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V POESIA

TODA
(SECULAR\
RELIGIOSA)

2007-
2008

(c)
J.T.PARREIRA
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REGRESSO

Regresso aos velhos ecos da infância


Aos jardins órbitas que atraiam
borboletas, as abelhas e as pequenas
correrias
Volto ao velho pó
que se levantava após meus pés
já não existe, nem as solas
das minhas botas ríspidas
Volto aos velhos cristais
das janelas, que olhavam
com uma velhice boiando
debruçada
aos passos na rua de S.Bento
Tinha cinco anos no alto
onde a Fonte Luminosa se escutava.

23-12-2008

COMPANHEIROS DA ILHA

Ponhamos uma pedra sobre o assunto


sobre a ilha
Depois de tanto tempo, Companheiros
ainda temos Ítaca nas mãos e sal
nos olhos, façamo-nos ao mar

Ao mar
azul e ferido pelo bico das gaivotas

Carecemos da mente
que está no firmamento
das estrelas estendidas
sobre o mar?
A noite aveludará nosso sono
e o amor será um alvor no horizonte.

Contra os ventos de Éolo, e o embalo


das vagas nos poisará na praia
aos pés de Ítaca.

21-12-2008

CANTANTE \ CANTAOR

Por ouvir Camarón de la Isla

Finca os pés no tablado


bate, esparge uma língua de vento
apalpa com detalhes nas palmas
das mãos o silêncio

A música segura os olhares


e os ouvidos, sobe
pelo corpo moreno

até à varanda de cravos


mais alta de um pátio
andaluz, alguém triste
nos seus sonhos
rasgará a lua.

20-12-2008

CASA NO DESERTO

depois de interromper a leitura de Deserto, de Le Clézio

A casa estava assim, anos


a fio como o deserto, dançava
nas miragens do sol derramado
às vezes brancura, outras vezes
areia, alguém chamava de longe
depois de meses ao sabor das dunas
alguém erguia os olhos
entre véus de vento, a casa
estava no meio das tempestades
das estrelas, assim nua
e desejada.

ANJOS SOBRE OS OMBROS

Vestido como en el mundo,


ya no se me ven las alas.
Rafael Alberti

Anjos sobre os seus ombros


uma pluma de cisne a vogar
no sol-posto sobre a água

No cabide dos seus ossos


como o peso das nuvens
ou sandálias de algodão

Leva anjos sobre os seus ombros


não quer o desequilíbrio de nenhum
quando passa, sobre o fio do mundo.

17-11-2008

ANUNCIAÇÃO

O que estava dentro dela


a Alegria, o Nome
escrito
da direita para a esquerda,
Maria não O via
ainda com seus olhos.

Um anjo imune
ao calor de dia, ao frio
do fundo das almas desertas,
desceria
do tecto do céu
para anunciar os rumos
de Deus no mundo.

SHAKESPEARE PARA O MEU FILHO

O meu melhor anjo é o homem justo


direito ao alvo, o meu filho
o olhar do meu filho
no lugar certo, do meu lado
com a sua pureza e o seu justo orgulho
o meu melhor anjo atreve-se
a caber no meu caminho
foi crescendo na minha janela.

A AUSÊNCIA DE ESPELHOS

Havia já muito tempo que ninguém


em Auschwitz tinha um espelho
não reconheceriam a sageza
no rosto, nem as covas
onde lançaram os olhos
nem os lábios, como uma linha
de medos
ninguém tinha pensado nisso antes
nos espelhos.
Sem os espelhos qualquer um
era igual ao outro, via-se
no outro, os espelhos
poderiam ser usados contra o próprio.
Em Auschwitz, por falta dos espelhos
ninguém continuou a ser pessoa.

O QUE NÃO SE SABE

El viento no lo sabe
Dámaso Alonso

A onda não o sabe.


O coração do mar
que não aconchega o amor
pelas terras doloridas,
e o vento,
que rompe as velas do navio
nas noites sem ternura.
Nada sabem. O raio
que força os arcanos
da floresta, não o sabe
como beijo de um céu em fogo.
E o trovão, que ensurdece
por completo o silêncio,
não o sabe também.
E a roda do sol
que ofusca o céu vazio,
e o deserto que modela a noite
no dorso das suas dunas,
não o sabem. Nem as chuvas
que tinem nas cordas invisíveis
das vidraças.

1-11-2008

CONTO CURTO
A car door slamming in the night
John Ashbery

Os teus ruídos
chegaram a casa

A casa pairou
na luz
das janelas

uma corrente de ar
nas cortinas
voou o vento

quando tornaste
a sair
era já o último
silêncio.

O BEIJO DE JUDAS

E um beijo rompeu as cordas do silêncio


caiu na noite, caiu no rosto
como uma mentira, como uma estrela
cai no rotundo deserto

Um beijo soa do fundo, com pressa


um beijo astuto
dissimulando a lâmina
que vem do coração

nessa noite o ar
amacia a face
de Cristo, confiante
daquele beijo triste.

25-1-2008
CASA DE JUDEUS, ANO 1940

O vento deve entrar agora


pela porta em ruínas, pelas janelas
rasgadas na fronte da casa

Está a remexer gavetas


a redemoinhar na sala, como um gato
invisível

Duas malas não resistiram


à pressa, abriram vestidos
no soalho, segredos de alcova

Como nuvens sem forma, partiram


para se desfazeram no ar, já sem o som
dos sapatos nas pedras

sem os longos casacos pretos


em que passaram a noite
sem casa, a sós
com uma estrela.

NOVOS CANTARES

Os seios da Amada como os templos


Comunicam
Os mistérios divinos

São duas fontes


De onde já correu o leite
Perfumado da primeira aurora

O peito da Amada encerra


Tesouros profundos, o coração
É um delta de diamantes
Enriqueceu dias áridos
Na espera febril dos lábios
Inocentes dos filhos

Que dormiram entre luas perfeitas


E beberam, como um sol bebe
As águas que secam sobre a terra.

14-10-2008

OS DOIS JOGADORES

A luz anda devagar, no café de aldeia.


São dois jogadores a inventar lances,
os braços são os êmbolos da noite.

É o silêncio como o ar
em movimento, às vezes os dois
jogadores baixam os gestos,

refazem os gestos, seus olhos nadam,


de fora vê-se o vidro
das suas mãos discretas.

Vão de uma hora a outra hora,


na rua as névoas descem
sobre as luzes,

a luz ondula dentro como um líquido.

Os dois jogadores entram


na sua própria sombra,
sentados à mesa que importa a morte?

Que importa o mundo contínuo


como a passagem da vida?

Se os dois jogadores fitando


o seu jogo conduzem a sorte.

14-10-2008

A MENINA CEGA NA PARAGEM

As palavras simples anunciam


prontas a atenuar a espera
que vem da profundeza, do fundo
da avenida o autocarro vem

Dentro da pedra de obsidiana, mas pedra


tudo se ilumina
onde o olhar se instalou, os olhos vogam
um espaço escuro, pela primeira vez
a Terra e os mares são planos

A face da menina é uma luz


escondida que assoma
do mistério da pedra obsidiana

E as vozes vêm dentro de cristais


a menina as olha ternamente
com medo de partir
a sua noite de pedra.

27-9-2008

O PESCADOR

Pela sua própria mão desenha


uma ponte entre o braço
e o mar

lança a linha com reflexos


de prata
longilínea no ar

não sabe ao que vai


o anzol
desconhece o futuro
o que trará
das águas

a mais viva prata


presa a um fio de sol
ou nada.

9-2008

SUICÍDIO DE VAN GOGH

Os corvos eram bandeiras


nos mastros da manhã.

Um céu vivo, azul


sem desespero.

Já devíamos desconfiar
por não haver
um fio de água
e o rio ser uma seara
de trigo
no caudal do vento

Devíamos lembrar Van Gogh


muitas tardes com olhos sozinhos
diante da linha irregular
do céu e da planície rasa.

16-9-2008

ALGUMA COISA SOBRE A QUAL


Posso escrever o vento
traz o sal da onda
e a lua se derrama
no mar com o leite
da futura aurora

Posso escrever
a noite tem altas
ramadas inquietas
onde as aves chegam
sem bagagem, repousam
e espalham
com as asas os cristais
do ar.

SETEMBRO

Well, you can do anything


but lay off of my blue suede shoes
Carl Perkins

Começa Setembro a mudar


de roupa para o Outono

Vamos recordar-nos
e esperar o próximo Verão
dentro de um jarro
de sangria, recuperado
o ânimo que o sol e o mar
sempre trazem nesses dias

Mas ainda estamos longe


desses brilhos e quem sabe
se teremos tempo para
cada vez mais ao sul
os procurar de novo
aos nossos sapatos
esses sapatos de camurça azul.

15-9-2008

À IMENSA MAIORIA\PARA A MAIORIA

Aquí tenéis, en canto y alma, al hombre


Blas de Otero

Se não conheceis o coração


na boca de um homem
que errou,
aqui me tendes.

Uma parte
morreu em mim. A outra
entre o coração e a boca
ainda se espanta como um menino
que vê o perdão
como sorriso de Deus.

Posso sair à rua -


digo - para todos os olhos
que me cruzam,
como se atravessa à névoa,
muito abertos
porém sem ninguém.

9-2008

POEMA PARA UMA RECUSA

Hoje não:
amanhã cantarei

Corsino Fortes

Hoje ainda há uma estrada imóvel


diante de pedras
que é preciso vencer
Por isso, amanhã cantarei

Hoje as palavras são ainda


instáveis e assim
há ainda tropeços que enredam a língua

É preciso hoje ainda


moeda de troca, costumes
para transitar incólume na noite

Hoje não:
amanhã cantarei

Como cantar hoje diante dos grãos


inúteis que caem em pedras
como flutuar com o peso
dos pés sobre os espinhos

Por isso hoje não,amanhã

cantarei amanhã a chuva


sem outro mistério que o da água
o azul sem dúvidas metálicas
o mar como a chave
do horizonte

depois de perceber o rosal puro


do ocaso e o leite da aurora
amanhã cantarei.

ACRÓPOLE

Os olhos cercam a Acrópole


movimentam-se do alto
para o futuro, não sabem
que um dia a música de Braams
ou outro qualquer
passará como um sopro
nas suas pedras
num concerto que o enredo
dos fios há-de transmitir
mesmo sabendo que o átomo
da pedra é insensível
a fissão da música.

PENÉLOPE

Não embarcaste nas naus


de sólida madeira

Nem foste à fortaleza


de Tróia,
ficaste em casa a dobar
o tempo e a fiar
a malha suave que teu corpo
guarda,
virtuosa rocha de Ítaca.

E puseste véus brilhantes


para esconder nos olhos
a lágrima brilhante
das saudades,
pensavas que em Tróia perdeu
Ulisses
a nave do regresso.

CAIS DE PONTA DELGADA


(Infância em 1957)

Na data da chegada dos navios


a saudade
voava no cordame
atava o movimento
do navio à pedra lavrada
de silêncios

um cais cheio de olhos


pousado no oceano

no meio do vozeario
só a espuma, sozinha
vai e vem, e branqueia
os limos, o sonho
verde de qualquer cais.

Depois tudo ficava


de novo imerso nas ausências.

SALMO, OP.137

Nenhum ramo dos salgueiros


está vazio, nenhum acena
suas folhas, o que toca o vento
são as harpas penduradas

Mas nos salgueiros não acontece


nada, ninguém sabe o que fazer
ao silêncio que espera
sob as cordas

Ninguém sabe o que fazer


da rosa que está ao meio do peito
de todos que olhamos os salgueiros

Sim ninguém pode trazer o coração


à luz do dia, à luz que sobe
de entre as margens destes rios.

TRUMAN CAPOTE

Um dia a maldade veio ao seu encontro


quando segurava um dry martini
a maldade existe no fundo
da beleza
e depois de em Taormina
extasiar-se entre gerânios
e de ver Roma a acender-se
em vestidos de noite
e neve
em Saint-Moritz, a nudez do azul
de Capri
e turvas almofadas em Tânger
para reclinar a dança do álcool
na cabeça, até um dia
o Times de Nova Iorque lhe trazer
o sangue fresco dos Clutter.

18-5-2008

ENCONTRO

Adeus,Dafne,foi tudo tão breve


um olhar retribuído
pela água verde dos teus olhos
um gesto iluminado
por uma conjunção de cristais
uma palavra
desviada por um límpido riso
de criança, foi tudo
tão branco
como a inocência da música
tão breve,saindo dos teus lábios.

18-5-2008

VULCÃO
Vigio o acontecimento do verso
uma fumarola pode ser
um aviso
a primeira sílaba
ígnea, solidificada

É preciso montar guarda


junto à noite

Não acredito em vozes, anjos


pálidos ventos trazendo
inspirações, a poesia
virá para formar sua ilha
da lava, apesar da
cinza, destruições, coisas
abandonadas à fogueira
do dia.

12-5-2008

SUICIDOLOGIA

Um tiro na cabeça
deste cavalo que me gasta
como um dia hípico
saltando de algodão em algodão
das nuvens

Um estampido seco
sem eco na cabeça
que vem de dentro
e conduz as lágrimas aos olhos

Não a morte
não é este tiro
que se acerca do coração
até ser completo silêncio
Este é um tiro que deveria dar

Nas palavras frias, um tiro


na língua, nos lábios de
dois gumes
que a cabeça usa.

11-5-2008

PIÉTA

Espera por uma razão


que lhe caiba nas púpilas

e
lhe regresse aos olhos
se não a alegria, a planície
vã sob o sol em chamas

Espera entender tudo


mesmo o céu fechado
aos pássaros

Por um momento as mãos


batem no lugar do silêncio
onde
morre o coração.

5-5-2008

NOCTURNO

No escuro
tudo volta ao início do abismo,
a espessura do ar
se atravessa demoradamente,
o mundo é plano, os olhos
não têm onde ancorar
seu passado e seu futuro

A noite
devora os marcos do correio,
as flores públicas
só os semáforos pairam no ar

E,
mesmo que as janelas abram
e repartam entre si vozes,
a noite é um poço
fechado até à madrugada.

POEMA MARÍTIMO

Nasce do mar tanta espuma.

O mar parte os seus cristais


e o ar não é navegável
ao olhar mais profundo,

nasce tanta espuma do mar,


aflora e vem precedida
do veludo das ondas,
do látego do vento,

como uma luz irregular


salpicando o perfil azul da aurora.

4-5-2008

HAICAI Nº-

Pressente-se o céu
desde um espelho manso
dentro de um ribeiro

HAICAI

A janela ri
debruçada de um cravo
preso no vermelho.

O HOMEM A DESCONTO

Tijolo a tijolo
(e está um monte deles
mesmo em frente)
Diante de Adão o mundo
grita com o grito surdo
que trazia nos seus olhos
o horizonte, a altitude
a noite de frente para o dia
desde a primeira flor, tudo mudou
a composição do ar
as moléculas das estrelas
as palavras
que agora ferem os lábios
as que se debatem em silêncios
o homem à procura de uma casa.

30-4-2008

ARTE MUSICAL

Debaixo dos seus dedos a água corre

Pássaros acendem raios


multicolores, sob os dedos de David

Pendem flores da mesa


na presença dos inimigos
e nos lábios os cálices
transbordam

Pastor de cordas no vento


quando os seus dedos tocam
até que à harpa regressem
os silêncios.

28-4-2008

EXPLICAÇÂO DO SALMO UM

O rio do salmo de David


tem tanta luz
que a nudez das raízes
que se vêem
são tanto cristais como água
pura

As raízes das árvores


dos ribeiros de David
seguram o interior da terra

MODERNIDADE

Atenas não abriga já o espírito


nas pedras do Pártenon, nem
nos perfumes de Jerusalém existe
a deliciosa incoerência
das rosas do Jardim

Vê-se-lhes nas casas


erguidas uma não presente
marca de velhos triunfos
praças, fontes, ruas, cães
vogando no ar
poluído do crepúsculo

onde como antes a solidão


confinava com as estrelas
nestas cidades como noutras
agora o silêncio
é uma ruína.

15-4-2008

GLOSA DO SALMO 8

Louvado seja o homem


porque Te lembras dele.
Louvado seja e a sua música
de harpa, e o seu violino
subindo nos fios do vestido
da aurora, Louvado seja
o homem um pouco menor
do que os anjos
Louvados sejam os lírios
que da carne das pétalas
alimentam o sol
Louvados os olhos
quando poisam em Ti
nas Tuas coisas
suaves pensamentos.

?-4-2008

A SAÍDA

Tout s,éteignit
Le jour, la lumière interieure

René Char

Tudo se apaga
as janelas, os espelhos interiores
depois os silêncios
são varridos, gestos lentos
no tempo repetido
na sala o dia apaga-se

Fogos da alma interior


apagam-se, paixões
cadeiras, mesas regressam
à sua solidão, a sala
não respira senão a humidade
que fica nas janelas.

26-3-2008

A MORTE DE OFÉLIA

Que luz é a luz


se Ofélia não a pode contemplar
que riso é o riso
se Ofélia não pode ver a sua fonte
que sol é o sol
se Ofélia não lhe pode dar seu rosto
a descoberto

LANDSCAPES

Carruagem cheia
olhos presos
às janelas

vão à frente, sonham


o cais e a paisagem

uma nuvem não é duas vezes


uma fila de salgueiros
e um rio de vidro
onde se encosta o ouvido
depois vilas, telhados
pequeno céu de água na poça

chegamos tão perto do chão


a porta abre-se, para sempre
saímos,a composição afasta-se
roda ante roda.

20-3-2008

O CÃO DE ULISSES

E agora alguém chega


dá por si
a desatar os longos laços
da memória, sombras
que foram passando no relógio
do sol, e olha à sua volta
um cão que estava deitado
sobre o estrume
ergue a cabeça e as orelhas
e Ulisses deixa brilhar
uma lágrima de seda
que cai pelo áspero rosto.

DESPEJO

Para onde vamos agora, sem um vaso...


Ralph Ellison

Atirados para a rua


como tralha miúda
no passeio
utensílios domésticos, móveis
que deixaram um espaço
um buraco negro no tempo
Um monte de haveres
e sem coragem para os escalar
uma gaveta que demorou anos a encher
espalha as raízes
de uma vida, uma moldura
oval com sorrisos.

Cadeiras sem outro orgulho


senão o de ficarem de pé
entre as chamas, um fogão
de esmalte, uma mesa
que descansa em quatro pernas
uma cama, um espelho atónito
todos perdidos, entre estranha gente.

7-3-2008

COM CRISTO NO BARCO

Dorme o mar nos Teus olhos,


uma nuvem
passa o seu volume sobre o lago
e deixa uma sombra no lugar da luz

O vento nos Teus dedos


ainda dorme, a noite
nos sonhos infantis

o silêncio,
mas um trovão se ergue
e de repente um raio risca
um fósforo pelos ares

o mar parte-se como um espelho


do terrível céu

Porém conhece a Tua voz


o arcano das águas e
tudo volta ao que estava
a repousar.

3-3-2008

MEU NOME É AGORA ISRAEL

Meu nome é agora


Israel, conseguido
na água
corria
um terno ribeiro

meu perfil estendido


num reflexo sobre as águas

Contemplo-me
meu rosto se manteve
só minha anca foi tocada
e enlaçaram meus braços
o peso e a simetria
de um anjo

Meu nome agora é Israel, mistério


a que chamam alto
mas que hoje se alimenta
de leite e mel de homens.

2-3-2008

AUSÊNCIA

Enfrento-me no espelho
e o rosto
não está lá
cada olho se reveza
em procurar-me.
25-2-2008

OS 12 GIRASSÓIS

Somente irradiam
os girassóis amarelos
sem o esplendor da sombra
a mão de Van Gogh
andou à solta
aveludando corolas
e pétalas
as sombras
hão-de vir depois
quando a noite levar tudo
dentro da sua caixa preta.

SOZINHO TODAVIA MUITOS

Se pudesse eleger uma solidão


elegeria, a solidão
de uma cidade, de Lisboa
às primeiras horas
matinais

uma arcada ainda cinzenta


mesas encerradas
de pé sobre a cinza
dos cigarros, a névoa
sobre o Tejo

sozinho todavia muitos


elegeria da solidão
Pessoa
a sentar-se à mesa
a escrever Tejo como
um rio de ode

a falar com o eco


da sua voz nos outros.

22-2-2008

ANIVERSÁRIO

Quando fizer 61 envia-me


um postal roubado
num impulso adolescente

da mesma papelaria
que já não existe ninguém
dá por nada

um postal com música


frágil como todas as asas
de libélula

escrito com palavras


debruçadas para fora
a sairem das margens

manda-me um postal
com o teu cheiro
abrindo caminho entre as outras
cartas banais

um postal roubado às cores


dos lírios de um jardim de dunas.

8-2-2008
CAMILO PESSANHA

Quem quebrou
a sua mesa de pinho, tosca
e a rasgou
como se fosse um lençol de linho?
Quem arruinou os altos
girassóis
quem os partiu
hastes de um sol exíguo?
Quem dissolveu a neve
no sangue acidulado do seu vinho
e apagou depois
a brancura do caminho?
Quem passeava a sombra
nas janelas, o frio
que no vento começou
quando o lume se extinguiu?

5-2-2008

O ASSALTO

Deixaram um pássaro morto


insustentável no ar
morto, na casa devassada
o silêncio que no pássaro
se aninha
O que levaram foi o ouro
dinheiro algumas joías
de família alguns jarrões
da China que pareciam
com a sombra deslizar
à mesma hora sobre os móveis
Era a moradia mais a jeito
com persianas
atrás das quais havia tempo
e não havia nenhuns olhos.
1-2-2008

ACORDAR

Acordo todas as manhãs


e não sei nada. Vou seguindo
ao longo dos dias
que se colam em rotinas
afazeres de post it amarelo

Todas as manhãs
e não tenho espaço
para continuar na transparência
que se pendura,
como uma cortina, na janela

Mas o dia troca-me as voltas


às vezes o sol abre-me
os olhos de um neto, a alegria
o azul é suave, a poesia
deixa de ser nuvem e passa
a ser uma coisa
que seguramos entre as mãos

Todas as manhãs
quando perco o rasto aos sonhos
recomeço

O ANJO DO TANQUE DE BETESDA

O mesmo anjo descia


ou era outro
Corria na cidade
a hora improvável
da visita
Os homens informavam
as crianças buliam o pó
de tanta correria
mulheres escondiam no rosto
as emoções mais puras

Um anjo descia
era o mesmo? era outro
no vento irrequieto
sobre as águas
num gesto branco e largo
Para os absortos nada
nem para os solitários
mesmo para os confiantes
da vida sem finalidade
Só os doentes mais hábeis
entravam no torvelinho
das águas lavradas
na velocidade da luz

Um dia o anjo não veio


ou veio tarde, era o mesmo
ou seria outro? Alguém
no entanto que veio
vinha pelo seu pé
e trazia nos olhos toda
a desarrumação do mundo
e vinha com ouvidos atentos
para a hora do milagre.

27-01-2008

ARQUITECTURA DA SECA

canasfolhasnada
canasfolhasnada
canasfolhasnada
canasfolhasnada
canasfolhasnada

15-1-2008

ENCOMENDA A STRAVINSKY

A partitura onde desce a música


de onde um arco
de violino atira uma pomba
e uma única ampla mão conduz
de onde uma profunda
garganta sopra desde a alma
enquanto Stravinsky
acendes pássaros
A partitura de onde os anjos
puxam as rédeas dos címbalos
e pastores sobem com os rebanhos
nas vigílias do céu
A partitura de onde um arco
de cello cerra o silêncio.

1-1-2008

MAGNIFICAT

Magnificat, meus amigos


que suportaram na vida
quebra-luzes coloniais,
olhos gastos em fotografias
da amada distante

Magnificat, meus amigos


que um sorriso toca nas franjas
do meu sangue, amigos mortos
que rolam pelo meu rosto
cada um fechado numa lágrima

Magnificat, meus amigos


que olhais para cima, dando um ângulo
da vossa cara à solidão
que respeitais o Senhor que cria
grandes coisas da nossa humildade.

O NATAL DOS ERRANTES

Não havia para eles lugar na estalagem.


Fechados num quarto de hotel,
o mar
pregado nalgum quadro
ondula em reflexos de luz,
num quarto de hotel
a tosse cava no silêncio
enquanto esperamos o sinal
combinado, rostos
que chegaríam desatando a noite
e ruídos infantis
abrindo a alegria nos seus braços.

24\25-12-2007

GREETING CARDS PARA ANIVERSARIO

Quando a lua se intrometeu


a ponta
do quarto minguante
dentro da janela, o céu
ficou ao alcance da tua mão
ficou o vidro azul
luminoso dos teus olhos.

23-12-2007

SYLVIA AND TED HUGHES


Quando estavas comigo
eu nunca ia morrer

Os meus olhos vagueavam


à tua procura, sem ti
o meu medo tinha ruídos
todos os passos, as sombras
eram coisas sólidas

quando escrevia o medo


riscava as folhas de papel
mas quando estavas comigo
eu ia durar a vida inteira

As tuas pernas
sustentavam as minhas quedas.

SYLVIA PLATH

Quando meteu a cabeça no forno de gaz


como um leão centrado na sua presa
já os poemas estavam inteiros
ordenados no silêncio, com a direcção
da morte sobre a mesa

Fê-lo de novo, e de novo


toda a manhã escureceu
e depois a sua pele brilhante e o cabelo
como um sol loiro no rosto
e a audição do coração

as primeiras horas de frio


de um dia de fevereiro
excepcionalmente sylvia as devorou.

16-12-2007

A IMOBILIÁRIA
A casa vende-se assim, imóvel
no chão, os objectos na penumbra
deixados na dimensão do natural
sobre um móvel e também
ao fundo da memória
A mesa de que tanta boca dependeu
a um canto um sofá disciplinado
fazem parte do recheio
A porta verde à frente, que não abre
a luz para os insectos
a colcha amarelada sobre a cama
cinco almofadas melancólicas
ficarão no reflexo do espelho
que abre na parede o infinito.

22-11-2007

CATHAY

Como a cor do mar que se move


com o vento, a flor de lótus
ela sentava-se na seda do vento

ao som da música
que se desfaz, quase
entre os dedos.

PATMOS

João também
o som ouviu do Egeu,
como Sófocles também
em tempo antigo, ouvindo o rumor
da dor humana, a recordar-lhe
o vaivém do mar
da Galileia.
POEMA

A curva completa das palavras


na boca do poeta cerca
o impossível, o inefável
que as cores ainda não dizem
por trás da máscara do poeta
algumas
dores resultam em olvido
como perante o sol indiferente
as pétalas num ramo húmido
procuram a luz.

DRAMA CLÁSSICO

Há Orestes por todo o lado


como moscas, Édipos completos
dos pés à cabeça, cegos
adolescências longínquas
sem lar, a vingança igual
a respirar, Muito poucas Antígonas
-que sepultam no corpo
um amor perdido- muito poucas
Antigonas, porque a fraternidade
interior deixou um buraco
onde apenas há um músculo cardíaco
Há também algumas Ismenas
sem memória
à espera de um programa
de uma fuga, Há muita gente
que apesar de tudo é vulgar.

SÚPLICA

Tu, que conheces o tumulto


das minhas veias, por isso
me amas e tranquilizas
o meu corpo mesmo quando
só a sombra me leva
leva-me a deslizar deste monte
para a superfície onde só a memória
possa por fim envelhecer-me.

DEPOIS DO DILÚVIO

Minha alma está mais tranquila


agora um ramo enche
de oliveiras os meus olhos

Uma pomba verde vem


testemunha veloz, limpando
os abismos das águas.

O HÓSPEDE

Depois da noite se instalar


ao redor do fogo, abrir
sobre a cama um espaço
para o corpo se atirar
e lençóis que ainda trazem
os perfumes da manhã
alguém chega, entrou
pela noite com olhos indecisos
e sonhos de distância
traz sono e estremece
à mais pequena folha
que cai na noite fresca
esse alguém onde o vêdes
pode trazer um coração
lavado, uma metáfora
dissonante, ramos
de palavras, e partindo
o pão, abrir os nossos olhos.

15-10-2007

POEMA À MANEIRA DE WALT WHITMAN

O me!O life!of the questions of these recurring.


WW

A intensa peça que o mundo representa


corre, as multidões flutuam
acima da sua sordidez
os anos passam
uns aos outros o vazio
as palavras caem das bocas
há homens que falam da altura
da vã glória, rastejam
sobre o seu veneno
tantas palavras à minha volta
outros homens, pequenas poeiras
do espaço que a noite dissimula
nus, escondem-se numa dobra de nuvem
e esperam atirar-nos um arco-iris
como se fora seu
os cortejos sem fim dos crédulos
dos que imploram em vão
às trevas a dádiva da luz
Para tudo isto contribuirei ainda
com um verso?

(reflexão apenas, não é para ser publicado)

BABEL

Em todas as palavras havia


somente uma língua
Peter Bruegel, o Velho, pintou
uma Babel
Construída entre as palavras
e homens de braços armados
A confusão,
que Brueghel não viu
na sua pirâmide inacabada
com um golpe de nuvens
Agora tinha o mundo inteiro uma linguagem.

25-9-2007

JOVEM PASTOR E SUAS OVELHAS

Entram pela noite dentro


de um refúgio de lã
contra o frio
repousam encostadas
nos sonhos do pastor
dormem de olhos abertos
esperam pela manhã
que cresce levantina
para ver o rumor das águas
tranquilas.

POMPEIA

A rua imóvel espera em vão


os ruídos da alegria
em cada passo, cada pedra
polida dos silêncios
no instante em que caiu
a cinza cobrindo a memória,
uma memória sem adiante
nem atrás,
sobre as casas, os afrescos
e mosaicos, e os corpos
tentando engalfinhar
as mãos nos fogos, arrancar
a lava com as mãos, enfim
à espera de um arco-iris
mas de cinza.

A SEGUNDA VINDA

Ele levará os nossos medos


como um ladrão a meio da noite
como um rio que leva
nossos reflexos
A escuridão cairá gota
a gota dos nossos olhos
algures na areia do deserto
a forma de um meteoro
apontará para um passado remoto
e as pedras acordarão do sono
no interior das grutas
as coisas caem ao lado, o centro
já não as atrai
Este mundo já não será para nós

O QUE VIU A MULHER DE LOT

A terra não acolheu


o repouso da mulher de Lot: de pé
ficou de pé a emergir
das ínfimas moléculas de sal
o sonho branco
afundado no silêncio
não houve manhã seguinte, nem
o emergir da alva.

4-8-2007

UM DIÁLOGO COM O NARCISO


Tens um rosto na memória
o teu rosto no fundo da água

Entorna os olhos
sobre o lago, como duas contas
de vidro

Como o poeta, o Narciso


indaga-se em si mesmo
na transparência das águas

os versos e os dias
à flor da melancolia.

1-8-2007

O SORRISO DE GIOCONDA

O sorriso de Gioconda ornamenta


o museu, ninguém a moldará
de novo, o sorriso burocrático
de Gioconda é a porta
atrás da qual não há nada
alma? paisagens? o silêncio
um umbigo da alma
a sorrir para dentro.

E OS OLHOS DE GIOCONDA

E os olhos de Gioconda
à superfície de uma alegria
qualquer, parados
são outra forma
burocrática do olhar
a Gioconda
não põe nos olhos nada.

28-7-2007
A SMILE OF GIOCONDA

The Gioconda,s smile adorn


the air, nobody to will mould
again, a bureaucratic smile
of Gioconda is a door
behind of which is not nothing
soul? landscapes? the silence
a navel of the soul
to smile for within.

MÁQUINA DE ESCREVER

Os dedos voam sobre a máquina de escrever


como a mosca sobre a máquina
de escrever, voam
depois da profundidade para cima
e descansam do ritmo
em cima das estrelas

HAIKUS

O pescoço do
cisne, acima e abaixo
no lago sonolento.

A CURVA

Algum sapato há-de aparecer


naquela curva, um braço depois
da sua sombra,
a desfazer o ângulo
a incerteza e o ôco
do silêncio, alguém
tem de aparecer naquela curva,
talvez o vento a agitar
a melancolia
das folhas sem outono.
NÃO PODES TRAZER DE VOLTA A PRIMAVERA

«pronta a partir a nave que nunca há-de voltar»


Antonio Machado

Não podes trazer de volta


a primeira primavera
das rosas no limiar ainda
das estrelas, nem a primeira
neve a enrolar seu corpo
de água, não podes
trazer de volta a espuma
a primeira espuma
no mar alegre e claro
não podes trazer de volta
o infinito, o olhar divino
depois de terminar o Homem
as mãos do teu primeiro filho
dentro das quais teu coração
se fez pequeno, já não podes
trazer de volta os teus
primeiros passos, longe ficaram
no teu já longo caminho.

OS LIVROS

Desarrumados da estante
esticam suas folhas
como pernas, os volumes
folheados tomam ar
respiram
entre sílabas as palavras
e os autores sacodem
a penumbra, tossem
os poetas novelos de pó.
Desarrumado o verbo, vem à luz
e diz o quê? o inesperado.
A DEMOLIÇÃO

Ruiu a casa velha para o fundo


para dentro de si própria
ontem era ainda
um retrato de azulejos
do passado, caiu
abaixo do silêncio
contra o qual a fachada
ao longo destes anos resistiu.
Silenciou as cortinas pobres
das vidraças, que mal se sustinham
já de pé. A sua sombra
jamais espalhará
toda a casa na calçada.

2-6-2007

COM OS DEDOS APRENDI

com os dedos aprendi


as técnicas do haiku.

as sílabas contadas,
entre a ponta dos dedos
e os olhos, descreviam
quase um círculo.

à décima sétima
sucedeu uma
soma aritmética:

Velas no céu-
um Quixote quebra uma
a uma suas nuvens.

Velas no céu-
um Quixote quebra uma
a uma cada nuvem.

HAICAI

A Serra da Estrela-
no inverno dorme cedo
sob alvo lençol.

HAICAI

Moínhos no céu.
Um Quixote vai partindo
o vento das nuvens.

HAICAI

A Serra da Estrela-
esconde o seu pudor do corpo
sob alvo lençol.

1-6-2007

POEMA DE UMA LINHA SÓ

A lua metida numa selha.

POEMA DE UMA LINHA SÓ

As folhas golpeiam o vento.


AS BAILARINAS DE DEGAS

Uma nuvem passa entre o chão


e os pés das bailarinas
como a nuvem
mudam de forma
e estão poucas vezes em terra
as mãos em pontas
nos braços também aparecem
como a inconstância do vento
as bailarinas de Degas
não precisam do nosso olho
- menos rápido, quase sempre
para as elevar do solo.

19-5-2007

O OLHO DO FALCÃO

Atentamente gira
como um reflexo
do sol,

gira e cai
em linha recta
sobre a presa

a brancura veloz
da presa

entre urzes e névoas


levantadas na breve
torrente da poeira.

OS PASTORES DA ARCADIA

O pastor persiste para lá da pele


da ovelha, persiste pelo olhar
suave dos cordeiros, em frente
de uma estrada que arrasta
na civilização das máquinas
o olhar medroso do rebanho
O pastor persiste, embora à noite
lhe pesem nos olhos as ovelhas
e tenha ainda, contra o flanco
das cabras, que retirar o leite.

A VILEGIATURA

Atravessamos braços, pernas


fotográficas, bustos
erguidos ao fogo da beleza,
passamos por cima de castelos
de areia, o ar
não suporta nossos corpos
caímos no mar
Olhamos para o chão, como
se fosse um espaço proíbido.

1-5-2007

AS MÁQUINAS
«Ó rodas, ó engenagens,r-r-r-r-r-r-r eterno!»
Álvaro de Campos

Os êmbolos deslizam
sem transparências, estão ocultos
como um coração monótono
há umas trevas de ferro
e frio no fundo das máquinas
êmbolos, volantes, correias
de transmissão
são silêncios antes de todas as chaves
de ignição e dos magnetos deslizarem
a chama pelos fios adiante
até à combustão e à dentada
da roda num mundo parado
quando às mãos da máquina
o tempo começa o movimento.
........................

LA VICTOIRE
de Magritte

(Para o Vasco, que me deu a ideia do tecto)

A porta abre-se para um tecto


pintado de azul infinito

ao longe o leite
do luar derrama-se nas águas

uma nuvem entra após bater


com uns dedos de algodão

à porta que divide um azul


e um ocre raiando na aurora.

ULISSES
para James Joyce

Ulisses volta ao lar para não ser


nada mais do que um final
no ardil de Penélope
Depois de inventar Circe
de por o único olho do Ciclope
como o centro do mundo
disse o homem que contou a história
Todos souberam que erguera
um tear e tecera um véu subtil
Penélope que estava
por um fio
somado ao sol e subtraído
enquanto a lua derramava
leite no colo da noite.

REUNIÃO DE PÁSSAROS

Na grande árvore debaixo


da minha varanda

o amanhecer rompe
as janelas
e num rio de folhas
de água parada
os ramos empinam
a luz, as penas, os bicos
morenos, gorgeios, o amor
planando nas asas

o amanhecer leva
as brisas às janelas
e o dia começa
numa torrente de pássaros
transparentes.

28-4-2007

TUDO O QUE VIER DEPOIS

Tudo o que vier depois


do fogo, será a matéria
da cinza,

o que vier depois da tempestade,


um lugar
qualquer para refazer os vasos
e moldar o barro,

um silêncio frágil
espalhado pelos dedos.

Tudo o que vier depois


da voz, o eco de um nome
de um amor inesperados

O que vier depois da casa


em ruínas, as formas
do silêncio inabitado

Tudo o que vier depois


da altura, o que vier despido
já da luz e de poesia,

os pássaros difíceis, a chuva


que arde nos olhos, a terra
que na neve tem o toque da ternura.

23-4-2007

O PINTOR DE MOLICEIROS

O intérprete dos barcos


mete o convés no bojo
de uma elipse
traça a proa num golpe
como corta a água
um barco
se levanta à superfície
dos olhos e sorri a ria
como num espelho os lábios
sorriem ao rosto debruçado.

(Para o pintor Jaime Isidoro)

COM UM BEIJO JUDAS


Deste modo, com um beijo
morrerei.

Do fundo das sombras


das lanternas na noite
penduradas,
quantas serão elas? as vozes
baixas que se ouvem, e vêm
bater com um beijo
no meu rosto.

A noite vai como o beijo


silenciada entre luzes.

Esta é a minha noite, com um beijo


de lamina obscura
que desce para a brancura
do meu rosto,
deste modo, morrerei.

18-4-2007

DESPEDIDA

Como Antígona quis


empedrar-me aqui
longe de palavras, de certas
arestas de pedra nas palavras
que vêm de algumas bocas
para perturbar nosso canto

Fatigado de mim mesmo


gasto ainda meus olhos
na claridade das metáforas
e cativo fragmentos
de uma rosa desferida
pelo vento
apanhador do voo
de borboletas.
(para o meu amigo Joanyr de Oliveira)

16-4-2007

A MORTE NUNCA FOI UMA COISA

Aconteceu que a morte


imperava em qualquer parte.
José Agusin Goytisolo

A morte nunca foi uma coisa


gloriosa
quando a vi, pela primeira vez
pareceu-me triste como a ocultação
da lua, escorrendo
atrás das nuvens,
pareceu-me um fardo
para os homens,
um oleado laranja
que embrulhava um afogado
retirado ao fundo do porto.
Depois vi a morte de outros modos
outras mortes
cheias de olhos desmedidos
abertos para a beleza
do invísivel.

TEORIA DA SERENIDADE

É um homem tranquilo
nunca veste, sem propósito
um sorriso, mas ele lá está
mesmo para a mulher-a-dias
quem por ele passa
sente uma corrente de ar
serena, dessas que vêm
de uma porta que bate, ao de leve
do bater das pálpebras
há quem diga que tem um vulcão
no interior, não dos olhos
mas lá no fundo
onde a alma tropeça, às vezes
na solidão
É um homem tranquilo quando leva
com a pluma do sol, na cabeça
ou nesta sente o cabelo à chuva
em todo o caso menos tranquilo
do que um bébé dormindo
vogando no leite maternal.

AS MÃOS GUARDAM MEMÓRIAS

As suas mãos
vão guardar mémorias

pequenos perfumes, cruzam


na pele uma da outra
o fogo da epiderme

mesmo o esquecido/o que se esqueceu


ocupa o espaço interior
das mãos

carícias que vão diluíndo


tudo o que tocaram
sob os olhos atentos
da água

as mãos rodeiam ausências


o único infinito
que as sombras são

O CONSTRUCTOR

Do barro sairam olhos,a elipse


da boca, e as ágeis
palavras nos lábios
e o fundo
do cérebro onde estão
os mistérios.
Na argila das narinas
passou
o fôlego divino.
E
na argila as mãos de Deus
atravessaram o rigor
dos ossos para tecer
a alma
e ondularam o dorso
e lavraram nas costas
e dentro do corpo
os canais
fizeram ouvir o sangue.
Depois tudo
bateu no coração
visível nos olhos
o espelho da alma
E o homem foi um andar leve
como nuvens.

5-4-2007

SÍSIFO, ROLANDO A PEDRA


Recomeça...Se puderes
Miguel Torga

Antes que a montanha volte


a inclinar-se, se torne móvel
do rodar da rocha e o chão
repita a sua distância
do azul

Antes que teu rosto junto


à rocha, tão perto do magma
apagado do interior do nada,
olhe o píncaro
ao fundo do céu,
antes que esse céu imobilize
o voo dos pássaros

e encostes da pele
a intimidade
ao coração da pedra
sabe que há olhares enternecidos
que estão ainda à tua espera
e da estrela inacessível.

18-3-2007

ESPELHO ÀS 9:30 DA MANHÃ

para Charles Bukowski

Isto parece um rosto


de 60 anos? Rusgas
dos olhos pelos ângulos
escondidos na face
do espelho.
Procuram vestígios
do menino com meias altas
e braços caídos, um
terminando numa Bíblia,
na fotografia à la minute.
Um desalento. A respiração
no espelho
espalha o nevoeiro
e esconde
as minhas formas interiores.

15-3-2007

PIANISTA

Bate com urgência


nas teclas,
como um escultor que abre
o caminho ao mármore
para uma alma,
depois começa
a encontrar a raiz
da rosa, nas cinco
pontas dos dedos,
com duas mãos começa
a expansão da onda
onde o mar se arqueia,
onde um cavalo existe azul
na espuma
.............

ANTIGAS LEITARIAS DE LISBOA

Nos úberes quentes dos cafés


existe ainda o cheiro
das antigas leitarias
O silêncio sorve-se
no calor negro de uma chávena
e o branco opaco vem
no copo desde o grande rio
das glandes mamárias
dos nossos animais
outra é a cor do alcool
da transparente rosa do vinho
também nos úberes quentes
das leitarias onde a vida
de Pessoa passava
a outros nomes.

3-2007

A MÃO NO ARADO
E o arado
a entretecer nas mãos,
a gastar o ferro
o arado, até que
se converta
a áspera
espessura da argila
se converta em quase nuvem
quase água, em rosa
a entregar as pétalas
ao vento,
lançar o arado
até nas estrelas,
fazer sulcos
de luz na noite, como elas.

INVENÇÃO DE UM PAÍS

Eu vivo
numa Holanda de baixo
do nível do mar
estou sempre à espera
de acordar em líquido
amniótico.

AS MINHAS CRIANÇAS

Hoje vou juntando sombras


na memória, palavras
partidas, construções na poeira
expandida das estrelas,
para além
das palavras adultas, vão os netos
construindo outras, soltam
pássaros nesse céu da língua,
aves num desenho azul,
com a mesma rapidez
com que vestem as palavras
de línguas imprevistas,
vou juntando os risos
que são nos lábios dos netos
uma ternura física.

?.02.2007

UM OUTRO ADEUS PORTUGUÊS

e como um adolescente tropeço de ternura


por ti
Alexandre O Neill

Dentro dos meus olhos uma outra


forma de olhar
suporta a tua dor,

amparo-te na escada fluvial


que te traz ao dia,
no cais onde atracam
tuas sonâmbulas palavras

mais uma puríssima manhã


que deverias tratar
com o leite corporal
róseo da perpétua aurora

não podemos ficar nesta curva


entre sonhos de uma rosa enorme
que deixa o lirismo
a contas, indeciso com o mais
lancinante espinho.

6-1-2007

A HARPISTA
A entrançar o som como uma velha
cigana o vime, a harpista
põe cetim nos dedos,
nenhuma aresta ferirá a polpa
desses dedos, deslizam
como no céu o próprio azul
e a ave, um acorde
primeiro, um ar percutido,
um vento, nas cordas a vibrarem
uma alma.

8-1-2007

O MAESTRO \\ O CONDUCTOR DE ORQUESTRA

Tosse
como o último ruído
da ligação ao mundo

Com seus gestos de pescador


à linha
enche os braços de ar

fixa o silêncio
como se esperasse de uma fonte
a cristalina música da água

Não vemos, mas pensa em cada


um dos instrumentos
e estende os braços

Depois os olhos e ouvidos


seguem-no, as mãos
do tamanho da infinita mão

escutam-se, sonoras
vão desvelando
a música.

NÃOTÍCIA LOCAL

As gaivotas estão melancólicas


hoje (pairam
no tédio
dos pátios)na ondulada
pedra
das calçadas
nas poças de água (só
um céu
de lama)só
argila.

10-1-2007

O EFÉMERO NOS JORNAIS

Nalgum lugar onde nunca esteve, ninguém


relembrará quem, o que, onde
e quando, como
as coisas começaram
e porquê
o papel durou como invólucro
das rosas.

(c) poemas de j.t.parreira

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