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Turvação – Parte 2

Era uma voz feminina, doce. Sua convicção já não era a mesma e
não resistiu, virou-se e viu uma jovem mulher em pé, perto da porta de acesso
ao terraço. Aos poucos, afastou-se da beirada. Ela o chamava e ele foi, mas
não sabia o que dizer, nem sabia explicar o que fora fazer ali. Entretanto, não
precisou explicar coisa alguma, pois não foi questionado. A jovem era familiar,
mas não lembrava de onde a conhecia, muito provavelmente era moradora do
prédio e já deviam ter esbarrado-se algumas vezes.
Conversaram durante muito tempo e ele se sentiu bem, como há
muito não sentia. Aquela presença deu novo ânimo, como se fosse uma corda
a resgatá-lo do fundo do poço. De fato, depois deste encontro, Júlio começou a
ressurgir. Tomou novo gosto pela vida. Procurou a família e os amigos. Só não
procurou a ex-namorada, pois não tinha coragem de encará-la. Ainda se sentia
culpado e tinha certeza que ela o culpava também.
Ele encontrava a nova amiga em diversos lugares, na piscina do
prédio, onde ficavam conversando entre um mergulho e outro, na padaria da
esquina ou no supermercado, de onde voltavam trocando idéias. E como eram
parecidos, quase as mesmas idéias, os mesmos gostos. Nunca discordavam.
A família começou a ficar curiosa sobre esta amiga sobre a qual
tantas vezes falava, mas era só insistir que desejavam conhecê-la para ele
ficar irritado. Não queria apresentá-la ainda, não queria dividi-la com pessoa
alguma no momento. Ela era seu talismã e só seu. Como conheciam o gênio
dele, desistiam de pressioná-lo.
Ele convidou a amiga para ir ao cinema e ela aceitou. A partir daí,
começaram a ir a vários lugares, como teatros e shows. E foi em um destes
passeios que ele encontrou a ex-namorada. Não sabia aonde a amiga tinha
acabado de ir e não sabia o que fazer. Não conseguia esconder o nervosismo.
Faltava chão sob seus pés. A moça nada cobrou, olhou-o com ternura e
perguntou como ele estava. Ele queria sair dali, queria esconder-se, olhava
para um lado e para outro e viu a amiga observando-o de longe. Lá ela estava,
lá ela permaneceu. Ele ficou mais calmo e conseguiu falar melhor com a
desnamorada, embora ainda desconfortável e constrangido. Prometeu que
ligaria e se despediu. Chegou perto da amiga, olhou em seus olhos, mas foi
embora sem nada explicar, deixando-a.
Ficou mais um tempo escondido em casa, sem querer sair. Sem
responder a ninguém, sem atender ao telefone. Dúvidas espreitavam sua
mente. Ele não agüentava aquele sentimento de derrota, aquela impotência
diante do destino do cunhado. A culpa o consumia, mortificava-o. Mais uma
vez, foi ao terraço do prédio e à beirada. Ficou sentindo o vento bater em seu
rosto e envolvendo seu corpo como se o convidasse a voar. Num momento de
lucidez, olhou para trás e, mais uma vez, a amiga estava lá, chamando-o.
A vida sorrira para ele de novo. A alegria começou a invadi-lo
como quando a conhecera. Ela foi, novamente, sua bóia de salvação naquele
mar de culpa que o rodeava. Júlio sentia-se cada vez mais dependente
daquela amizade.
No dia do aniversário da mãe dele, apesar do amor que sentia por
ela, não queria ir. Não queria ver tanta gente, ninguém que o aborrecesse. A
amiga fez de tudo para convencê-lo e tanto insistiu que conseguiu, com uma
condição: ela teria que ir junto. A felicidade dele foi enorme quando recebeu um
sim como resposta.
Ao chegarem a casa, foi direto procurar sua mãe. Ela estava na
enorme sala, cercada de gente e ficou muito feliz ao vê-lo. Abraçaram-se forte,
beijaram-se com muito carinho, encheram os olhos de lágrimas. Então ele
lembrou de apresentar a amiga que estava a seu lado. Sua mãe olhava para
ele sem entender, pensou que poderia ser uma das traquinagens de menino do
filho, mas se lembrou que há muito ele não era assim. Ele começou a ficar
irritado com a falta de tato da mãe e perguntou se ela não iria cumprimentar a
amiga dele. Ela ficou ainda mais confusa e disse, constrangida, que não havia
pessoa alguma do lado dele. Júlio ia retrucar quando viu sua imagem no
grande espelho. Estava só. Cercado de gente e só. Caiu de joelhos e gritou.
Todos pararam para olhar o que estava acontecendo.
Tomado pela confusão, pela força do silêncio que se fez ao seu
redor e pela vergonha que o arrebatou, Júlio se levantou e, empurrando quem
ficou em seu caminho, saiu correndo dali. Vagou sem rumo pelas ruas da
cidade, procurando entender o que aconteceu. Buscava explicações para o
fenômeno, mas não acreditava em nenhuma. Sua mente era um verdadeiro
balaio de gatos e ele não conseguia raciocinar direito.
Chegou a sua casa, o telefone tocava insistentemente, a
secretária eletrônica atendeu e ele escutou a voz do seu irmão mais velho,
falando algo sobre sua mãe estar preocupada, mas não conseguiu dar mais
atenção que isso. Queria entender, queria dominar a situação. Percebeu que
nada sabia sobre a amiga, nem onde morava, nem telefone, nem ao menos o
nome. Mas já a havia visto antes. Onde? Não conseguia lembrar. Como
chegara a isso? Sempre fora inteligente, mas não estava conseguindo
concatenar as idéias. E então, desistiu. Encostou-se em uma parede e se
deixou escorregar até sentar no chão.
Milhares de pensamentos pululavam em sua mente e ele se
deixou levar pelo turbilhão imagético que o arrastava. Viu-se menino
pendurado em uma árvore, estudante de medicina no laboratório da faculdade,
jogando futebol com os meninos da rua, trocando socos com outro garoto na
saída do colégio, operando o irmão da namorada, chorando pela morte da tia,
escondendo-se atrás dela quando sua mãe queria dar-lhe uns tapas, olhando a
tia dormir, a tia. Teve um sobressalto e, num pulo, pôs-se a correr em direção
ao quarto. Abriu o armário e puxou uma caixa grande, abriu-a e viu, dentro
dela, muitas e muitas fotos. Procurou, mas não achou o que queria.
Impaciente, virou a caixa em cima da cama e espalhou fotos para todo lado.
Procurava freneticamente e, de repente, encontrou. Sua amiga ali estava.
Ele ficou gelado, sentiu calafrios, não acreditava no que via em
suas mãos, elas não podiam ser a mesma pessoa. Como? Fantasmas não
existem! São ilusões criadas pelas mentes dos fracos para justificar coisas que
não podiam explicar. Eram apenas visões, crias da imaginação. E então, uma
ducha de água fria caiu sobre sua cabeça ao perceber o que realmente se
passava. Visões, ilusões, imaginação. Aquilo era fruto da sua mente. Estava
doente. Estava esquizofrênico. Como não percebera antes? Era um
neurocirurgião, um neurologista e não percebera que estava doente? Não,
nada percebera. Só podia ser isso. Tinha certeza. Estava doente. Mas, se
estava doente, como podia ter consciência disso? Nada fazia sentido. Certezas
e dúvidas alternavam-se como os pisca-piscas de Natal.
Correu para o terraço do prédio e chamou pela tia, gritou,
implorou e, por fim, chorou. Ela não veio. Desesperado, desiludido, com medo,
foi caminhando em direção à beirada, olhou para baixo e viu a rua vazia,
fechou os olhos e sentiu o vento abraçá-lo, convidando-o, mais uma vez, a
voar. Foi quando escutou a voz a chamá-lo de novo. Ele virou-se e lá estava
ela. Chamando e sorrindo. Correu e aninhou-se em seus braços. Sentia-se
bem ali. Protegido, vivo. Não sabia se era um fantasma ou fruto de uma
esquizofrenia, mas não importava, não fazia a menor diferença.

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