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(Matthew Barney e o corpo teatral)

Segundo Deleuze, o cinema do corpo passa por uma relao


intrnseca entre pensamento e corpo com a criao, quer de um corpo quotidiano, quer de um corpo cerimonial. Em primeiro lugar, o cinema tem a capacidade de criar um corpo quotidiano atravs de posturas prprias da expressividade narrativa natural. Neste sentido, "o corpo nunca est no presente, ele contm o antes e o depois" (L'Image-Temps, pg246.), segundo as regras do esquema sensrio-motor da montagem invisvel onde as aces-reaces concorrem para o desenvolvimento do todo narrativo; em segundo lugar, e atravs da teatralizao deste corpo quotidiano, tem a capacidade de criar o corpo cerimonial. O corpo cerimonial, por exemplo, em Matthew Barney pode ser entendido neste sentido. Os filmes Cremaster (entre 1995-2002) so uma srie de cinco filmes, sem dilogos e povoados de bizarras criaturas andrginas e mutantes, que so independentes entre si (a ordenao no respeita a ordem cronolgica de filmagem), mas que se encontram no todo da obra. Neles, o prprio Matthew Barney metamorfoseia-se em diversas figuras mitolgicas, percorrendo uma viagem inicitica desde o mais indiferenciado at diferenciao total. "Cremaster", o msculo sexual que reage a estmulos exteriores, tambm o msculo que surge nos fetos, definindo-os como sexo masculino, diferenciando-os do sexo feminino. Em Barney encontramos a concretizao do conceito de corpo teatralizado, onde cada durao do plano imagem do movimento de formao e cristalizao do gesto. H um agenciamento entre os corpos e as tarefas que envolvem cada movimento, como um ritual, segundo um ritmo que , simultaneamente, teatralizao de posies estticas e de agenciamentos, criando uma rede corprea prxima das mquinas desejantes (Deleuze e Guattari, O Anti-dipo). O corpo cerimonial o gesto ensaiado e mecanizado, mas no o exagero burlesco; antes um programa a cumprir. Neste sentido, as tarefas na srie Cremaster lembram uma cosmogonia: o corpo concorre para algo, est sempre em vias de fazer algo de um modo muito metdico e escrupuloso e, em parte, por este motivo que cada episdio da srie tem planos-sequncia bastante longos - a inteno obrigar o espectador a acompanhar a performatividade dos corpos. Neste caso, mais importante do que a narrativa ou o sentido diegtico, a dramatizao do corpo.

Susana Viegas, A mquina desejante de Joo Csar Monteiro, NADA 10, Lisboa, Outubro, 2007, pp. 96-101

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