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TUDO EM SEU

DEVIDO LUGAR
Rodrigo Acioli Peixoto

Mateus Samico Simon


Ilustrações
porta é aberta. À mão, dois livros: Teatro dos Vícios e
Misto-Quente. Um fora indicação de um amigo e, o
outro, uma paixão antiga. Com esmero – certo or-
gulho discreto dos tímidos - dispõe cada livro em seu
devido lugar. Por um indeterminado instante, segue
com olhos e dedos a biblioteca: impecavelmente em
ordem alfabética. Em voz baixa recita:
– Há um prazer inexplicável em arrumar a biblioteca.
Enxuga o suor que transborda-lhe insistentemente testa abai-
xo. O calor era insuportável naquela noite. Assim como em outros dias,
em todos os anos, para trás e para frente. O sol, certamente, era mais
próximo daquela cidade.
Acende um cigarro enquanto pesa quais amigos mortos lerá
a noite. Dentre a vasta (porém modesta) biblioteca, decide por algum
infinito trecho de Borges. O indicador passa lentamente entre as lom-
badas dos livros: Allen, Aristóteles, Artaud, Bergson, Borges, Bu-kowski,
Carrol, Camus. O deslumbramento ante o acaso das letras combinadas
ao alfabeto formarem fortuitas vizinhanças arrancam-lhe um sorriso.
Ainda sobre este encanto, de soslaio, percebe algo estranho em C. Um
choque: COELHO, PAULO.
– Que porra é essa?!
Em suas mãos, O Alquimista. Em sua face, perplexidade. Em
sua cabeça, a indagação de como tal livro parara ali. Nem por engano
o compraria. Alguém mexeu nos seus livros? Esta hipótese é reforçada
pela ausência de um livro. O Livro de Areia estava em seu lugar, O Aleph
também, mas Ficções não. Procura, procura e nada.
Desiste da busca e da leitura. Arrisca um gole de café, mas
o sabor é de cinzas, café frio e formigas:
– PUTA QUE PARIU!
Olha acima como se esperasse uma resposta. O teto resoluto
silencia.
II

Sua casa, pequena, tétrica, uma única janela estreita, cama, com-
putador, pão, mesa, telas, café, desenhos, cds, cigarros, roupas limpas e sujas,
fogão e livros, muitos livros. Tudo comprimido em parcos metros quadrados.
Ele anda. Desolado. Pensativo.
Ulisses, de tão magro, costumava ouvir constantemente que se ema-
grecesse um pouco mais, desapareceria. Branco, como uma página de ofício.
As linhas que desenhavam sua face eram fundas e afiladas qual uma xilogra-
vura. Seus olhos sempre semicerrados davam a impressão de tinta a escorrer.
Mais parecia um livro desencadernado em meio a tantos outros espalhados
pelo quarto. Havia livros mais grossos que ele.
Seu nome: Ulisses. Não era uma homenagem à Odisséia dos
homeríadas, contudo, livresco como era, sempre mentia sobre a etimologia de
si. O nome, em verdade, fora-lhe concedido em homenagem ao seu avô. Este,
segundo contam, fizera uma odisséia das mais comuns em seu tempo: saiu as
pressas da fome seca de algum sertão à fome chuvosa de alguma cidade. O Ul-
isses avô morrera no dia do neto vir a prelo. Apesar do enredo, Ulisses (o neto)
achava a história de seu avô demasiado clichê e preferia atribuir ao intelecto
de seu pai (imaginário) a idéia de citar no filho, um livro. Para completar a
sua biografia, Ulisses contava que seu pai era um erudito autodidata, quando,
de fato, era um comerciante que só havia aprendido números e alguns poucos
sinais de trânsito.
III

Insone, não há pensamentos outros que não o levem ao livro aus-


ente. Adormece sob a claridade morna da manhã. Seu sono é mais inquieto
que a vigília. Entre tremores e suor é acossado por um terrível pesadelo.
Estava com os olhos fechados e ouvia uma voz pausada, incisiva e grave
(provavelmente de Sócrates), a recitar-lhe o antigo preceito délfico:
– Conhece-te a ti mesmo.
Ao tentar abrir os olhos, a luz bruxuleante dos sonhos só lhe per-
mitiu ver as estantes de sua biblioteca absolutamente vazias.

IV

A histeria do celular o desperta. Apesar de respirar o ar asfixiante do


seu quarto, sente-se aliviado por saber encerrado o pesadelo – poucas vezes
acordar lhe fizera tão bem. Ulisses tenta dormir novamente, mas a imagem
das estantes vazias e a voz invisível do sonho não o permitem. Elas per-
manecem mesmo com ele desperto. Senta na cama, com a vista entremeada
pela fumaça de um cigarro matinal encara a biblioteca, e expira. A certeza da
biblioteca se encontrar no mesmo lugar não o deixa menos inquieto. Mesmo
repetindo, em voz baixa, que havia sido apenas um sonho, a sensação de
vazio da biblioteca onírica transferira-se, irremediavelmente, ao seu espírito.
Levanta em direção aos dois tomos da Interpretação dos Sonhos. É
preciso decifrar o sonho para livrar-se dele. A biblioteca vazia e o conhece-te.
Que jogos podem desvelar? O vazio é de fora o conhece-te para dentro.
É nesse interregno que Ulisses encontra a chave invertida do sonho: o
vazio dela é o dele! Há de se fazer uma adequação. Ele não pensa em
ordem alfabética, logo, que ordem imprimir à biblioteca que o con-
temple. Conhecer-se seria assim, conhecê-la?
Um breve sorriso desponta em seus olhos. Arrumar a biblio-
teca é um imperativo. Qual o Ulisses homérico desceu ao Hades,
ele declinará ao seu caos em busca de uma nova
Ordem.

Tem início a viagem de Ulisses ao seu vazio de fora. O alfabeto é a
primeira ordem a destruir e mesmo que, por vezes, coincidências ocorram,
não passam de combinações casuais. No mais das vezes, não passam de uma
combinação alienígena. O que tem haver Kafka com Kant? Contudo, Ulisses
está atrasado. Antecipa mentalmente a reclamação do chefe, o ônibus lotado,
o calor do dia:
– Puta que pariu...

À noite, a porta é aberta:


– Que calor do caralho!
Chega a casa com Antes de Nascer o Mundo e Angústia nas
mãos. E na cabeça, confusão. O dia passara em conformidade ao
pesadelo. Ulisses, em momento algum, esteve onde esteve seu corpo.
Nada fizera corretamente. Nem o trabalho, nem o estudo, nem mes-
mo a bebida o acalentara. E para coroar, tropeçou ante a garota tão
desejada, sua Helena. Ela, que jamais havia ofertado-lhe um olhar, o
intercedeu no bar. Mansa, arrastando a fala até a vertigem:
– O que você tem? Está tão estranho.
Ulisses, desconcertado demais para inventar uma desculpa plausível,
arriscou dizer a verdade:
– Preciso arrumar minha biblioteca.
Um silêncio de duração indeterminada, cortado por breves e descon-
certantes sorrisos, tornou o ar insuportável.
– Até mais, então.
VI

Abre uma cerveja, acende um cigarro. Ao som, A Sagração da Pri-


mavera. Depois do repasto dos malfazejos diários e de alguns goles da música,
Ulisses se ergue. Altivo, fala aos livros:
– Só vocês me entendem, caríssimos mortos! Não os outros, eles não
sabem de nada!
O seu problema é descobrir qual critério fundamental originará a divisão de
seus amigos mortos. Por título? Nem pensar. Por autor... Em meio ao pen-
samento, uma lembrança. A Hora da Estrela não é de autoria de Clarice, mas
sim de um pseudônimo, Rodrigo. Entre Clarice e Stravinsky, é assaltado por
outro gravíssimo problema – heteronímia. O que fazer com Fernando Pessoa,
Alberto Caeiro e Ricardo Reis? E ainda, George Orwel e Lord Auch? Todos
sobre a mesma rubrica? Isso seria justo de direito, mas não de fato. O peso da
imobilidade toma Ulisses e ele brada:
– INFERNO!
Violentamente, põe-se a desmontar a biblioteca...
Em meio ao caos, Ulisses contempla a imagem arquetípica de seu
próprio vazio espelhado nas estruturas secas. Sente um mal estar ainda pior
que o experimentado em sonho: segmentos de reta de ferro assentam paralelos
de vidro e os planos cruzados formam vastos retângulos aparentemente perfei-
tos. Ulisses se depara com a aterradora imagem da geometria desnuda.
À mesa, encara a brancura do papel. Os primeiros desenhos são cui-
dadosos como croquis, logo se tornam esboços que de longe parecem uma
obra cubista e, ao fim, garatujas ilegíveis. Os papéis amassados já não cabem
no lixo.
Ulisses recua e tenta a divisão tradicional dos conhecimentos. É
abordado pela Hierarquia. Qual saber ocupará o lugar da Primeira Estante?
A sua querida Arte, a Filosofia ou a Literatura? Pende a decisão pela Arte; ao
encarar as coleções de arte, desiste. São livros de imagens perfeitas, mas textos
lastimáveis. Não seria justo consigo, caso colocasse um comentador, mesmo
que de um Picasso, acima de um Calvino. A arte é definitivamente rebaixa-
da. No debate entre a primazia da Filosofia ou da Literatura, decide-se pela
primeira. A mãe de todas as ciências ganhará o lugar que lhe é devido – acima,
elevada.
Elabora um esquema hierárquico-onomástico baseado na tabela
periódica. Quando começa a dispor os autores na divisão, se depara com
Marx: filósofo, economista, historiador ou sociólogo? Acrescido o nome de
Marx, a tabela torna-se ilegível. Repleta de rabiscos que ligam um nome à
vários pontos dispares.
Ainda apegado ao seu sistema, Ulisses, qual um matemático, ab-
strai Marx. No entanto, outro problema ainda maior o antecipa – a cronolo-
gia dos conhecimentos. O que fazer com os pensadores da antiguidade? Há
um só tempo: filósofos, médicos, poetas, políticos, etc. Assim, desmorona a
classificação dos autores nos seus devidos conhecimentos. Alfabeticamente
ou cronologicamente? E o que fazer com as biografias? Arrumá-las pelo autor
que escreveu sobre o biografado ou o inverso?
A tabela dos elementos literários esfacela qual o basalto. Ao mais
leve toque.
Tenta mudar o ambiente. Outra música, agora a do harmonio-
so Haydn. Acende um baseado, abre uma cerveja e ensaia fechar os olhos.
Entrementes, a ordem da ordem não deixa de assolá-lo. Na tentativa de se
livrar por alguns instantes dos problemas taxionômicos, começa a folhear
um Gombrich até chegar ao Nascimento de Vênus. Sente uma incontrolável
excitação por aquela pintura curvilínea. Sem titubear, dá inicio ao solilóquio
sexual. Ao abrir os olhos após jorrar, percebe o que fez. Esparramou sobre
a deusa. O arrependimento instantâneo e a vergonha, daquelas que se sente
mesmo sem espelho, o irritam sobremaneira. A página melada é limpa de
modo desesperado, rasgando a pintura. Joga tudo de lado e deita por sobre
os livros desordenados. Aos primeiros toques da alvorada, Ulisses adormece.
VII

Ulisses, apesar de não tem certeza se sonhou esta noite, acorda com o
gosto acre do pesadelo nos lábios. Ergue os olhos embaçados à biblioteca com-
pletamente desarrumada. Neste pesadelo ele está desperto. Dá um trago longo
no cigarro, a expiração ainda mais longa, como se houvesse mais ar dentro do
que fora de si. O trabalho, o trabalho. A vida não esperou e passou. Todavia,
enquanto a desordem empestasse – dentro e fora – era-lhe vedado o dia-a-dia.
Ainda incerto, pega o telefone:

– Alô... aqui é Ulisses. seu
Paulo está?... alô, seu Paulo,
é o seguinte, acordei mal,
muito mal... mas é que
estou vomitando e minha
barriga está esparramada
no banheiro... sei, sei sim,
mas infelizmente não posso
trabalhar hoje... hã?... não...
também sei que é a terceira
vez esse mês e entendo...
... certo, conversaremos
amanhã... me cuido sim,
como não?

Ao fim da conversa, resta-lhe o semblante tenso. Tudo que Ulisses
não precisa é de uma conversa séria com o chefe. Mas antes que as preo-
cupações cotidianas o desviem, os livros o atropelam e exigem uma ordem.
Dedicará seu dia, noite e madrugada, se preciso, à biblioteca.
Postula uma sofisticada taxionomia, ainda muito influenciada pelo
modelo anterior, mas, agora o principio de classificação são as escolas de pen-
samento, que englobariam tanto os saberes, quanto sua historicidade. Com
efeito, um brilho leve de alegria mal o toma e logo desfalece; antes mesmo de
um sorriso. Há autores de natureza tão louca e rebelde que dificilmente se en-
caixam em alguma época. Por outro lado, qual autor teria o privilégio, dentre
todos, de classificar e hierarquizar as demais escolas? Nietzsche, junto com os
sofistas e os pós-modernos? Perdido nesses pensamentos, Ulisses é assolado
por movimentos bruscos de seu estômago. Procura comida, mas tudo que é
resto está podre e vivo: bolor, baratas e outras formas de vida não classificadas
pela ciência. Em todo caso, não comestíveis. Desiste e sai para comer algo
seguramente morto.

VIII

Ao retornar, à mão, Ficções, que havia desaparecido no início do


conto. Ao encarar o livro, seu semblante exala esmero; os olhos, ao mesmo
tempo, taciturnos e vibrantes. Ulisses senta próximo à exígua janela, aproxima
o café do cigarro e abre Borges: A biblioteca de Babel. O universo (que outros
chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito,
de galerias hexagonais. Ora, se Borges escrevera sobre a ordem de uma bib-
lioteca infinita, certamente o ajudaria com a sua, de proporção incomparav-
elmente mais modesta. Sorriu, talvez. O lápis e o papel são postos a guarda,
continua a leitura:
A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco
estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme;... O
homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos
malévolos;... Já se sabe: para uma linha razoável ou uma correta informação,
há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e incoerências... A
certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza.
Borges lera em um dos livros a combinação de letras: dhcmrlchtdj.
Apesar de não ter sentido para si, imagina haver em um dos incontáveis livros,
da ilimitada biblioteca, o segredo de sua composição, ordem e justificativa,
enfim desvelados. No limite, cogita a possibilidade de dhcmrlchtdj ser a grafia
do nome impronunciável de Deus.

Ao encerrar o livro, Ulisses toma para si a seguinte questão: como
trazer esse nome (supondo que dhcmrlchtdj seja um nome) para a sua bibli-
oteca? E neste instante, em gozo, Ulisses decide: habitar um hexágono desta
Biblioteca, divina e irregularmente humana, bastaria para justificar sua vida.
Seu quarto representará um dos infinitos vestíbulos, certamente adaptado,
pois um dos enigmas da biblioteca infinita é que o dorso dos livros não pre-
figura o seu conteúdo, ao contrário dos nossos – ao menos, em tese.

IX

Na companhia dessa questão, anda em silêncio, tropeçando em ob-


jetos espalhados pelo quarto exíguo, tétrico e abarrotado de livros, roupas,
pincéis, comida podre, guimbas de cigarro, mais livros, cinzas e um tanto de
agonia. Ulisses anda, e anda.
Como se algum deus perdido finalmente olhasse para Ulisses, em
meio às ruínas de papel, Saussure aparece. O texto dos anagramas servirá
– melhor que uma luva – de fundamento e arremate ao seu sistema.
Tomado por um estalo jubiloso, uma verdadeira epifania, cogita, as-
sim como Saussure descobriu a lingüística em meio a versos secretos, ele pode
imprimir anagramas a sua biblioteca.
A palavra dhcmrlchdj (mais uma vez, supondo que seja uma) é in-
terpretada, por Ulisses, como um anagrama. Todavia, se alguém tentar com-
preender este anagrama, conseguirá? Pois, o anagrama é um enigma decifrável,
assim como as palavras de um oráculo. Há uma solução possível. A arbitrar-
iedade do sistema, agora vigente, destruiria a possibilidade de decifração. Joga
dhcmrlchdj ao mar.
Só uma coisa estava certa, a disposição hexagonal das estantes.

X

Acende um baseado.
Sua memória volta ao sonho e percebe que a Ordem não deve ser ex-
terior a si. No fim das contas, basta a ele ser possível decodificar o seu sistema;
basta a ele criar o seu dhcmrlchdj. A ligação entre suas afecções intelectuais só
podem ter ele como criador e decifrador do seu segredo. Joga a inteligibilidade
ao mar.
No cume do novo sistema, decide criar anagramas nos quais as pa-
lavras seriam lembrança do sonho – agora, não mais pesadelo – revelador. E
cada palavra-oniríca remeteria às iniciais de seus companheiros mortos.
Ulisses, o demiurgo, inicia
a re-arrumação e se depara, novamente,
com Paulo Coelho. Enfurecido o joga pela
janela.
– Agora, sem isso, tudo dará
certo em minha vida!
Senta à mesa, acompanhado
da 9ª de Beethoven, digita os anagramas
oníricos, ou, como grafa, onirogramas:
Delfos – Derrida, Lacan,
Freud, Orwell, e Saussure; Estrutura, És-
quilo, Tchekhov, Rousseau, Aristóteles;
Sonho: Saramago, Nietzsche, Hobsbaw
ou Hobbes, ou Hegel? Prefere Hobbes;
ao escrever o quaro anagrama Fome, per-
cebe que a fome não é a do sonho, mas
sim do agora. Não come desde o dia an-
terior. Interrompe a composição e resolve
dar-se o prêmio de uma boa comida. Sai
do quarto, não antes sem contemplar com
um sorriso os primeiros movimentos de
sua Ordem.
XI

Abre a porta, desta vez, sem livros, mas disposto e talvez até feliz.
Batiza a nova ordem de hexágono onirogramático-sentimental. Retoma fre-
neticamente o trabalho de ordenador das letras. Até ser despertado do transe
pela histeria do telefone:
– Alô... é ele... e aí, Erasmo! você parece que adivinhou, é claro que
quero beber em demasia, hoje é uma questão de mérito. olha, tu sabes se
minha Helena... hum... perfeito, a Fortuna sorri pra mim... Até!
Orgulhoso seu novo sistema, vai comemorar esperançoso pela rec-
ompensa da fortuna aos seus esforços homéricos contra o caos.
Destoando da silente madrugada, Ulisses chega ao seu vestíbulo
hexagonal de mãos dadas à sua sonhada Helena. Ambos sorrindo, bêbados,
apressadamente a se despirem e se devorarem – com a sede dos que andam
pelos desertos. A fortuna sorri até para os mais miseráveis, é o seu ultimo pen-
samento antes de adormecer nos braços da personagem desejada. Enfim, tudo
está em seu devido lugar. Ulisses experimenta o sono que apenas os justos e as
crianças têm.
XII

Ao acordar, percebe que sua Helena não está mais na cama e, ao


levantar os olhos, enxugando a saliva que escorre deixando-o ligado ao traves-
seiro, tirando com a mão as remelas ressacadas de seus olhos, fixa o olhar, mas
demora a acreditar em seus olhos: Helena em pé, defronte a biblioteca com os
últimos livros na mão. Ela ainda pronuncia algumas palavras, mas os ouvidos
dele estão cegos.
Ela arrumou a biblioteca.
O sangue sobe. Levanta-se rapidamente e repara que os livros foram
organizados de acordo com o tamanho e as cores, talvez por coleções, edições
– nada disso importa. Cego de raiva esbraveja:
– TÁ PENSANDO QUE ISSO É O QUÊ!? FENG-SHUI? Ou
um brinquedo LEGO? Que é só juntar COR com COR e tudo CERTO?
É minha vida que está em jogo, MINHA VIDA! Minha memória, meu IN-
CONSCIENTE! Minha vida...
Ela, claro que sem nada compreender da cena atroz, apavorada, ja-
mais em sua vida presenciara tamanha sandice. Corre em direção à porta,
entre lágrimas e soluços, sem olhar para trás, sem conseguir pronunciar uma
única palavra. Sua Helena era uma Dalila.
Ulisses, por seu turno, continua a gritar e se debater com os ventos e
os livros.
Após o surto, ante o caos e lágrimas, ele decide arrumar novamente
a biblioteca, de acordo com o hexágono onirogramático-sentimental. No en-
tanto, descobre depois que coloca o ultimo livro na estante, que a ordem está
bem diferente em relação à anterior. O que prova que o sistema é inexato e
falho, até mesmo para ele que o organizou segundo seus critérios...

XIII

O desditoso Ulisses recomeça o trabalho...

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