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Metodologia de Encenação

Exercício: Encenar um Objecto

O GRAVADOR

(João Paiva – 2011)


Personagens

Benjamin

Sem família, rico, com fortuna roubada a outro magnata, o Mendigo. É uma pessoa rude,
psicótica, agressiva, grotesca. Aos 35 anos, conhece uma mulher, Ágata, num baile de
caridade, apaixona-se por ela e desde então que vivem juntos. Actualmente tem 50 anos.

Ágata

Com 47 Anos, acompanhante de luxo, faz tudo por dinheiro. Quando se deu o roubo, era
amante do Mendigo e deixou-o para seduzir o homem que o roubou, Benjamin. Charmosa,
bela, provocadora, desde sempre que faz um diário vocal, gravando em cassetes as suas
aventuras.

Mendigo

De verdadeiro nome, Henrique, perdeu toda a sua fortuna e respeito quando foi roubado por
Benjamin. Enquanto rico, era charmoso, galã, um verdadeiro quebra-corações. Teve um
casamento do qual nasceu Eduardo, que abandonou ainda bebé por causa de Ágata. Agora,
com 52 anos, vagueia pelas ruas a pedir esmola, completamente transfigurado, sujo,
esquecido.

Eduardo

Abandonado ainda bebé pelo pai, foi educado pela mãe. Uma educação rigorosa, exigente e
implacável. Perdeu a mãe aos 18 anos, e sem saber nada do pai, fez-se á vida. Agora com 30
anos, é um actor respeitado e desejado. Podemos dizer que herdou o charme do pai.
Cenário

A esquina de uma rua, um banco de jardim, janelas, posters de publicidade nas paredes,
papéis no chão, um candeeiro. Anos 90.

A Trama

Há 15 anos, Benjamin invejava a fortuna de Henrique. Elaborou um plano para lhe roubar as
barras de ouro que mantinha nos seus cofres. Ao ter perdido a fortuna, Henrique perdeu
também a amante, Ágata, e ficou na miséria. Uns anos mais tarde, Ágata e Benjamin
encontram-se numa festa de caridade. Ele, o homem mais rico da cidade, a pessoa que todos
veneram, mas um verdadeiro cabrão. Ela de olho nele, acaba por o seduzir, e por ir viver com
ele. Rodeada de todos os luxos possíveis, Ágata têm a vida que quer. Joga com os sentimentos
de Benjamin como lhe dá mais jeito, ainda que Benjamin seja uma pessoa bastante fria e
distante. Ao revoltar-se por causa da vida, Benjamin torna-se uma pessoa violenta e chega até
a bater em Ágata. Esta, que precisa do dinheiro dele para sobreviver, aguenta o clima entre o
casal até que um dia, conhece Eduardo, que lhe dá a volta á cabeça. Pela primeira vez na vida,
ela mete as emoções á frente do dinheiro. Sem saberem, entre si, da ligação entre Eduardo e
Henrique (Filho e Pai) e entre Henrique e Ágata (Homem e Amante), Eduardo e Ágata
apaixonam-se.

Benjamin matava Eduardo se soubesse do caso.

Ágata precisa do dinheiro de Benjamin, mas também do sexo de Eduardo.

Eduardo, descobre entretanto, que foi Benjamin que roubou Henrique, seu pai, e que este
pode ainda estar vivo. Querendo vingar o roubo do pai, Eduardo usa Ágata e juntos planeiam
roubar a fortuna a Benjamin e fugir para fora do país. Ambos sabendo o que Benjamin fez,
mas sem saberem o passado e origens um do outro.
A Cena

(O Mendigo encontra-se sozinho na rua, sentado num banco de jardim. Prepara-se para
começar a tocar harmónica e ao primeiro som, ouve tiros vindos de uma janela próxima.
Assustado, olha em redor mas não se apercebe de onde vieram. Ao voltar a tocar, ouve uma
janela a partir e cai perto dele um gravador de voz atirado dessa janela. No momento da queda
do gravador, algo electrónico fica estragado, fazendo com que o gravador reproduza
aleatoriamente partes da cassete. O Mendigo aproxima-se do gravador para ouvir.)

(ouve-se um som de sintonização entre cada fala aleatória)

VOZ de ÁGATA – (num sitio interior, desconhecido) 21 de Março de 1991, 14h37. Acabei de
comprar a minha última cassete. Vou-me deixar destas coisas, já há provas nestas cassetes que
destruíam a vida de muita gente.

VOZ de BENJAMIN – (em dificuldade) Cabra de merda, mentirosa, o que é que tu foste fazer?
Tentar roubar-me o que eu roubei…

VOZ de ÁGATA – (noutro sitio desconhecido) As pessoas vão ouvir o tiro, mas quando a policia
chegar já vou estar muito longe daqui…

VOZ de ÁGATA – (ouve-se som da rua, movimento de carros, passos, vozes) Táxi

VOZ de ÁGATA – (numa explanada, nervosa, ansiosa, a falar de maneira a que só Eduardo
ouça) É a ultima vez, Eduardo. Tenho que ter a cassete da morte daquele cabrão. Não
planeamos isto tudo para eu ficar sem a prova.

VOZ do TÁXISTA – (ouve-se o rádio de um carro, que para entretanto) São 13.70€, por favor

VOZ de EDUARDO – (num sitio interior, desconhecido) 5 balas, deve chegar (ouve-se o som de
uma arma a ser carregada). Quando ele estiver morto e tu com o dinheiro, livra-te da arma e
encontramo-nos na estação de comboios.

VOZ de BENJAMIN – (surpreso) Ágata, o que é que tu estás a fazer com essa arma na mão?
(a gravação pára repentinamente. Ouve-se um som de sintonização. O Mendigo aproxima-se
do gravador e, ao mexer nele, fixa a reprodução num momento em que Ágata está em casa de
Benjamin e este lhe dá um estalo na cara. A partir de agora, o gravador reproduz, sem
interrupções, a cassete até ao fim da gravação)

VOZ de ÁGATA – (revoltada) Cobarde, nojento. Estou farta desta vida.


VOZ de BENJAMIN – (irritado) Já sabias para o que vinhas, ou vais-me dizer que estás comigo
porque gostas de mim?
VOZ de ÁGATA – (provocadora) Nunca gostei de ti, porco. Tens dinheiro, sim… mas é dinheiro
que não é teu. Dinheiro que roubaste ao Henrique, ou pensas que eu não sei dos teus
esquemas?
VOZ de BENJAMIN – (incomodado) Isso já foi há muito tempo, hoje ninguém sabe dele, e
ainda bem. Ele que se foda todo ai nas ruas, não faz cá falta. Soube que vendeu a casa, as
propriedades e gastou o dinheiro em putas e whisky. Entretanto ficou na miséria e virou
mendigo. Se o visse na rua, ainda lhe cuspia em cima. E tu, sei que eras amante dele. Que lhe
chupavas o dinheiro todo como me chupas a mim, puta de merda. Nunca me enganaste.
VOZ de ÁGATA – (incomodada, revoltada) Ai como te odeio. Ninguém tem nada a ver com a
minha vida. Faço o que bem quero e, pelos vistos, os homens caem todos. Mas não te
preocupes, os teus problemas estão prestes a acabar, tal como na altura acabaste com os dele.
VOZ de BENJAMIN – (ri, no gozo) Ah, vens aqui roubar-me, é? Tu e quantos?

(Ágata pega na arma que traz na mala, aponta para Benjamin)

VOZ de ÁGATA – (definitiva)Eu e esta arma.


VOZ de BENJAMIN – (surpreso) Ágata, o que é que tu estás a fazer com uma arma na mão?
VOZ de ÁGATA – (assertiva) Vou-te matar, Benjamin. Vou roubar a tua fortuna e vou fugir com
o Eduardo.
VOZ de BENJAMIN – (intrigado) Eduardo? O actor?
VOZ de ÁGATA – Sim, Benjamin… o actor.
VOZ de BENJAMIN – (irónico) Tu não sabes quem é o Eduardo, pois não?
VOZ de ÁGATA – (sem perceber a ironia de Benjamin) É tudo o que tu não és, e eu vou-me
embora com ele, gastar o dinheiro que roubaste ao…
VOZ de BENJAMIN – (interrompe Ágata) …ao pai dele…
VOZ de ÁGATA – (atónita) Ao pai de quem?
VOZ de BENJAMIN – (vingativo) Ao pai do teu novo amigo preferido… sim, sua vaca. O
Eduardo é filho do Henrique
VOZ de ÁGATA – (desconfiada, no gozo) Pois claro, e eu sou filha do Bambi. (transição,
agressiva) Deixa-te de merdas, o código do cofre?
VOZ de BENJAMIN – (revelador, misterioso) Não acreditas? Não achas um bocado estranho
aquele sinal no queixo, igual ao do Henrique? (pausado) Vais roubar-me, matar-me e fugir com
o filho de um amante teu? (irónico) Acho que precisas de ir a um psicólogo…
VOZ de ÁGATA – (ignorante, assertiva) Cala-te, mentiroso. Não digas disparates. Estás a dizer
essas coisas para me acalmares, mas não me acalmas. Tu vais morrer hoje.
(puxa a culatra da pistola)

VOZ de ÁGATA – (ameaçadora) O código do cofre?


VOZ de BENJAMIN – (desconfiado da capacidade de Ágata em matar alguém) Não te vou dar o
código.
VOZ de ÁGATA – (impulsiva, derradeira) O CODIGO DO COFRE, SENÃO REBENTO-TE TODO.
VOZ de BENJAMIN – (preocupado) O código muda a cada 6 horas, tenho que ir ao sistema ver
qual é.
VOZ de ÁGATA – (confiante) Então vamos os dois.

(vão até á outra ponta da sala)

VOZ de BENJAMIN – 18459327600, é o novo código. Queres que vá abrir o cofre, ou abres tu?
VOZ de ÁGATA – (desconfiada) Para me estares a perguntar essa merda, é porque tens alguma
coisa preparada… Abres tu, comigo a ver tudo.

(Vão até um quarto, Benjamin abre o cofre que em vez de ter dinheiro, ou barras de ouro, tem
uma arma, carregada, pronta a disparar. Pega na arma, vira-se repentinamente e enfrenta
Ágata)

VOZ de BENJAMIN – Desta não estavas á espera, sua puta. Só vou dizer isto uma vez, ou baixas
essa arma agora, ou quem te mata sou eu.

(há uma inversão de poder, apesar de estarem os dois armados, Benjamin tem a seu favor o
efeito surpresa)

VOZ de BENJAMIN – Baixa a arma.

(Ágata está imóvel, a olhar para Benjamin, sem baixar a arma. Benjamin insiste)

VOZ de BENJAMIN – (definitivo, agressivo) BAIXA A ARMA, CARALHO

(Perante tanta agressividade, Ágata sabe que não consegue vencer Benjamin á força. Cede,
mas para contra-atacar de outra forma)

VOZ de ÁGATA – (a fazer-se inocente) Desculpa, Benjamin. Eu não sei o que estou a fazer. É o
dinheiro, ele sobe-me á cabeça e eu fico descontrolada. Desculpa. Vamos baixar as armas,
vamos acabar com esta estupidez
VOZ de BENJAMIN – (convencido que levou a melhor sobre Ágata) Vocês mulheres são todas
iguais, só pensam em dinheiro e sexo… Baixo quando tu baixares.
VOZ de ÁGATA – (a entrar no jogo de Benjamin) Sim, baixamos os dois
(Começam os dois a baixar as armas, em silencio, no meio da tensão ouve-se o som de uma
harmónica vindo da rua. Benjamin desvia ligeiramente o olhar e Ágata dispara sobre ele, que
responde imediatamente sobre Ágata. Benjamin fica ferido, com um tiro no abdómen, Ágata
morre)

VOZ de BENJAMIN – (em dificuldade, agonia) Cabra de merda, mentirosa, o que é que tu foste
fazer? Tentar roubar-me o que eu roubei… (num fôlego de energia) Deste-me um tiro, puta.
Ainda por cima nem me mataste logo, vais-me deixar aqui a sangrar até à morte.
Incompetente. (bate em Ágata, morta) Puta! Cabra!

(Continua a bater-lhe, pontapeia, pisa, como se fosse um saco de batatas. Dá um pontapé de


raiva perto do bolso do casaco de Ágata e sai o gravador do bolso)

VOZ de BENJAMIN – (surpreendido, em choque) Não estou a acreditar que gravaste esta
merda toda. O que é que ias fazer com a cassete? Não respondes agora? Estás morta, não é?...
Eu digo-te o que vou fazer com a cassete, vou manda-la “pró” caralho.

(pega no gravador, aproxima-o da boca)

VOZ de BENJAMIN – (delirante) E esta foi a ultima gravação de Ágata de Melo e Pinho, que
morreu, toda esticadinha, aqui onde em breve vou morrer eu também. A quem ouvir isto, se
alguém ouvir isto, que nunca se esqueça: Quem tudo quer, tudo rouba. (risos)

(Manda o gravador em direcção à janela, cai para trás e morre. O gravador parte a janela, e
cai ao pé do Mendigo).

FIM

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