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Zona Zero.
Segundo Hans, aquele era o apelido que deram à Sala de Testes do Instituto.
Normalmente ter de ir para um lugar com um nome como esse me deixaria
preocupado, mas naquele momento chegava a ser reconfortante. Não sabia se
teria coragem de participar de tudo que estava prestes a ocorrer sem o devido
preparo. Não contava com muito tempo, porém daria o meu melhor para ao
menos dominar aquela magia e Chantel e os outros deviam dar conta de Hipnos.
Ao menos era o que eu esperava.
Era um dia frio e de céu estava nublado em que o vento das montanhas
baixava ainda mais a sensação térmica. Todos que passavam vestiam agasalhos.
Estranhamente todas as blusas, cachecóis e echarpes eram diferentes e não
pareciam em nada como os uniformes, ou melhor, com O uniforme. Se não
fosse a estrutura exagerada do lugar eu poderia jurar que estava numa praça
qualquer da capital.
O vento assobiava ao passar pelas asas da colossal estátua de Galatea que
tomava todo o centro do pátio principal. Não importava quantas vezes a visse,
não conseguia me acostumar com seu tamanho absurdo.
²Galatea« ² murmurei.
²A Deusa da Sabedoria e da Vitória. ± Chantel adicionou ± Sabe a razão de
termos uma estátua dela aqui?
Sorri.
²Sim, eu sei. ± disse, colocando as mãos nos bolsos ± ³Que a Vitória venha
para aqueles que buscam o Saber´. ± recitei.
²Daqui saem a maior parte das descobertas do Continente. Estamos num
patamar científico muito superior ao que os mais otimistas teóricos da década
passada supunham que poderia ser atingido nesse século. ± Chantel se virou
para mim e sorriu solenemente ± Como magos, nós temos o dever de tornar esse
mundo um lugar melhor!
Aquela foi uma frase pela qual não esperava. Não conseguia compreender a
razão por trás daquela frase.
²Por que está me dizendo isso agora? ± perguntei.
²Não sei. ± disse ela, dando de ombros ± Só achei que você deveria saber que
o que está fazendo aqui é importante.
Estava sem palavras. Foi súbito demais para que eu pudesse reagir então
apenas fiquei olhando para o rosto alegre de Chantel. Havia algo naquela
felicidade infantil que doía em mim. Talvez fosse por ela ser tão parecida com
aquela garota. Ambas tinham os mesmos cabelos loiros, os mesmos olhos
curiosos, o mesmo sorriso alegre...
²Obrigado por não ter ido embora! ± ela disse fechando os olhos e sorrindo
para mim.
Era exatamente como aquela garota fazia. Mas não poderia ser ela. Era
simplesmente impossível que fosse. Aquela garota estava morta.
Eu a matei.
²Então, vamos em frente? ± Chantel disse, fazendo um gesto para segui-la.
Apenas obedeci.
Como nunca havia notado como a semelhança entre as duas? Antigas
lembranças começavam a retornar de seus túmulos.

Meu pai e eu sentados no mirante daquela montanha, observamos o Sol se pôr.


Eu era pequeno, mas sabia que tinha feito algo imperdoável e aquela sensação
esmagava meu peito. Ainda assim, ninguém havia falado comigo sobre o
ocorrido. Até aquele momento. Nós dois ficamos lá, parados em silêncio, por
muito tempo. Abruptamente meu pai começou a falar.
²Johan« ± ele disse sem me olhar ± Você sabe que o que você fez foi
horrível, não foi?
Concordei com a cabeça.
²Você sabia desde o início?
epeti o gesto.
²Sabia disso e mesmo assim fez. ± ele disse secamente.
²Eu não queria« ± murmurei.
Ele não falou nada. Devia saber que não estava mentindo, mas aquilo em nada
facilitava a situação para ele ou para mim.
²Johan, sabe por que nós somos homens? ± Ele perguntou, me olhando pela
primeira vez desde que chegamos naquela montanha.
Olhei para ele com o rosto cheio de dúvidas.
²Nós somos homens porque nosso dever é proteger. ± Meu pai disse ± Um
homem sempre deve proteger as pessoas que não se defender! Esse é o nosso
dever sagrado e a razão pela qual nossos corpos são mais fortes! ± Ele parou por
um instante e olhou para o horizonte ± Aqueles que usam seus corpos para
machucar os outros não são homens, Johan. ± ele olhou para mim, sério ± E hoje
você agiu assim.
Aquelas palavras penetraram em mim como lanças. Não aguentava mais
aquilo. Senti meus olhos arderem e lágrimas correram apressadas pela minha
face. Gritei desesperado e arrependido, tentando aliviar a dor que me afligia.
Meu pai me segurou entre seus braços num abraço afável.
²O que você fez jamais poderá ser consertado. ± disse ele, com sua voz se
anuviando a cada palavra ± Mas você pode não errar novamente.
Senti o calor das lágrimas de meu pai caindo sobre mim. Ele me soltou
lentamente, secou minhas lágrimas e me olhou no fundo dos olhos. Seu aspecto
parecia cansado e um sorriso triste estava desenhado em sua face.
²Prometa-me que de hoje me diante sempre agirá como um homem, Johan!

Fazia muito tempo que aquilo ocorrera.


espirei fundo, deixando que o ar frio limpasse as mágoas de dentro de mim.
²Eu prometo« ² sussurrei.
Após mais alguns minutos de caminhada chegamos ao prédio onde ficava a
Zona Zero e todas as salas de testes e equipamentos para experimentação.
²A Zona Zero fica no décimo segundo andar. ± Chantel disse.
²Nesse caso vamos usar o elevador! ± disse, apontando para a grade metálica
na parede.
Chantel desviou o olhar, aborrecida. Por alguns segundos tentei entender a
razão daquilo até que algo me ocorreu.
²Não me diga que« ± antes que pudesse falar fui interrompido pelo olhar
fulminante dela.
ealmente não esperava aquilo. Chantel, a mulher que enfrentou um babuíno
gigante como não fosse nada e que pretende entrar na minha mente para
enfrentar o ³Deus dos Sonhos´, tinha medo de elevadores. Era um medo tão
estúpido, tão ilógico, que senti que fosse começar a gargalhar no meio do salão.
Por sorte consegui me segurar.
²Andar faz bem para o coração! ± falei, tentando parecer compreensivo.
²Desculpe por isso. ± ela disse, aborrecida ± Esse é um medo tão idiota! ±
esbravejou ± Me sinto tão boba!
²Não sei se serve de consolo, mas eu tenho medo de palhaços. ± Disse
sinceramente.
Por alguns instantes ela ficou parada, fitando-me com um olhar inquisidor.
²É tão idiota assim? ± Disse rindo.
²Na verdade é.
Por algum motivo que não consigo entender senti vontade de gritar ³It¶s super
effective!´. E por outro estranho e incompreensível motivo, essa vontade logo
passou.
²Obrigado! ± exclamei chocado.
Ela sorriu animada e me estendeu a mão.
²Não podemos perder tempo!
espirei fundo.
Subir até o décimo segundo andar pelas escadas seria difícil. Olhei para
Chantel, que sorria alegre para mim e sorri de volta. Ao menos tinha algo para
compensar o trabalho.
Após algum tempo, chegamos ao corredor onde ficava a Zona Zero. Seguimos
direto, parando apenas ao chegar à porta de acesso ao lugar. Não havia janelas
ou qualquer outra abertura para dentro. Também não havia nenhum sinal de
cadeados, travas, ferrolhos ou qualquer coisa do gênero. Provavelmente havia
algum tipo de sistema de defesa, mas aquilo não deixava de ser estranho.
²Será que já tem alguém aí dentro? ± perguntei.
²Provavelmente. ² Chantel respondeu, colocando a mão sobre o trinco.
²E vamos entrar mesmo assim?
Ela apenas sorriu parar mim e abriu a porta, entrando na sala logo. Olhei para
lá dentro, mas nada vi. Não era como se houvesse baixa luminosidade ou
mesmo como se não houvesse luminosidade alguma, pois mesmo nesses casos
ainda seria possível perceber algo. Era como se simplesmente não houvesse
nada do lado de dentro. Todo o cômodo parecia uma grande massa inexistente e
aquilo me assustava.
Mas não podia recuar. Juntando coragem, respirei fundo e atravessei o batente.
Por um instante senti como se meu corpo não existisse, como se nada ao meu
redor fosse real. Estava flutuando sozinho na escuridão profunda.
Inesperadamente senti o peso da gravidade sobre mim novamente e meu
corpo caiu com força sobre« algo. Levantei-me com esforço e olhei ao meu
redor.
²Mas que« ± disse atônito.
Para todos os lados que olhava via apenas uma imensidão preta, riscada por
gigantescas linhas brancas formando algo que lembrava uma rede de dimensões
colossais.
²O que é isso? ± balbuciei.
²Isso, Johan« ± a voz de Chantel vinha de trás de mim. Olhei para ela que
estava parada, segurando aquele mesmo bastão que vi da primeira vez ± é a
Zona Zero!
?

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