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ÁCTO CALTURAL
de José lgnacio Cabrujas

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1. Num extremo, sete cadeiras de aspecto rijo e uma grande mesa com toalha de

brocado e borlas douradas; em destaque, o estandarte com os símbolos da

Sociedade Louis Pasteur (aÌüiga Sociedade Heredia) para o Fomento das Artes,

Ciências e Indústrias de São Rafael de Ejido; profusão de grinaldas, telões

pintados e um arco com flores.

De acordo com o progÍâma" a Junta Directiva entra, Integïam-na:

Hermínia Briceflo, viúva de Peüt: Vogal;

Antonieta Parissí: Vogal auxiliar;

Purificação Chocano: Secretária;

Cosme Paraima: Vice-presidente;

Amadeu Mier: Presidente

O Secretário, Francisco Xaüer de Deus, entra em seguida, deposita o livro de

actas na mesâ e declara inaugurada a cerimónia,

Francisco Declara-se aberta a sessão.

(Longa pau$t e ouve-se um poderaso peido.)

Francisco (Sem se dar por achado) Antes de darmos início à representação da

obra "Cristóvão Colombo, o Genovês Alucinado", ouviremos as

palavras do cidadão Presidente da Sociedade Louis Pasteur, antiga

Sociedade Heredia, para o Fomento das Artes, Ciências e Indústrias

de São Rafael de Ejido.

@rancisco Xavier senta-se, Amadcu Mier levanta-se.)

Òa
Amadeu Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara" Respeitável esposa do

Presidente da Câmara. Reverendíssimo e, desde logo, Ilustríssimo

Monsenhor Pio Nono Mendonza, bispo da Diocese.

Distinto Doutor Voltaire Galvano Sanché2, mestre iluminado da


muito famosa Loja Harmonia e Razão Universal do Sexto Distrito.

Respeitado e aguerrido coronel Macedónio Reys, garante


constitucional.

Eminentíssimo Embaixador do Reino da Holanda, hóspede acidental

da nossa cidade.

Honestíssimas damas zeladoras do voto perpétuo que tão

galhardamente presidem à Confraria do Bom Pastor'

Queridíssimos membros, contribuintes e simpatizantes da Sociedade

Louis Pasteur.

Cultos convidados secundários'

Senhoras.

Meninas,

Senhores.

Público.

ProPomos um minuto de silêncio'

(A Junta Directiva levanta-se.)

Í'rancisco Vai começar o minuto de silêncio'

(Há uma auréola sobre a cabeça dÊ Amadeu Mier. Decorre o


mínuto de silêncio. Hermínia Bricefro chora discretamente.)

Í'rancisco Terminou o minuto de silêncio

(A auréola desaparece. O corpo dírectivo senta-se e da início a:


(Jma breve exposição de assuntos por Ámadeu Mier.)
Amadeu Decorreram cinquenta anos desde o dia em que Isaac e Miriarn
Heredia, filhos do nunca suÍïcientemente chorado Abraham Heredia,

fundaram em São Rafael de Ejido a Sociedade Heredia para o

Fomento das Artes, Ciências e Indústrias. Permanecem aqui os seus


p6us4
lugares e, sobretudo, peÍÍnanecem as suas ausêàcias' (Breve

para coïnprovar o efeito.) Poclíamos perguntar simplesmente e

evitando rodeios: o que se passou? Mas a obra está à


vista e isso não

seria elegante. Podíamos matizaf e voltar a mat\zar a voz para

passou? O que se terá


distrair o silêncio com coisas como: o que se
passar? O
passado? O que se teria passado? O que é que se está a
que é que se passa? Que merda é que se passa?

(O resto da Direcção intervem')

Hermínia Não te exaltes, Amadeu'

PuriÍicação Pronto, Pronto. '.

Antonieta Compostura, Amadeu

Cosme Mais subtil, Amadeu.

Francisco Com calma, Amadeu.

(Amadeu volta a si.)

Amadeu Perdão','euiadizqqualquercoisaeeraqualquercoisafamiliar.''
que eu ia dizer'
O que seria? Não interessa. Era qualquer coisa

Antonietn (satvadora) viram as hortênsias na praça?'Não estão absolutamente

maravilhosas?
(Purificaçãa Chocano começr a tricotar com um singular
virtuosismo e Hermíníq sussutTct qualquer coisa ao ouvido de

Francisço Xavier).

Hermínio (Virando-se para Antonieta) E, no entanto, sinto falta das roseiras.

Foi urna verdadeira cenalhice do general Castro ter esmagado as

roseiras! O álcool tem limites!

(Das mãos de Amadeu começa a escoTner sangue')

Arnadeu o que eu ia dizer é que estou a escoÍrer sangue... e é normal...

(Retoma o diseurso) Celebramos hoje o quinquagésimo aniversário

com um serão cultural da minha propria inspiração intitulado


Colombo, o Genovês Alucinado" ." (Olha para as mãos)
"Cristovão

sangue, não é? Há por aí algum médico? Hermínia,


Antonieta,
É
Purificação...

mãos o
(Purificação Chocano pára de tricotar e toma nas sua^s

sangue de Amadeu. Mier-)

Cosme (Muitonervoso)Achoquedevíamosencerrarasessão.Euma
por cima um
emergência... enfim, acontece a qualquer um' Ainda

milagrel ... Que Íïque registado em acta!

Amadeu (Recuperando) Não, não' Jâ Passou'

Ilerminia (Para os convidados) Como são todos coúecidos' podiam voltar

amanhã! Não vai sangrar todos os dias!

(Antonieta limpa com algoüio as mãos de Amadeu Mier')

Amadeu Já passou. Tudo tem o seu Periodo'


Antonieta Devia-se pensar na canonizaçãra. Monsenhor Mendonza

testemunha!

Í'rancisco Sente-se bem, senhor Amadeu?

Amadeu Não é preciso exagerar. A sessão pode prosseguir'

Cosme Suprimindo-se o discurso, desde logo'

Sem discurso, Amadeul É um verdadeiro "tour de


force" !
Hermínia

pombas
Amadeu Ia simplesmente dizer que o campanário está ali e que as
quis o Altíssimo quando
também estão ali e tudo continua ali como o

Jeová disse: que o campanário esteja ali e as pombas tambem

estejam ali e tudo sirva para o mesmo" ' ou para nada' Ia protestaÍ'

que moÏreu a viúva de


porque desde há quinze anos, desde o dia em

LouisPasteur,aquiestamos,todasassextas-feiras,fomentandoa
e a indústria e as cerâmicas chibchas de são
Rafael" '
a.fte, a ciência

ia... era assim... e tambénr' não é verdade? A ideia era .ser


um

passou'"' não se
bocadinho cómico... e de repente, o sangue-" Já

esperança' Vamos começar' Respeitável


público: vamos
perca a
começar. Tenho dito.

2.

pausa) Estás
PurlÍlcaçlo (Antes de satr) A minha mãe ainda não chegou? (Breve

ai, mamá?

(Purificação espera em vão. Sai com ar compungido')


Ilermínia Eles já voltam. Não desanimem. Vamos começar a sessão' Mas,

claro, é preciso mudar... vestir... maquilhar... Que belo é o teatro!

Não é? Tão antigo, tão... como é... e Gomo dwe ser'.. A arte, meu

amof, que te envolve, que te invade e fu sentindo-a revolver-te poÍ

dentro, como se fosse um homem, um macho de pedra que te

acarícia e aperta e bate e morde e desçoncerta. E entra-se em transe,

como diziaPetrt, o Íneu marido, que está à esquerda de Santa Rosa

de Lima no talhão do cemitéria. (Recorda) Petit. Petit era a arte, era

de origem francesa claro. Petit, tão saudoso, tão imprudente na


morte, íntimo de Maurício Ravel. Tudo é arte, Herminiá!... era o
que ele dizia... e chamava-me Herminiá.,. tudo é arte e ritual! Os

rituais de Petitl A ablução, o despojamento, o pormenor.. ' não era

apenas beber champanhe... era o manuseamento, a pressão, o dedo,

a cultura! E eu descobrindo-me a cada momento do dia! Como não

chorar um homem assim? Eu descobrindo-me, como um documento

perdido, em cada cantinho de Petit e especialmente nas axilas de


petit. Toda a minha vida foi um esconderijo, uma vida de gueixa nos

recantos de Petit. Falou-me de harmonia, mas mais do que falar,

harmonizou-me, orquestrou-me como uma partitura arida que se

enche de oboés e clarinetes e violas de gamba e arpejos. Descobriu

as minhas águas, Petit, essas humidades de que estão cheias as

mulheres de Ejido, que ressonâncias tens, meu amof, e salpicam

como cascatas... O teatro, Herminiá! Que belo é o teatro! Era assim

que me falava, e eu sentia-me no kamasutra do imenso Petit, e amei-

o todas as noites de quarto em quarto de hora, como Athalie, como

Fedra, como Jimena, como Clitmnestra, è sempre com a mesma

garra da eterna lei conjugal... Que viuvez! Que desamparo! Pior do

que uma morte, a sua ausência foi uma afonia... Mais do que a

solidão deixou-me o ócio!... Pobre Petrt @reve pausa). Seis meses

6
mais tarde, findo o luto, entrei peft a Sociedade Pasteur' Aqui ao

menos, podemos recitar poemas. (Otha pardt os bastìdores) Como

estão as coisas? (ouvem-se grunhidos e até mesmo uma


bofetada)

Não devemos fazê-los esperar! Estão a ouvir-me?

(Hermíniaaproxima-sedasaídadgcew.Purificaçãoespreita.)

Purilicação Já vêm. E a mamã sem aparecer' como de costume

Estarár nas suas rotinas, morta talvez'


(Lembra) E a campainha? A
Herminia
camPainha não tocou'

A campainha!
purificação (Como se se tratasse de uma enowne negtigência)

(SaemHermíniaePurificação.owe-sedeimediatoumacarnpainha

'eentramCosmeeFrancisco.Carregamumcolchãoesburacado.
Dursnte a instalação do quarto' Cosme intervém')

Cosme No centro, já disse'

Í'rancisco (Medindo) Mais para lá'

urnct ligeira
Cosme (Para os cowiderdos' depois de as saudar com
inclinação de cabeça) É só um bocadinho!

Í'"oncis"o (Na rnesrna atitude) Depois recuperamos'


a voz) Estás berir' Amad eu? (Depois de uma pausa)
Cosme (Levantand'o

' Não resPonde mas está bem'

Í'rancisco (D;ecide) Aqui'

(Pousarn o colchão')

Cosme E Pesado. De quem é?


F'runcisco Da Antonieta' Emprestou'o.

cosme Antonieta? (sorve entredentes) Falta a vela. Traz a vela.

Francisco Onde está?

Cosme Sei 1ál Procura'

(Frarrcisco sai. Cosme olha para o colchão e continua a sorver.


Antonieta assoma a meio-corPo')

Antonieta Estou a ouvir-te, Cosme!

Cosme $urPreendido) A ouvir o quê?

Antonieta Sabes muito bem o que oiço! E não me pÍìrece apropriado para um

acto cultural!

Cosme De que é que estás a falafl O que é que eu dìsse?

Antonieta Não estás à espera que eu repita! E obsceno!

da bràguilha
cosme obsceno como? Nem sequer mexi as mãosl E os botões

estãotodosfechados,nãofaltanenhumloqueéqueeufizde
obsceno?

Antonieta E esse maldito barulho que fazes com os dentes!

Cosme Não ofendi ninguém! Toda a gente faz isto em Ejidol

AntonietaNãosãomaneirasdechamarumamulher!Disse-toomeupai,há
quinze anos.

Cosmeoteupaifalavamuito!TodaagentesabeissoemSãoRafael.

gente
Antonieta O que é que toda a gente sabe? Eu digo-te o que é que toda a

sabe!
cosme Não quero discutir, Antonieta. Não me agrada discutir com um
homem que não se pode defender pofque já morreu há treze anos-
o
que passou, passou.

Acaba de vez com esse barulho! Queria nem que fosse um


so dia
Àntonieta
semouviressaimoratidadequefazescomosdentes.Háquìnzeanos

que aturo isso!

Cosmefrotestardo)EincontrolávelfQuehei-defaznr,|ouço-te,vejo-te,
vejooteucolchãoesorvooar.Nuncaacheiqueistofosseuma
ofensa. E o melhor que eu tenho em mim!
O meu arl

@ntra Purificação')

Purificaçlo Da parte do senhor Amadeu já podemos começar'

vela' Diz-lhe que já


Cosme Claro que podemos' Estou só à espera da
avisamos.

pede que tenham a


puriticaçf,o (Para os com,idados) o senhor Amadeu
(Inclina'se e sai')
amabilidade de perdoar o atraso'

de uma satisfação'
Antonieta (Que continua fìxa em Cosme) Estou à espera
Cosme.

Cosme Não volto a fazê-lo' Antonieta'

Antonieta Assim espero'

(Antonieta 'cai com grunde altivez')

Cosme@urioso)EsteabsurdamatnarcadodeEjido!Estalicenciosidade
das hormonas que aqui se exerce! Maldita
seja!
(Entra Francisco com am castiçal que coloca oo lado do colchão de

Antonieta.)

Francisco À direita ou à esquerda?

Cosme (Ressentido) Do lado do homem.

(Francisco olha-o interrogativo.)

cosme (Ôbviol A direita.

(Francisco coloca o castiçal e acende a vela')

'- Francisco Nunca me tinha ocorrido'

Cosme O quê?

Essa coisa do lado do homem' Não sabia que havia um


lado do
Francisco
homem. Pensava que era indiferente'

CosmeEcomopensavasdesfloraraPurificação?Deitadoàesquerda?
Como um Pederasta? Que ridículo!

x'rancisco (Atemorizada) Não' não' à direita' claro' à direita"'

vCosme(DepoisdeobservarFrancircoenquantoesteacendeasvelas)Iâ
nãohávelascomoantigamente'Aquímicadesfaz-seenadaeoque

era. (Sobre a vela) Quem a trouxe?

Í'raneisco Foi tambem a Antonieta'

algum
Cosme (Reprimindo o som) Não menciones esse nome' (Permanece
Ejido?
tempo olhondo a luz) Quantos homens terão morrido em

Í'rancisco Machos?

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Cosme Homens, no sentido universal da palawa. Quarttos terão morrido em

Ejido?

Í'rancisco No ano passado. '.

Cosme (Intercompendo-o) Não, não"' desde que Ejido é Ejido'

Í'rnncisco (Corwicto) Podia-se tentar saber'

Cosme Para quê?

um tema
Írancisco E revelálo na conferência cultural das terças-feiras. seria
estuPendo'

CosmePorqueéquetransformastudoemconferências?Porqueestás
mpreafalardetemas?Navidanemtudosãótemas.Hácoisasque

não são tema' Há solidões que não são tema'

que se lembrou'
Francisco pfendido) Mas eu não disse nada' Foi você

11
Cosme IVlas eu não estava a pensar numa conferência. Ocorreu-me porque

me lembrei do general Castro, quando o general Castro passou por

Ejido e correram rumores de que ele pensav a frizilar metade da

população. E agora não me venhas dizer que podia ser um tema


estupendo para uma conferência que me dá vómitos. (Breve pausa)

Antonieta... nunc& contei isto... foi a minha casa às três da manhã e

só por acaso é que as beatas de Ejido não tocararn os sinos a rebate.

Visitou-me àquela hora tão pouco própria para me pedir que


escondesse o pai, que era Inspector dos Pesos e Medidas do

Governo. Nunca pensei que em Ejido houvesse tantos olhos abertos

às três da manhã. Ela levava uma capa negra, como a Madame de

Bovary, e sob a capa? uma camisa branca com lacinhos azul

desmaiado, notavelmente excitante' Aquilo, era o reino da

a agrtaçáo do momento, â capa enredou-se e eu vi-


adrenalina. com
como um
a, Francisco Xavier, vi-a carnal, tÚigida, núbil e lúbrica

wlcão contido. Ali estava ela, com as suas protuberâncias, à espera

que eu tivesse uma atitude decente e heróiça'


interior e
Mas eu senti uma coisa muito grande, um arrebatamento

deu-me para sorver o ar entre os dentes' (Exemphfica) Ela falava


(Sone) A natureza é
comigo e eu.. . (Sorve) Suplicava-me e eu" '

horrível, Francisco Xavier.

Francisco (húeressada) E o Pai da Antonieta?

Cosme O quê?

Í'rancisco Escondeu-o?

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Cogme Algurna vez? Fvzilavam-me logo. Ela foi-se embora assustada sem

sâber que trezentas solteíronas de Ejido a tinham visto naquele

alvoroço nocturno. No dia seguinte celebrou-se uma missa

monumental para comemorar a entrada do general Castro e as outras

começaram a chamar a Antonieta 'virgem clementíssima" as da


confraria do Bom Pastor, a presidente, a secretâria, a delegada
cultural, todas... Não deste por nada?

Í'rancisco Ouvi rumores.

Cosme Querumores?Charnaram-Ihevirgemclementíssimaemaisnada.
Comentou-se
Virgem piedosa' Virgem veneranda' Virgem sapiens'
desde aquela
no Ateneu, Tambem lhe chamaram Flor de Lama
lembra'se') E então o
palestra do Vargas Yila. (Breve pqusa' Cosme

Cristóvão Colombo?

convidados) E eles à
X'rancisco (Olha parafora) Está tudo a postos' (Para os

espera. Daqui a nada começam as tosses'

pode ser um
Cosme E porque tem isto de ser um êxito? Por que não
os meus tempos'
fracasso? Afinal de contas, eu também tenho

(Ouve-se uma campainha' Purificação espreita')

senhor já pode começar o


Purificaçflo Cosme, o senhor Amadeu pergunta se o

prólogo?

Cosme (Despachado) Ê' Pata iâ'

(P urifi cação e sc onde -se')

(Amnrcia) Senhoras e senhores! O acto cultural vai


começar!
Í'rancisco

13
(Franciseo Xavier saí muito preocupada com a atitude de cosme

Pmaima.)

3.

Cosme (sorri) Apelo ao cavalheirismo dos cidadãos aqui presentes. vamos

dar início à representação do drama histórico, "Cristóvão Colombo,

o Genovês Alucinado", pela Respeitável Junta Directiva da


Sociedade Louis Pasteur para o Fomento das Belas Artes, Ciências e

Indústrias de São Rafael de Ejido.

(Atrás de um painel ryarecem as sillruetas de Hermínia, Antonieta e

Purificação, representando Palas Atena, Melpómene e Talia')

senhoras e cavalheiros da amada são Rafael: uma


vez disposto o
Cosme

cenáriocomprimorosaemuitobempensadadecoração,apresenta-se

perante vos a propria História Universal do Homem'


representada

pela menina Purificação Chocano, secretária de actas e

coÍÏespondênciadaSociedadeLouisPasteur'Peçoparaelaum
caloroso aPlauso!

(Durante o aPlauso, Purificação entra, vestidn de Historia

Universal.)

Purificação Como sou a Historia Universal

permito-me fazet um discurso reflexivo

com um ou outro vocativo

para vos contar, Público tolerante,

a verdadeira história de Cristóvão Colombo,

o genovês alucinado e errante'

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Peço-vos uma atenção meticulosa

para percorrer os passos da sua vida,

sem dúvida exemPlar e Proveitosa.

De Colombo, Pouco se sabe,

origem incerta, nascimento incógnito'

Há quem o julgue judeu sefardita

porfuguês humilde ou genovês vadio'


incoerência
Que não vos assuste tanta

pois a páúnaé uma questão de pronúncia'

Se um mundo descobriu com a sua paciência

raro é que ao mundo interesse esta consciência'

E assim o vemos' em euroPeia cama


humana'
protestando contra a incompreensão

Prólogo, entram Amadeu' vestido de


Cristovão
(Durdnte o
viúva de Petit' representando a esposa
de
Colombo, e Hermínia,
os esforços para pctssar despercebidos,
colombo. Fazem todos
e dormir' A História
deitam-se no colchão de Antonieta fngem
(Jniversal retira-se e o drama começa')

4.

sonho!
Amadeu (Acordando de sobressalto) Tiveum

Amadeu acorda'a')
(Herntínia muftnura qualquer coisa'

Amadeu Acorda, Isabella! Tive um sonho!

Eermínia (Mal-humorada) Tu e a tua maldita megalbmania!

Amadeu Qrisionário) Era ela!" '

Hermínia Quem?

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Amadeu A Promessa! Era ela!

IlermÍnia (Levanta-se repentinantente) Levanta o lençol! Levanta o lençol!


Quero ver-te o instrumento! Onde está o teu instrumento? Quem
é

que viste? Não te escondas debaixo do lençol! Com quem estavas?

Com quem estavas a sonhar? Com a meretriz bolonhesa? Sempre a

sonhar com a meretriz bolonhesa! (Tenta tirar a lençol mas não


consegue) A prova está aí, debaixo do lençoll

Amadeu (Sem lhe pre.star atenção) Isabella" '

Hermínia(mplaeaveTEuconheço.te'Comoasminhasmãos!Coúeço-te
bem!

Amarleu(Semaouvir)Osextante'Queroosextante'OndeestáosextarÚe?

Ilerminia A mim não me enganas!

Amadeu O sextante! Preciso do sextante!

(Amadeu procura no colchão')

flermíniaSemprequepensâsnessaputabolonhesadesatasàprocuradb
sextante' Acho isso uma indecêncial

(Amadeu encontra o sextaníe debaixo do colchão)

Amadeu Havia frutos, Isabella, e eu adivinhava os nomes dos frutos'

Hermínia (Ameaçdora) Um dia destes quem te poda sou eu e então hás-de dar

por miml Quero ver se depois te lembras da fruta!

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Amndeu (Interrompendo-a) Bandos de pássaros a voar sobre o mar. Havia

mar, Isabella, e o nofte ia escurecendo, mas eu não sabia onde ficava

o norte porque havia aquelas árvores toda$,' ea atei , Isabella,

parecia cevadâ, uma areia macia que dava vontacle de mergulhar e

retouçar...

Herrnínia Isso é a coisa mais nojenta que já ouvi na minha vida!

Amaden Depois vieram eles, Isabella.. '

ver!
Herrnínia (Fgita adivinha) Os proprietários do bordel! Estou a

para mim: "Cristóvão'


Amadeu ... apareceram atrás das árvores e sorriram

coÍnoestás?"Eeuqueriaficarali,Isabella'deâncora'lunetae
as copas daQuelas
bússola, transformado em pássaro a sobrevoar
que não devo dizer América'
árvores. Era a América, Isabella' Sei

mas como são duas da manhã, posso


permitir-me uma premonição'

Era a América.

Ilermínia Tu não me enganas!

E eu perdia-me naquela vastidão de


Amadeu (Cada vez mais inspirado)
por fim' as planícies de
montanhas, condores e araras até encontrar'
Meu Deus, que árvoresl' ' '
areia mothada e milhares de equinócíos...
jaguares, Iamas, javalis,
Meu Deus, que aranhas e bisontesl E

pérolas,salinaseouro!...ouro,IsabellaÍCidadesdeouro!Unr
e na tradicional
hemisfério de ouro! E está tudo aqui, neste sex:tante
Corno é que
astúcia náutica dos genov eses, (De repente, furioso)

podesfalardeumainsípidaputabolonhes4umanedotico''faux
pas",nummomentoqueeupressintohistórico?Abússola!Procuraa

bússola! E o caderno! Quero anotar isto!

Hermínir Não grites comigo!


17
Àm*deu (Subtime) E a minha outra voz que fala! E a minha outra voz grita

porque é maior que este planeta! Quero a bússola! E o caderno ! ...

Não posso parar!

Ilermínia (Subitamente inferiorizada) Onde e que a puseste?

Amadeu Sei lá onde a pus! Devias estar suspensa do que eu faço e não dessa

domesticidade mesquinha. Eu a ascender ao Olimpo e tu agarras-me

pelos pés!

Hermínia (Cada vez mais inferiorizada) Deve estar por aqui'

Amadeu Procura-a! Cada vez que olho para ti penso numa freira! Numa

imensa madre superiora que supervisiona a minha vida e nem sequer

e capa; de encontrar as minhas bússolas!" '

Ilermínia Há quinze anos não dizias isso!

na
Amadeu sei lá o que disse há quinze anos! Houve mais de um esconjuro
Esteve sempre
minha vidal E afïnal era tão simples interpretá-lo!

ali...

Hermínia (Continuaaprocurarabússola)Nãoconsigoencontrá.la!

Amadeu Procura! Afinal para que é que eu casei contigo?

Ilermínia (Encontra a bús.sola) Está aqui'

(Entrega a bússola a Amadeu')

Amadeu (Agarra rruma pena de pato e escreve) Hoje tive um sonho'

(I{ermíniacomeçüacortartomatespãradentrodeumapanela.)

18
Amadeu E, de fepente, vi a minha vida e senti-me exilado, como se tivesse
sido expulso do lugar onde devia estar. E, de repente, era muito facil

regressar, porque no meu sonho o meu tugar iirrt a um nome'. '

Hermínia (AtIonótonu, quase patética) As mulheres de Ejido cortam tomates de

madrugada, picam cebola de madrugada e ouvem as caÍroças que

passam na calçada. Tudo tem a mesma voz e o mesmo nome. IJma

mancha ou outra no avental é o único acidente possível. O resto e

desteza mais do que silêncio. Mas também há silêncio e tudo é

cómico como uma farsa de ciúmes. Tu acordas e com quem estavas

a sonhar? Contigo mesma, Sonhavas que sonhavas que acordavas e

estavas a sonhar que sonhavas e acordavas' ''

Amadeu E no sonho eu senti que a minha vida não tinha peso... que era como

a vida de um pássaro sobre a imensidão da terra... e a terra


chamava-se são Rafael, onde eu, cristóvão colombo, cumpro o meu

dever, eu, Amadeu Mier, cumpro o meu dever... a suar"' e o meu

suor é sangue, e sinto que não sou nada... quando o general Castro

chega...

quando as portas se fecham à hora do café... e eu digo, quem me

acompanha? Quem vem comigo? Quem me tira deste silêncio?


Agora que são três da manhã e eu ouço um cavalo que passa... um

nada que passa. Que faz um homem em são Rafael de Ejido quando

tem uma fantasia?.,. e quef descobrir a America ou qualquer outra

solidão? Hoje senti que, apesar de tudo, era possível. Eu, Amadeu

Mier, Cristóvão Colombo, a l0 de Fevereiro de 1490.

S. &s luzes bqixaram. Entra Purificação Choco.no vestida de

Inspiração Americana, com fratas e'raios solares que enchem uma

corrrucópia.)

19
Purificação Senhoras e senhores: de seguida a Respeitável Junta Directiva da

Sociedade Louis Pasteur para o Fomento das Artes, Ciências e

Indústrias de São Rafael de Ejido, vai interpretar o primeiro quadro

vivo que tem por título: "Cristóvão Colombo na intimidade do seu

leito, visitado pela Inspiração, o Génio e a Perseverança".

(Entram Antonieta, vestida de Perseverançu, Cosnte, de Ghtio e

Francisco, de Cacique Riberefro. Tomam os seus lugares às e,ccuras

junto ao leito de Colombo, ouve'se uma músicd e a prÓpria


Purificução se junta ao qltadro vivo' As luzes acendem-se.)

Primeiro quadro vivo

Cristovão Colombo na intimídade do seu leito,


vÌsitado pela Inspiraçãct, o Génio e a Perseverança

Descrição

Colombo, sentado na cama, recebe qo mesïno tempo a luz da


Inspiração emforma de rato olímpico e umq carta nautica oferecida

pelo Gentio. A Perseverança, entretanto, berya com absttluta


castidnde afronte do marinheiro mostrardn-llrc o Cacique que esta

aos pés da cama. A mulher de Colombo, conxa é óhvio, dorme a

sono solío e não se dá conta do que aconlece; as luzes apagam'se e

voltam a acender-se mostrando por í7ês vezes o quadro ttitto-

(Saem a Perseveranço, a Inspiração Americqrm eo Cacique.

Hermínia aproxima-se dos convidados. )

2A
Hermínia Venham os aplauso st (Pousa) E preciso aplaudir, meu amor' É

preciso sopraÍ as velas dos marinheiros. Se não... Hão-de desculpar

a insistência mas Petit, o gaulês" aplaudia iempre. Que toureiro,


petitl... no melhor sentido da palawa... sempÍe com o olho no
público,,. Que rectidãol Porque, clato, meu amor, é a Íua vida, que

não é um jogo.,. que levas contigo até' ao dia dos vermes. Está na

hora, minha vida, e umÍl pessoa sempre à espera dos aplausos dos

outros e a matar-se pelos aplausos dos outros. Tudo é som! dizia


petit, ea nossa casa efilum campanário onde tudo repicaïa, tudo

tilintava, Que sonoro era Petit: na varanda onde fazia os seus

ressoava
exercícios, no pátio junto dos galos de briga, à mesa! Tudo
cam&
e eu sentia a recompensa. E na camq meu amor' uma enoríne

de dossel e três degraus, Petit a aplaudir-me depois de terminada


a

Bernhardt
função. E eu saía e voltava a sair como a eminente sarah

vestida de bombom... crocante... espavento' Foi em memória de

Petit que pedi os vossos aplausos, homens de Ejido, para ver se

algum dia acaba com o silêncio. Já agora, se alguém estiver

interessado em colabofar nas tarefas da Sociedade Pasteur, só tèm

que aparecer. Reunimo-nos às teÍças e sextas' Sempre às sete e meia'

Às terças temos as conferênoias culturais a cargo do Amadeu e às

sextas, Assembleia privadíssima. Aceitam-se inscrições à saída'

Muito obrigada.

6. (Durctnte a intemenção de Hermínia, cosme mete uma barba para

se cãracterizar de comerciante genovês. A rnesa da Respeitavel

Junta Directiva serve agora de cendrío. Cosme faz cálculos com um

cíbaeo; Colombo, o marinheiro, entra na laia.)


Annadeu (Com voz de boneco lamuriento) Como acordámos, signor
Brabâncio? Como temos passado? Bem? Tudo bem? A colmeia, vai

bem? A abelha-mestra, gráwida? E Desdémona, continua em

Yeneza? Quando a voltaremos a ver? @ìeve pausa) Esta noite


tivémos urn delírio e pensámos em ti e dissémos cá para nós:
Brabâncio é o homem que nos vai resolver este problema. E de

manhã acordámos rejuvenescidos, cheios de júbilo e esperança,

dispostos a começar a tarefa para a qual necessitamos do teu


modesto contributo, signrtr Brabâncio. (Breve pausa) Que nos clizes?

Pedimos-te duas caravelas e uma modesta tripulação. Nada mais.

Cosme (Tambem com voz de baneco) Esta noite esteve quarto crescente,

signor Colombo. Que andámos a fazer nesta lua?

Amadeu Ouvimos os cães de sempre, sigflor Brabâncio, na madrugada do

costume. Os grilos do costume a bater as asas nos candeeiros de

sempre. iVlas nós, estivemos a germinar ideias sublimes que nos vão

trazer, sem dúvida, uma enonne grandeza espiritual.

Cosme Engravidámos a$ nossas mulheres como se espera de um cidadão das

nossas latitudes?

Amadeu Não. Não as engravidámos. Pelo contrário, sentimo-nos muito fartos

delas. Pedimos perdão, mas ultimamente Íicamos distraidos quando

descansamos nessa caverna. Ocorrem-nos pensamentos geométricos

e medimos larguras e alturas em vez de ir direitos ao assunto como


homens honestos.

Cosme (Entrando na jago) Assumimos condutas muito reprovávei s, signor

Colombo, e ficamos preocupados com semelhantes conÍissões, assaz

vergonhosas.

22
Amadeu Mras, signar Brabâncio, em vez de jogos corporais e pendões viris,

concebemos iguarias imateriais. Pressentimos um ovo gigantesco

suspenso no espaço. E esse ovo tem caminhos, desfiladeiros,

labirintos que levam a outras terras repletas de ouro, diamantes e

pérolas. Viemos contar-to, com grande alegria da nossa parte,

porque se contribuíres com algUm dinheirito para levar a bom cabo a

nossa empresa ate o grwde Kã da Arménia ficarâ doente de inveja.

Que dizemos, signor Brabâncio?

Cosme Porque não falamos como gente, sígnor colombo? Porque estamos

para aqui a delirar sobre um ovo às onze da manhã? o signor

Brabâncio está farto de te ouvir e roga-te que lhe desampares a loja

não sem antes te recomendar que passes por água esse ovo cósrnico

que te acomPanha.

Amadeu (Muito ressentido) Estamos a equivocar-nos mais uma vez, sigpor


Brabâncio. cometemos erros e mais tarde arrependemo-nos.

Cosme Sugerimos que obedeça às instruções.

Amadeu (Desolado) Chegamos, signorBrabâncio, à muito simples definição

de filhos da puta. E por isso vamos embora, tristonhos face a

tamanha mediocridade. Não digamos nunca que a gloria se fez


rogada.

(Ámadeu detém-se e hesita sobre qual o movimento afazer. Decorre

uma pausa.)

Cosme E sais.

Amadeu Não digamos nunca que a gloria se fez rogada.

Cosme (nsiste) E sais.

23
Amadeu E saio' (Mas não sai')

Cosme Há algum Problema?

Amadeu Não. E assim, não é verdade? Acabava "*Uo digamos nunca


"o-
que a glória se fez rogada."

Cosme E vai-se embora'

Amadeu E vai-se embora.

Cosme Com ar de fracasso'

Amadeu Como é um ar de fracasso?

Cosme E o teu. Sais simPlesmente.

Amadeu (Resistindo) Queria...

Cosme O quê?

Amatleu Não sei. Ia dizer qualquer coisa... senti um certo" '

Cosme Um certo quê?. '

Amadeu Uma espécie de dor, em geral... como se fosse Sexta-feira santa...

Cosme Não estás a pensar em sangrar de novol

Amadeu Ninguém liga, não é?

Cosme Acho que não.

Amndeu Ia dizer isso... que ninguém liga. Há tantos anos .que faço
conferências (para os convidndos) às terças, às oito, sobre qualquer

coisa que dê um tema... Tantos anos!.., Tarúos temas!... A


importância do cultivo de café nos solares abandonados de São

24
Rafael... A necessidade de um viveiro de trutas na fonte do Ateneu

de Escuque... O estudo comparativo entre Deus e o generâl Cipriano

Castro,., É incrível como depois de vinte anos ninguém me ouve

porque acham que estou a conferenciar... Até as frases mais

banais... sei lá... bom dia... está frio... boa noite. As pessoas, todas

elas, pensam logo que vou falar do clima ou da posição dos astros.
E

não e assim. Às ue"es apetece-me simplesmente cumprimentar

alguém, só isso. (Lembra-se) como aquela vez.. . quando foi ?.. .

Cosme O quê?

Amadeu Aquela vez daminha mulher e do secretário do Partido Liberal.

Cosme A traição de Lucrécia?

Amadeu (Surpreendido, depois de uma pausa) Às vezes penso que és um


pronto para
arquivo, Cosme. Devias trabalhar no Governo' Sempre

um esclarecimento oportuno. Procura em L de Lucrécia. Quando


foi?

Cosme A l8 de Março de 1915.

Amadeu Todos o sabem em São Rafael, portanto podemos falar à vontade,

não e verdade?

Cosme Mas acontece que, neste momento, estarnos a realizar um acto


cultural, Eminência, e estamos com um drama a meio: Cristóvão

Colombo, o Genovês Alucinado.

Amadeu E que me importa? No fim, ele descobre o continente e a'tenacidade

triunfa. Quem não triunfa sou eu e por isso acho a história da

Lucrécia muito mais interessante'

Cosme (Resigrwdo) Como foi, então?

25
Amadeu Eu tinha a serteza que as c.oisas não iam correr bem com a Lucrécia,

sei lá!... um pressentimento! Houve qualquef coisa que faltou na


noite de núpcias... não sei... Marte zangou-se com Júpiter, qualquer

coisa assim. De manhã, olhei para ela e tinha a cara cheia de


borbulhas... e uma çanada de gripe também' Nunca ouvi falar de

uma mulher que acordasse com gripe depois da noite de núpcias! Foi

um mau presságio,

Cosme É evidente,

Amadeu Ela era uma dessas mulheres que dilatam as narinas por tudo e por

nada.,, como se a vida se reflectisse directamente nas narinas.


Insuflava-as e já r.r*u pà*toa não sabia o que f,azer. Quando o
general Castro, paz à sua alma, tomou Ejido e se fez aUuell festa,

Lucrécia e ele dançaÍam um bambuco. Lembras-te? E ela vai de

dilatar as narinas.

Cosme Não percebo. O que é que isso tem?

Amadeu Era um sinal. Devemos interpretar os sinais. É absofutamente


indispensável interpretar os sinais. Nessa noite, a festa acabou'às

onze horas e o secretário do general Castro veio dizer-me que eu não

podia levar Lucrécia para casa porque Castro queria jogar uma
partida de damas com ela. Eu, naturalmente, desconfiei. E desconfiei

ainda mais quando Lucrécia chegou a casa, cinco dias depois,

alegando que a partida de darnas se tinha prolongado'

Cosme (nteressado) E a gripe?

Amadeu Tinha desaparecido. Estás a ver? Por isso é que eu digo que se

devem interpretar os sinais. Três anos mais tarde encontrei-a nos

braços do Secretario do Partido Liberal.

26
Cosme Todos o sabem em SãoRafael.

Amadeu Mas o que eu vou revelar esta noite, ninguém sabe. Entro no quarto

e vejo-a, sob a imagem da virgem do Perpétuo socorro, a rebolaf-se

nos lençóis que tinham o meu monograma gravado, desenfreada


como nunca a tinha visto. Doido de raiva corri até ao meu quarto e

oleei a pistola para que não houvesse falha possível'

Cosme (Preso à históría) Por isso é que eu digo que as pistolas devem estar

sempfe prontas.

Amadeu Voltei ao quarto. Claro que o Secretário do Partido Liberal se tinha


escapulido. Mas ela tá estava, meio nua, com a cara corada
de

luxúria. E eu gritei-lhe, cosme! Gritei! Insultei-a de pistola na


mãol... Disse-lhe que tinha cometido um ultraje e uma traição.. . que

eu não merecia tanta deslealdade... que era uma desavergonhada'..

na minha própria cas&, n& minha cam&, em flagrante' com um


mem-

bro do Partido Liberall A pistola queimava-me as mãos e eu gritava,


gritava, gritava! ... (Silêncio)

Cosme E então?

Amadeu Então foi a primeiravez que eu senti, Cosme'

Cosme Sentiste o quê?

Amadeu A minha voz, cosme. Senti a minha voz. comecei a ouvir-me e

parecia milagre, uma eloquência incrível, que certeza, que precisão

quase gramatical havia na minha raiva. A gramática, Cosmel Não

havia nada por dentrol Só sintaxe! Adjectivos, advérbios,

substantivos, particípios, concordâncias do plural e uma necessidade

desesperada de evitar as malditas cacafonias. Ouvia-me! Eu ali, de

27
pistola na mão, a ouvir-mel E a falar com ela! E era mais do que

falar, erainformar, ensiÍrar! A certa altura disse qualquer coisa sobre


a honra ultrajada e fui por ali fora com uma autêntica conferência
sobre o sentido da honra na obra dramâtica de Calderón de la Barca.
viu coisa mais ridícula? Eu ali, no meio'da desonra, a falar dos
Já se
dramaturgos do Século de Ouro... "Não querol", dizia eu por
dentro... mas aquilo arrastava-me, Cosme. Esta estúpida

necessidade didática que me acompanha desde cÍiança'

Cosme (Aniquilado) E ela?

Amadeu Se queres saber, no final mostrou-se muito interessada no tema...

Até me pediu que lhe recomendasse bibliografia' Não achas uma


vergonha?

7. (Entra Ì'-rancisco)

Francisco (Ofe ndido) Vou-me embora.

Cosme Embora como?

f,'rancisco (Saindo) Já não se está atratar do Genovês Alucinado. Talvez volte

terça-feira.

Amadeu Nem pensar. O drama continua.

(Francisco detem-se.)

f,'rancisco Continua terça-feira. E é melhor procurarem outro. Não contem

comigo.

Àmadeu Não te vás embora, Francisco Xavier. Como é que te podes ir


embora?

Cosme Está ofendido.

28
F.rancisco Estou e farto. Não foi este o acordo. o combinado efa cristóvão
colombo. o que foi dito é que íamos fazer uma peça sobre
Cristóvão Colombo. Aprovou-se em acta, poi unanimidade, embora

houvesse outra proposta da Hermínia para fepresentar a vida de

Louis Pasteur'

Amadeu Tanto faz. Colombo e Pasteur éa mesma coisa' Ambos são

descobridores.

Não fiques ofendido, Francisco Xavier. continuamos e é como


se
cosme
não fosse nada'

x'rancisco A Antonieta está a despir-se'

Cosme A desPir-se de quê?

Francisco De nada. Dela' Vai-se embora'

AmadeuEacenadaRainhalsabet?Não!Nãosepodeirembora!(Grita)
Antonieta. " não te podes ir embora!

Cosme A não ser que venha nua! E uma possibilidade'

Amadeuphama)Puri{ïcação|(ParaFrancisco)Foisemquefer,Francisco.
Acontece a qualquer um.

@ntra Purificação')

puriÍicação Ela disse que as zeladoras do voto perpétuo aqui presentes"'


(cumprimenta.) como têm passado, minha senhora? Não viu a
mamã, não?... vão ficar ofendidas'

Amadeu Ofendem-se sempre, no fim rezamos um terço'

puriÍicação E que não foi isso que se discutiu em assembleia!

29
Amadeu Diz a Antonieta que a assembleia sou eu.

Fnrncisco Por isso, proponho que se continue na terça-feira.

Cosme E os convidados? Temos uma certa .esponsubilidade para com


convidados. Como é que vamos continuar na terça-feira?

F'rancisco (Que começa a fiear muita nervoso) Não sei. Talvez cada um
pudesse recitar um poema e já estava. Contava a intenção. O que é

importante em São Rafael é a intenção.

Cosme Mas qual intenção? Que eu saiba nunca tiveste nenhuma intenção na

tua vida!

Í'rnncisco Ir-me embora. Já disse que me quero ir embora. Já disse que estou

farto. Porque é sempre assim e não vai mudar nunca! Pelo menos se

eu me for embora sempre muda alguma coisa porque falta alguem. '.

Cosme E o que vai acontecer?

Í'rancisco O que vai acontecer não sei. Alguém sabe o que vai acontecer? O

que eu sei é que já lá vão quinze anos a dizer a mesma coisa' . . Que

fazer? Proponho um minuto de silêncio e siga a ordem do dia?

Quinze anos de silêncio? O dia da árvore, o dia da independência, o

dia do município, o dia da cultur4 o aniversário de Bolívar, o

cinquentenário de Beethoven, o quinquagésimo de Victor Hugo, e


toda a gente sempre presente. São quinze anos de merda e de

códigos, signos e alfabetos! Quinze anos! E a nenhum de vós


importa Cristovão Colombo... nem as inflamações de Cristóvão

Colombo, nem a vesícula de Cristóvão Colombo... neni as unhas

encravadas de Cristóvão Colombo que olhava para as suas unhas

encravadas!...

30
Só dizer as mesmas coisasi E a única coisa que interessa! Esta brutal

fidelidade a nos proprios e à matéria que nos fez assim. Não tinha eu

vinte anos quando entrei pera a Sociedade Pasteur? Não foi esta a

minha vida às terças e às sextas-feiras? O que é que aconteceu

então? O que está a acontecer agora?

Amadcu Nada. Tirando o facto de sermos a Respeitável Junta Directiva.

Cosme (Para Amadeu) Deixa-o ir.

x'rancisco Sou homem Para isso'

Cosme Então vai. Ninguém vai mexer urna palha por causa disso e o tempo

tambem não vai mudar'

Amadeu (De outro modo) Tirando o facto de sermos a Respeitável Junta

Directiva.

(Entra Herminia, vestida de Dama de Companhia')

Hermínia O que é que se passa? Quem é que se vai embora?

Cosme Um comportamento imprudente do Secretário que só por acaso é que

não amrína o esPectáculo.

Irermínia (Para Frartcisco) Que se passa' minha vida?

PuriÍicação Quer ir-se embora.

31
Ilermínia (Escandnlizada) E deixar-me aqui plantada com este atavio que me

custou os olhos da cata] Não me parece uma atitude cavalheiresca,

minha paixão. Mas como e que o meu secretário se pode ir embora?

Não, bichinho, estamos todos aqui, unido, . *i*rurudos para sempre,

na eternidade do projecto. Temos muito Balzaç pela frente, sangue

do meu sangue... e Téophile Gautier... e Alexandre Dumas'.. e

Emílio Zala e outras belas coisas que preenchem as nossas tardes.


Como abandonar? Yâ lâ, meu príncipe. minha silhueta das Mil e

Uma Noites. Um sorriso. Recusamo-nos a respirar se não sorrires.

Aqui, protegidos, tu e eu...

Francisco Eu queria...

Ilermínia Eu também queria, meu doce, e quero e vou continuar a querer. Vou

continuar a querer pela vida fora. Mas agoÍa é avez da função, filho

das minhas entranhas e é a vez do descobrimento da América... a

América, panteral Imagina... a Américal E ele vai e fala com a

rainha e Antonieta está maravilhosa no papel de rainha ... (Nesse

nxomento entra Antonieía, veslida d.e Isqbel, a Católica) Esïás a vê-

la?

8. (Com total discrição, Cosme, Amadeu e Purificação organizam as

coisas até o cenario reprodazir os aposentos prívados de Isabel I,

rainha de Castela.)

IIermínia (Durante a acção) Que porte! Que porte, Antonietal E o trono!...

Que duplo porte! Sim, porque somos aquilo em que nos sentamos: se

a almofada é de leão, rugimos, se é de ovèlha, santificamos, se é de

gato, imaginem só...

Amacleu (Bajutador) Como se sente a Rainha?

32
Antonleta Quero ir para casa.

Hermínia (Compreensiva) Regar as hortênsias?

Àntonieta E se for isso? Não acho ridículo, regar as hortênsias. Ao menos elas

cfescem.

Cosme E nós, não?

Antonieta Há quinze anos... faz hoje quin2e anos... pensei que ia ser diferente.

Estar aqui parecia sef uma alternativa. Pelo menos era não estar em

outfo lugar, e isso já era muito. Não estar em outro lugar pode

significar tanto.

Purificação (Para Cosme) Onde está o coxim?

de Antonieta) Yalerâ a pena


Cosme Qncomodado) Não sei. (Por causa
continuar?

Ifermínia claro que vale a pena. Mas o que é que se está a passar aqui?
Antonieta.., De que é que estás a falar'l Estar ou não estar! Estamos!

Claro que estamosl (Para Francisco) E tu o que é que fazes aí

especado? Amadeu! Faz um ponto de ordeml vamosl Luzes! Que se

faÇaluz em São Rafael. Há discordâncias na Junta Directiva, claro,

como em tudo. unânime só a morte, e essa ainda vem longe, pelo

menos no que diz respeito a esta servidora'

Amadeu (Para os cowidadas) Senhoras e senhores, a muito Respeitável


Junta Directiva da Sociedade Louis Pasteur para o avanço das

Ciências, Artes e Indústrias de São Rafael de Ejido, tem o prazer de

anunciar que o espectáculo vai prosseguir'

Cosme (Avançando) E cabe à menina Purificação chocano anunciar a

próxima cena"

33
(Acendern-se as luzes sobre os aposentos da rainha Isabel de

Castela.)

Amadeu Enquanto isso, o elenco masculino retira-se' '

(Saem Cosme e Amadeu. Francisco hesita e olha para Antonieta.

Faz uma pcrusa, e sai. Purificação, vestida de Hístória Universal,

apr oxima-se do s c otwi dado s )


-

Antonieta (Subitamente violenta) Mas eu não quero continuar! Isto é uma

armadilha! (Para Hermínia) Não vês que é uma armaditha? E ideia

(
do Amadeul Ele odeia-nos! De certezal'

IIermÍnia Amadeu refloresce de três em três meses. Como pode ter ódio? Estás

muito nervosa, Antonieta. Cada vez mais. Mas, também, tanta


cânfora acaba por pôr qualquer uma assim" '

AntonietaEuseioqueestouadizer...Seiquehojeéoúltimodiada
Sociedade. Ele disse-me ontem' "

Hermínia Disse-te o quê?

Ànroniern Que tinha tido um pesadelo... ele disse um sonho mas eu digo um

Pesadelo'

puriÍïcação @o lugar onde está) Que pesadelo? Quem é que teve um pesadelo?

34
Antonieta o Amadeu. (Breve paasd.) sonhou que caminhava num lugar

deSerto e estava muito frio e encontrou um menino e o menino efa

albino e olhava para ele do cimo de uma ro"íru e então ele disse-lhe:

"que fazes, menino?" e o menino respondeu: "estou à espera da

Antonieta, Antonieta deve estar a chegar" e ele olhava-o. a atenção

presa naquele menino quase transparente de tão branco e com um

alhar tãomaligno que não precisava de palavras. E ele escondeu-se e

esperou transido de frio e eu chegu ei iâ o menino tinha barba, uma


barba vermelha e pontiagucla e eu não encontrava o menino mas o

meninrr estava ali e ele sabia que estava ali, à espreita, até que saltou

sobre mim e me deitou de costas sobre aquele chão cheio de

formigas e de repente a Junta Directiva observava aquilo tudo e o

Cosme ria e o Francisco Xavier ria e eu disse "quero voltar


para São


Rafaet e purificar-me com um banho nupcial". Mas são Rafael

não existia. só lá estavam as casas e ninguém dentro delas, só o

olhar do menino atbino em cada lugar, em cada janela, em cada

esquina. E ele estava feliz ao contar-me isto, Hermínia, Disse-me:


,,vai acontecer. um dia, vai acontecer. um dia sefemos uma

transparência, uma sombra do que fomos, se é que já não o somos".

(Fica desconcertada como se o relaío não tivesse terminado.)

Ilermínia (Sorridente, pcrd os convidados) É o ftanse. Não liguem' Ela

também não liga. Qualquer pessoa minimamente culta sabe que

Sarah Bernhardt, a divina, amiga íntima de Petit, diga-se de


passagem, fazia xixi antes de encarnar a personagem. E no entanto, a

França e o resto do mundo civilizado ajoelharam a seus pés,

(Chama) PuriÍïcação.

9.

35
Purificação @ntra)
Muda-se agora o cenário

da Génova audaz e silenciosa

para a fria comarca castelhana

em agrado à moral cristã.

Ali, depois de luta gloriosa,


reina o par de reis católicos.

Ela é Isabel, virtuosa e casta,

e ele, Fernando, preso ao casamento

sem na cama esperar contentamento.

Quis o destino que Colombo, o sonhador,

encontrasse a rota daquele esplendor.

E assim chegamos ao Palácio Real

para assistir a uma cena conjugal.

(PuriJïcação sqi. Ántonieta e Hermínia entram ,ros aposentos de

Isabel de Casíela.)

Hermínia (Vestida de Dama de companhia) Estër 1á fora um estranho due pede

para ser recebido.

Antonieta Como é ele?

Hermínia Tem cara de lobo e nariz curvo.

Antonieta Que espere. Têm chegado demasiados forasteiros a Castela . (Breve


pausa.) Que faz o Rei?

flermínia Joga pelota no frontão do cemitério.

Antonieta Mau agoiro. Ainda se constipa.

(Purificação entra.)

36
purificaçiio (Vestida de Dama de comymhia) F;stílâ fora um estranho que pede

para ser recebido.

Antonieta Como e ele?

purificação Tem corpo de caldeirão e olhos de coruja com cio'

Antonieta Que quer ele?

PuriÍïcação Uma audiência'

Anronieta , (nterrompendo-a.) Isso já eu sei' Que quer ele da audiência?

purificação Fala de barcos e rotas e mapas. E quando fecha os olhos diz que
consegue ver-se por dentro.

Antoniera Deve ser algum estúpido feiticeiro. @reve pausa.) sabes novidades

do Rei?

purificação Continua a jogar pelota no frontão do cemitério.

Antonieta sempre as mesmas notícias! Forque não se cansa ele comigo? Aqui

estou eu, à espera, há anos esperando e querendo o seu cansaço. Esta

noite vão doerlhe os ossos e amanhã será dia de enterro.

puriÍicação Posso chamá-lo, se Vossa y':lteza assim o desejar'

Anronietn Não, Virá de mau-humor e lá voltam de novo as cólicas, Deixa-te

estar, é melhor. Deixem-se estar as duas. Há coisas que eu devo

saber, gestos que devo interpretar. Esta manhã ouvi o Rei dormir.

puriÍïcação (Em segredo) E como é possível ouvir o sono?

Ilermínir Não sabes nada, rapenga. Como é possível não o ouvir? Há


proximidades que não se podem silenciar.

37
Antonieta O Rei dormia sobre o lado esquerdo, com as mãos junto ao rosto e a

luz damanhã batia-lhe no Pescoço.

Hermínia (Exacta) Devia estar a sonhar com a infanta zua irmã.

Antonieta Um incesto Perverso?

Purificaçllo Ele mexia-se? Respirava fundo?

Antonieta Murmurava.

Purifïcnção Mufmurava o quê?

Antonieta Não sei. Aproximei o ouvido mas não consegui perceber.

Purificação Funesto. Pior que funesto'

',Í Antonieta (Para Hermínia) A sério? Bem me parecia'

Hermínia É preciso ouvir. Uma mulher não se pode dar ao luxo de fazer
ouvidos moucos. Tudo no homem tem um signifïcado. O anel e o

dedo. O peito e a dilatação dos poros. A. curva dos olhos e a

vitalidade do cabelo. A minha santa mãe costumava ouvir os fluidps

linfaticos do seu primeiro marido, e era. çapaz de lhe reconhecer os

odores: terebintina, galinhq manjericão, medo e coragem. E em

quarenta anos nunca houve, entre eles, um desentendimento. Que

disse o Rei ao acordar?

Antonieta Primeiro, nada. Grunhiu como um javali contente. Abriu os olhos e

respirou muito fundo.

Purificaçito Perguntei se respirava fundo!

Antonieta Ao acordar. Não no sono. Como e que eu posso saber tudo?

38
Ilermínia ontem foi corvo, hoje javali. se amanhã coaxaf de sapo, sua Alteza

deverá preocupar-se.

Antonieta Nunca o conhecerei completamente. Esconde-se debaixo da pele' É

tão fficil esconder-se aí! E, às vezes, gostava de saber o que é que eu

amo. Como foi concebido? Porque não se trata de entender um

homem. Trata-se de recordar um homem e guardá-lo na memória'

Mas como é que garantes a infalibilidade dos pulmões e a inquietude

do estômago? Esfolando-o? Era uma possibilidade. Entrar-lhe no

sangue e perderes-te aí entre tantas palpitações. E incrível tudo o que

pode movef-se.., E regressas dia após dia.,. (Ántonieta hesita.

Repete.) E regressas dia após dia' '. (Pausa' Olha para os

convidados._) E regressas dia após dia. .. (Pmtsa.) onde? Dia após

dia. . . E regressas dia após dia-.. (Pausa grande')

Hèrmínia (Para os convidados.) Está muito nervosa. Queiram desculpá-la.

Antonieta (Repete.) E regressas dia após dia'..

(Cosme espreita.)

Cosme Não encontro o raio da Pâgina'

Purificação (Salvadora) Vinte e sete, a meio'

Cosme (Depois de ter saída e voltando com o livro) Não há página vinte e

sete.

flermínia Como e que não há pâgSna vinte e sete? Alguma vez se viu um

drama sem página vinte e sete?

Àntonieta @ncontranda) E regressas dia apos dia ao mesmo lugar'

Purificação (Fetiz) Ao mesmo lugar! Era isso! Ao mesmo lugarl

39
Antonieta $egura) , .. a um reencontro semelhante'

flermínia Que São Rafael inteira ouça! É ela! Antonieta Parissíl A nossa

abnegada enfermeira municìPal !

Antoniera E e a única razãal A única verdade! Esperá-Io... Porque ele vai

chegar um dia!...

Hermínia Não é um colosso? Não é um talento? As nuances... o ritmo das

frases... a cadência... Como é que ela disse? E regressas dia após

dia ao mesmo lugar.

Antonieta (nspirada) E regressas dia após dia ao mesmo lugar, a um

reencontro semelhante ... E é a única razão|... A única verdade!...


Esperá-lo. .. Porque ele vai chegar um dia!' - '

Ilermínia Não e um portento? Não é de arrepiar? (Repefe/ Porque ele vai


chegar um dia!...

Anronieta (Retoma) Porque ele vai chegar um dia!... e eu contarei as horas ate

esse dia chegar, .. (Interrompe-se.)

purificação E eu contarei as horas até esse dia chegar.,. Continua Antonietal


Eles ouvem-te! Estão a ouvir-tel Olhapara elesl O senhor doutorl O

farmacêutico! O bacharel! O generall Outra vez, Antonieta!

Antonieta E eu contarei as horas até esse dia chegar... Os anos que for preciso

até esse dia chegar...

Hermínia (Áproxima-se dos convidados) Seriam amáveis ao ponto de lhe

conceder um aplauso? Por favor! E ela... Antonieta!... as hortênsias,

os gerânios... Minha Nossa Senhora Santíssima... Nossa Mãe de


Deus Santíssima... Nossa Vida Santíssima... Quarenta anos à (

mesma janela à espera do Rei Católico...


Antonieta E eu eontarei as horas até esse dia chegar... Os anos que for preciso

até esse dia chegar...

Purificação Onde estão os sinos? Quero ouvir sinos!

10. (Ouvem-se os sinos que Purificação pede. A entrada de Francisco

Xwier vestiel.o de Rei Católico, tem algo de apoteótico e o som dos

sinos torna-se mais alegre. Antonieta, Hermínia e Purificação

parecem fesíeia-lo.)

Antonieta Olhem bem para ele, porque se calhar nunca mais voltam a vê-lo! Se

calhar, um destes dias, escondo-o, não vá o sol ressequi-lo. Dois


braços, duas pernas, uma cabeça e um tronco, Mas há qualquer coisa

na espinha deste homem que borbulha e ferve e faz rugit o leão da

divisa.

(Francisco Xavier toma assento e ordena')

X'rancisco As botas apertam-me'

Anronieta (Para Herminia e Purificação) Que esperam? O rei faloul

@ficazes e velozes, Antonieta e'Purificação tiram as botas ao

monarca,)

x,rancisco Está lá fora um curioso estrangeiro que pede uma entrevista.

(Aponta.) A camisa.

(Vestem-lhe a camisu de Rei Católico-)

Antonieta Podes constipar-te. Não te exponhas.

Francisco O manto real.

41
(Purificaçãa entrega o manto ao Rei Hermínia entrega a camisa a

Antonieta.)

X'rancisco O banho.

Purificação Está quase Pronto.

x'rancisco Quero descansar, primeiro.

Antonieta (Pratectora) Silêncio! O Rei quer descansarl

Irermínia E para o almoço de Sua Nteza?

Francisco Qualquer coisa frugal, mais tarde.

Purificaçlto Aguardaremos um sinal no jardim.

(Saem Purificação e Hermínia.)

Francisco Os mesmos rostos e o rnesmo andar de espinha dobrada. Como se


pode ser tão igual?

Antoniern Sinto-te triste, Fernando. Não te alimentas bem. Passas o diã a jogar

pelota no frontão do cemitério. Não achas lúgubre? Suas e cansas-te.

Porquê?

Francisco Não sei. Não penso nisso...

Antonieta E essas equimoses nas costas, os lábios secos. Não tratas de ti. E o
cabelo, começa a caft de maneira irreversível. Porquê?

f,'rancisco Talvez seja o declínio. Estou a repetir-me., talvez. Já a minha mãe

dizia: um dia ficarás sem cabelo. E o meu destino. GostaÍa de falar

com esse estrangeiro,

Antonieta A noite. Agora não.

42
Francísco Parece interessante. Falava de um ovo gigantesco onde todos

homens vivem.

Antonietn Deve ser algum louco.

X'rancisco Não creio. Talvez o mundo seja um ovo. Seja como for, gostava que

fosse alguma cCIisa.

Antonieta Silêncio. Não fales. Nem mais uma palavre.

Francisco Porquê? Disse alguma coisa de mal?

Antoniet* Deixa-me olhar para ti. Assim... como um quadro. Como naquele

dia em Aragão. Tinhas um galo nas mãos. Um galo lustroso e


avermelhado. Lembras-te?

f,'rancisco Não.

Antonieta Eu lembro-me. Eu estava doida para encontrar um pintor, e ter-te


assim toda a minha vida, com o galo na mão como um general que

vai fi,car na historia ou, pelo menos, na minha história. Tu avançando

para mim e eu à espera. Nunca houve pintores süÍicientes, Fernando.

F'rancisco Para quê?

Antonieta E eu queria milhares... milhares de quadros. Tu no palácio' Tu na

alcova. Tu no trono. Tu agora, aí, sentado... mas com todas as fontes

de São Rafael ao fundo e as árvores e os pássaros e todos os meus

mortos atrás de ti. Nem uma cor a mais nem uma cor a menos. Para

43
isso me ftzeram falta os pintores, e nía para o nascimento, nern para

a crucificação, nem para a mãe dolorosa, nem paru a visita dos Reis

Magos. Há demasiados meninos Jesus na minha vida, Rei Católico.

Demasiados lavores, demasiadas flores de papel, demasiados

recantos, demasiadas receitinhas e pontos de caramelo... Sei fazer

isso tudo. Meu Deus... isso tudo... e muito mais!

Francisco Gostava de,..

Antonieta Não. Não fales. Não quero que fales. Era distinto, como o silêncio

que agora oiço, Não o percas. Sei fazer muitas coisas... espera um

instante e faço-te um rol. .. (Pausa.) Tília, por exemplo. Um chá de


tília, fundamental para aplacar a angústia... Mais.'. Bordados. No
dia de Corpo de Deus bordei o manto de Santa Edviges. Mais...
Vinagre.

Se sangrares do nariz pões uma toalha embebida em vinagre e é

remédio santo. ,. (Procuranda) Decoração: o Altar-mor no dia de

São Rafael.. . Compota de pêssego e sem ficar empastelada... Vestir

um morto... Também sei fazer isso... e de maneira a parecer que


dorme, um cadáver alegre para que ninguém sinta a sua ausência...

Mais... Dá-me tempo e lembro-me de tudo... São tantos anos, Rei

Catolico... Jogar na lotaria! Isso tambem, jogar na lotaria! Acender

velas e sem derramar a cera,.. Separar os Íâmos do Domingo de

Páscoa... Prepararo queijo paraacura... Mais quê?

(Antoni e ta chor a b aixin ho. )

44
Franeiseo Mais nada, Rainha Católica. Não há mais nada no mundo. E meio-

dia e estamos rodeados de montanhas. Não existe a menof


possibilidade de imaginar o que quer qÌre sêja que vá além de nós

mesmos. E podíamos Íicar aqui, tu e eu, até ao Íim dos ternpos,

talvez porque alguém nos pensou como uma espera tranquila. E de

repente, Rainha... Antonieta, chorar é a única coisa que me ocoÍTe.

Chorar por estes pequenos nadas. Por ti, por mim. Pelos nossos

mortos e iniciativas. Pelo meu pai, o rei, e pelo meu pai, o alfaiate de

São Rafael. Pelos mais pequenos equívocos que aqui se cometeram,

pelo cheiro do pão e pelo fagote da banda Municipal. Pelas minhas

lembranças, e o meu amor, e o cavalo do general castro, e


por cada

pedra. Definitivamente cada pedra. Por tudo o que sinto queria

descansar.

(Antonieta sentou-se aos pés de Francisco xavier. Decarre uma

Ionga pdusct. Entram Amadeu Mier, Cosme Paraima, Purificação

Chocano, e Hermínia Brìcefro.)

Cosme (Protesta) Mas porquê tanta tristeza antes do intervalo? onde é que

já se viu uma tristeza assim?

Ilerminia Espero que desculpem o nosso querido Secretário. Improvisou uma

melancolia. Uns improvisam piadas, ele improvisa melancolias' Não

tem graça?

45
Amaeleu (Avançando) Senhoras e senhores. Convidados. Altas esferas da

hierarquia. Administradores. Ilustres membros do Partido Liberal.

Cultos profissionais. País em geral. A muito Respeitável Junta

Directiva da Sociedade Louis Pasteur, antiga Sociedade Herédia,


para o Fomento das Belas Artes, Ciências e Indústrias de São Rafael

de Ejido, está profundamente comovida com a amável atenção e

calorosa recepção que todos vós, inoluindo a Direcgão do Ateneu de

Escuque, dedicaram à primeira parte deste serão... O Secretario,

Francisco Xavier de Deus, vai agora anunciar o intervalo.

(Francisco Xavier e Antonieta juntam-se no estrado cultural ao

resto da Junta Directiva.)

Francisco @epois de uma pausa) Dâ-se agora início ao intervalo'

(A Junta Directiva retira-se.)

46
II Acto

l. (A' Junta Directiva da Sociedade f,,ouis Pastettr faz a sua entrada

depois do intewalo. o secretatio, Francisco xavier, declara:)

F'rancisco Vai proceder-se à encenação da segunda patre'

AntonietaQueriadizer'.'(othamtodosparaela)umaspalavras..'sobre
cristóvão colombo e a importância historica da sua vida. ..

noite?
Irermínia $urpreendida) Minha querida. ' ' às dez e meia da

Antonieta (continua) como muitas pessoas sabem, cristovão colombo nasceu

em Génova, província daltiúia.Ignoramos a data, o pai e a mãe.


Foi

um homem exemplar e virtuoso, abnegado e prudente, honesto e


casto.

Cosme (Interrompe) E que fazia ele nos tempos livres? Porque teve onze

machos e quatro fêmeasl

Antonieta A castidade, senhor Paraima, é uma virtude que não exclui uma
moderada prática sexual do homem, e por conseguinte, da mulher.

(Retomã o discurso) Foi uma persónalidade tenaz, plena de vontade

' e de espírito de sacriÍïcio e, quando teve a gentileza de nos

descobrir, a sua vida viu-se coroada pelos louros do suoesso.

Purificoção Que belo, Antonieta! Que mensagem

Antonieta Morreu, como é natural, em Espanha, rodeado de admiração e

afecto, (Pausa) E pronto . Só queria dizer isto' Obrigada'

47
HermÍnia E admirável, não é? Antonieta!.., O rouxinol de Ejido, como lhe
chamou José Angel Buesa naquele memorável recital!. '. Mãos de

Seda chamamos-lhe todos nós, porque dá umas injecções divinas. ''

e aí está ela, cultíssima, cultíssima com o ,",t Colombo ea Nifla e a

Pint4 prodigalizando-se, derramando-se, abrindo as portas do

conhecimento nas loucas cabecinhas dos meus queridos vizinhos de

São Rafael, Não é um mimo? Porque, deixa-me dizer, amorzinho'

que na vida o importante é começar e tu sais daqui a saber quem foi

Cristóvão Colombo, que entre outras coisas se deu ao luxo de te

descobrir andavas tu de penacho e tanga a pensar que a lua era feita

de osso. Vais-te embora e pelo menos uma coisa sabes: o hotnem

nasceu em ltália, morreu em Espanha e era bondoso como o Santo

António. A partir daí orientas-te, continuas a vida que ifi


começaste. .. e quem te põe travão? D.ai até Dostoievsky. O resto é
talento e isso não é da responsabilidade da Sociedade Pasteur.. '

Francisco (Competente) O senhor Presidente, Amadeu Mier, e o Vice-

Presidente, Cosme Paraima, permanecem no recinto cultural, A

restante Junta Directiva retira-se.

Purificação (Repentinamente feliz) A mamã está ali! Estão a ver? Mamã, como
estás? Era às nove, mamã., e eu não fiquei nervosa nem com soluços

e tu a dizeres: vais ficar com soluços... Não, não tive soluços, não é

verdade, senhor Amadeu? E disse tudo do principio ao fim, tudo...

Podemos repetir isto tudo, senhor Cosme? Só para ela ouvir...

Ilerminia (Obrigando-a o sair) Vamos, filha, teremos tempo depois. Ainda te

faltam sessenta anos de Ejido.

Purificaçllo Não te vás embora, mamã.. . O final é tão bonito...

48
Fieatn
z. 6aem Francisco Xcvier, Purificação, Antonieta e Herrnlnia.
Ámadeu e Cosme.)

cosme Eu já sabia que as zeladoras do voto perpétuo não iam voltar.

(Amadea procura entre os cowidados')

Amadeu Se calhar fez-se muito tarde para elas'

Cosme Sabes bem que não foi isso'

Àmadeu Achas que ficaram ofendidas?

cosme Acho que amanhã vai haver conciliábulo de bruxas na sacristia'

AmrdeuMas.'.eomonsenhorPioNono?(Proeura)ondeestáomonsenhor
Pio Nono?

cosme Também não está. É uma conspiração. Esta noite começa o

palavrório nas ruas.

já?
Amadeu Que mais podem dizer que não tenham dito

Cosme Há sempre mais qualquer coisa para dizer, Na melhor das hipóteses,

o Presidente da Câmara corla-nos o subsídio'

Amadeu (Procura entre os e.spectadore.r/ Não o estou e ver' Cosme'

Cosme Quem?

Amadeu O Presidente da Câmara'

Cosme Então já cortou o subsídio.

Amadeu (Para os cowidados) Alguém viu o Presidente daCãmara?

49
Cosme Não sei para que é que tinhas de inventar isto tudo, Amadeu. Fazia-

se uma pequena conferência e pronto. A Hermínia reçrtava A

Cigarra e a Formiga em francês e a Antonìeta fazia... sei lá...


qualquer coisa.,. uma exposição de colchas bordadas... Na entrada

montava-se uma exposição de cerâmica chibcha com arcos e

flechas... Cultura Primitiva de São Rafael, o que é sempre muito


patriótico... o Francisco Xavier fazia um recital de trombone e

assunto arrumado... Se calhar o Presidente da Câmara até nos

aumentava o subsídio! Mas não... Tinhas de ser original!,..

Amadeu Não vai acontecer nada, Cosme. Tu e os teus receios! Tudo te


assusta, tudo é medo e preocupações como se a vida fosse uma
estrada de ovos frescos. Que se passa? Quero interpretar Cristóvão

Colombo! Qual é o problema?

Cosme Mas qual Cristóvão Colombo? O que é que esta catrefada de

disparates que tu escrêveste tem a ver com Cristóvão Colombo?

Amadeu Não sei.

Cosme Sabes, sim. Claro que sabes! Querias que te ouvissem, hoje. Querias

a prova! Não enganas ninguém!... Que mais podem dizer que não

tenham dito já? Achas pouco? A esta hora estão as zeladoras do voto

perpétuo reunidas numa orgia linguística com monsenhor Pio Nono

e com a presidente do Ateneu de Escuque. ..

Amadeu (Procura, angpstiado) Ela também se foi embora?

Cosme Claro! Se o Presidente da Câmara foi...

Amadeu Mas ele saiu com a esposa...

50
cosmeEdepois?Deixaamulhernacâmaraevaitercomaoutraao
Palácio Episcopal. Não é sempre assim?

Amadeu Toda a gente sabe isso em São Rafael?

cosme claro! (Preocupado) Não estás a ver a gravidade do assunto!


Estamos perdidosl Como todas as quartas-feiras, o Presidente da

câmara levarâa presidente do Ateneu até à cascata da lagoa.

Àmadeu E Porquê aí?

Cosme Porque ela cantal

Amadeu Quem e que canta?

CosmeApresidentedoAteneu.semprequeoPresidentedaCâmaraaleva
precisamente
à cascata ela canta vma âria de Lucía de Lammermoor,

quando estão a chegar a uma conclusão mais ou menos definitiva'

Porém, uma noite ensontraram-se n0 Departamento de ornamentos

e Festejos Populares do Município e toda a gente que estava na praça

Bolívar Pensou que havia oqera'

AmadeuTemospassadopormuitascrises,havemosdeultrapassaresta
também. Alem disso, um Presidente não é eterno, ao contrário
da

Pintura do Leonardo da Vinci'

Cosme E nos somôs a pintura do Leonardo da Vinci?

Amadeu Eu não sei o que somos, Cosme' Sinceramente' não sei'

(Co'sme avança)

CosmeCristovãoColombo'oGenovêsAlucinado,cenaquatro'

51
3. @níra Purificação vestida de Historia Universal-)

purificaçõo Agora sim, mamãl (Procura) Onde estás? (Satisfeita) Agora sim!

(Para Amadeul Já posso?

(Cosme veste um traie de monge durante ã cena da Historia

Universal.)

Amatleu Senhoras e Senhores! Não hârazão para alarme! O drama continua!

(Amadeu sai.)

Purificação (Como História Utiversal)

Longos dias esperou Cristóvão Colombo

nos duros bancos do palácio. ,, (pausa)

Impregnado de uma força sublime,

e Paciente. ,. (hesita)
(Paraamamã) Um momento, mamã... eu sei'..

(Repete para si mesma)

Longos dias esperou Cristóvão Colombo

nos duros bancos do Palácio. '.

Impregnado de Força Sublime'..

A sério que eu sei... já digo... vou dizer..- (Repete) Longos dias

sperou cristóvão colombo. .. (Pafa a mamã) Não vamos ficar mal


vistas, mamã... não é, seúor Amadeu? Não é, senhor Cosme? Eu

sabia tudo, clarinho como água, sabia... Não teúo culpa, mamã...

Cosme Podemos cortar a introdução da cena, Nunca gostei muito dela.. -

52
Furificaçlio Não! Eu quero dizer".. (Tenta) Longos dias esperou Cristóvão
colombo. .. (Pausa. Olha para a mamã.) olhe bem para ela, senhor

Cosme , está a rir., . (Puri/ìcação ri.) I;ltimãmente vejo-a e' ' ' não

sei... Poss o falar? ... Assusta-me... talvez por estar morta " ' (Pcua
os convidados) Toque-lhe, senhor... toque-lhe... Ultimamente

acontece-me... fecho-me na casa de banho e ela bate à porta... Estás

aí, Purificação? No quarto: Estás aí' Purificação? Na gaiola dos


coelhos: Estás aí, Purificação? Sim, mamã"' estou aqui"' que

queres? Não é a mim que ela procura? senhor Amadeu' senhor


Cosme... pÍocure-se a si própria..' desde que o papá morreu"'
sabem? O papá morreu, de morte pura, e eu ouü-o a morrer" ' foi

quando frz treze anos, e ele olhou para mim e depois deixou de

olhar... "Que lhe aconteceu?" E ela disse:."Nada' Morreu"' E eu

pensei: tenho de chorar, porque parece bem chorar quando nos

morre o pai... mas não... senti que algo se desprendia dentro de

mim... "olha o que me estâ a acontecer, mamã!" E ela explicou-


me... ',vai acontecer-te todos os meses daqui em diante, porque já
nãO óS uma menina e sim uma rnulher... " Que SuStO, senhOr
Amadeu, ser mulher! A cara muda... e ali está a mamã com a minha

caÍa...como uma bruxa que te diz o que vai acontecer, o que não vai

Agonteger, e O SeU rOStO é um [iWO abertO, em Cada marqa, Cada

ruga... E eu vejo-a e esqueço-me de tudo... porque me vejo a mim


mesma, senhor cosme... aqui em são Rafael, pisando o chão que
mamã,
ela pisou. .. @reve pausa) Mas se esperares um bocadinho,

eu consigo,.. isto do Colombo. '. vou começar'. ' vou dizet" '

Amadeu (Grita) Hermínia! Antonietal Levem-na daqui.

PuriÍicaç[o Mas eu quero dizer...

53
Ámcdeu Ninguém vai dizer nada! Daqui em diante, só se diz o que eu escrevi

e mais nadal Mas que é isto? Trata-se de Cristóvão Colornbo, o

descobridor da Américn e não das intimidades vergonhosas da Junta

Directiva. Na qualidade de autor deste serão ôultural, exijo respeito!

Purificaç!io (Acomlete) Longos dias esperou Cristovão Colombo nos duros


bancos do patácio! Não posso mais, senhor Amadeu!...

Amadeu Hermínial Antonietal

@ntra Hermínia.)"

Hermínia O que éagoraÌ

Amadeu (Apontando para Purift cação) Leva-al

Hermínia PuriÍìcação.

Purifïcação Já sei! Já me lembro!

Hermínia Purificação, vem comigo.

Purifïcaçflo Não!

Hermínia Está um galo na sala de reuniões. Se o visses, Purificação... Um

galo azul e vermelho que acaba de pôr um ovo verde pálido. Anda.

Vamos vê-lo. É um prodígio, Purificação, um autêntico prodígio.

PuriÍicação Mas eu teúo de dizer. É fundarnental que o diga.

Hermínia Vamos, anda... Isto continua à mesma. Não faz mal. Jâ cumpriste a

tua parte. Já se percebeu a tua intenção-.. e vão recordar-te para

sempre. (Para os corwidados) Não é verdade que se falarátdela nos

próximos cento e cinquenta anos?

Purificaçlio E a mamã?

54
Ilermínia A mamã está bem, Purificação. Está feliz e orgulhosa". Não está,
mamã?

Purifïcação @nqmnto sai, ,seguida de Hermínia) #Ia a üzerque Colombo está à

espera... e a Rainha está à espera... e Fernando, o Católico está à

espera... Estão todos à esPeral

(Longa pausa.)

4,
a

Cosme (Para Amadeu) Não há ninguem que viva uma vida normal neste

lugar" NingUém que se levante de manhã e diga "bom dia" e isso

signifique mesmo bom dia, simpatia e manhã. Nem sequer a


Purificação. Que fizemos nós? Alguma coisa muito terrível devemos

ter feito para merecer isto. Quem nos encarcerou aqui? Quem nos
odiava assim tanto? Sabes?

Amadeu Não.

Cosme Que estranhol Um homem tão cheio de palavral... capaz


de fazer

conferências sobre não importa que tema... desde que não seja sobre

a sua própria vida.

Amadeu Acontece que sofro de prisão de ventre, cosme. uma verdadeira

tragedia íntima. Sempre que me sento na sanita, sento-me à espera

de um desenlace. Geralmente, às onze da manhã' E espero, espero,

espero... e penso, penso, penso." Penso no que estou a fazer e não

no que me vai suceder. Penso no que aí vem, no que está para


chegar, nas cólicas. E isso a que tu chamas a minhaprópria vida são

clois bocados grossos de uma substância dura e implacável e, às

vezes, malcheirosa. Digo "às vezes" porque, em certas ocasiões,

55
quando como rebuçados de mentol, a casa de banho cheira como um

jardim austríaco e é quase uma felicidade. Como posso, então,


pensar na minha vida se todos os dias às onze me limito a

desembaraçar-me dela?

Cosme (Para os convidados) Não acreditem nem numa palavra do que ele

diz.

Amadeu Como podem não acreditar se é a verdade, Cosme? E a única merda

de verdade que disse em toda a miúa putíssima existência. Sou um

homem com uma precaria vida intestinall

Cosme Qnquieío) Vamos ao drama, Amadeu!

Amadeu Qual drama?

Cosme Mas... se foste tu mesmo quem o escreveu? O drama! O Genovês


Alucinado! Não estás â pensar em continuar com essas confissões

secretasl Afinal de contas, somos uma sociedade cultural sem fins

lucrativosl A-final de contas, há oleos que suavizam qualquer


estreiteza! Não podemos priorizar o esfincter! E um erro'l É uroa

desconsideração pelo pensamento ocidentall Houve um Aristóteles e

um Kant e um Parménides de Elea! Houve um Newton e um


Mallarmé e um'Wagnerl E aqui está São Rafael de Ejido à espera clo

farol cultural da Sociedade Pasteur! Nada menos que Cristóvão


Colombol Nada menos que o descobrìdor... o homem que chega

num doze de Outubro de 1492 às duas e meia da tarde e pousa os

seus dois sapatos na America! Desculpa!... mas entre um esfïncter

atrofiado e a magnitude de Guanahanír com os pendões e as cruzes e

os espanhóis, e o homem a dizer "aqui estamos", não há comparação

possível. Desculpa, mas é assim e não há alternativa, A menos que

se volte à chicha e às maracas.

56
Amadeu Tens razão, Cosme. Não podemos. Em nome de Louis Pasteur'

lS22-I895, não podemos. Realmente, não podemos. (Hesita e aceita

resignado) Cristóvão Colombo, ou para' ser mais específico,


., 7.
,,t- ç.-,"r.../
-{upfio' e
Cristóvão Colombo, o Genovês Alucinado. Cena

Confissão de Isabel.

5. (Àmadeu sai. Ao mesmo tempo ouve-se um Stabat Mater docernente

cantado por Hermínia, Purificaúo e Francisco Xavier. As luzes

instalam um clima relígroso.)

(5'ó/ Na vida, uma pessoa pode chegar assim ao assunto' ou seja'


Cosme
pessoa e o
temos a pessoa e, pronto, temos a pessoa' Agora, temos a

seu limite, ou seja: assumes. Tu assumes o limite' Alguem


te disse
pode
para não assumires? Então, tu assumes e pronto' Logo, não se
depois
extravasar, não é verdade? Quer dizer, poder pode-se, mas

aguentas as consequências. Extravasas e aguentas' Ah não' não


querias dizer isso mas outra coisa. Está bem. Então porque não

disseste a outra coisa? Estiveste toda a vida à espera cle dizer outra

coisa... e chega a altura e dizes o mesmo de sempre. De quem é a

culpa? Não é tua, a culpa? Não te deram língua? Não tiveste ali a

oportunidade? Depois, claro, vêm as desculpas. Não. Eu não. Eu não

sabia, Eu não estava lá. Não fui eu. Eu não fiz isso. E a cultura?
Porque alguém tem de responder pela cultura. Em último caso, queÍo

eu dizer. Entre outras coisas, quero eu dizer. Mas tambem me posso

ir embora e deixar isto assim. Fico aí especado na praça Bolívar até

que as pombas me caguem em cima. Bebo uns copos. Procuro umas

putas e sou eu próprio. (cada vez mais angustiado.) Do que é que eu

gosto? De quinze copos de rum ao fim da tarde e do cu da alemã que

57
todos conhecemos. E mais nada. Quinze copos de rum e o cu da

minha alemã. Mas aí dizem-me: a cultura!... o projecto!.'. Ah,

sim... então a cultura... vamos fazer cultura, não digam que eu não
colaboro com a cultura. Mas, se me permitem, o problema é que não

rue permitem, eu não chamaria a este centro de aspirações


patrióticas, Sociedade Louis Pasteur, porque na minha vida' e juro-o

pela minha santíssima mãe Micaela Paraima, que Deus a tenha bem

gorda e conservada, importou-me lá a microbiologia nem pela raiva

dos cães! Até porque os cães de São Rafael de Ejido estão tão

fodidos que nem raiva têm. Portanto, eu não chamaria a isto

Sociedade Pasteur mas sim Sociedade para um Estudo

pormenorizado e Profundo do cu da minha Alemã. E está certo, não

seria tão cultural mas pelg menos daria para eu compÍeender os

meus quinze copos de rum e os meus desejos e talvez a minha vida.

(Elevam-se ds vozes do Stabat Mater e entra Antunieta no papel de

Isabel de Castela. Cosme prepãra-se para interpretar Írei José

Marchena, confessor da Rainha')

Antonieta Deus te salve e guie, frei José.

Cosme Abençoada sejas, Isabel. Que o Espírito Santo te seja propício.


Amén.

Antonieta Amén. Sete vezes amen e para sempre amén. Como todas as tardes,

peço a Deus memória e sabedoria para recordar e explicar os meus

pecados.

Cosme Que Nosso Senhor, o Pai Eterno, to 'conceda na sua Infinita


Misericordia e que faça dos meus ouvidos dois poços de sabedoria e

modéstia donde possa erguer-me e esquecer a minha existência de

mísero verme que arrasta consigo uma infinita estupidez.

58
humilhado.
Àntonieta Quem se humilha será exaltado e quem se exalta será

Cosme A tua boca ó o reduto do conhecimento e em.vez de palavras exalas

incenso,

Antonieta Dispõe-te, então, a ouvir-me, padre bem-amado. Que os cem mil

sóis do Firmamento e as trombetas de Jericó convertam este lugar no

santuário da verdade e da harmonia.

Cosme Amen. Amén. Amén. E três vezes mais, amén'

(O palco transforma'se ern corlfessionario')

num
Antonieta ontem, à meia-noite menos um quarto, Fernando precipitou-se

fluido e hoje acordei grávida depois de uma situação de muita


chamar-
gravidade. Acho que será uma meninâ e como é natural vou

lhe Joana.

Cosme Deus seja louvado, e viva a EsPanha'

Antonieta E, no entanto, houve em mim tortuosidade e volúpia' Não pensei,


como nas outras vezes, na unidade Nacional nem no destino da
nem
Espanha, una e indivisível. Não pensei em cristo crucificado,

no martírio de Santa lsgata, nem no Cordeiro de Deus que tira os

pecados do mundo.

Cosme Em que pensaste, então? (Mutto dificilmente reprime-se e evita


,:,!: )f ì.Ji.::!" r ì {ili' Í i ii.n"ii flS de ntes.)

,"-'iã.çr 1:::llsei {jËtii ;tiÈ{llflt pürque tive urna irnpressão de força e' dureza'

Podias ter meditado no artesanato de Toledo'

59
Antonieta Vi o céu e as estrelas, tudo desenfieado como se os anjos andassem
aos saltinhos, E, de repente, quando ia dar a meia-noite e se

adiviúava o fluido de Fernando, ouvi explosões no céu e tudo Íicou


incandescente.

Cosme (E scandali zado) Senhora I

Antonieta E corri pelos salões e corredores do palácio, cantando, com muito


pesar meu, as cantigas de santa Maria do rei Afonso X. cantava e

assobiava como uma cotovia perseguida pelo meu leão aragonês.

Cosme Antonietal

Antonieta Hoje de manhã, depois daquele retouço real acordei e... ai, frei José,

acordei a pensar em cebolas e alhos e toucinho e com uma


necessidade desesperada de ir ao mercado municipal regatear com as

vendedeiras, "não quero essa cabeça de alhos porque o meu marido

não gosta de dentes grandes", "cuidado com o sal no grão-de-bico" e

aquela ansiedade com o Azeite e aS panelaS, "cotng quefes o

çozido?,,, o raio dos grãos que não amolecem e a cebola que está

amafgae os tomates de hoje que já não são como os de antigamente.

Cosme Uma rainha de Castela metida em tarefas tão ordinárias!

Àntonieta E então, frei José, vi o estrangeiro,

Cosme Que estrangeiro, meu Deus?

Antonieta O Genovês. O Genovês Alucinado que parece tão engraçado. Disse-

-me: 'rvou descobrir um mundo". E eu disse-lhe: "meu amor, eu

acabo de o descobrir".

-l t,1Ì I i-... ,.,,. ê,..-.


t

*'l'*
L
j/:.j.,r i*,,' t'

60
6. (Fanfarras castelhdnas" Hermínia e Purificação trazem um fogão e

umd mesa cheia de cebolas, alhos, morcelas e chouriços, couves,

tomãtes, azeite e sal. Antonieta prepara-se pffia representar a cenct

quedescreveu.CristovãoColomboentranacozinha.)

Amadeu Que cheirinho! Que condutol

Antonietaochouriçoàsrodelasfininhaseacebolasoapartirdaquintacasca.
queres'
As primeiras quatro vão para a engorda do porco' Que
estrangeiro?

ÀmadeuEntreoutraspossibilidades,descobrirumastenasquemepalpita
serem muito vastas'

HermíniaJánãosãocomoetaÍít,asmorcelas'Osanguenãotemconsistência'
Afasta-te, estrangeiro'

Purificação A água já ferve'

Antonieta Cuidado.

Ilermínia Sal. Afasta-te, estrangeiro' Não empates'

Antonieta Perigo supremo: um alho venenoso'

Purificação O caldo está a talhar!

Hermínia A quarta cebola! A quarta cebola!

Amatleu Eu'..

purificação e uma lesma asquerosa!':'


Que é isto? A couve tom buracos

Antonietn Mata-a.

Amrdeu Se me Permitissem" '

61
Antonieta A outra couve...

Ilermínia Está a vir'

puriÍïcação Aí está ele! Milagre de São lorge, o inglêsl Aí está ele!

Anronieta Milagre! O vapor alaranjado!

Ilermínia E cheiral

Purificaçflo Cheira!

Ilermínia E cheirando cÕntinua a cheirarl

PuriÍicação E alastra e engrossa!

Ilermínia E por fim comPleta-se!

Anroniera Aleluial Aleluia! (Para Amadeu) Tira o chapéu, estrangeiro! Estás a

cheirar o espÍrito do cid, o campeadorl A Espanha não morrel A

EsPaúa continua!

Amadeu Eu queria. ''

Antonieta Como te chamas?

Amadeu Cristovão Colombo, drhfana Senhora"'

(Antonieta molha uma colher de pauno cozifu')

Antonieta Prova.

(Amadeu Prova a substância')

Amadeu E realmente um milagre-

62
Àntonieta (orgulhosa) A cultura é um mitagre, simpático colombo. Iá não há

mouros em GÍanada. Estou gravída. E acabo de aperfeiçoar o

tradicional cozido castelhano. Chegámos


'à perfeita Unidade

Nacional que o meu confessor tanto me solicita'

Amadeu Mas falta qualquer coisa, Puríssima Majestade'

Antonieta Impossível!

Amadeu (Grita) Quero descobrir umas terras'

(Grande pausa.)

Na minha cozinha ninguém


Antonietn E porque gritas, estúpido italiano?

levanta avozl

Amadeu Grito,Nobilíssima,porquenãoaguentomais!CorriaEuropatoda'
Senhora! Falei com o Czar da Rússia e com
o Rei da
Suprema

Inglaterra, com o tacanho porfuguês e com o hermafrodita que

mandanaFrança!Lambiochãodetodososlugares!Arrastei-me
sempre a mesma
pelos tapetes, dei lustro ao penico do Papal E tive

resposta: Não. Não. Não' Quinze anos! Não'


Não' Não Quinze anos!

e faço os
E sempre que entro numa sala, apresento os meus mapas
meus
e toda a
prognósticos, aparecem os anões e ouve-se uma música

gentemeconfundecomBlacaman'oAfricanolQuerodescobrirum
novomundo|Querotrêscaravelaseunsquantosmarinheiroseas
minhas bolachas de sal! Eu entro com a luneta e
o talento e depois

sentamo-nos e dividimos o ouro, as pérolas e a solidez'

HermÍnia Um novo mundo?. '. E que fbzemos com este?

63
Amadeu (Para Antonieta) Um novo mundo, nobre senhora! Será muito pedir

um novo mundo onde o leão de Castela possa correr? Rainha Isabel,

feiticeira da precisão, fortuna das minhas cãs, ajoelho aos pés da tua

irresistível majestade. Degolaste os saffacenos' no teu ventre sagrado

crescem quatfo palmos de gravidez e elevaste o cozido a uma

dimensão mítica. Não vês a gtandeze deste milagre? Tu, só tu, podes

enfrentar os riscos deste empreendimento. Proponho-te nada mais

nada menos que o descobrimento de São Rafael de Fiido... alérn, ao

longe... onde a aur-ofa empalidece e há um grande silêncio que


parece feito de plumas. A,juda-me, verdugo dos Herejes. Ajuda-me,

Mãe Universal. A,iuda-me, teta de caldo e tradições'

Àntonieta (Com unra grande ternura) Comoveste-me, estrangeiro e parece-me

que, com poucas palavras, chegámos a um entendimento. Tens a

sorte de ter improvisado a tua poesia no calor da minha cozinha' Era

o único sítio possível. Mete mãos à obra, descobre o que quiseres e

inventa-me umas casas que se chamem como dizes, São Rafael de

Ejido e que nÍrsçam nessa fertilidade cebolas, alhos, grão-de-bico e

que
toucinho. E que haja um mercado e cochichos e monjas suadas e

o tempo passe devagar de sol a sol. Vai buscar as tuas caravelas,


astuto estrangeiro. A coroa da Espanha ampara-te. vou agora
mesmo empenhá-la. Vem comigo, Eboli'

(Antonieta e Purificação saem. Hermínio verifica o ponto cío caldo.

Amadeu, ainda deioelhos, cameçd aèhorar')

Ilermínia Porque choras, estrangeiro? Este devia ser o dia mais feliz da tua

vida.

Amadeu Não choro por mim, senhora' Choro por eles.

Hermínin Por quem?

64
Amadeu Por eles. so por eles. dinda não existem e, diabos me levem, já têm

nome.

(Entretanto Antonieta voltou ao *n?r*o*inio para ouvir o

absolvição.)

cosme Eu te absolvo, Isabel, in namii patriis, et filiis, et spiritu sanctus.

Amén.

7.@ntraPurificaçãoChocano,vestidadeHistoriaUniversal,)

Purificação (Lê) F;nvolta nas asas da fantasia,

muda a história de Granada para Palos'

para uma insólita apoteose'

De joelhos, estimado Público,

ante o sagrado momento da Pinta'

' as velas desftaldadas da Nifia,

e a Santa Maria, sem ratazanas'

Homem, mar e saudades supremas'

vencidos apenas Pela Au{ácia'

E Ele... Colombo, uma vontade de ferro,

de Pé na Proa, à frente do mastro,

. o olhar fixo no horizonte

e o coração rePleto de coragem

(Entram Hermtnia e Antonieta trqzendo consigo cosme, atado a um

cordel e representando o Letlo de Castela')

Antonieta Adiós, Colón.

Amadeu Adiós, seflora.

65
Eerminia Cuídate.

Antonieta. A que hora sale La Pìnta?

Amadeu No sé, porque no ha llegado Rodrigo de Trianá.

Hermínia Pues comenzamos ese des€ubrimiento muy impuntuales.

Amadeu Mal presagio.

Antonieta Llevas las cositas culturales?

Amadeu Cómo no!

\- Antonieta Lacru4 et gallo e la calavadera de Adán?

Amadeu Llas llevo.

gsrmínitr A que se te olvido el manto de la Verónica'

amadeu No. Cómo se me va a olvidar?

Antonieta Y los dados del Calvário?

Amadeu Aqui los cargo.

Hermínia Y la Metafisica de Aristóteles?

Amadeu Mi amor, menos mal que me la recuerdas.

Hermínia Yo sabia!

(Precipita-se sobre a cqry daMetafnica.)

Amadeu Qué sustol Un poquito pás y no me traigo ia MetaÍïsica'

Antonieta Y el arte dramático?

Amadeu En su barril de siemPre.

66
Hermínia Y la historia del rey Cambises?

Amndeu Aquí está.

Antonieta Y la leyenda de Genoveva de Brabante con los venaditos que le

dieron de mamar a la nifiita?

Amadeu Es lo primero que voy a contarles'

Antonieta A quienes?

Àmadeu A los de San Rafael' '''

(Franci:sco xavier entra aptessado, caracterizqdo de Rodrigo de


Triana.AtrdsdelevemParificaçãovestidadeMarinheirode
Múrcia.)

x'rancisco CaphinRodrigo de Triana, para servirte '

Cosme Mueve La Pinta, Rodrigo'

x'rancisco (Para Purificação) Mueve La Pinta, Geronimo'

(Purificação obedece')

Purlficação Nueve brazas a baborl

Amadeu Suban velas!

f,'rancisco Suban velas!

(Purificação obedece')

Amadeu Adelante con las magullas!

PuriÍicaçfio Subanmagullas!

Amacteu Remadren el curifeo y sobaqueen las albúferasl

67
PuriÍicação Sobaqueadaslasalbúferas!

f,'rancisco Imbécil! Van a relancharse los cabricornios!

purificnção Ay, donde tengo la cabeza?Desatados los cabricornios, mi Capitánl

F,rancisco (Olhanda para Colombo) Tudo em ordem, Almirante. So falta um

poÍmenor.

Amadeu Que Pormenor, infeliz?

F'rancisco Para onde vamos' Almirante?

Amadeu Se queres saber... não sei, Rodrigo. E é precisamente essa a melhor

parte da história.

Francisco Então como é que eu traço a rota?

Àmadeu Imagina que começamos uma viagem e alguém, não sei quem'
alguém, um estúpido marinheiro genovês, se esqueceu de traçar a

rota. Imagina, já agoÍa, que esse estupido marinheiro genovês se

sentia nnrito feliz com esse descuido... como um grande fàrdo


que

carregas na vida e que esqueces um dia e então dizes para ti

mesmo... Era tão Ëcil... Só isso... e nada mais. Era tão facil, tão

incrivelmente facil.

(Purificação Pergunta da Proa')

PuriÍicação Proa, Para onde?

Amadeu Proa à PoPa!

Í'rancisco (Grita)Proa à PoPa!

purificação (No cúmulo do assombrQ ì+popal?" '

68
Amatleu (Altivo) sim, à popal A mim mesmo! Proa a colombo! Proa a são

Rafael de Ejido e à nobre, gloriosa e únegada sociedade Louis

Pasteur para o fomento das Belas Artes, Ciências e Indústriasl


Aí vai

a Pinta! E atri* a Nifra!.. . e atrasada como sempre a santa Maria' ..

Aí vamos nós. Aí vamos nós... Acabou-se a solidãol Só temos estas


mãos vazias, saber que vou morrer... que eu preciso de
o saber, dia

após dia, para suportar o meu próprio milagre' Que mais posso
A metade de um planeta? Então aí
fazer? Que mais posso inventar?

vou eu inventá-la'.. Eu queria um amor, e dizer amor e não ter


vergonha. Apenas isso e mals nada' Faço-me entender? São

suficientemente delicadas as minhas palavras?


Mas aqui vamos" ' o

meu ódio e eu, o meu general Castro e eu"' os meus mortos e eu'

sem proa nem rumo.


outra esúpida coisa me foi
Que outra coisa posso descobrir? Que
maldizer-te' só
permitido descobrir? Aqui vou eu dar-te um nome'
a latido' a brasa' a pão' sÓ
para te voltar â encontrar e que tu me soes
não seja de cão'
para me voltares a enganar' dia apos dia, e o latido
uma tarde no porto de
nem a brasa de madeira. Proa a mim mesmo'
1 1 de Julho de 1492'
Palos... eu, Amadeu Mier, Cristovão Colombo'

(Atttonieta,PurificaçãoeHermíniachoramemsilêncio.Cosmetira
a cabeça tle leão. Frqncisco olha espantadt>
para Amadeu')

Cosme Desculpa,Amadeu'Gostavadepoderinventarumaculpaqualquere

carregá-la como se fosse uma roupa usada'


Mas não consigo' Ali

estáapraçaBolívarseéqueteserveparaalgumacoisa.Atoneda
" Uma bengala" ' se te
igreja, se te servir. Uma encosta" ' Um asno'

servir, E eu, que me engano, e sou isso' Tudo isso'


E nada mais do

que isso.

69
Purificação (Depois de ter tirado o barba de marinheiro de Murcia) E o

cultural?...

Hermínia (Grave) Seria imperdoável não ter um desenlace, não acham?

Í'rancisco Mas já todos sabemos a historia. Acho melhor não insistir.

Antonieta Podia-se...

Hermínin O quê?

Antonieta Não sei... qualquer coisa... por exemplo, os índios... digo eu.

f'rancisco E tarde. Claro que..,

Purificação O quê?

['rancisco Bem. Subo para o barco e digo... Terra à vista!

HermÍnia Oh, diz, Erancisco Xavier! Nos ensaios era tão solene, tão viril.,.

Diz, Francisco Xavier! Quando Petit, o meu marido, que está à

esquerda no talhão do cemitério... quando Petit e eu voltávamos da

nossa tempestuosa lua de mel foi tal a violência amorosa nas águas

nacionais que fiquei verdadeiramente estupefacta e, meu coração,

aquele homem gra uma surpfesa ambulante, ou seja, quando digo

que me deixou verdadeiramente estupefacta tens de acreditar em

mim, tal e qual assim... 0 que e que eu estava a dizer? Ah, sim..,
Fez, comigo clafo, um jogo amoroso, uma coisa que ele inventou na

Europa, duma imaginação desbragada- Chego com o Petit a Roma,

ao Azzuna e, no Parténon, ou melhor, no Coliseu, ele despe'me..' e

convida-me a fazer amoÍ onde os leões devoravam os Cristãos...


Seguimos para Florença e ele vai e despe-me na casa onde o

Alighieri escreveu A Divina. E, meu amor, aí, sim, percebi o que foi

o Renascimento...

70
Z

Vamos para Paris e acontece o mesmo na cela de Marie Antoinette.

E depois em Londres, Moscovo, varsóvia e viena... E aquela

cultura. Da última vez, como estava adiz*r, foi em águas nacionais.

Fizemos amor em homenagem a Rodrigo de Triana, e havias de

ouvir Petit a dizer... Tetra à vista! Terra à vista! oh, {tz, diz,
Francisco Xavier...

f,'rancisco Bem. Não sei"' se suba ao barco e diga"' Terra à vista! (Repete)
Terra à vista!

(A restante Junta Dírectiva aplaude para ineentivar Francisco')

Purificação Diz outra vez, Francisco Xavier!

Francisco (Tentando representar) Terra à vistal

Cosme Terra à vista!

(Todos riem e, d certa altura, Ámadeu partieipa rn riso)

Hermính E que respondeu Colombo? Porque eu sei que ele disse'alguma


coisa'

Ficou a olhar, na popa do barco, para aquela outra terra


a que
Amadeu
ninguem chamou terra'

AntonietaEcomoéquediziaRodrigodeTriana,FranciscoXavier?Repete!

x'rancisco Terra à vista!

(Riem todos, de novo)

Purificação Lanço a âncora, meu capitão?

71
t'rancisco Afunda a âncora, Jerónimol... AÍìrnda-a bem! Que chegue ao fundo

agora que chegámos ao fundo do mar e da coisa! Baixem as

âncoras!. .. Não estão a ver?

Ilermínia Não. Onde está, Francisco Xavier?

Í'rancisco Ali. , . Olhem... o novo mundo. .. Não estão a ver?

Antonieta Não!

Francisco Mas como é que não vêem, se está ali... se somos nós. Este maldito

barco de papel e tinta nunca se chegou a mexer. Esteve sempre alil

Ninguém disse "terra à vistal" Não vêem que nunca ninguém disse

"teffa à vista!"?

Hermínia E a cena dos índios?

(Francisco Xavier prepara'se para sair do palco')

Não te vás embora, Francisco Xavier! Falta a cena dos índiosl.. . O


IIermínia

grande final!

Amadeu Bem visto, Hermínial

Purifïcação O quadro vivo!... E verdade, faltava o quadro vivol

(Purificação tira a barba de Jerónimo')


Junta Directiva
Senhoras e senhores: de seguida, a muito Respeitável
Ciências
da sociedade Louis Fasteur para o Fomento das Artes,
e

Indústrias de São Rafael ds Fiido, vai interpretar o legítimo


final

deste serão e reproduzir perante os olhares atÓnitos e o


assombro

geral desta cultíssima população, um apoteótico quadro vivo que tem

por título: "A vontade divina permite a Cristovão Colombo coroaf a

sua fantasia genovesa e descobrir as cascatas tricolores de São

Rafael de Ejido".

72
8. (Hermínia, Antanieta e oosme tiram os, fatos castelhanos e
aparecem ttestrdos de índíos, que recebem Colombo. Amadeu,

Francisco xavier e Purificação pousam o Real Pendão ds Nova

Espanlw. Ha mitsica e, nttm cerfo senti(io, umu profttntia emação

histórica. O serão cultural chegou aofim')

Cosme 8u...

Amadeu O quê?...

CosmeNãosei...Oqueestánaordemdodia,FranciscoXavier?

f,'rancisco Onde está a ordem do dia?

Ilermínia A sério que há uma ordem do dia!

Antonleta (Traz o Liwo de Actas.) Está aqui'

Cosme Procura, Francisco Xavier'

tr'rancisco Aqui está. Entrada da Junta Directiva. Um minuto de silêncio.

Discurso de Amadeu. Representação do drama. O Genovês

Alucinado. E" ' e mais nada'

Cosme Então... acabou?

Í'rancisco Pois... acho que sim.. '

Antoniets Mas não havia outra cena? Tenho a certeza que havia outra cena!

PuriÍicnçilo Que cena?

Antonieta Aquela, quando Colombo volta à cCIrte e a Rainha Isabel o recebe.

73
Hermínia E os anjos! Havia uns anjos, é verdade!... Até foi a Antonieta que
fez as asas e Íicaram lindas,. .

Amadeu Não. Essa não chegou a ser escrita. Pensou-se mas não se escrevetr.

Antonieta Pensava que sim.

Hermínia Então. .. acabou?

Cosme Não. Podíamos continuar'

Purifïcnção Como?... Já não há mais prâginas!

Cosme Mas arranja-se sempre um discurso, umas palavras de alento..'


Amadeu... parece-me que ias dizer alguma coisa'

Eermlnia O Cosme tem razão, Amadeu. Diz qualquer coisa e eles vão... ou
melhor, Íicam... foi sempre a Ínesma coisa, ir ou Íicar... Diz
qualquer coisa, Amadeu-..

Antonieta um ponto fïnal, Amadeu... um ponto final e imprescindível.

Í'ranciseo Um discurso breve... assim"' sobre o progresso"' que tudo é


progresso... desde o primeiro desembarque até aos nossos dias'..

uma breve história da América, os índios, os conquistadores, os


colonizadores, Os populares, os direitoS do homem' ÍL gUeÍTA' os

mortos, as altas dignidades, a travessia dos Andes, a última

batalha... a fuga dos espanhóis, e",

(Pausa.)

Cosme O quê?

74
Francisco 8.. - (Pausa.) Não olhem para mim. Não sou eu quem deve falar. E o

Amadeu. Mestre, por Í'avor! O público está à espera, Num certo

sentido, o País está à espera.

Cosme A espera de quê?.. -

f,'rancisco De uma palavra...

Hermínia Avante, Amadeu".

Antonieta Coragem, Amadeu...

Purificação Nem um passo atrás, Amadeu!

x'rancisco Fala, Amadeul' '.

(Amadeu dlspõe'se afalar no palco')

Amadeu Excelentíssimo senhor Presidente da Câmara'

Cosme Ausente.

Amadeu Respeitâvel esposa do Presidente da Câmara'

Cosme Ausente.

Amadeu Reverendíssimo e desde logo llustríssimo Monsenhor Pio Nono

Mendonza, BisPo da Diocese

Cosme Ausente.

Amadeu Distinto Doutor Voltaire Galvano Sánchez, mestre iluminado da

muito famosa Loja Harmonia e Razão Universal do Sexto Distrito.

Cosme Ausente.

Í'rancisco Ausente como? O Mestre Voltaire estâ ali' '.

75
Cosme Está. Mas adormeceu. Ausente.

Amadeu Respeitado e aguerrido Coronel Macedónio Reyes, garante


constitucional. . .

Cosme Ausente.

Amadeu Eminentíssimo Embaixador do Reino da Holanda...

Cosme Ausente.

Amadeu Futíssimas senhoras zeladoras do voto,..

Cosme Ausentes.
b-,
Amadeu Cultosconvidadossecundários...

Cosme Ausentes.

Amadeu Seúoras, Meninas, Senhores, Fúblico...


Ì

Cosme Não há ninguém, Amadeu. Não te dás conta? Não há ninguém...


Nunca houve ninguém.

Amadeu Homens e mulheres de São Rafael de Ejido.

\-. PuriÍïcação Não há ninguém!

Eermínia Acorda, Voltaire!... O Amadeu vai falar!

Amadeu Homens e mulheres de São Rafael de Ejidol. .. (Grita) Propomos um

minuto de silênciol

FIM

76

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