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Timor-Leste A ilha insustentável

25.11.2008, Pedro Rosa Mendes, especial para o PÚBLICO

Este é o retrato implacável de uma realidade que não podemos


continuar a fingir que não existe. Estas são algumas das verdades,
duras como punhos, sobre um país que sonhou ser diferente - e nos fez
também sonhar

1. Timor não é um Estado falhado. É pior. Falhou o projecto nacional idealizado


há uma década

Em nove anos de liberdade, Timor-Leste não conseguiu assegurar água, luz e


esgotos para a sua pequena capital. Baucau, a segunda "cidade", é uma versão
apenas ajardinada da favela que é Díli, graças à gestão autárquica (oficiosa) do
bispado.

O resto, nos "distritos", é um país de cordilheiras que vive o neolítico como


quotidiano, longe do mínimo humano aceitável. Chega-se lá pelas estradas e
picadas deixadas pelos "indonésios". Há estradas principais onde não entrou
uma picareta desde 1999.

O bem público e as necessidades do povo são ignorados há nove anos com um


desprezo obsceno. O melhor exemplo é a companhia de electricidade: durante
cinco anos, a central de Díli não teve manutenção de nenhum dos 14 geradores -
todos oferecidos -, até que a última máquina de grande potência resfolegou.

O Hospital Nacional Guido Valadares, onde se inaugura esta semana instalações


rutilantes, não teve até hoje um ecógrafo decente nem ventiladores nos
Cuidados Intensivos. Não há um TAC no país (embora custe o mesmo que dois
dos novos carros dos deputados); a menina timorense com que Portugal se
comove teve o tumor diagnosticado pelo acaso de um navio-hospital americano
que lançou âncora em Díli. A taxa de mortalidade infantil é apenas superada a
nível mundial pelo Afeganistão. A mortalidade pós-parto é assustadora.
Entretanto, cada mulher timorense em idade fértil tem em média 7,6 filhos.

Circulam entre diplomatas e humanitários os "transparentes" de um relatório do


Banco Mundial que conclui que "a pobreza aumentou significativamente" entre
2001 e 2007 (um balanço arrasador do consulado Fretilin, porque o estudo usa
indicadores até 2006). Cerca de metade dos timorenses vive com menos de 60
cêntimos de euro por dia e, desses, metade são crianças. Timor é um país rico
atolado na indigência, onde os líderes se insultam por causa de orçamentos que
ninguém tem sequer unhas para gastar.
2. A "identidade maubere"é uma ficção dispendiosa

A identidade "nacional" do espaço político timorense não existe, como explicam


os bons historiadores, que sempre referem no plural os "povos" de Timor. Sob o
mito do "povo maubere" existe um mosaico de dezena e meia de entidades
etnolinguísticas que se definem por oposição (em conflito, separação,
desconfiança, distância) ao "outro", mesmo em aliança. O "outro" de fora, ou o
"outro" de dentro. É um tipo de coesão circunstancial e oportunista que morre
com o conflito, engendrando a prazo outros conflitos, em ciclos de calma e crise
numa ilha com paradigmas medievais.

A gesta "maubere" produziu, finalmente, uma inversão cronológica. A RDTL é


uma cristalização política de uma sociedade que teve alforria de Estado antes de
construir uma identidade que o sustentasse.

A filiação de cada timorense continua a ser à respectiva "uma lulik" (casa


sagrada) e às linhagens que definem outros territórios e outras leis que não
passam por ministros, juízes nem polícias, mas por monarcas, oligarcas e chefes
de guerra. É isto que os líderes tentam ser - ou, de contrário, não são.

3. O Estado independente é sabotado pelas estruturas da resistência

O Estado timorense funciona. Não significa, porém, que produza algum


resultado, exceptuando a Autoridade Bancária de Pagamentos, única instituição
onde a aposta na localização de quadros e a recompensa do mérito fizeram do
futuro banco central um oásis de probidade nórdica.

As estruturas operativas do país são paralelas, oficiosas e opacas. Vêm do tempo


da resistência e não houve coragem ou inteligência para as formalizar no jovem
Estado.

Um caso óbvio é o dos veteranos das Falintil que não integraram as novas Forças
de Defesa (FDTL). Em 2006, foi a 200 desses "civis" que o brigadeiro-general
Taur Matan Ruak recorreu num momento crítico de sobrevivência do Estado. O
Estado-Maior timorense está, porém, a contas com a justiça. Se passar da fase
de inquérito, talvez o processo das armas e da milícia "20-20" abra um debate
que devia ter acontecido antes. O lugar das "reservas morais" tem de ser
formalizado, sob pena de não haver linha de separação entre patriotismo e
delinquência. O major Alfredo Reinado ilustrou, de forma trágica, a facilidade
deste salto.

As estruturas paralelas, porém, não são exclusivo do sector de segurança. O ex-


comandante Xanana Gusmão não esconde que a Caixa, a rede clandestina de
"inteligência", continua activa. As fidelidades, mas também os reflexos e
atavismos da resistência, continuam em vigor. A "velha" voz de comando é, por
vezes, a última instância e, mesmo em Conselho de Ministros, o último
argumento é por vezes o voto de qualidade por murro na mesa.

José Ramos-Horta, diasporizado das Falintil e do mato até 1999, não tem cão
mas caça com gato. O chefe de Estado, em linha com os símbolos maçónicos
debruados nas suas camisas, é desde há dois anos o segundo "pai" da Sagrada
Família. É uma sociedade fundada em 1989 pelo comandante Cornélio Gama
"L7", que evoluiu para uma combinação algo mística de grupo religioso, partido
político e milícia justiceira. Foi "L7", com a bênção de Xanana Gusmão, que
apresentou a candidatura de Ramos-Horta à Presidência em Fevereiro de 2007,
em Laga. Vários elementos da Sagrada Família integram a guarda do chefe de
Estado.

A República timorense é limitada e sabotada pela recorrência do ocultismo,


apadrinhamento, vassalagem e mentalidade de célula. No entanto, se não
fossem as redes informais de confiança e de comando, por onde passam
também os códigos de fidelidade e os valores de grupo, a RDTL já teria
implodido.

Versão moderna dos Estados dentro do Estado: a última contagem, confidencial,


dá conta de 350 assessores internacionais junto do IV Governo Constitucional.

4. A estratégia dominante na sociedade está tipificada no Código Penal.

Chama-se extorsão

A simpatia pela "causa" timorense estagnou num ideal de sociedade e de pessoa


que é desmentido pela frustrante experiência quotidiana. Ignorância, trauma,
miséria e negligência, polvilhados com os venenos da complacência,
paternalismo e piedade, banalizaram comportamentos de rapina, desonestidade,
egoísmo e má-fé. A solidariedade, a generosidade e a gratidão estão em minoria.
O que é marginal ou criminal noutros sítios faz, no Timor de hoje, catecismo nas
repartições, nos negócios, no mercado, no trânsito, no lar.

A "liderança histórica" reina sobre um país intratável, em passiva desobediência


civil, que pensa e age como se todo o mundo lhe devesse tudo e como se tudo
estivesse disponível para ser colhido, do petróleo ao investimento e à atenção
internacional. A cobiça e a inveja social infectam a esfera política, social, laboral
e até familiar. "Aqui todos mandam e ninguém obedece", para citar um velho
timorense educado em princípios que deixaram de ter valor corrente no seu país.

A "estabilidade" actual é comprada com um Natal todos os dias. Tudo é


subsidiado, desde o arroz ao combustível, com uma chuva de benesses e
compensações a um leque impensável de clientelas e capelas. A sociedade civil,
digamos, é uma soma de grupos de pressão que recebem na mesma moeda em
que ameaçam com incêndios e pedradas, desde os deslocados aos peticionários
ou aos estudantes.

Todo esse dinheiro nada produz. Algum sai para a Indonésia, que os novos-ricos
timorenses consideram um sítio mais seguro para investir. O que fica compra
motorizadas e telemóveis. A Timor Telecom vai fechar o ano com 120 mil clientes
na rede móvel, 12 por cento da população, uma taxa ao nível de países com o
triplo de rendimento per capita do timorense.
A maioria dos timorenses não paga o que consome: água, electricidade (por isso
o consumo aumenta 25 por cento ao ano, um ritmo impossível de acompanhar
por qualquer investimento nas infra-estruturas), casa, terra, crédito, arroz. Este
modelo de pilhagem e esbanjamento é insustentável na economia, na banca, na
ecologia, na demografia e, a prazo, até na política.

5. A ocupação indonésia

foi implacável e a líderança timorense desmantela com zelo o que restava: a


dignidade

O gangster mais conhecido do submundo de Jacarta nos anos 1990 - o timorense


Hércules - é, hoje, o dono de obra no melhor jardim da capital. Os condenados
por crimes contra a humanidade, como Joni Marques, da "Tim Alfa" (pôs Portugal
de lenço branco em Setembro de 1999 com um massacre de freiras e padres),
voltam às suas aldeias com indemnizações por casas que foram queimadas,
enquanto eles estavam na prisão.

Na Comissão mista de Verdade e Amizade (CVA), foi a parte timorense, perante a


surpresa indonésia, que tentou conseguir uma amnistia geral para os crimes de
1999, com uma persistência de virar o estômago.

O relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), uma


monumentae historica de 24 anos de dor em sete volumes, espera há três anos
a honra de um debate no Parlamento. Duas datas estiveram marcadas em
Novembro, mas, nos bastidores, os titulares políticos tentam obter uma prévia
sanitização das recomendações da CAVR.

Mari Alkatiri, Xanana Gusmão e José Ramos-Horta, ao sectarizar a memória da


violência, desbarataram o capital obtido à custa de duzentos mil mortos
(incluindo os seus entes queridos). A herança do genocídio é aviltada na praça
como capital de risco e como cartão de visita. O resultado é uma distopia moral,
um abismo de proporções tremendas em que se afunda um país cuja soberania
teve, afinal, uma legitimidade essencialmente moral no seu contexto geográfico
e histórico.

Os mortos são a parte nobre de Timor, merecedores de tributos em rituais, lutos


e deslutos. Mas nesta terra de cruzes, valas comuns e desaparecidos, não houve
ainda a caridade de 200 mil euros para instalar um laboratório de ADN que
permitisse, enfim, devolver os ossos ao apaziguamento dos vivos.

A injustiça e a impunidade são valores seguros em Timor-Leste.

6. Timor fala todas as línguas e nenhuma

Timor é uma ficção lusófona onde a língua portuguesa navega contra uma
geração culturalmente integrada na Indonésia, contra a geografia, contra
manipulações políticas internas e contra a sabotagem de várias agências
internacionais. A reintrodução do português só poderá ter êxito com a cumulação
de duas coisas: firmeza política, em Díli, sobre as suas línguas oficiais;
massificação de meios ao serviço de ambas.

O Instituto Nacional de Linguística tem 500 dólares de orçamento mensal


(exacto, seis mil USD por ano).

Na "Babel lorosa'e", como lhe chamou Luiz Filipe Thomaz, não se fala bem
nenhuma das línguas da praça (tétum, português, inglês, indonésio). Uma língua
é a articulação de um mundo e do nosso lugar nele. Perdidos da gramática e do
vocabulário, uma geração de timorenses chegou à idade adulta e ao mercado de
trabalho sem muitas vezes conhecer conceitos como a lei da gravidade, o fuso
horário ou as formas geométricas, apenas para dar exemplos fáceis.

Aos poucos bancos com balcão em Díli (três) chegam projectos de investimento
estrangeiro cujos planos de amortização não prevêem mão-de-obra timorense ou
que contam os timorenses como peso-morto na massa salarial, ao lado de
operários ou técnicos importados que responderão pela produção.

7. "Entrar nas Nações Unidas é ficar politicamente inimputável"

Diz um diplomata que gosta do teatro de sombras javanês: "A ONU em Díli está
em sintonia com os dirigentes timorenses. Todos fabricam fantasmas: o grande
estratego, o grande diplomata, o grande guerrilheiro. Se não fosse assim, as
máscaras cairiam e seria um grande embaraço..."

A UNMIT, uma das missões mais caras da ONU, afunda-se penosamente no


mesmo vazio moral da liderança timorense. Três mil funcionários, polícias e
militares, uma massa crítica formidável que poderia ser um contrapeso à
incompetência e à insensatez, são esmagados pelo cabotinismo carreirista do
chefe de missão, Atul Khare, e de acólitos que acham bem em Timor aquilo que
jamais admitiriam nos seus países desenvolvidos. "Entrar nas Nações Unidas é
ficar politicamente inimputável", explicou um alto-funcionário da UNMIT.

8. Não há nenhuma bandeira de Portugal no mar de Timor

Não há interesses portugueses em Timor-Leste, porque não há condições


objectivas mínimas para fazer vingar qualquer interesse mensurável. Não,
decerto, pelos critérios que vigoram em qualquer outro lado. Seria bom que isto
fosse entendido pelos nossos responsáveis políticos. Portugal concedeu mais de
440 milhões de euros de 1999 a 2007 em ajuda ao desenvolvimento a Timor-
Leste, que consome quase metade do bolo total da nossa cooperação.

Continuando uma tradição portuguesa, as projecções pós-imperiais e os fascínios


com sucessivos aprendizes de Mandela ganham precedência sobre as
informações que chegam dos operadores económicos no terreno. "Mas você
nunca ouvirá um governante português dizer nada contra Timor", dizia, este ano,
à mesa do café, um governante português de visita.
9. "Tudo ainda não aconteceu"

A ferida feia no corpo de Ramos-Horta, quando o Presidente jazia numa poça de


sangue depois de levar dois tiros de cano-longo, é um buraco tão fundo como a
vergonha da nação. A ressurreição do profeta-Nobel criou um cristo gnóstico mas
as chagas, nesta terra dilacerada, já não fundam religiões com a facilidade com
que há dez anos fundavam Estados.

Díli, como um circo máximo de gladiadores, fervilha de jovens empurrados para


a luta. Não têm emprego, educação ou perspectiva. Alguém lhes diz: "Não sois
bandidos. Sois guerreiros." Mas dos aswain, os heróis das montanhas timorenses,
resta-lhes a coragem física, um retalho de rituais dispersos por grupos rivais e a
intransigente sacralização do seu território. Uma mistura inflamável para toda a
nação. "A resistência continua mas agora sem rumo. E, sem rumo, só faz
merda", diz o ex-assessor de Ramos-Horta para a Juventude José Sousa-Santos.

"Tudo ainda não aconteceu", avisava um "espírito" antepassado, pela voz de


uma menina de Ermera, no Natal ainda inocente de 2005.

Díli, Novembro de 2008

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