de Janeiro - BRASIL

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