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Turvação – Parte 1

Júlio era o caçula numa família de classe média da zona sul da


cidade do Rio de Janeiro. Seus dois irmãos eram quatro e oito anos mais
velhos, todos com nascimentos planejados pelos pais. Seu pai era um
engenheiro e sua mãe era uma artesã, o que a permitia trabalhar em casa,
num pequeno ateliê, junto aos filhos, que tiveram toda a atenção que poderiam
ter. A família conseguiu, ao longo dos anos, construir uma base sólida,
propiciando aos filhos boa educação e conforto.
Por ser o mais novo, era o xodó de todos, inclusive dos irmãos,
que o cobriam de cuidados e atenção. Era um menino traquinas, que gostava
de piadas e de gaiatices. Adorava pregar peças nos outros e de aprontar
travessuras. Subia em muros, árvores, pulava de locais altos e se pendurava
em lugares perigosos. Sua mãe havia colocado, numa das paredes da sala, um
enorme espelho emoldurado que Júlio fez o favor de quebrar três vezes
jogando bola dentro de casa. Ela quase sempre reclamava de palpitações e
perguntava se ele a queria matar. Seu pai ralhava e o colocava de castigo,
mas, muitas vezes, ria-se por dentro por conta das molecagens do filho.
Não gostava de estudar, mas era realmente iluminado, aprendia
com uma facilidade enorme. Fora agraciado por Deus com muitos dons. Desde
muito novo demonstrou uma inteligência ímpar, sempre capaz de aprender o
que se dispunha. Suas aptidões ainda alcançaram a alçada dos esportes, dos
quais experimentou muitos e sempre conseguiu destaques, seja no futebol, no
vôlei, no atletismo ou no tênis de mesa. Por conta de tudo isto, foi um garoto
popular entre os seus colegas de escola. Não havia festa para a qual não fosse
convidado, dando-se ao luxo de escolher quais prestigiaria. Não que tivesse
inclinação a formar panelinhas, pelo contrário, gostava de ser amigo e de ser
querido por todos. Apenas não gostava de ir a tantas festinhas.
Sempre foi um menino bonito e se tornou um homem bonito
também. É dono de um enorme carisma que faz seu charme e magnetismo
sobre as pessoas ser praticamente irresistível, a ponto de todos conseguirem
desconsiderar aquilo que vem a ser seu maior problema: seu gênio.
Júlio não gosta de ser contrariado, nunca gostou. Houve muitos
problemas por causa disso, muitas discussões, muitas brigas. Divergências
com irmãos, pais, amigos e namoradas. Nesses momentos, parecia outra
pessoa. Tudo por conta de uma incomensurável incapacidade de lidar com a
negação. Não só das pessoas, mas também das de causas naturais ou das
imponderabilidades da vida. Se ele quisesse ir à praia e chovesse, não ficava
apenas chateado, gritava com todos, xingava o mundo, passava o resto do dia
reclamando e irritadiço, como se as pessoas tivessem culpa. Se houvesse
alguém que pudesse culpar, era pior ainda. Ou a pessoa ouvia seus
impropérios calada, ou ele era capaz de ir às vias de fato.
Mas não era qualquer negação, apenas aquelas irremediáveis,
que o faziam sentir-se impotente, sem forças para conseguir mudá-las. Quando
se tratava de pessoas, ele insistia até a pessoa mudar de opinião. Caso não
mudasse, aí sim ele explodia. Se um jogo qualquer representasse uma
negação, ele lutava até conseguir superar as adversidades e quase sempre
conseguia. Era assim que ele se aperfeiçoava em tudo.
Quando menino, era muito apegado a uma tia, irmã temporã de
sua mãe. Ela o tratava com todo o carinho do mundo, não o mesmo que
dispensava aos irmãos dele, pois, quando nasceram, ela ainda era uma
menina também e não os via como sobrinhos, mais como primos talvez.
Quando Júlio nasceu, ela havia acabado de completar dezesseis anos e fez do
menino o filho que ainda não tinha. Levava-o para passear sempre que podia,
lia histórias, brincava e, principalmente, protegia-o das broncas da mãe e do
pai. Ele sempre aprontava suas travessuras com todos, menos com ela.
Esta jovem veio a falecer, aos vinte e cinco anos, em um acidente
de carro que o namorado dirigia. Saíram de uma comemoração e durante o
trajeto de volta a casa, o motorista perdeu o controle do carro, atravessou a
pista e bateu de frente em uma caminhonete. Morreram na hora. Quando a
notícia chegou, Júlio escutou e não aceitou de jeito algum. Não era possível
que não se pudesse fazer nada, ele precisava ver sua tia de novo, não podia
ser assim. Seu confronto com o conceito de inevitabilidade foi traumático. Seus
pais resolveram fazer uso dos serviços de um psicólogo infantil durante um
bom tempo para ajudá-lo a superar a perda.
Júlio era dono de um grande coração, sendo capaz de tirar as
próprias roupas para ajudar alguém em necessidade. Entretanto, às vezes, era
capaz de atos de extremo egoísmo, brigando por bobagens como se fosse um
bicho protegendo sua caça ou seus filhotes.
Seus defeitos, entretanto, não conseguiam afastar pessoa alguma
por muito tempo, se é que conseguiam afastar de alguma forma. Bastava um
olhar ou um sorriso e tudo voltava a ser como dantes.
Júlio cresceu e, sem motivo aparente, decidiu fazer Medicina. A
faculdade fascinou-o e acabou por fazê-lo apaixonar-se. Estudava todos os
livros que caíam em sua mão. Comprava os que podia. Quanto aos outros,
emprestava de amigos ou de bibliotecas e quase sempre fotocopiava as partes
que interessavam, quando não o livro todo. Era-lhe difícil escolher uma
especialização, pois gostava de tudo. Mas, por fim, decidiu que seria um
especialista em neurologia, mais ainda, um neurocirurgião.
Formou-se, fez residência e prestou a prova da Associação
Brasileira de Neurologia. Começou a carreira muito bem, resolvendo casos
difíceis, salvando vidas que estavam por um fio.
Um dia, porém, um jovem de dezenove anos, irmão de sua
namorada, sofreu grave acidente automobilístico, o que resultou um severo
traumatismo crânio-encefálico. Era uma fratura com afundamento do crânio,
em que um fragmento ósseo comprimia e lesava o tecido cerebral. Não havia
muita esperança para o garoto, mas Júlio mergulhou de cabeça na sua
recuperação. Entretanto, não conseguiu, o destino do rapaz mostrou-se
inevitável.
Foi nesse momento, difícil e traumático, que a vida de Júlio deu
uma guinada. Júlio surtou, tornou-se incapaz de avaliar a realidade externa.
Gritou, xingou, empurrou amigos e companheiros de trabalho, chegando a
esmurrar um que o havia segurado numa vã tentativa de acalmá-lo. Ele não
conseguia aceitar a derrota e, como não tinha a quem culpar, acabou culpando
a si mesmo, embora a irremediabilidade do que aconteceu tenha sido atestada
por todos os seus pares. Não aceitava o que havia acontecido e nada o faria
mudar de idéia.
Isolado e depressivo, entrou em crise e afundou. Largou a
profissão, a família, a namorada e os amigos. Júlio era apenas uma pequena
sombra do que fora outrora. Pensava consigo mesmo e não conseguia
entender como não conseguira salvar o cunhado. Esmiuçava os detalhes da
operação, buscando lembrar onde havia errado, ruminava cada detalhe e, cada
vez mais, sentia-se frustrado.
Sua casa era pura desordem, roupas sujas amontoadas, restos
de comida pelos cantos, livros jogados no chão, contas espalhadas junto à
porta de entrada, poeira sobre seus cds e dvds.
Cansado de não achar resposta, sem saber o que fazer, chegou à
conclusão que não havia mais motivo para seguir em frente e decidiu acabar
com aquilo. Pegou o elevador e subiu os vinte andares do seu prédio. Ao
chegar ao último andar, pegou as escadas para ir ao terraço. Caminhou até a
beirada do prédio, olhou para baixo, para em seguida fechar os olhos.
Preparava-se para pular. Foi quando escutou uma voz a lhe chamar. E então, a
dúvida: atenderia ao chamado ou pularia de vez?

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