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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devenios
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confisca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
14
FEVEREIRO

1959

ERGUNTE
e

Responderemos

ANO //
ÍNDICE

Pág.
I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Desejava um esclaredmento sobre o chamado Calendario


Gregoriano e as modernas tendencias a reformarlo" SI

H. DOGMÁTICA

S) "A Igreja parece constituir um intermediario supérfluo entre


Cristo e os cristdos. Aceito perfeitamente, o que Cristo disse
e mandón, mas -nao reconheco o que a Igreja manda" 57

8) "Nao será absurdo afirmar, como fazem, os católicos, que o


Papa é infalível ?" 61

A) "Onde se situam o inferno e o purgatorio ?" 66

5) "Onde estáo os corpos de Jesús e María, de Henoque e Elias?" 66

6) "Haverá céu novo e térra nova no fim dos tempos ?" 67

III. SAGRADA ESCRITURA

7) '"Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus'


(Mt 22,21). Daí deduzo que nao se devem misturar o foro
religioso e o foro político e que, ao agir como político, -nao
estou obrigado a aceitar normas da Religiáo" 72

IV. MORAL

8) "Que julgar das idéias do filósofo hindú contemporáneo Jiddu


Krishnamurti, que a todos os komens promete a verdadeira
liberdade mediante um despertar de consciéncias ?" 76

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

9) "As profecías ditas de Sao Maluquios s&o aprovadas pela


Igreja ? Nao se estáo cumprindo mais urna vez na pessoa do
Papa Joño XXIII, Pastor e Navegante ? .... 80

10) "Quem sao os Testemunhas de Jeová ?" 54

CORRESPONDENCIA MIÚDA 89

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano II—N? 14 — 1

I. CIENCIA E BELIG1
*

W. M. (Rio Negro):

1) «Desejava um esclarecimento sobre o


dário Gregoriano e as modernas tendencias a reformá-lo».

Calendario provém do té~mo ¡atino Ca'endae e da raiz grega kal,


a qual sign'flca chamar (donde ka!e:n, chamar, em grego; calare,
era lafm). Em latim. o uso da palavra e.-a rsitrito á lingua3Jm sacal,
serv.ndo para designar a convoeagSo do povo para o Campidog'.io,
feita por um dos sacerdotes quando a íua entrava em sua fase
crescente, convocacáo que visava comunicar ao púb.ico os d as das
nonas (isto é, do quarto crescente) e dos idos (da íua cheia). Calendas
conseqüentemente passou a significar o primeiro d'a do mes (d'a da
convocacáo); por estensáo, o mesmo termo designava mais tarde o
mes inteiro.
Calcndarium vinha a ser, entre os romanos, o registro no qual os
banqueiros anotavam os juros no primeiro dia de cada mes. Por flm,
ca'.endariiun tomou o signif cado atual, dssignando o sistema de medir
o tempo, sistema nítidamente relacionado com os fenómenos astronó
micos. Principalmente a religiáo (em suas diversas lases e modal'dades)
se interessou pelo calendario, pois todos os povos tiveram sempre
consciéncia de que o tempo é algo de sagrado, que convém observar
fielmente.
Vejamos agora em que consiste

1. O Calendario Gregoriano

O Calendario Gregoriano supóe o calendario chamado


«jul'ano». Éste, por sua vez, foi ocasionado por certo impasse
ocorrente na contagem do tempo em Roma.

No primeiro3 tempos de Roma os mases eram de 29 ou 30 d:as,


coníando-se, a partir de Numa PompíLo (715-672 a. O, doze meses
num ano. MaTs tarde Roma adotou o ano civil de 335 dias, com seus
meses de 28. 30 e 31 dias, íicando apenas urna dlferenca de aproxima
damente 6 horas entre o ano civil e o ano trópico.
Sob Julio César, a diferenga acumulada entre um e outro déstes
já era de 85 dias. O Imperador resolveu entáo remediar á situacáo,
decretando que o ano de 46 a. C. (708 de Roma) teria 85 dias a
mais (donde se originou o chamado annus confus'onis, ano de
confusáo). A seguir, conforme o parecer do astrónomo alexandrino
Sosigeno, resolveu que de entáo por dlante se atribuiriam ao ano
civil 365 dias e 6 horas (quando na verdade o ano trópico consta
de 365 das, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos); pelo que, de quatro
em quatro anos se acrescentaria ao ano um dia complementar,

— 51 —
chamado día bissextil. Éste nome se deve ao íato de que a insergáo
se íazia entre 23 e 24 de íevereiro; ora, o dia 24 de fevereiro sendo
o sextus calendas martii, o dia intercalado ou suplementar passou
a ser bissextus calendas martii, e o ano correspondente tomou o nome
de ano bissextil.

O Calendario juliano assim concebido era sistema assaz


esmerado. Contudo a diferenca de menos de 12 minutos que
néle distanciava o ano civil do ano trópico, havia de provocar
a diferenca de um d'a em 128 anos. No tempo de César, após
a reforma, o equinóxio da primavera caía no dia 24 de marco;
128 anos mais tarde, caía no dia 23 de marco; 256 anos depois,
no dia 22 do mesmo; por ocasiáo do concilio de Nicéia (325)
estipulou-se o dia 21 de margo. Em fins do séc. XVI o equi
nóxio da primavera já cairia perto do dia 11 de margo; caso
o processo continuasse, as estagóes do ano viriam a se des
locar por completo dos seus meses habituáis. Sendo assim,
bispos e sabios medievais, conscientes de tais falhas, pediam
reforma do calendario vigente.

Em 1232, o monge escossés JoSo de Holywood. em sua obra


De anni ratione, sugeria mudanga do sistema de intercalacáo do dia
bissextil. Rogério Bacon (tl294), no seu «Opus maius ad Clementem
IV», propunha ao Pontífice urna reforma do calendario. O Papa
Clemente VI em 1345 encarregou dois matemáticos franceses de a
estudar. Os concilios de Constanga (1414) e Basiléia (1436) também
trataram do assunto. Sixto IV (t 1484) chamou a Roma, a íim
de estudar a reforma o famoso astrónomo Regiomontano (Joao
Müller de Konigsberg), o qual, porém, morreu antes de terminar o
seu projeto. O Papa Leao X, no concilio V do Latrao (1513-1517),
deu novo impulso á reforma do calendario. Por fim. o concilio de
Trento pediu-a expressamente ao Papa.
Gregorio XIII (1572-85), assim solicitado, abriu um concurso
entre os astrónomos, valendo-se da colaborado dos mais famosos
matemáticos da época (os irmáos Aloislo e Antonio Lílio, o domi
nicano Inácio Danti, o jesuíta alemáo Cristóváo Clau e o espanhol
Pedro Chaón); ai>ós deliberar longamente sobre as fórmulas apre-
sentadas, o Pontífice houve por bem dar preferencia & de Aloislo.
e Antonio Lilio; mandou entáo em 1577 copias do projeto a todos
os principes e Estados católicos. Apoiado por estes. Dublicou final
mente c'nco anos mais tarde, aos 24 de fevere'ro de 1582 (bu'a «ínter
gravissimas»), o novo calendario (ou calendario «novo estilo», em
oposigáo ao calendario «velho estilo»).

A primeira norma da reforma, visando extinguir a dife-


renga entre ano civil e ano trópico, mandava que a quinta-feira
4 de outubro de 1582 fósse mediatamente seguida da sexta-
-feira 15 de outubro do mesmo ano (tal medida nao provocaría
hiato entre os dias da semana); assim doravante o dia 21 de
margo coincidiría, como supunha o concilio de Nicéia (325),
com o equinóxio da primavera.

— 52 —
Era preciso, porém, evitar a repetigáo do desajuste... Já
que éste provinha do fato de que o ano civil era desde Julio
César (e continuava sendo) considerado 1/128 de dia (11 mi
nutos e 12 segundos) mais longo do que o ano trópico (isto é,
mais ou menos tres dias em 400 anos), Gregorio Xm dispos
nao fóssem considerados bissextos os anos de século nao divi-
síveis por 400 (assim em todo período de 400 anos, tres dias
eram supressos). Por conseguinte, seriam bissextos os anos
de 1600, 2000, 2400, nao, porém, os de 1700, 1800, 1900, 2100.
Éste corretivo (chamado equagáo solar) tornar-se-ia plena
mente eficaz pelo prazo de mais de 3000 anos: de 3320 em
3320 anos, porém, será preciso suprimir um dia.
. A reforma gregoriana aos poucos foi sendo adotada pelos
povos cultos. Na Espanha, em Portugal e em parte da Italia
a supressáo de dez dias féz-se na mesma data que em Roma.
Na Franca ela se realizou pouco depois : o dia seguinte ao
domingo 9 de dezembro de 1582 foi contado como segunda-feira
20 do mesmo. A Polonia adotou a mudanca em 1586 ; a Hun
gría, em 1587. Nos Estados protestantes, porém, a resistencia
féz-se sentir: a Alemanha só aceitou o calendario «novo estilo»
em 1700; a Inglaterra, em 1752.
Quanto aos cristáoa-cismáticos orientáis, ainda seguem o
calendario juliano, ao menos na Liturgia : no ano 2100 estaráo
com um atraso de tréze dias em relagáo a Igreja universal.
É de crer, porém, que nao tardaráo a reconhecer as vantagens
do calendario corrigido. Antes de empreender a sua reforma,
Gregorio XIH, alias, consultou o Patriarca de Constantinopla
sobre o assunto; mas, longe de obter resultado, seu sistema
foi explícitamente condenado por um sínodo oriental em 1593.
Contudo em 1923 o patriarcado de Constantinopla, as circuns-
crigóes eclesiásticas de Atenas, Cipro, da Polonia (cismática)
e da Ruménia adotaram o calendario gregoriano para designar
ao menos as suas festas fixas (o dia seguinte a 30 de setem-
bro foi dito 14 de outubro de 1923). Em 1948 o sínodo «pan-
-ortodoxo» de Moscou resolveu deixar liberdade de escolha,
no caso, a todas as comunidades cristas da órbita soviética.
De resto, tém-se registrado nos últimos tempos adesóes notá-
veis: a Turquía adotou o calendario gregoriano em 1924; o
Japáo já o introduzira em 1873; a China, em 1912 ; a Bulgaria,
em 1916. Mugulmanos e israelitas ainda nao o reconhecem.

2. Nova reforma do Calendario ?

O calendario gregoriano, embora seja obra respeitável,


nao deixa de apresentar defeitos, alias em parte herdados do

— 53 — —
antigo calendario romano. Há, por isto, quem julgue que os
astrónomos de Gregorio Xin nao foram suficientemente longe
em suas reformas... : porque teráo guardado a desigual du-
ragáo dos meses, a yariabilidade da data de Páscoa, etc. ?
Estas consideracóes tém dado ocasiáo a projetos de renova~áo
do calendario. Procuraremos abaixo delinear rápidamente o
historio do movimento para depois apreciar as suas princi
páis teses.

a) Esbóco histórico

Em 1834 o Pe. Mastrofini publicou em Roma urna obra em que


preconizava um calendario imutável. Cinqüenta anos depois, a revista
«LAstronomie», dirigida em París por Camille Flammarion abriu
um concurso referente ao assunto, resolvendo premiar os primeiros
vencedores.
No séc. XX a adesáo de novas nacóes ao calendario gregoriano
mais chamou a atencáo para o valor do «padrüo único» no tocante
a contagem dos d¡as: as Cámaras de Comérc'o trataram do assunto
em seus Congressos (Praga. 1908; Londres, 1910; Bostón, 1912; París,
1914). Em 1914 o govérno suico se aprestava para iazer urna comuni-
cacáo d plomática a todos os povos sobre o assunto quando irrompeu
a primeira guerra mundial.
Pouco depois desta, em 1922, a Uniáo Astronómica Internacional
elaborou um projeto que a L!ga das Nacóes em 1923 reso.veu
submeter a todos os governos civis e autoridades religiosas. A própra
Lga das Nacóes constituiu urna comi«-sáo encarregada do estudo da
questao, comissao em que figuravam o Prof. Van Eysingha de
Leyde, perito técnico no assunto, o R. P. Gianíranceschi Presidente
da Academ a Pontifica dos «Nuovi Lincei», D. Eg nitis' Diretor do
Observatorio Nacional de Atenas, designado pelo Patriarca d* Cons
tan tinopla, o Rev. Philipps. representante do arcebispo de Cantuária
(anglicano), Willis Booth, Pres dente da Cámara Internacional de
Comercio. G. BIgourdan, ex-pres dente da comissao da UniSo Astro-
nom.ca. Esses representantes de diversos credos e interésses concor-
daram iogo numa de suas primeiras sessóes em que, «do ponto
de vista estritamente dogmático, o exame da reforma do calendario,
no oi<e concerne tanto á festa de PA'-coa como á qu°s*ño miis
peral da reforma do calendario gregoriano, nao eusc'ta d^^uMades
de natureza tal que se devam de antemSo considerar insuperáveis»
(Rapport relatif a ía Réfo me du Caiend/ier. Genéve 192o,7*.
Po" fim. em 1930 fundou-se em Nova Iorque urna Assodacáo
Un'ver'-al do Calendario, que pub'ica a rev'sta «Journal oí Calendar
Reform». Essa associagáo coordena efxazmente os esforcos dos
estudiosos de cada nacáo em prol do objetivo comum.

b) As teses reformistas

As propostas de inovacóes nao visam retocar a corregáo


feita ao calendario juliano por obra do Pont'fice Gregorio XIII
em 1582. Esta emenda é tida por táo adequada quanto possível
no estado atual da ciencia. Os observadores, porém, focalizam
dois pontos defeituosos no atual sistema:

— 54 —
a falta de correspondencia regular dos días do mes com
os dias da semana (o dia 1* de Janeiro, se num ano cai em
domingo, no ano seguinte cai em segunda ou, no caso de bis-
sextilidade, em terga-feira);
a mutabilidade da data de Páscoa. Esta solenidade é tra-
dicionalmente celebrada no domingo que se segué a primeira
lúa cheia após o equinóxio da primavera. Ora, sendo o equi-
nóxio da primavera colocado no dia 21 de margo (de acordó
com o concilio de Nicéia), a data de Páscoa pode deslocar-se
de 22 de margo a 25 de abril. A variabilidade de Páscoa acar-
reta naturalmente a de urna serie de celebragdes religiosas e
civis (Ascensáo, Pentecostés, Quaresma, Carnaval, etc.).
Nao há dúvida de que estas duas características do ca
lendario vigente causam transtomos aos diversos setores da
atividade humana, principalmente á industria, ao comercio e
ao ensino. Além disto, a vida crista, diz-se, seria beneficiada
pela fixagáo da data de Páscoa, pois o culto sagrado se desen
volvería dentro de um quadro mais regular e compreensivel
aos fiéis.
Em vista désse estado de coisas, os estudiosos, coligindo
os diversos postulados dos grupos interessados, elaboraram o
seguinte plano, que se tornou o mais focalizado dentre os seus
congéneres:

1« TRIMESTRE 2« TRIMESTRE 3» TRIMESTRE 4» TRIMESTRE

l.Dom. 1? Janeiro l.Dom. 1? abril l.Dom. 1» julho 1. Eom. 1» out.

8. Dom. 8. Dom. 8. Dom. 8. Dom.


15. Dom. 15. Dom. 15. Dom. 15. Dom.
22. Dom. 22. Dom. 22. Dom. 22. Dom.
29. Dom. 29. Dom. 29. Dom. 29. Dom.

32. lí fover. 32. 1' malo 32. 1' asusto 32. le novembro

36. Dom. 36. Dom. 36. Dom. 36. Dom.


43. Dom. 43. Dom. 43. Dom. 43. Dom.
50. Dom. 50. Dom. 50. Dom. 50. Dom.
57. Dom. 57. Dom. 57. Dom. 57. Dom.

62, 1? marco 62. 1' junho 62. lv setembro 62. 1' dezembro

64. Dom. 64. Dom. 64. Dom. 64. Dom.


71. Dom. 71. Dom. 71. Dom. 71. Dom.
78. Dom. 78. Dom. 78. Dom. 78. Dom.
85. Dom. 85. Dom. 85. Dom. 85. Dom.

91. Sábado 91. Sábado 91. Sábado 91. Sábado

• Blssextll t 365« dia

* De quatro em qua.tro anos, um día blssextll, após 30 de junho.


t Todos os anos, o 365» día, após 30 de ciezcmbro.

— 55 —
Como se vé, o ano de doze meses estaría repartido em
quatro trimestres, cada qual constando de dois meses de 30
dias e um mes de 31 dias (ao todo, 91 dias). Cada trimestre
comegaria por um domingo e terminaría por um sábado; o
dia 1» de Janeiro seria sempre um domingo. O 365* dia do
ano tomaría lugar após o dia 30 de dezembro, com o nome
de «sábado bis» ou «dia branco», podendo ser equiparado a
um domingo. O dia bissextil (outro «dia branco»), quando
ocorresse, ocuparía o fim do segundo trimestre, após 30 de
junho ; seria o dia 31 de junho, assemelhado a um domingo.
Quanto á Semana Santa, a sua estipulacáo dependería
naturalmente das autoridades religiosas, as quais, conforme
alguns liturgistas, com vantagem poderiam escolher os pri-
meiros dias de abril, ficando a solenidade de Páscoa definiti
vamente fixa no dia 8 désse mes.
Tal projeto tem merecido aplausos e apóio crescentes do
público internacional. É natural, porém, que o cristáo, antes
de lhe aderir, examine se é ou nao compatível com os dados
da Revelagáo.
A esta dúvida deve-se responder que da parte da fé nao
há objeráo dirimente contra o esquema proposto. A lei do Sanhor
manda, sim, que o homem, numa serie de sete dias, de maneira
especial consagre o sétimo a Deus, interrompendo seu traba-
lho material para se aplicar mais livremente aos valores eter
nos. A maneira, porém, de calcular os períodos de sete dias
ou as semanas nao é determinada pela lei divina. A Igreja só
teria objecóes contra o abandono da semana, ou seja, da dis-
tribuigáo do tempo em períodos de sete dias.
Contudo insiste-se : em vista da legislagáo do Pentateuco
e da praxe tradicional vigente desde os tempos de Moisés
(séc. XIII a.C), de certo modo mesmo inculcada pelo con
cilio de Nicéia (325), seria realmente lícito aos cristáos dis-
sociar das fases da Lúa a festa de Páscoa ?
Em resposta, observe-se que o cálculo da data de Páscoa
na base do ciclo da Lúa, por muito tradicional que seja, per-
tence aos preceitos rituais da Antiga Lei, preceitos em parte
condicionados pelas instituigóes vigentes na civilizacáo ante
rior a Cristo (o mes lunar e o calendario luni-solar tinham
outrora urna importancia de que hoje já nao desfrutam); ora
os preceitos rituais do Antigo Testamento, sendo evidente
mente provisorios, nada tem de dogmático; cabe, portante,
á autoridade da Igreja dispor a seu respeito, adaptando-os
aos usos de épocas posteriores ; a fé crista apenas exigirá que
Páscoa continué a ser celebrada em domingo. — Verdade é
que a Igreja nunca aceitará sem serios motivos a derrogagáo

— 56 —
á tradigáo que sempre estéve em vigor no povo de Deus; ela
só aprovará a fixagáo da data de Páscoa, caso esta corres
ponda realmente as aspiragóes do bem comum, tanto no setor
religioso como no civil.

Em junho de 1935 urna comissáo de estudiosos ingleses íoi a


Roma entregar ao Santo Padre Pió XI um memorial das mudanzas que
desejariam ver introduzidas no calendario gregoriano. A Santa Sé se
mostrou de certo modo favorável ao projeto, contanto que o plano de
reforma receba o apóio ao menos da maioria das comunidades inte-
ressadas no assunto. — Semelhante atitude tem sido adotadá pelos cris-
táos cismáticos orientáis e pelos protestantes ; requer-se naturalmente
acordó previo sobre qualquer reforma, a fim de evitar multiplicidade
de calendarios, fomentadora de confusáo entre os fiéis.
Note-se, por fim, que nao é intencáo da Santa Sé preconizar re
forma do calendario que nao implique em fixacáo de Páscoa; ao con
trario, as autoridades eclesiásticas tém dado a saber que percebem
estar aquela reforma inseparávelmente ligada a esta (cf. Journal of
Calendar Reform, out. 1935, 117-9).

II. DOGMÁTICA

EVANGÉLICO (Rio Préto):


2) «A Igreja parece constituir um intermediario supér-
fluo entre Cristo e os "cristáos. Aceito perfeitamente o que
Cristo disse e mandou, mas nao reconhego o que a Igreja
manda!»

A esta dificuldade, multo comum em nossos dias, poder-se-ia res


ponder considerando um por um os diversos pronunciamentos da
Igreja através da historia, a fim de mostrar que sao aceitáveis para
quem os examine sem preconceitos.
Todavía, seguindo ésse método, embora conseguissemos o nosso
intento em cada caso, procederíamos quase sem fim...; a experiencia
ensina que renascem continuamente as mesmas dúvidas, com moda
lidades diferentes, no espirito dos homens. Ní. verdade, tal método nao
tocarla a raíz das dificuldades ; estas só se podem resolver cabalmente
mediante a revisáo de certas nocBes básicas. Sendo assim, procurare
mos esclarecer as düvidas, propondo abaixo duas concepgóes do Cris
tianismo, das quais urna é auténtica, a outra é errónea e fonte de
dificuldades.
As duas concepgñes se baseiam no fato de que Cristo, como Mes-
tre Divino, apareceu outrora sobre a térra, deixando aos homens o
convite para O seguirem numa vida nova. Éste fato é geralmente
aceito mesmo pelos que afirmam nao aceitar a Igreja. Há, porém,
duas maneiras de conceber a presenca ou a passagem de Cristo sobre
a térra...

1. As ondas concéntricas e a presenca ontológica

AJguns compararáo a vinda do Salvador ao mundo á de


um seixo atirado na agua. O pedregulho, visível a principio, se

— 57 —
torna invisível, porque se mergulha no seio da agua. Contudo;
ao desaparecer, ele desencadeia um movimento de ondas con
céntricas, que se váo propagando através do espaco e do
tempo ; essas ondas váo atingir os mais diversos e remotos
objetos, pondo-os em contato com o próprio seixo, pois por
elas passa o dinamismo do pedregulho; mediante essas ondas,
estabelece-se continuidade entre um acontecimento capital ve
rificado no passado e seres ou acontedmentos existentes no
presente; por elas o feito primordial se prolonga.
De modo análogo se há de conceber a vinda do Filho de
Deus ao mundo. Subtraiu-nos a sua presenca visível, mas
prolonga a agáo de sua humanidade através dos séculos ;
entre a carne de Cristo e a carne de cada cristáo contem
poráneo há continuidade ininterrupta de vida através de 55
gerag5es (continuidade que o movimento dos círculos concén
tricos ilustra bem). Diz-se, por conseguinte, que Cristo está
presente a cada geragáo de cristáos por urna presenta onto-
lógica, isto é, por urna presenca objetiva, real, nao apenas
pela recordagáo ou pelas idéias que os homens possam ter a
respeito d'Éle. Em conseqüéncia, a sociedade que se deriva
do Cristo, através dos Apostólos e dos sucessores dos Apostólos
sem ruptura até hoje, nao é senáo a continuagáo do Cristo ou
o Cristo prolongado; nela, e sómente nela, se vai encontrar
o Senhor Jesús ontológicamente presente, isto é, presente nao
só porque é evocado, mas presente porque a sua vida está
encerrada nessa sociedade.
Fora desta, nao se encontra o Cristo vivo, mas um Cristo
que é idéia ou doutrina apenas. É isto o que Sao Paulo quer
dizer quando ensina que a Igreja é o Corpo de Cristo (cf.
Col 1,24) ou que Ela é a plenitude do Cristo (cf. Ef l,22s).
É plenitude... nao por acrescentar algo aos méritos do Senhor,
mas por constituir o ambiente homogéneo em que Éste pro
paga a sua agáo através dos séculos.
Tal é a concepgáo católica da vinda e da presenga -do
Cristo na térra. Em conseqüéncia, para o católico a via para
encontrar o Cristo é a Igreja ; mais precisamente ainda... é
o ambiente criado pelo último círculo concéntrico de vida que,
irradiando-se a partir do Cristo, atinge a geragáo presente.
É nesse ambiente que o homem sequioso do Divino Mestre
tem que entrar; ai será afetado pela vida do Senhor, lera e
ouvirá a Palavra do Salvador comunicada por órgáos fide
dignos (fidedignos, porque por éles é Jesús mesmo quem pro
longa seu magisterio e seu sacerdocio).
A luz desta concepgáo, vé-se que nao tem cabimento a
expressáo : «Aceito o Cristo e seus ensinamentos, nao, porém,

— 58 —
a Igreja». — Como saberia eu quáis sao os ensinamentos de
Cristo senáo através désse órgáo vivo do Cristo que é a Igreja?
A doutrina de Jesús (como, alias, o próprio Jesús) nao é mera
palavra encerrada em código, mas é vida, e só se pode
apreender numa comunidade viva, na familia dos discípulos
do Senhor. Ninguém entenderá o Cristo senáo dentro da Igreja,
porque nao há outro rneio de contato de Jesús conosco senáo
o dos círculos concéntricos.
Resumindo, diremos que a concepgáo católica ácima ex
posta se formula no axioma: «Onde está a Igreja, ai está o
Cristo». O que quer dizer: quem procura o Salvador, terá
primeiramente que indagar, entre as múltiplas sociedades que
hoje em dia professam o Cristo, onde está aquela que inin-
terruptamente prolonga o Senhor até hoje ; dentro desta, e
sómente pelo magisterio desta, é que encontrará a face autén
tica de Jesús.

2. O aerolito que se inflama e só sobrevive


na recordagáo dos homens

Ainda há outro modo de se conceber a vinda e a presenga


de Cristo na térra: sao comparadas ao bólido que em dado
momento se manifesta incandescente no céu, mas depois desa
parece, deixando aos seus observadores apenas a recordagáo
(urna imagem na memoria, um conceito na inteligencia) da
sua passagem.
Análoga seria a presenga de Cristo entre nos hoje: pre
senga por meio de símbolos que seriam meras alusóes, desti
tuidas de conteúdo, presenga de puro memorial ou mnemónica.
Que há de fazer quem, abragando esta concepgáo, queira
encontrar o Senhor Jesús ?
Auscultará os sinais da passagem do Cristo na térra, prin
cipalmente os livros que d'Éle falam ; aplicará a ésses sinais
e textos os criterios humanos de interpretagáo, muitas vézes
criterios subjetivos, inspirados pela veia «mística» do leitor.
Mediante ésses criterios, o estudioso julga poder concluir que
o Cristo deve ter sido tal, e deve ter ensinado tais e tais dou-
trinas... Nenhum magisterio transcendente, nenhuma auto-
ridade divina o guiam nessa interpretagáo.
De posse de tal conclusáo, o leitor olha para as diversas
sociedades que hoje em dia professam o Cristo (catolicismo,
as múltiplas denominagóes e seitas protestantes, o cisma
oriental) e compara-as com a idéia subjetiva que ele tem do
Cristo. E diz por fim: «Tal é a Igreja que eu escolho; será
minha Igreja, porque me. parece corresponder ao ideal do

— 59 —
Cristo» ; ou talvez: «Nenhuma é minha Igreja; o ensinamento
do Cristo foi deturpado por todas as sociedades cristas hoje
existentes; o Cristo, eu O entendo, ao passo que nenhuma
das instituicóes cristas O entende».
Para quem assim pensa, «Igreja» é algo de relativo e
contingente; é tentativa humana, mais ou menos bem suce
dida, de realizar os ensinamentos de Cristo; e, como toda ten
tativa humana, é criticável, até mesmo dispensável.
Brevemente, esta posicáo se resume na fórmula: «Onde
está Cristo, ai está a Igreja». Fórmula que quer dizer : «onde
julgo encontrar o Cristo, cujos tragos concebí em minhas lei-
turas e meditagóes, ai deve estar também a Igreja (= a so-
ciedade humana que mais se aproxima do Cristo)».
Tal é a concepgáo de Cristo e de Igreja que caracteriza
principalmente as confissóes protestantes. Deduzindo as últi
mas conseqüéncias destas idéias, varias dessas confissóes em
nossos dias professam um Cristianismo táo depauperado que
o reduzem a u'a «manifestacáo inefável de Deus em Cristo» ;
tudo que seja capaz de transmitir ésse fato «inefável» (escri
tos do Novo Testamento, documentos da tradigáo) vem a
ser jugado digno de respeito, mas de modo nenhum inerrante.

Karl Barth, um dos mais lamosos teólogos protestantes da atua-


lidade exprime muito bem essa posicáo, dizendo que a Biblia nao é
em si'mesma a Palavra de Deus, mas o testemunho humano e ialivel
dos acontecimentos pelos quais Deus interveio e lalou ; ela vem a
ser por conseguinte, o órgáo mediante o qual se pode crer, com a
máxima probabilidade, que Deus nos íala «agora e aqui».

Ésse modo de considerar o Cristianismo leva ainda a con


cluir que entre o Cristo e o cristáo de hoje está interrompido
todo contato na linha horizontal dos sáculos ou através da
tradigáo histórica (na linha dos círculos concéntricos). As di
versas denominagóes protestantes reconhecem esta conclusáo.
Procuram justíficá-la, afirmando que basta o contato com
Cristo na linha vertical, pois, dizia o Mestre, «onde dois ou
tres estejam reunidos em nome de Cristo, ai está Ele» (cf.
Mt 18,20) ; baseando-se neste texto, julgam poder recomegar
o Cristianismo no séc. XVI, no séc. XVII, no séc. XX, inde-
pendentemente de toda a tradigáo anterior...
Falaz esperanga, desmentida pelos seus próprios frutos :
centenas e centenas de denominagóes cristas originaram-se
assim, independentes urnas das outras, atestando, por suas
contradigóes, serem obras meramente humanas. Em conclusáo:
se nao se guarda o contato com o Senhor Jesús na linha hori
zontal, por meio da tradigáo histórica ininterrupta (segundo

— 60 —
a imagem dos círculos concéntricos), pode-se ter certeza de
que se perde por completo a verdade do Cristo, na qual está
a Vida.

F. F. P. (Belo Horizonte) :

3) «Nao sera absurdo afirmar, como fazem os católicos,


que o Papa é infalível ?»

As dificuldades de se admitir a proposicáo ácima provém,


em parte, da falsa nocáo de infalibidade pontificia pressuposta
por seus adversarios. Por isto, em primeiro lugar apresenta-
remos o auténtico conceito de infalibilidade papal; a seguir,
examinaremos os fundamentos déste dogma na Revelagáo.

1. Que se entende por infalibilidade pontificia ?

A infalibilidade que se atribuí ao Pontífice Romano nao é

impecabílidade (o Papa, por eíeito de seu cargo, nao está isento


de incorrer em faltas moráis) ;
também nao é ciencia «infusa (dom sobrenatural pelo qual Deus
faz alguém conhecer, sem ladiga, as conclusSes a que essa pessoa
normalmente só chegaria mediante longo estudo) ;
também nao é inspiragáo, á semelhanca da que se dá nos autores
bíblicos (esta vem a ser um auxilio especial em virtude do qual o
Espirito Santo dirige todo o trabalho de um escritor humano, de
sorte que os textos assim oriundos devam ser atribuidos a Deus como
Autor principal e á criatura como a seu autor secundario) ;
muito menos infalibilidade é o poder de declarar ser um bem o que é
um mal moral, e vice-versa, mudando os principios da ética (estes tém
valor objetivo, fundado na natureza mesma das coisas, de sorte que nao
dependem do mero bom senso de um homem, nem do «bel-prazer» de
Deus, mas da imutável santidade do Altíssimo).

Positivamente, a infalibilidade pontificia consiste na assis-


téncia que o Espirito Santo concede ao Sumo Pontífice, a fim
de que éste nao cometa erro doutrinário quando, com a auto-
ridade de Supremo Pastor da Igreja, declara que alguma pro-
posigáo de fé ou de moral pertence á Revelacáo crista e por
isto deve ser aceita por todo e qualquer discípulo de Cristo.
Esta definigáo sugere algumas observagóes :
1) a infalibilidade compete ao Pontífice enquanto é pes-
&oa pública ou na medida em que tenciona exercer as fungóes
de Chefe da Igreja universal (falando «ex cathedra», como
se diz em linguagem técnica).

O Pontífice Romano nao goza de infabilidade enquanto é doutor


particular ; os teólogos chegam a admitir que a rigor o Papa, como

— 61 —
pessoa privada, poderia cair em heresia (muitos acrescentam, porém,
que a Providencia Divina jamáis permitiu nem permitirá isso).
Com mais razáo ainda, vé-se que nao gozam de infalibilidade os
decretos das Congregares Romanas, mesmo que estejam munidos
da aprovacáo do Sumo Pontífice (íoram decretos dcsse género que
entraran! em causa no episodio de Galileu).

2) O objeto da infalibilidade papal sao apenas proposi-


cóes de fé e de moral, isto é, verdades sobrenatural que o
cristáo deve crer e preceitos que ele deve praticar.

Note-se que a infalibilidade nao é dada ao Romano Pontífice para


que «crie» novos dogmas (é pouco exato falar. como comumente se faz,
de «novos dogmas»), mas "únicamente para que interprete em sentido
auténtico a Revelacáo crista. O Papa tem por missao apenas guardar
e explicitar genuinamente o depósito revelado, impedindo as aberra-
cóes subjetivas, inevitáveis sempre que os homens entregues ao seu
mero bom senso procuram definir a Verdade.

3) A assisténcia divina outorgada ao Pontífice quando


fala «ex cathedra», em absoluto nao dispensa os estudos que,
segundo os criterios humanos, possam concorrer para se che-
gar á certeza sobre determinado assunto; é sómente após
numerosas pesquisas, consultas e oracóes que o Sumo Pontí
fice costuma proferir alguma definigáo.

Ñas definigoes pontificias (assim como ñas dos concilios univer-


sais) só goza de infalibilidade a sentenca final em que o Pontífice
(ou o concilio) profere diretamente o seu juízo s&bre o assunto estu-
dado. As premissas (de índole exegética, histórica...) que costumam
preceder ésse juízo, poderiam a rigor ser erróneas (admite-se, porém,
que na realidade o Senhor Deus impeca a ocorréncia de érros mesmo
nesses preámbulos nao definidos).
Levando em conta as observacóes ácima, os teólogos concluem
que nao sao muito numerosas as definigóes infalíveis até hoje pro
feridas pelos Papas.

4) As definicóes do Romano Pontífice «ex cathedra»


sao por si mesmas irreformáveis ou infalíveis, nao dependendo,
para isto, da ratificacáo do episcopado ou dos fiéis.

Em linguagem técnica, dir-se-ia : a infalibilidade papal é pcssoal


e separada ; o que significa : ela tem por sujeito a pessoa do Pon
tífice, mesmo que éste nao se pronuncie dentro de um concilio ecumé
nico. Está claro, porém, que o exercício da infalibilidade pessoal nao
separa o Papa do Corpo da Igreja : por disposicáo da Providencia,
jamáis faltou nem faltará ás definieses «ex cathedra» do Romano
Pontífice o consentimento da Igreja. Doutro lado, a infalibilidade
pontificia nao excluí a infalibilidade do magisterio universal dos bis-
pos reunidos em concilio ou dispersos, desde que estejam em uniáo
com o Pontífice Romano.

— 62 —
5) Precisando ainda mais a doutrina, deve-se afirmar
que a infalibilidade pontificia nao é senáo urna das formas
pelas quais se concretiza aquela infalibilidade que Jesús Cristo
outorgou á sua Igreja, conforme Mt 18,18; 28,18-20;
Me 16.15s.20; Le 10,16 ; Jo 16,13.16s.26. Em outros termos :
a infalibilidade do Sumo Pontífice está implicada na infalibili
dade da Igreja,. de que tratava o fascículo «P. R.» 10/1958,
qu. 2 e 3.

2. Os fundamentos do dogma da infalibilidade papal

1. Na Escritura Sagrada as palavras mesmas com que


Jesús anunciou e instituiu o primado de Pedro, implicam a
infalibilidade de magisterio déste Apostólo e de seus sucessores.

a) Mt 16,18s: «Tu és Pedro, e sobre essa pedra edificare! a


minha Igreja... Tudo que ligares ou desligares na térra será Jigado
ou desligado no céu».

Pedro foi constituido fundamento da Igreja, da Igreja


que tem por missáo essencial ensinar a todos os povos (cf.
Mt 28,19s). Pedro tambjm recebeu o encargo de ligar e des
ligar, isto é, de proibir e permitir, de tal modo que de suas
palavras dependerá a sorte eterna de suas ovelhas («na
térra... no céu»). Ora tais prerrogativas nao se poderiam
conceber se, ao exercer as suas fungóes, Pedro fósse sujeito
a erros de doutrina, ou se ele nao fósse devidamente assistido
pelo Espirito Santo para que as suas decisóes pairassem ácima
de qualquer dúvida ou contestacáo ; se Cristo nao garantisse
essa infalibilidade, teña instituido a tiranía sobre as almas.

b) Le 22,32 : «Simao, orei por ti, para que tua íé nao desfaleca;
e tu, quando te tiveres voltado, confirma teus irmáos».

Com tais palavras Jesús diz que zela pela fé de Pedro,


para que do seu modo éste se torne junto a seus irmáos o que
Jesús foi para ele.
Por conseguinte, a infalibilidade dos Apostólos e dos bis-,
pos é infalibilidade confirmada, ao passo que a de Pedro e de
seus sucessores é infalibilidade que confirma, e confirma em
virtude de urna prerrogativa própria. O Papa aparece assim
como o sujeito ¡mediato e direto da infalibilidade que Cristo
quis comunicar á sua Igreja.
c) Jo 21,15-17 : «Apascenta meus cordeiros... Apas-
centa minhas ovelhas». Se Pedro e seus sucessores fóssem su-
jeitos a ensinar erros em nome de Cristo, ^f^^
prir o encargo confiado pelo Divino Mestre : em vez de nutrir
o rebanho, envenená-lo-iam...
2. Na Tradtgao, concatenam-se desde os primordios da
Igreja os textos que de um modo ou de outro implicam infali-
bilidade doutrinária para o Pontífice Romano.

A íim de nao acumular as citagóes, lembramos aqui principal


mente as palavras de S. Irineu citadas em «P. R.» 13/1959. qu. 2, as
quais acrescentamos ainda famosos dizeres de S. Agostinho : em 417,
o Papa Inocencio I coníirmou a condenacáo do Pelagianismo profe
rida pelos sínodos regionais de Cartago e Milevo; ao receber noticia
disto, exclamou o S. Doutor : «Sobre tal assunto (o Pelagianismo),
já as sentencas de dois concilios foram enviadas á Sé Apostólica;
desta veio a resposta. A causa está encerrada ; oxalá também se ex
tinga o erro !» (serm. 130,10). Foram tais palavras que deram origem
ao proverbio «Roma locuta, causa finita. — Tendo Roma talado, está
encerrada a questáo».
Além do mais, sao numerosos, desde os primeiros séculos, os casos
em que escolas teológicas, discutindo assuntos dogmáticos, recorriam
a Roma a fim de obter o ensinamentq da verdade, como também sao
freqüentes os casos em que os Pontífices Romanos intervieram auto-
ritativamente nos litigios dogmáticos, contra as heresias ; basta men
cionar o episodio de Dionisio de Alexandria, a historia do Pelagia
nismo, do Nestorianismo, do Monofisitismo e as decis5es dos Papas
Inocencio I, Zósimo, Bonifacio I, Celestino I. S. LeSo Magno, a fór
mula do Papa Hormisdas, etc. (Denziger, Enchiridion 100. 109. 110.
112. 149. 171).

3. A solene definigáo do dogma

Tornando-se cada vez mais explícita entre os cristáos a crenca na


infalibilidade pontificia, ela finalmente veio a ser objeto de definicáo
solene por parte do concilio do Vaticano (julho de 1870). Para se
avaliar o sentido exato desta declaracáo, nada há como a reconstitui-
gáo de elementos históricos que a precederam.
Os séc. XVII/XVIII foram marcados pelo chamado «Galicanismo»,
tendencia a formar igrejas nacionais sob a chefia do monarca civil
de cada povo ; foi o que se verificou principalmente na Franga de
Luís XIV, na Austria de José II, no Grao-Ducado da Toscana, etc.
Todavía, ao «centrifugismo nacionalista» sucedeu-se no séc. XDC
novo surto de «centripetismo católico», ou seja, nova estima para
com a Sé de Roma (centro da Igreja), pois parece que os católicos
bem percebiam que. sem subordinagáo a Pedro, perdiam sua vitali-
dade no mundo. Essa estima a Roma foi, sem dúvida, nutrida por
acontecimentos significativos na historia da Igreja, dos quais ressal-
tamos os seguintes.
Em 1830 a revelagao da Medalha Milagrosa a Catarina Labouré
chamou a atengáo dos fiéis para a Imaculada Conceigáo de María ;
muitos bispos e fiéis comegaram entáo a pedir á Santa Sé definisse
como dogma de fé esta prerrogativa da Virgem, já havia muito pro-
fessada pela Cristandade. Pió IX, após muitas consultas e preces, re-
solveu finalmente atender a essa voz do povo cristáo : mandou redi-
gir a bula de definigáo e marcoui o dia 8 de dezembro de 1854 para
a promulgar. A 20 de novembro anterior quis mandar lé-la perante
os bispos que já se achavam presentes em Roma ; foi entáo que dois

— 64 —
déstes perguntaram se nao convinha mencionar na bula o voto íavo-
rável do episcopado ; ao que um dos prelados replicou que os bispos
nao estavam reunidos era concilio, e, portante, nao lhes competía pro
ferir juízo dogmático ; acrescentava :
«As comunhoes separadas (protestantes, orientáis cismáticos) po-
dem estar obrigadas a tomar decis5es dogmáticas sob forma sinodal
por maioria de yozes. Sonriente a Igreja Católica, possuindo urna hie-
rarquia de instituigao divina, cuja cabega náo pode errar, está em
condicóes de definir um dogma por via de autoridade ; é preciso que
ela náo perca éste privilegio. Se o Soberano Pontífice pronunciar a
sos a definicáo á qual todos os fiéis aderiráo espontáneamente, seu
julgamento se tornará a demonstracáo prática da autoridade suprema
da Igreja em materia de doutrina e da infalibilidade de que Jesús
Cristo revestiu seu Vigário sobre a térra».
Esta declaragáo era altamente significativa pelos conceitos que
emitía a respeito do magisterio da Igreja, opondo-se a qualquer tipo
de galicanismo moderado.
A definicáo foi realmente proferida por Pió IX usando da sua
autoridade própria, aos 8 de dezembro de 1854. Féz-lhe eco o júbilo
geral da Cristandade.
Quatro anos mais tarde, a declaracáo papal era confirmada de
modo extraordinario pelas aparicOes de Lourdes ; neste.s a Virgem
Santíssima afirmou explícitamente sua Imaculada Conceicáo obtendo
milagres que até hoje corroboram suas palavras.
Tais fatos, como se entende, repercutiam nao sómente na teología
mañana, mas também na doutrina concernente ao magisterio da
Igreja: a prerrogativa dá" infalibilidade pessoal e direta de que
Pió IX acabara de fazer uso. recebia do céu como que a sua com-
provacáo... Conseqüentemente nos anos seguintes a atencáo dos
tiéis se voltava repetidamente para a autoridade de Roma : vozes da
imprensa católica do mundo inteiro, encabezadas por L. Veuillot e
J. de Maistre, acentuavam o primado do Sumo Pontífice ; foi to
mando vulto a idéia de se definir a infalibilidade do Papa, idéia mais
e mais incutida pela atitude anticatólica dos governos (a comecar
pelo do Piemonte-Sardenha, na Italia) ; essa atitude levava a temer
que cedo ou tarde o Papa se visse impedido de entrar em comunicacáo
com os bispos a respeito de questóes vitáis da Igreja ; pelo que mui-
tos bons católicos desejavam se declarasse que os Papas, mesmo
exilados e encarcerados, possuem toda a autoridade na Igreja.
Nessas circunstancias, Pió IX resolveu convocar o concilio geral
do Vaticano para 8 de dezembro de 1869, visando por ele afirmar a
dignidade do sobrenatural contra o racionalismo do século. A infali
bilidade pontificia, previamente estudada por comissoes especializa
das, foi proposta á deliberagáo dos Padres conciliares ¡ ao passo que
a grande maioria déstes era favorável á definicáo da mesma, pequeño
número se lhe opunha, principalmente porque a julgavam inopor
tuna, isto é, apta a aumentar as distancias entre os cristáos separados.
Por fim, aos 13 de julho de 1870 a fórmula já longamenle buri
lada foi submetida á votacáo do plenário : dos 601 votantes, 451 res-
ponderam afirmativamente. 88 negativamente e 62 com propostas
de emendas. Nos dias seguintes, enquanto estas eram estudadas, mui-
tos dos oponentes resolveram anexar-se simplesmente ao bloco afir
mativo ; varios dos outros, náo querendo render-se, também náo que-
riam proferir voto negativo, a fim de nád dar a crer que eram con
trarios ao próprio dogma ; julgaram entáo melhor deixar Roma, o
que se lhes tornou licito, quando aos 16 de julho o Presidente do
concilio deu licenga aos Padres sinodais para se retirarem da Cidade

— 65 —
Eterna até o dia 11 de novembro (a situacao internacional na Europa
se agrayava progressivamente). Em conseqüéncia, á votagáo final
(18 de julho) comparecerán! 535 padres conciliares ; déstes, apenas
dois deram parecer negativo. Pío IX entáo confirmou a decisáo da
maioria; houve intensa vibracáo da assembléia ; os dois prelados
renitentes foram logo declarar sua submissSo ao Pontífice e se uniram
ao «Te Deum» que encerrou a sessáo !
Quanto aos bispos da oposicao, a sua retirada de Roma antes da
votacáo final significava, em última análise, deferencia para com a
doutrina da infalibilidade, que éles nao queriam marcar com o seu
voto negativo. A deferencia se confirmou pela submissáo ao dogma
que éles foram professando sucessivamente após a definicáo. Nenhum
dos membros do episcopado deixou de aderir a definicáo.
Chama a atencáo o fato de que a proclamacáo da infalibilidade
pontificia (urna das mais «ousadas» que a Igreja tenha jamáis pro
ferido a respeito de si mesma) teve lugar justamente quando estava
para ruir o poder temporal ou o prestigio político do Papado (em
setembro de 1870 a cidade de Roma foi ocupada pelas tropas do reí
Vítor Emanuel). Longe de se sentir combatida pelas perdas tempo-
rais que vinha experimentando desde o inicio do século, a Santa
Igreja em 1870 parecía mais do que nunca consciente de sua missáo
de continuar na térra a obra de Cristo, ensinando a Verdade e a Vida!
Com o decorrer dos anos, a Cristandade foi percebendo o alcance
da definicáo da infalibilidade pontificia. Era a confirmacáo do prin
cipio de autoridade, principio que é essencial em toda auténtica reli-
giosidade, pois religiSo significará sempre submissáo do homem a
Deus, e a religiáo crista, em particular, implicará sempre submissáo
a Deua encarnado, a Deus encoberto pela face humana das criaturas
(dos seus ministros e da sua Igreja); sem fé na Encarnacáo, jamáis
se poderia conceber o Cristianismo.
Costumam ser formuladas, em nome da historia, objec5es á infa
libilidade pontificia (assim os casos dos Papas Libério, no séc. IV;
Vigilio, no séc. VI; Honorio, no séc. VII; Joáo XXII, no séc. XIV;
Paulo V e Urbano VIH no séc. XVII ou no processo de Galileu).
. Contudo, quando se examinam serenamente os episodios apresen-
tados, verifica-se que néles nao se tratava própriamente de erro dou-
trinário, ou que nao foram preenchidas as condicoes necessárias para
que houvesse urna definicao infalivel; com efeito, esta, con-
soante o concilio do Vaticano, só tem lugar quando
1) o Papa ensina como Supremo Doutor da Igreja, nao qual
mestre particular,
2) o Pontífice tem em vista proferir sentenca definitiva, a ser
aceita pela Igreja universal,
3) em assuntos de fé ou de moral.
Sobre o caso «Galileu». veja «P.R.» 4/1958, qu. 12; a respeito
dos Papas Libério, Honorio, Joáo XXII veja «P. R.» 7/1958, qu. 10.

AMY (Pocos de Caldas) :

4) «Onde se situam o inferno e o purgatorio ?»

PLATAO (Rio de Janeiro) ;

5) «Onde estáo os corpos de Jesús e María, de Henoque


e Elias ?»

— 66 —
MARTINHO (S. Paulo) :

6) «Haverá céu novo e térra nova no finí dos tempos?»

Essas questóes nos levam a conjeturar o que se chama


«a topografía da vida postuma». Veremos o que comumente
se diz sobre o assunto, para depois verificar o que se deve
pensar a respeito.

1. O habitual modo de falar

Já a tradigáo judaica costumava associar os estados pos


tumos (de bem-aventuranca ou de reprovacáo) a certos luga
res. Os cristáos herdaram ésse modo de pensar, exprimindo-o
por urna terminología bem característica; assim
a) «Inferno», segundo a etimología latina (infemus,
inferí, vocábulos derivados de infra, abaixo de...), lembra
um lugar situado debaixo da superficie da térra.

Em geral, os judeus e os gregos julgavam que as almas dos de-


luntos váo habitar o subsol.o da nossa térra.—É o que lembra o
termo cheol, com que os israelitas designavam a mansáo dos defun-
tos ; tal palavra deriva-se provávelmente de chaal, cavar, escavar.
Quanto ao Hades, morada postuma dos gregos, provém etimológica
mente de a (privacSo) e idein, ver, significando, por conseguinte,
lugar invisível, tenebroso, subterráneo.
Para os cristáos, a localizacad dos reprobos em subterráneos pa-
recia sugerida até por textos do Novo Testamento, que falam do
abismo dos iníquos (Le 8,31; Apc 9,11; 20,1-3) ou de urna fornalha
ardente (Mt 13, 42.50) ou de um lago de íogo e enxófre (Apc 19,20;
20 9 15)
Há mesmo quem em nossos dias se adiante nesta materia e
afirme que o inferno ocupa o centro do globo terrestre, centro incan
descente donde procedem as chamas dos vulc5es. Para corroborar
esta opiniáo, um ou outro autor tem feito cálculos eruditos, que visam
mostrar quanto ela parece plausivel: dizem-nos, por exemplo. que o
núcleo central incandescente da térra (sobre o qual estáo duas zonas
concéntricas sólidas) tem um raio de 3470 km ; ora, supondo-se que
a cada reprobo toque um perímetro de 100 m3, ésse núcleo central
poderia alojar redondamente um quintilháo e 750 quatrilhdes de con
denados, cifra que, conforme julgam os autores do cálculo, excede o
número real de reprobos. Admitindo-se entio um perímetro de 1000 ms
(10 X 10 X 10) para cada condenado, chega-se a ter 175 trilhóes de
compartimentos... O núcleo central da térra é, segundo bons astró
nomos, um mar imenso de materiais derretidos em estado de ebulicio.
Sabendo-se que a temperatura vai aumentando á razáo de 1* por 34,5 m
ou mais exatamente. de 2,9° por 100 m, á medida que se desee para
o centro da térra, conclui-se que o calor no núcleo do nosso globo
deve exceder os 20.000 graus. Ora essa realidade parece a alguns auto
res corresponder bem ao tanque de logo e enxófre em que, conforme
Apc 19,20; 20, 7-10, o demonio e seus sequazes tém mansáo... Na

— 67 —
base destas consideragdes, vai sendo propalada a tese de que é no
centro do globo que se encontra o fogo do inferno...
Apenas a titulo de ilustrado, notamos ainda as seguintes sen-
tengas sobre a localizagáo' do inferno :
1) Sao Joáo Crisóstomo (t407) supunha que o lugar dos repro
bos existe íora do nosso planeta;
2) Sao Gregorio de Nissa (t394 aproximadamente) colocava-o
no ar tenebroso ;
3) Swinden, autor inglés do séc. XVIII. dizia estar o inferno
no sol;
4) outros enfim, como o monge dsterciense St. Wiést, teólogo
do séc. XVIII, localizam-no na Lúa, em Marte ou nos extremos con-
fins inferiores do universo.
Já a variedade destas opini5es é indicio de que carecem de sólido
fundamento objetivo.

b) O «limbo» (do latim limbus, orla) seria o lugar colo


cado á orla ou á margem do inferno.
c) O «purgatorio» estaría também contiguo ao inferno,
de modo que o mesmo fogo atormentaría os reprobos do in
ferno e os justos do purgatorio.
d) O «Céu» seria um lugar elevado ácima da nossa térra
e distribuido em esferas diversas (os antigos mencionavam
sete céus ou tres céus ; cf. 2 Cor 12,3 ; os medievais falavam
do céu empírico ou de fogo, assim chamado por causa do
seu esplendor, etc.). — Na antigüidade, o lugar de bem-
-aventuranga dos justos também era dito «o seio de Abraáo»
(cf. Le 16,22).

2. Que se há de pensar sobre o assunto ?

Já a simples exposigáo ácima dá a impressáo de que toda


a geografía do Além é mais sugerida pela fantasía do que por
dados seguros.
Com efeito, a Teologia Dogmática é muito sobria ñas suas
afirmagóes concernentes ao assunto. Em vez de fornecer des-
crigóes muito precisas, ela prefere limitar-se a indicar alguns
principios, que se poderiam assim formular :
1) Os nomes de «inferno, limbo, purgatorio e céu» de-
signam, antes do mais, estados de alma (e de corpo, após a
ressurreigáo final) e tém que ser entendidos primariamente
como tais, ficando para o segundo plano qualquer descrigáo
de índole sensível e material. O céu é o estado de plena fami-
liaridade com Deus visto face a face e de conseqüente felici-
dade para o homem. Quanto ao estado de alheamento, em grau
maior ou menor, de Deus, Fim último sobrenatural, é de
signado respectivamente pelos apelativos de inferno (alhea
mento voluntario e definitivo do homem em relagáo a Deus);

— 68 —
limbo (posse definitiva de Deus, fim último do homem, me
diante as facilidades limitadas da natureza humana ; a exis
tencia do limbo nao constituí estritamente dogma de fé) ;
purgatorio (alheamento temporario de Deus, que a alma há
de chegar a contemplar face a face).
2) A Tradicáo associou ésses estados de alma (e corpo)
a certos lugares,, lugares que ela indicava de acordó com as
concepcóes cosmológicas dos antigos judeus e cristáos (veja-se
o catálogo do parágrafo anterior; supóe o geocentrismo, visto
que coloca o inferno abaixo da térra e o céu ácima da mesma).
Hoje em día os teólogos reconhecem que tais concepcóes topo
gráficas sao arcaicas (o sistema geocéntrico de Ptolomeu ser-
viu em determinada época para dar expressáo contingente a
concepgóes religiosas cristas). Contudo os teólogos conservam
a idéia de que os estados fináis estáo associados a certos luga
res (se bem que de modo nenhum apresentem tal associacáo
como materia de fé).
3) Para explicar melhor o seu pensamento, recorrem
os autores á seguinte distingáo :
a) Após a ressurreigáo da carne, no fim dos tempos,
entende-se que o homem, constando de alma e corpo dimen
sional, esteja situado num lugar dimensional, pois é normal
que criaturas quantitativas se achem contidas em um mundo
quantitativo.

Os justos ressuscitados num corpo glorioso estaráo localizados no


cenário renovado da natureza que nos cerca ; sim, no íim dos tempos
o mundo material (macrocosmos) será glorificado juntamente com o
corpo humano (microcosmos) ; assim como as criaturas irracionais
foram entregues á desordem no inicio dos séculos por causa da deso
bediencia do homem, assim seráo redintegradas e dotadas de novo
esplendor quando a Redencüo, mediante a ressurreigáo da carne, estiver
consumada ñas almas e nos corpos humanos (el. 2 Pdr 2,13 ; Is 65,17 ;
66,22 ; Apc 21,1; Rom 8,19-22). Neste cosmos rejuvenescido, por assim
dizer, e plenamente harmonioso, os justos deveráo gozar da visáo de
Deus face a face ; o céu assim existirá sobre a térra, como insinúa a
S. Escritura, dizendo que a Cidade de Deus, a Jerusalém nova, baixará
s&bre a térra (cf. Apc 21,2).
Quanto ao lugar dimensional em que as almas e os carpos dos
reprobos sofreráo as penas do inferno, é diíicil dizer alguma coisa,
pois nao se tem fundamento sólido na Revelacáo para propor alguma
teoría a respeito. Remova-se a idéia de que o inferno está situado no
centro da térra ¡ é de todo inconsistente e mais provoca zombaria do
que edificacáo espiritual. As expressóes bíblicas que falam do abismo
dos reprobos, sao reconhecidamente metafóricas ; baseiam-se no ex-
pressionismo dos antigos, tínicamente para incutir o horror do estado
de reprovacáo, nao a fim de ensinar a topografía do Além.

b) Antes da ressurreigáo da carne, céu, inferno, pur


gatorio e limbo sao estados que afetam apenas espíritos sepa-

— 69 —
rados do corpo (anjos bons e maus, almas humanas), exoegáo
feita dos poucos casos abaixo mencionados. Ora, segundo a
filosofía tomista, o espirito por si mesmo nao ocupa determi
nado lugar; nao tendo dimensóes, nao está contido dentro
de um espago dimensional. Sendo assim, vé-se que a questáo
do local dos estados postumos antes da ressurreigáo toma
caráter diverso do que ela tem após a ressurreigáo. Embora
associe, como os autores anteriores, os estados postumos a
certos lugares físicos, Sao Tomaz observa explícitamente que
as almas depois da morte «se acham em seus lugares dimen-
sionais segundo o modo conveniente as substancias espirituais,
modo que a nos nao pode ser plenamente manifestó» (In IV
Sent, dist. 45,q. 1, a.l, sol. 1 ad 1).

Contudo alguns teólogos propóem a seguinte tentativa de expli-


cagáo: é por sua atividada que o espirito separado do corpo se acha
presente em determinado lugar ; ora a atividade do espirito consiste
em conhecer com a inteligencia e amar com a vontade. Assim sendo,
pode-se crer que as almas separadas dos respectivos corpos e os anjos
(bons e maus) sejam por Deus destinados a exercer estas duas ativi-
dades (conhecimento intelectivo e amor) únicamente em torno dos
objetos que determinado espago dimensional lhes aprésente; tal lugar
torna-se entáo a mansáo própria de tal alma ou tal anjo. Assim se
explicaría que, já antes da ressurreieáo da carne, céu e inferno, limbo
e purgatorio sejam lugares dimensionais... Nao se queira, porém,
pesquisar ulteriormente... e assinalar o local preciso de tais estados.

Há quem tencione corroborar a tese de que já agora a


bem-aventuranca celeste se localiza em determinado espago
físico, pelo fato de que já estáo gozando da felicidade de
finitiva alguns corpos gloriosos, como o de Cristo, o de
Maria, provávelmente os dos justos que ressuscitaram com
Jesús segundo Mt 27,52s (nada nos obriga a afirmar que
tenham morrido de novo). Também os corpos de Henoque e
Elias que, vivos, foram arrebatados aos céus, se devem acres-
centar a esta lista (na verdade, nao se poderia provar que
Henoque e Elias voltaráo a térra no fim dos tempos e mor-
reráo para ressuscitar no último dia). Nao estaráo ésses cor-
pos todos em um espago dimensional ?
Seria normal afirmar que sim, já que o corpo pede por
si localizagáo dimensional. Contudo, como que para impor
reservas a esta afirmagáo, Sao Tomaz observa que o corpo
de Cristo ressuscitado e, de modo geral, qualquer corpo glo
rioso podem estar, mas nao estáo necessáriamente, contidos
em lugar físico (S. Teol. III 57, 4). Destarte nem o fato de
se acharem agora na posse da bem-aventuranga celeste os
corpos de Jesús, Maria e outros justos nos obriga a admitir
que, antes da ressurreigáo universal e do aparecimento de céu

— 70 —
novo e térra nova, a visáo beatífica esteja associada a deter
minado espago dimensional.
Quanto ao inferno, o fato de que néle se encontra um
agente físico chamado «fogo do inferno» tem levado varios
teólogos a admitir que, mesmo antes da ressurragáo dos cor-
pos, ele se situé em alguma regiáo geográfica. Contudo a
quem assim pensa, é preciso lembrar que a natureza do fogo
do inferno escapa as nossas nogóes comuns (cf. «P. R.»
12/1958, correspondencia miúda), tornando-se destarte exigua
base para se deduzirem conclusóes sobre a possível topografía
do estado dos reprobos.

Após quanto acaba de ser ponderado, vé-se quáo necessária é a


cautela ao se tratar da «geografía» do Além. As concepgñes e narra
tivas populares tém ultrapassado longe o que de certo podeml dizer os
teólogos no assunto... Que os íiéis cristáos se habituem a considerar
céu e o inferno primariamente (eirbora nao exclusivamente) como
estados de alma ! Esta verdade leva-nos a afirmar que céu e inferno
se acham em toda parte onde haja um espirito de justo ou urna alma
de reprobo. Isto se verifica, sem dúvida, já na vida presente: os
justos levam consigo, e para toda a parte, o céu, ou seja, a felicidade
da uniáo com Deus, assim como os pecadores carregam continua
mente o seu inferno, ou seja, o tremendo mal-estar que decorre do
odio a Deus e aos homens i'
Certas imagens populares do inferno e do purgatorio devem sem
hesitagáo ser removidas da mente dos fiéis, pois se tornaram nocivas
ao reto entendimento do dogma, dando a éste um caráter ridículo ou
um colorido mais ou menos pagáo.
Principalmente a descrigáo poética que Dante faz do inferno na
sua «Divina Comedia», contribuiu para alimentar, através dos séculos,
nogoes inoportunas do inferno na literatura e na iconografía cristas.
Eis aqui, a título de ilustracáo, umaí tentativa de descrever o inferno
encontrada na obra «Dedalus» de James Joyce, famoso escritor irlandés
contemporáneo (a peca abaixo é atribuida pelo romancista a um per-
sonagem de seu romance, isto é. a zeloso homem de Deus, que, assim
falando, tenta converter um de seus ouvintes, o jovem Stephen) :
«O inferno é u'a masmorra estreita, sombría e fétida, um habitá
culo de demdnios e almas perdidas, cheio de chamas e de fumaca. A
exlgüidade dessa masmorra é por Deus destinada a punir aqueles que
se recusaram a permanecer dentro dos limites das leis divinas... Lá,
em virtude do grande número de reprobos, os prisioneiros sao acumu
lados uns sobre os outros na sua horrível prisáo, cujas muralhas,
dizem. tém quatro mil milhas de grossura ; os condenados estáo a
tal ponto imobilizados e reduzidos á impotencia que... nao tém nem
mesmo a possibilidade de desviar a vista do verme que os vai roendo.
O horror dessa prisáo estreita e sombría é acrescido pelo seu
espantoso mau cheiro. Todas as imundices do mundo, todo o estéreo,
toda a lamaceira do mundo escoaráo para lá, dizem, como para vasta
cloaca fumegante, quando a terrivel conflagragáo do último dia tiver
purificado o mundo...
Imaginai um cadáver imundo e pútrido, deteriorado, decomposto
no fundo de um túmulo, um acervo gelatinoso de corrupgáo liquefeita.
Imaginai ésse cadáver entregue as chamas, devorado pelo fogo do en-
xófre ardente, a espalhar o forte e sufocante odor de decomposigao re-

— 71 —
pugnante e nauseabunda. A seguir, imaginai ésse desatinante mau
cheiro multiplicado milhóes e milhóes de vézes pela multidáo de mi-
Ihóes e milhóes de carcassas fétidas acumuladas ñas trevas enfuma-
gadas, nesse imenso cogumelo de podridlo humana...
Mas o mau cheiro. por muito horroroso que seja, nao constituí
a maior tortura física que sofrem os reprobos. A tortura pelo íogo
é a mais cruciante que ura tirano tenha jamáis infligido aos seus se-
melhantes. Colocai por um instante vosso dedo na chama de urna vela
e sentiréis a dor que o fogo causa. Mas o nosso fogo terrestre foi
criado por Deus para bem do homem, para conservar neste a centelha
da vida, para o auxiliar em seus trabalhos úteis, ao passo que o fogo
do inferno é de natureza totalmente diversa ; foi criado por Deus para
torturar e punir o pecador impenitente... O enxófre que arde no in
ferno, é urna substancia especialmente destinada a arder eternamente
com indescritível furor; o fogo do inferno possui a propriedade de
conservar o que ele queima, se bem que ele se enfurega com incrível
impetuosidades».
Na obra de Joyce, dizíamos, éste sermao é concebido pelo orador
com o fim de incutir temor e. conseqüentemente, arrependimento,
conversáo do pecador. O escritor irlandés, porém, mostra bem como
Stephen, o destinatario1 de tais palavras, reagiu : acabou julgando in
digna de fé urna religiáo que atribuía á Justica Divina tao requintadas
atrocidades ; justamente a pega de pregacáo que o devia converter,
acabou por distanciá-lo da fé !
Infelizmente a narrativa de romance ácima nao carece de base
na realidade histórica.
As representagoes iconográficas do inferno também deixam muito
a desejar. Urna imagem assaz comum é a de enorme güela de animal,
disforme, munida de dentes agudos, escancarada para receber suas
vitimas. Também se vé o quadro de um fósso ou de urna caverna
subterráena, donde jorram chamas ou torrentes de fogo a envolver
os reprobos á guisa de espiral.
O purgatorio é muitas vézes representado como o inferno, o que
vem a ser diretamente contrario á Teología. No purgatorio as almas
nao sao atormentadas pelo demonio ; sofrem voluntariamente a dila-
cáo da visáo beatífica, desejosas elas mesmas de se purificar; expe-
rimentam, portanto, alegría profunda ao verificar que se preparam
para ver face a face a Beleza incriada. É esta atitude de alma, e nao
a respectiva moldura sensivel, que constituí a esséncia do purgatorio;
essa atitude interior, porém, é o elemento que menos se focaliza ñas
descricSes oráis e gráficas do estado de purificacao; déste desvio de
acento resulta naturalmente detrimento para a crenga e a piedade
dos fiéis.
Sendo assim, só se pode recomendar aos cristaos, em vista da
honra de Deus e da salvacáo das almas, evitem concepgSes fantasistas
relativas aos estados postumos, lembrando-se de que mais vale a
sobriedade do que o prolixo saber em assuntos sobre os quais a Re-
velagáo Divina nao nos transmite senáo o essencial para grangear-
mos a salvacáo eterna !

ni. SAGRADA ESCRITURA

POLÍTICO (D. F.) :

7) «'Dai a César o que é de César e a Deus o que éi de


Deus' (Mt 22,21). Daí deduzo que nao se devem misturar o

— 72 —
foro religioso e o foro político e que, ao agir como político,
nao cstou obligado a aceitar normas da Religiao».

A questáo aborda assunto assaz delicado, que vamos pro


curar elucidar em duas etapas : 1) breve exegese do texto de
Mt 22,16-22 ; 2) urna reflexáo em torno do mesmo.

1. Breve exegese do texto bíblico

Os escribas e demais mentores de Israel haviam sido


confundidos por Jesús, que Ihes mostrara a cegueira volun
taria da qual sofriam (Mt 21,33-46). Longe, porém, de se dar
por vencidos, voltaram á invectiva, procurando dessa vez in-
compatibilizar Jesús com as autoridades romanas.
Depois de cortés introdugáo, perguntaram-Lhe : «Será lí
cito ou nao pagar o tributo a César ?»

César representava, no caso, o poder romano, pagáo, que domi-


nava a nagáo judaica. Nessas condicoes, o pagamento do imposto a
César podia muito bem significar, conforme a mentalidade entao vi
gente, que os israelitas reconheciam o govérno usurpador e abriam
máo da teocracia sagrada. Ora já um certo Judas Galileu (cf. At 5,37),
que parece ter-se arvorado em Messias de Israel, recusara, no ano 6
d. C, pagar o imposto por ocasiáo do recenseamento de Quirinio, esta-
belecendo o dilema: obedecer a Deus ou obedecer aos homens (cf.
Flávio José, De bello judaico II VIII 1; Ant. XVIII I 6). Jesús, pro-
pondo-se como Messias, nao poderia tomar outra atitude, pensavam
os mentores do povo judaico ; optaría pela negativa e, assím fazendo,
provocarla urna revolta, que os romanos se encarregariam de sufocar
pela violencia. Caso, porém_, Cristo afirmasse a legitimidade do im
posto, mostrar-se-ia contrario as esperanzas nacionais e perdería seu
crédito junto ao povo.

Jesús respondeu sabiamente, mediante urna especie de


parábola vivida. Mandou, sim, que lhe mostrassem a moeda
do tributo, sobre a qual se viam gravadas a efigie do Impera
dor (Tiberio ou Augusto) e a respectiva inscricáo. Certa-
mente o dinheiro assim marcado vinha da parte de César
(Imperador) e significava bens pertencentes a César j era,
numa palavra, propriedade de César. A resposta entáo se im-
punha por si: «Restituí (apodóte; nao própriamente «dai»,
dote) a César o que é de César». Os israelitas, pelo fato mesmo
de aceitarem a moeda de César, indicavam reconhecer-se súdi-
tos de César ; fazia-se mister, portante, que obedecessem as
leis de César. Era, alias, assim que pensavam os próprios inter
locutores de Jesús, principalmente os fariseus. Estes nao
eram os chamados «zelotes», fanáticos nacionalistas ; com-

— 73 —
preendiam a necessidade de se submeter ao Imperador; pre-
feriam mesmo a autoridade de César a tiranía de Herodes.
A resposta do Senhor, porém, ultrapassou os termos do
guesito : «.. .e a Deus o que é de Deus». Além do dever para
com o Imperador, acrescentou Jesús, existem incólumes os
deveres para com Deus ; a fidelidade ao Altíssimo é plena
mente compatível com a submissáo ao poder imperial. Com
estas palavras, diz o texto evangélico, Jesús só fez provocar
á admiracáo de seus contendentes, reduzindo-os ao silencio.
Cristo em sua resposta estabeíecia um principio de dou-
trina assaz fecundo, que nos convém agora explanar.

2. A mensagem do texto

Jesús distinguiu dois poderes, o civil e o religioso, reco-


nhecendo a cada um direitos próprios. Isto se explica pelo fato
de que, enquanto o homem de Deus, o homem religioso, vive
no corpo e neste mundo, ele certamente depende de urna or-
ganizagáo temporal, civil, para poder manter a sua existencia
física. Recebe algo dessa sociedade civil (nao pode deixar
mesmo de trazer a moeda da autoridade civil no bolso); por
isto também é tributario a ela ; compete-lhe restituir (note-se
a fórca do termo evangélico, que nao é simplesmente dar). Em
outros termos : a autoridade civil tem o direito de impór suas
exigencias pautadas no bem comum, exigencias que cada ci-
dadáo tem obrigagáo de respeitar.
Contudo os dois poderes — o civil (de César) e o religioso
(de Deus) — nao sao simplesmente paralelos um ao outro,
como o corpo nao é independente da alma humana. É a alma
que comunica significado e valor ao corpo ; assim também é
Deus — e Deus só — quem comunica autoridade ao poder
civil; caso éste tente opor-se ao Criador, impedindo que os
súditos tributem a Deus o que é de Deus, desvirtua-se e ani-
quila-se. Sao Paulo explícita tal doutrina em Rom 13,1-7 :
«Submeta-se cada um as autoridades constituidas, porque nao
há autoridade que nao venha de Deus, e aquelas que existem
foram instituidas por Deus...»

A título de complemento, apenas a fim de evidenciar com quanta


clareza se impóe a exegese ácima, citamos o testemunho insuspeito
do racionalista Loisy: " .. ..
«Falsificaría o pensamento de Jesús quem julgasse que a divida
para com César está no mesmo plano, tem o mesmo caráter absoluto
e definitivo da divida para com Deus... Queí os homens estimem as
coisas da térra segundo o pouco que elas valem e cumpram seus de
veres para com elas na medida em que impóem necessidade; ácima
de tudo porém, saibam que o principal é outra coisa, él a fidelidade
ao Pai celeste» (II 336).

— 74 —
O pressuposto, pois, para que o cristáo sirva ao Estado e
exerga a sua ac.áo política, é a sujeigáo do Estado e da política
a Deus. Nao há, para o cristáo, duas esferas de atividade inde-
pendentes urna da outra : a esfera sacra!, na qual se afirmaría
a personalidade religiosa do individuo, e a esfera política ou
profana, neutra do ponto de vista religioso, esfera na qual
se exerceria outra personalidade do mesmo sujeito — a per
sonalidade política ou profissional.

A religiáo nao representa apenas um entre outros valores, mas


é o único valor que aíete o homem inteiro, levando-o a apreender o
bem inteiro ou o bem Infinito; os demais valores que a criatura possa
cultivar na térra (a arte, a ciencia, a politica...) só aperfeigoam um
aspecto da personalidade humana, nao atingindo o que nela há de
essencial; o bom músico, o bom físico, o bom médico nao sao neces-
sáriamente homens bons, ao passo que o bom cristáo, na medida em
que é tal, é homem bom. Donde se vé que todas as atividades nao
diretamente religiosas estáo subordinadas á religiáo ; esta nao é ques-
táo de gósto nem luxo, mas é o valor que dá valor aos demais bens,
como o Fim Supremo dá sentido aos fins intermediarios. A religiáo,
por conseguinte, tocará sempre o direito de dizer urna palavra, se nao
positiva, ao menos negativa ou coibitiva, ao homem no exercício de
qualque'r de suas atividades ; e a ninguém será lícito pretender sufo
car cssa voz superior da religiáo, que vem a ser a voz de Deus.
É o que Sua Santidade M Papa Pió XII lembrava em urna de suas
alocuc6es, referindo-se á tendencia moderna de emancipar da juris-
digáo da moral (o que. em última análise, significa : emancipar do
foro de Deus) certas realizagóes do homem de cultura :
«Há hoje muitos que desejariam excluir do dominio da lei moral
a vida pública, económica e social, a agáo dos poderes públicos no
interior e no exterior, na paz e na guerra, como se Deus ai nada ti-
vesse a dizer, pelo menos nada de definitivo.
...E aduzem como exemplo a arte, á qual negam nao só toda
dependencia, mas até toda relagáo com a moral, dizendo : a arte é só
arte, e nao moral nem outra coisa; deve reger-se, portanto, só pelas
leis da estética, que, alias, se sao verdaderamente tais, nao se sujei-
taráo a servir á concupiscencia. De maneira semelhante se discorre
sobre política e economía, afirmando que nao precisam de pedir con-
selho a outras ciencias, e por conseguinte nem á Ética, mas que. guia
das pela verdade das suas leis, sao por isso mesmo boas e justas.
Como se vé, ésse é um modo sutil de subtrair as consciéncias ao
imperio das leis moráis. Nao se pode negar, é certo, que tais autono
mías sao justas enquanto exprimem o método próprio de cada ativi
dade ... ; mas a separagáo de métodos nao deve significar que o den
tista, o artista e o político estáo isentos de preocupagSes moráis no
exercicio de suas atividades, especialmente se estas tém reflexo ime-
diato no campo ético, como a arte, a política e a economia. A separa-
gáo clara e teórica nao tem sentido na vida, que é sempre urna sín-
tese, porque o sujeito único do tdda especie de atividade é o mesmo
homem cujos atos livres e conscientes nao podem fugir ao veredicto
moral... As distincóes (ácima apresentadas)... servem para a natu-
reza humana decaída propor como leis da arte, da política ou da eco
nomia o que nao passa de satisfagáo da concupiscencia, do
egoísmo e da cobiga» (No dia da Familia, 23 de marco de 1952 ; tre
cho transcrito da «Revista Eclesiástica Brasileira» 12 [1952] 435).

— 75 —
Em urna palavra : do famoso dístico de Mt 22,21: «Res
tituí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus»,
falso seria concluir que César é Deus ou um absoluto ao lado
de outro Absoluto ; segundo o pensamento de Cristo, César
só é César na medida em que é lugar-tenente de Deus, subor
dinado a Deus e subordinando os homens a Deus.

A respeito da «Moral leiga, sem Deus» veja «P. R.» 7/1958, qu. 5.

IV. MORAL

PERSCRUTADOR (Sao Paulo) :

8) «Que julgar das idéias do filósofo hindú contempo


ráneo Jiddu Krishnamurti, que a todos os homens promete a
verdadeira liberdade mediante um despertar de consciéncias ?»

Algo do curriculo de vida de Krishnamurti será útil para


se entender a doutrina déste pensador; pelo que, em primeiro
lugar percorreremos rápidamente um

1. Esbógo biográfico de Krishnamurti

Jiddu K. nasceu aos 25 de maio de 1895 em Madranapalle (Ma


dras, India). Recebeu o nome de Krishnamurti (pelo qual é hoje inter-
nacionalmente conhecido) por ser o oitavo filho da familia, oitavo
íilhq que, conforme os costumes vigentes entre os bramanes da tndia
Meridional, devia ser consagrado a famoso Guia Espiritual; devota-
ram-no entáo a Shri Krishna, que na India é cultuado como urna das
encarnacSes da Divindade. Um horóscopo sobre o recém-nascido, pro
ferido por velho astrólogo da regiáo, prenunciava que Krishnamurti
se manifestarla como a encarnacáo do próprio Deus de amor.!
Quando a Sra. Annie Besant. presidente da Sociedade Teosófica,
com sede em Adyrar (Madras), tomou conhecimento do jovem
Krishnamurti, percebeu que possuia ricos dotes espirituais e resolveu
adotá-lo como pupilo, a fim de o preparar, segundo os principios da
Teosofía, para ser um dos grandes mestres da humanidade. Em 1911
Annie Besant foi á Europa, acompanhada pelo discípulo, cuja natu-
reza divina e extraordinaria missáo ela anunciou ao mundo no Ins
tituto da Sorbona em Paris. A Sra. Besant c seu companheiro C. W.
Leadbeater redigiram mesmo urna obra em que referiam as trinta
últimas encarnacóes do novo Messias ; o jovem costumava aparecer
em vestes que lembravam o tipo tradicional de Cristo. Em vista das
predigóes correntes, os teosofistas organizaram a «Ordem da Estréla
do Oriente», destinada a preparar as vias para que Krishnamurti
pudesse devidamente exercer a sua tarefa quando atingisse a maio-
ridade.
Mas o pai do futuro mestre, sendo brámane ortodoxo, protestou
contra a educagáo que a Sra. Besant dava a seu íilho. Nao sendo aten-

— 76 —
dido, decidiu-se a mover urna acáo judiciária, na qual o tribunal de
Madras deu ganho de causa ao anciáo, reconhecendo-lhe o direito de
chamar seu filho a si. Como, porém, o jovem estivesse na Europa, isto
é, fora do alcance do tribunal de Madras, a Sra. Besant apelou para
o Conselho Privado de Londres, o qual a habilitou a guardar Krishna-
murti consigo (para grande contentamento do próprio jovem). Éste
continuou, pois, na Inglaterra, sem, porém, íreqüentar alguma Uni-
versidade.
Em 1922 Krishnamurti foi para a California, passando anos depois
para a Holanda, onde o baráo Philip van Pallandt, teosoiista e grande
admirador do jovem, Ihe doara o castelo de Eerde em Ommen. Come-
caram entáo a se reunir anualmente nesta regiáo os admiradores de
Krishnamurti, provenientes do mundo inteiro. Em 1927, o filósofo
hindú declarou, perante numeroso auditorio, ter conseguido a plena
liberdade da mente e, por conseguinte, a identificagáo com o Todo ou
o «Bem-Amado» !
Inesperadamente em 1929 Krishnamurti dissolveu a «Ordem da
Estréla do Oriente», alegando que qualquer organizacáo constituiría
barreira a procura da verdade ; desligou-se também definitivamente
da Sociedade Teosófica e, como pensador independente, pós-se a viajar
pelo mundo inteiro, fazendo conferencias em toda a parte no intuito
de despertar a consciéncia dos homens contemporáneos. No Brasil es-
teve Krishnamurti em 1935. Estabelectu urna sede importante na Ca
lifornia denominada «Centro de Estudos Filosóficos Espiritualistas»,
contando com discípulos das mais variadas nacionalidades.
E qual seria a mensagem de Krishnamurti ?

2. A ideología do filósofo

Um leitor desprevenido nao se pode furtar á impressáo


de que as obras de Krishnamurti sao assaz pobres do ponto
de vista intelectual; a metafísica, o raciocinio especulativo
rielas quase nao encontram acolhimento. As palestras désse
filósofo, que perfazem urna colecáo de numerosos volumes
impressos, repetem, num estilo por vézes obscuro (para o
qual os seus ouvintes mais de urna vez parecem ter-lhe cha
mado a atencáo), algumas poucas idéias de índole ética, que
se poderiam enunciar como se segué :

a) Todo homem é naturalmente escravo do seu ambiente, ou


seja, de um conjunto de instituigoes e doutrinas (sociais. jurídicas,
patrióticas, filosóficas, religiosas) que o mantém sob médo continuo.
Ésse médo incutido por «autoridades» sufoca a personalidade, a qual
habitualmente se julga dependente de mestres e escolas para conse
guir realizar seus ideáis.
b) Sendo assim, só ha urna possibilidade, para o homem, de con
seguir salvagáo : é a rejeicáo de toda autoridade, de toda imposicáo
doutrinária, para que o individuo entre em si e «aperceba» a si; é
toman'do consciéncia de si, emancipado de qualquer ditame extrínseco,
que o pensador consegue tornar-se o que ele deve ser.

c) A sufocagáo de todo desejo, a apatía vem a ser outra con-


dicáo de libertagáo e, por conseguinte, outro postulado de Krishnamurti.

— 77 —
Para incutir essas idéias, o filósofo hindú usa de termos caracte
rísticos, que constituem a trama de seus escritos : de um lado, há
no homem «médo, temor, condiclonamento, sofrimento, cativeiro...»;
de outro lado, deve haver «auto-protegáo. reagáo, apercebimento,
conhecimento, entendimento, discernimento...».
d) Deus, nesse quadro filosófico, é concebido como a Grande
Energía que passa pelo homem e pelo universo ; é urna fórca impes-
soal que cada um tem que descobrir primariamente dentro de si pela
auto-percepcáo.
e) O Eu nao é senáo um feixe de percepcSes e recordacóes, de
crendices, preconceitos, preocupagSes de seguranga e conforto. En-
quanto o individuo se deixa avassalar por ésses elementos estranhos,
ele está sujeito á lei das reencarnagóes sucessivas ; desde, porém, que
se liberte de toda essa bagagem, já nao conhece nem reencarnagáo,
nem nascimento nem morte; o sabio ou o homem liberto! perde sua
personalidade no Grande Todo, na Substancia Universal.
Tal é. em poucas palavras, a estrutura do pensamento de
Krishnamurti.

3. Apreciado do sistema

1. Como ácima ficou notado, a mensagem de Krishna


murti nao pretende ser mensagem metafísica ou intelectua-
lista ; dirige-se primariamente á vontade de seus ouvintes e
quer incutir urna atitude prática na vida.
E qual seria essa atitude prática ?
A libertagáo que Krishnamurti tanto apregoa, vem a ser,
em última análise, a afirmagáo do individuo humano como
valor absoluto, que a nenhuma autoridade é devedor de sub-
missáo. Conseqüentemente, os discípulos désse filósofo nem
sequer a Krishnamurti professam submissáo ; cada um goza
de liberdade irrestrita para conceber a vida, o destino do
homem e a ética respectiva, segundo sua intuigáo própria. Esta
é a única tese que o krishnamurtismo afirma de maneira abso
luta ; frente aos grandes principios da metafísica e da filosofía
em geral, sugere certo relativismo ou cetidsmo.
2. Quem reflete um pouco sobre tal mentalidade, nao
pode deixar de perceber quanto é precaria. O homem que se
queira emancipar de toda escola, de toda autoridade, para
construir urna filosofía da vida, atribuí a si mesmo urna capa-
cidade utópica, mil vézes desmentida pela experiencia.

Verdade é que o otimismo de Krishnamurti se baseia no pressu-


posto de que no íntimo do homem habita a Divindade, ou melhor, de
que o homem é a própria Divindade em evolugáo. Ésse monismo,
porém. ou panteísmo é base inconsistente : por definicáo. a Divindade,
o Absoluto, o Eterno, nao pode de forma alguma identificar-se com o
relativo e o contingente ; nao há transicáo entre o temporario, o mu-
tável e o Eterno ou Absoluto (cf. «P. R.» 7/1957, qu. 1). Ademáis
Deus é Personalidade transcendente e perfeita, nao é substancia neu
tra, que do estado inconsciente vai passando para o consciente.

— 78 —
3. Rejeitando-se, pois, o panteísmo e a teoría ética que
Krishnamurti sobre ele constrói, admita-se, conforme a sá
razáo, que Deus é Personalidade, e Personalidade que nao se
identifica com o homem. Entende-se entáo que é Deus quem
dita á criatura qual a via que a leva á perfeigao; nao é o
homem quem define os meios de sua ascensáo, pois Deus por
definicáo é o Autor do homem, mais sabio do que éste. Á
criatura tocará sempre o papel de ouvir humildemente a Deus,
quer Éste fale diretamente por si, quer por meio de represen*
tantes visíveis (representantes que o Altissimo nao pode dei-
xar de credenciar devidamente, ficando a cada individuo o
direito de investigar com a razáo essas credenciais).
4. A verdadeira liberdade nao consiste em que o homem
se emancipe de qualquer escola, mas consiste em que o indi
viduo atinja o seu Fim último — a Verdade e a Vida — en
trando de maneira espontánea na posigáo subordinada que
lhe compete. A liberdade é perfeigáo que Deus outorgou ao
homem nao para que éste caia na imperfeicjio (desastre ine-
vitável para quem rejeita a auténtica escola), mas para que
mais nobremente atinja a Verdade e a Vida.

5. Feitas estas observares, importa acrescentar que, apesar de


suas íalhas radicáis, a Filosofía de Krishnamurti significa também
algo de positivo para o mundo contemporáneo ; e isto, a dois títulos :
a) Krishnamurti, em última análise, incita os homens ao domi
nio sotare as paixoes, procurando despertar em todos urna tempera
de heroísmo, um género de vida consciente, norteado diretamente
pela inteligencia, emancipado dos movimentos cegos da sensibilidade.
Por éste aspecto de sua mensagem, o pensador hindú faz reviver um
ideal muito antigo, tanto no Oriente como no Ocidente, cultivado prin
cipalmente pelos estoicos greco-romanos. Ora éste ideal é plena
mente cristáo; o cristSo procura libertar-se do modo de ver me
ramente carnal ou natural, para considerar tddas as coisas á luz da
inteligencia e da eternidade; o cristáo tem que ser viril e heroico;
longe de ser um tipo amedrantado e covarde, ele teme apenas a Deus,
e teme com temor nao servil, mas filial.
Contudo fora do Cristianismo os homens, contando apenas com
as fórcas da natureza, raramente conseguiram ou conseguem realizar
ésse ideal. Os estoicos o confessavam repetidamente :
«ÉIgs mcsmos reconhecem que até o presente dia o sabio por
éles apregoado jamáis foi visto» (Sexto Empírico, ano 200 d. C-, em
Arnim. «Fragmenta...» III 216,39).
«Sabios, nao os houve e nao os há» (ib. 217,8).
Diógenes da Babilonia declarava referindo-se ao estoicismo : «Só
houve um ou dois (sabios apáticos)» (ib. 167,34).
Crisipo (t208 d. C), por sua vez, dizia nao conhecer nenhum
(ib. 166,23).
É sómente com o auxilio da Redencao, com o auxilio de um Deus
Salvador, que o homem consegue realmente dominar a natureza, sem
se deixar sufocar pelo orgulho.
b) Krishnamurti lembra outrossim ao mundo contemporáneo o
valor da vida interior, vida que se recolhe da multiplicidade dos afetos

— 79 —
engañadores para a unidade de um grande Ideal... Ora também esta
mensagem é genulnamente crista; é, alias, no Cristianismo que ela
se realiza por excelencia, pois no Cristianismo o próprio Deus outorga
ao homem os meios necessários para que se emancipe da sedugáo das
coisas criadas. O Deus transcendente que os cristSos professam, nao
é mera figura majestática nem entidade abstrata, mas é muito intimo
ao homem, como lembra S. Agostinho numa írase lapidar : <t(Deus)
superior summo meo, intimior intimo meo. — Deus é mais elevado que
o que concebo de mais elevado, e me é mais íntimo do que o que
tenho de mais Intimo» (Confissóes).
6. Estas duas tendencias tém certamente concorrido para dar
voga as idéias de Krishnamurtl. Eis, porém, que um terceiro titulo,
desta vez menos nobre, também as torna atraentes ao mundo contem
poráneo: a atitude íilosófica do pensador hindú corresponde ao orgulho
íortemente acentuado da mentalidade moderna. Krishnamurti aparece
como a expressáo de uma época em que o individuo quer ser autónomo,
legislador, para si e para os outros, segundo o seu bom senso...
Na verdade, só há, para o homem, uma possibilidade de se emancipar
e de reinar: é a que consiste em esquecer o próprio eu e aderir incon-
dicionalmente a Deus, Criador e Pai providente, pois «servir a Deus
é reinar» (Missal Romano, Postcomunháo da Missa pela paz), servir
a Deus é entrar no lugar muito elevado que o Criador se dignou
assinalar ao homem na hierarquia dos seres.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

A. R. (Luziánia) :

9) «As profecías ditas de Sao Malaquias sao aprovadas


pela Igreja ? Nao se estao cumprindo mais uma! vez na pessoa
do Papa Joáo XXm, Pastor e Navegante ?»

Para se avaliar a autoridade da Profecía de Sao Malaquias,


torna-se necessário, em primeiro lugar, esbogar o seu conteúdo.

1. O conteúdo da Profecía de S. Malaquias

Sao Malaquias de Armagh (distinga-se bem do profeta


Malaquias, do Antigo Testamento) nasceu na Irlanda em 1095
aproximadamente. Féz-se monge em Bangor, tornando-se de-
pois arcebispo-primaz de Armagh. Veio a falecer em 1148.
É a ésse santo que se atribuí a famosa «Profecía dos
Papas», a qual teria sido escrita em 1139, quando Malaquias
passou um mes em Roma. Consta de 111 breves dísticos lati
nos, que tentam caracterizar a figura de cada Pontífice desde
Celestino II (1143-1144) até Pedro II, que presenciará o fim
do mundo. Ésse texto, embora seja atribuido a um autor do
séc. XII, só se tornou de conhecimento público em 1595, quando
o beneditino Amoldo de Wyon o inseriu no seu opúsculo
«Lignum Vitae», publicado em Veneza naquele ano.

— 80 —
Os 111 dísticos no «Lignum Vitae» sao acompanhados de
breve comentario do historiador espanhol Alonso Ciacconio
O.P. (fdepois de 1601). O comentario aplica os disticos da
Profecía aos 74 Papas que governaram desde Celestino II
(11144), um dos contemporáneos de S. Malaquias, até Ur
bano VII (f 1590) ; mostra como o conteúdo de cada oráculo
se cumpriu adequadamente na figura de cada Pontífice a que
é referido. O comentario de Ciacconio, indicando onde comeca
a serie dos Papas visados pelos dísticos, permite calcular apro
ximadamente a época em que se dará o fim do Papado e a
segunda vinda do Senhor; assim contam-se 38 Pontífices
desde Urbano VII (t 1590) até o fim do mundo, sendo que
S. Santidade Joáo XXHI, que vem a ser o «Pastor et Nauta»
(Pastor e Navegante) da lista, ainda terá cinco sucessores, o
último dos quais, Pedro II, verá, com a geragáo dos seus con
temporáneos, a consumaeáo da historia.

2. A autoridade da Profecía

A Profecía de Malaquias, logo depois de divulgada em


1595, obteve sucesso considerável. É inegável que os dísticos
interpretados por Ciacconio se aplicam bem aos Papas desde
Celestino H até Urbano VII.

Eis alguns exemplos mais frisantes:


«Avis Ostiensis» (Ave de ostia) convém adequadamente a Gregorio
IX (1227-41), que foi Cardeal-bispó de Ostia e tinha urna águia em
seu brazáo; . " . _. _
«De parvo nomine» (Do homem pequeño) corresponde a Pió III
(t 1503), que se'chamava Francisco Piccolomini (=Pequeno homem).
«Jerusalem Campaniae» (Jerusalém da Campanha) designa bem
Urbano IV (1261-64), nascido em Trbyes (Champanha) e Patriarca
de Jerusalém.

De Urbano VII (t 159D) em diante, Ciacconio nao inter-


pretou mais os oráculos. Muitos. historiadores, porém, julgam
que continuam a quadrar bem com as figuras dos Pontífices
que se tém assentado sobre a .cátedra de, Pedro.

Assim, para tomar exemplos ■ recentes, indicar-se-iam


«Crux de cruce» (Cruz oriunda da cruz), dístico que designa Pío IX
(1846-78) com acertó, pois éste Pontífice sofreu duros golpes da parte
da Casa de Savoia, em cujo emblema figurava urna cruz;
«Religio depopulata» (Religiáo devastada) é a distico bem adapta
do a Bento XV (1914-22), que durante q seu pontificado assistm á
primeira guerra mundial';
«Fides intrépida» (Fé intrépida) corresponde a Pío XI (1922-39),
Pontífice das miss8es e defensor da verdade contra modernas teorías
sociais e políticas;,

— 81 —
«Pastor et Nauta» (Pastor e Navegante) parece caracterizar bem
o Papa atual Joao XXIII, ex-Patriarca de Veneza, cidade das gdndolas,
reconhecido por sua ardente tempera de Pastor de almas...

Admitida a veracidade da Profecía na base das observa-


Qóes ácima, julgam alguns autores que o fim do mundo nao
está longe (talvez venha por volta do ano 2000), p°is só de-
verá haver cinco Papas até a segunda vinda de Cristo :
«Flos florum» (Flor das llores)
«De medietate Lunae» (Da divisáo da Lúa ou também Da Lúa
crescente)
«De labore solis» (Da íadiga do sol)
«De gloria olivae» (Da gloria da oliveira)
Para terminar, diz o texto (após o 111* dístico): «Durante a
derradeira perseguido que a Santa Igreja Romana sofrerá, será
Pontífice Pedro Romano, que apascentará suas ovelhas em meio a
muitas tribulacOes. Terminadas estas, a cidade das sete colinas será
destruida, e o Juiz terrível julgará seu povo».

Procurando interpretar os dísticos ácima, há quem queira


prever a historia dos tempos fináis nos seguintes termos :
As divisas «Pastor Angelicus» (Pío Xtt), «Pastor et Nau
ta» (Joáo XXIII) e «Flos florum» indicam um período de
grande paz e bonanga para a religiáo (seráo mesmo os nossos
tempos ?). Santidade angélica deve florescer no Pastor e ñas
ovelhas da Igreja ; o Pastor, sendo navegante, gozará de
grande prestigio no mundo inteiro e empreenderá viagens in*
tercontinentais a fim de confirmar a pregacáo do Evangelho
em toda parte. — As tres últimas divisas insinuam os acon-
tecimentos que deveráo preceder imediatamente a manifesta-
Qko do Anticristo : flagelos, como urna calamitosa expansáo
do islamismo («Lúa crescente»), penas e fadigas sobre os fi-
lhos da luz («Sol») ; além disto, a almejada conversáo dos
judeus a Cristo (a oliveira simboliza o povo judaico em Rom
11,17-29). Depois disto, sob o Papa Pedro n, Cristo aparecerá
como Juiz Universal.. .
Que dizer dessas conjeturas ?
Carecem de autoridade. Usando de toda a objetividade,
bons críticos modernos nao hesitam em rejeitar a autentici-
dade da Profecía de S. Malaquias.
Quem primeiramente a impugnou, apelando para argu
mentos ainda hoje plenamente válidos, foi o Pe. Ménestrier
S. J., no seu livro «Réfutation des Prophéties faussement attri-
buées á S. Malachie sur les élections des Papes» (Paris 1689).
Eis as principáis razóes desde entáo aduzidas contra a genui-
nidade das profecias :
1) durante cérea de 450 anos, isto é, desde S. Malaquias (t 1148)
até o opúsculo «Lignum Vitae» (1595), jamáis autor algum £éz alusao

— 82 —
aos oráculos de S. Malaquias; nem os historiadores medievais e renas-
centistas, ao escrever a Vida dos Papas, mencionam tal documento, que
certamente deveria ser citado, caso fósse conhecido. E por que motivo,
em que circunstancias, teria éste caído em máos de Ciaccon'o, seu
comentador, após 450 anos de ocultamento? E como de Ciacconio terá
sido transmitido a Wyon, que o editou pela primeira vez?
2) Ao argumento do silencio associa-se a verificacáo de íaltas
históricas e teológicas na Profecía de Malaquias. De fato, na lista dos
Papas liguram antipapas (como Vítor IV, 1159-64; Nicolau V, 1328-30;
Clemente Vil, 1378-94). eíeito éste que difícilmente se poderia atribuir
á inspiracao divina. A finalidade mesma da Profecía (insinuar a época
do fim do mundo) parece contrariar á intencáo de Cristo, que em
mais de urna ocasiio se negou a revelar aos homens a data do juizo
final (cf. Me 13,32; At 1,7). Além disto, a aplicagáo dos dísticos aos
respectivos Papas baseia-se em notas por vézes acidentais na figura
dos respectivos Pontífices, o que lhe dá um cunho de arbitrario; assim
Nicolau V (legítimo Papa de 1447 a 1455) traz a divisa «De modicitate
Lunae» (Da pequenez da Lúa) por ter nascido de familia modesta no
lugar chamado Lunegiana; Pió II (1458-1464) é assinalado «De capra
et albergo» (Da cabra e do albergue) por haver sido secretario dos
Cardeais Capranica e Albergati!

Positivamente, podem-se indicar as circunstancias que


deram ocasiáo á falsificagáo: observe-se, antes do mais, que
as divisas dos Papas até 1590 aiudem todas a tragos concretos
e particulares de cada Pontífice : lugar e familia de origem,
cargos exercidos antes da'éleigáo, figuras dos brazóes, etc..
— De 1590 em diante, porém, os oráculos referem apenas qua-
lidades moráis, cuja aplicagáo é assaz vaga, podendo convir
a mais de um Pontífice ; assim «Vir religiosus» (Varáo reli
gioso), «Ignis ardens» (Fogo ardente), «Fides intrépida» (Fé
intrépida) ; qual Papa nao merecería estes qualificatiyps, caso
nao fósse de todo indigno ?
Observada esta diferenga, julgam alguns críticos que a
«Profecía de S. Malaquias» foi forjada justamente nesse ano
de 1590, quando o falsificador já conhecia parte da historia
dos Papas que ele havia de caracterizar, ficando-lhe desconhe-
cida a outra parte (a do futuro). O ensejo para se inventar a
«Profecía» terá sido o conclave de 1590, após a morte de Ur
bano VII; o certame foi arduo, durando um mes e 19 días.
Entre os Prelados mais em vista, achava-se o Cardeal Simon-
celli, cidadáo de Orvieto e antígo bispo desta ddade; ora
pensa-se que os amigos de Simoncelli pretenderam favorecer
a eleicáo déste antístite, apresentando aos interessados urna
lista «profética» de Papas em que o sufragado pelo Espirito
Santo após o Pontífice Urbano VII era o Papa «De antiquitate
urbis» (Da antigüidade da cidade), isto é, o Papa de Orvieto
(=«Urbs vetus» = cidade antiga) ; em vista disto, teráo. for
jado urna serie de dísticos papáis condizentes com a realidade
desde Celestino II (no séc. XII), mas assaz arbitraria após

— 83 —
Urbano VII. Essa lista, com a qual os mistificadores quiseram
associar até mesmo o nome autorizado de S. Malaquias, nao
logrou o desejado efeito, pois na verdade quem saiu eleito do
conclave foi o Cardeal Sfondrate, arcebispo de Miláo, que to-
mou o nome de Gregorio XIV... É esta urna das explicagóes
mais correntes dos motivos que teráo inspirado a pseudo-pro-
fecia de S. Malaquias !

Ménestrier, na obra referida, cita outro caso semelhante de recurso


á «autoridade divina» para decidir a eleicáo de um Papa. Após a
morte de Clemente IX (1669), alguns adeptos do candidato Cardeal
Bona lembrando-se do texto de Eclo 15,1: «Qui timet Deum, íaciet bona»
(Quem teme a Deus, fará obras boas [Bona]), espalharam o segumte
trocadilho:
«Grammaticae leges plerumque Ecclesia spernit:
Esset Papa bonus si Bona Papa foret».
«As leis da gramática, geralmente a Igreja as despreza:
Haveria um bom Papa, se Bona Papa fósse».

Diante destas observagóes da crítica abalizada, vé-se que


váo seria evocar a «Profecía» de S. Malaquias, seja para ilus
trar a historia do Papado, seja para prever o decurso dos fu
turos tempos ou mesmo a época da segunda vinda de Cristo!

J. L. Z. (Itirapina) :

10) «Quem sao os Testemunhas de Jeová ?»

Os Testemwnluis de Jeová constituem típicamente o que se chama


urna seita no sentido exposto em «P. R.» 6/1957, qu. 8; representam,
sim «urna dissidéncia dentro da dissidéncia protestante» ou «a heresia
dentro da heresia» (!). Com efeito, da denominado batista procedeu
o bloco adventista em 1844; dos adventistas separaram-se os Testemu
nhas de Jeová em 1878, dos quais, por sua vez, se seqüestrou o grupo
recentissimo dos Amigos do Homem (1920). Já esta árvore genealógica,
na qual se inserem os Testemunhas, mostra quáo instáveis sao as
bases de seu ensinamento.
Diremos abaixo algo sobre a origem da seita e as suas doutrinas
principáis, procurando por fim formular um juizo sdbre a questao.

1. O surto dos Testemunhas de Jeová

Na primeira metade do século passado, forte corrente escatoló-


gica (isto é, de expectativa do fim do mundo) sacudiu os ambientes
religiosos norte-americanos. Foi entáo que William Miller membro
de urna comunidade batista, apregoou ao mundo a segunda vinda
de Cristo para o intervalo de margo de 1843 a marco de 1844;
tendo-se passado éste periodo, Miller logo refez seus cálculos proíé-
ticos iulgou ter descoberto o erro e poder anunciar que aos 22
de oútubro de 1844 o Senhor Jesús se manifestaría: na térra, ínaugu-

— 84 —
rando um reino de 1000 anos de bonanca (cí. Apc 20). Também esta
data se passou, sem que algo se mudasse na historia...
Nao obstante, o desejo de predizer com exatidáo «os tempos e
momentos» continuou a seduzir certas comunidades protestantes, das
quais procedeu o cheíe de novo movimento religioso; Charles Taze
Russel (1852-1916).
Nascido em Pittsburg (Pensilvánia) de familia presbiteriana,
Russel concebía diíiculdades na fé, quando se encontrou com os
Adventistas; resolveu entáo abracar as doutrinas déstes, juntamente
com a expectativa de urna próxima volta de Cristo para instaurar
sobre a térra o seu reino milenario.
Aos poucos, porém, foi-se convencendo de que todas as deno-
minagóes cristas estavam equivocadas no tocante á doutrina dos
últimos tempos... Em 1873 julgou poder afirmar que Cristo voltaria
em 1874, data que ele mesmo corrigiu sucessivamente para 1914 e
1918 (infelizmente Russel morreu em 1916). Em 1878 separou-se da
seita dos Adventistas, passando a constituir com seus discípulos um
grupo religioso independente; pós-se entáo a viajar anunciando a
sua mensagem ao mundo inteiro; atribuia-se a missáode denunciar
a todos «as fraudes e blasfemias» contidas nos ensinamentos de
qualquer entidade crista, fósse católica, fósse protestante, e de apregoar
«a maravilhosa noticia da instauracáo iminente, sobre a térra, da
cidade ideal paradisiaca, na qual já nao se cometerá mal algum».
Para remover as objecóes que se faziam contra o náo-cumpri-
mento das profecías adventistas. Russel concebeu* a idéia de urna
vinda meramente espiritual e invisível de Cristo. Assim podia susten
tar mesmo no fim de sua vida que em 1874 de fato se dera, o
grande acontecimento da deseida de Jesús á térra; afirmava, porém,
que até 1914 a presenca do Mestre seria invisível. Em 1914 nao
aparecendo manifestamente o Cristo. Russel adiou a data para 1918...
Tendo morrido em viagem aos 31 de outubro de 1916, a Russel
foi dado como sucessor o advogado Rutherford, que se proclamou
juiz e com veeméncia ainda mais acentuada se pos a condenar as
instituigoes religiosas e dvis da sua época.
Após 1918 Rutherford tinha que refazer os cálculos... Transferiu
entáo a data da manifestagáo de Cristo para 1925, anunciando:
«Podemos, esperar, em 1925, ser testemunhas da volta de Abraáo,
Isaque, Jaco e de outros crentes do Antigo Testamento, despertados
e restaurados em urna natureza humana perfeita para serem os
representantes da nova ordem de coisas sobre a térra».
Mandou conseqüentemente construir por 75.000 dólares em San
Diego (California) a suntuosa «Casa dos Principes», futura mansáo
dos Patriarcas redivivos que, na ausencia déstes, ele ocupava como
residencia de invernó com sua esposa e seu filho. Passou-se, porém,
o ano fatídico de 1925 sem que se presenciasse a volta de Abraáo
ou de Cristo. Sem se desconcertar, Rutherford apoiou-se na seguinte
advertencia, que ainda hoje é o esteio da poslcáo dos Testemunhas:
«Tudo se cumpre e atesta que o Senhor Jesús está presente e
seu reino vem chegando. A ressurreigao dos mortos comecará em
hreve. Dizendo em breve, nao queremos dizer no ano próximo, mas
eremos coníiantemente que terá lugar antes que decorra outro século».
Com estas palavras, Rutherford se premunía contra qualquer
desmentido ou decepeáo, pois já desistia de fixar a data.
Quanto ao titulo da nova entidade religiosa, variou assaz: «Russe-
litas, Auroristas, Estudiosos Internacionais da Biblia»... Final
mente em 1931 o Conselho da sociedade estipulou que seus membros

— 85 —
se apresentariam ao mundo como «Testemunhas de Jeová> (cf. Is
43,10; 44,8).
Após intensos trabalhos de propaganda pelo mundo, Rutherford
se retirou para a «Casa dos Príncipes», onde veio a falecer em 1924.
Teve por sucessor Nathan Knorr, que até hoje governa a seita,
procurando guardar as normas de seus dois antecessores.

2. A doutrina dos Testemunhas

a) O primeiro tópico que impressiona o leitor dos es


critos da seita, é o conceito de Kcligiáo ai professado : para
os Testemunhas, «religiáo» significa idolatría ou apostasia ;
consideram todas as formas de religiáo tradicionais como obra
estritamente diabólica.
b) E porque isto ? Qual é o grande pecado de todas as
religióes ?
É que ensinam a imortalidade da alma. Com isto tor-
nam-se cúmplices do demonio, que quis contradizer á palavra
de Deus no paraíso : «No dia em que comeres, morreras»
(Gen 2,17). O demonio, nao tendo podido evitar a mortandade
do género humano, ensinou-lhe ao menos a crenga na imor
talidade da alma.
c) A respeitó de Deus, ensinam os Testemunhas que
o misterio da SSma. Trindade é absurdo. Com efeito, Deus
fez o homem á sua imagem e semelhanga ; ora o homem tem
urna só cabega; por conseguinte, Deus nao terá tres caberas !
d) Jesús Cristo é mera criatura que, com o nome de
Verbo, já existia antes de aparecer na térra ; entre nos mani-
festou-se como homem e morreu por completo. A ressurrei-
gáo de Cristo de que fala o Evangelho, significa apenas que
Deus criou de novo, para que viva urna existencia meramente
espiritual, aquéle Verbo que outrora caminhava na carne
humana. De modo análogo, a ressurreigáo prometida aos
justos é entendida pelos Testemunhas como nova criagáo.

e) na vida pública, os Testemunhas se mostram intensos nao


sómente á «religiáo» e aos «religionistas», mas também a todas
as instituicoes civis, políticas e comerciáis que até hoie deram estru-
tura a sociedade; véem nisso urna ampia organizacao satánica,
cujas últimas expressSes sao a Liga das Nag5es e a ONU. Eis,
porém, que a batalha decisiva de Harmagedon (cf. Apc 16,16) se
aproxima e a «Mulher de Jeová» (a seita dos justos) triunfará de
toda a obra do Maligno.

3. Urna tomada de posicáo

De quanto acaba de ser exposto, conclui-se com evidencia que a


ideología dos Testemunhas de Jeová equivale á negacáo do Cristia-

— 86 —
nismo em tudo que éste tem de característico. — Deseamos, porém,
aos principáis pontos de doutrina:

a) É muito difícil admitir, tenha Deus deixado que a


coletividade do género humano caisse sob a sedugáo de Sata-
naz, enganando-se desde os inicios da historia até hoje a respeito
do seu Criador e Pai.O subjetivismo do homem contemporáneo
afirma-se claramente nesse pressuposto dos Testemunhas;
alias, cada fundador de seita moderna julga ser o privilegiado
descobridor do Evangelho e da Biblia num mundo que nao
mais o entende!
b) A propósito da imortalidade da alma, é preciso dizer
que nao sómente os cristáos (cf. Flp 1,23 ; 2 Cor 5,8 ; 1 Tes
5,10; 2 Tim 4,6-8), mas também os cultores de Jeová no
Antigo Testamento a professavam.

Os israelitas possuiam, sim, a nogáo de sobrevivencia da alma.


É o que vai insinuado já pelo simp.es lato de que julgavam lícito
matar irracionais, ilícito, porém, matar um homem; isto bem atesta
a diferenca que admitiam entre alma humana e principio vital dos
animáis inferiores.
Ademáis «morrer» para qs. israelitas, equivalía a «reunir-se ao
seu povo, voltar a seus país» (cf. Gen 15,15; 25,8.17; 35,29; 49,29.32;
Núm 20 24.26; 27,13; 31,2; Dt 31,16; 32,50). Tais expressOes signifi-
cam ou reuniáo dos corpos em urna sepultura comum ou reuniáo
das almas em um mesmo estado ou local. Em certas passagens,
porém, é claro que nao designam sepultamento em túmulo comum
de familia, como, por exemplo, nos casos de Abraáo (sepultado
na gruta recém-adquirida de Maepelá; cf. Gen 25,8), de Aaráo
(Núm 20 24), de Mo.sés (cf. Núm 27,12; 31,2; Dt 31,16); também
Davi, Omri e Manassés «foram reunidos a seus pais», nao. porém,
sepultados no túmulo de sua iamília (cf. 3 Rs 210; 16 28; 4 Rs
21,18). Estes textos, supondo evidentemente a reuniáo postuma das
almas após de'xarem os respectivos corpos, atestam a sobrevivencia
das mesmas. Jaco, julgando que seu filho fóra devorado por urna
fera, exprimiu o deiejo de ir juntar-se a ele (cf. Gen 37,36), o que
nao pode significar reuniáo de cadáveres num sepulcro.
Verdade é que o autor do Eclesiastes se refere á alma humana
e ao principio vital dos irracionais como se perecessem do mesmo
modo após a vida terrestre (cf. Ecl 3,19-21). Na realidade, o autor,
ao se exprimir desta forma, quer apenas indicar o que se pode
observar com os sentidos anteriormente a qualquer raciocinio: o
fenómeno da morte, nao há dúvida, tem a mesma aparéncia no
homem e no animal inferior. O escritor sagrado, porém. nos trechos
em que instituí seus raciocinios, nao de'xa de professar a sobrevi-
vénc'a da- alma: sabe, por exemplo. que o corpo se dissolve na
poeira da térra, ao passo que o espirito comparece diante de Deus,
que o julga; é esta, alias, a conclusáo de todas as suas elucubracóes,
ou seja, a tese definitiva do Eciesiastes (cf. 12, 7.13s).
Nao se nega, porém, que só aos poucos na historia do Antigo
Testamento se foi desenvolvendo a nogáo de que a vida postuma
é nao somente sobrevivencia, mas também existencia consciente,

— 87 —
suscetivel de premio ou de castigo. Testemunhos desta progressáo
sao os textos seguintes: SI 10,7; 15,11; 16,15; 139,14; Dan 12,1-3.

c) A respeito da SSma. Trindade, justamente com vistas


á doutrina dos Testemunhas, encontra-se urna explanagao em
«P. R.» 1/1958, qu. 3. Poder-se-ia aqui acrescentar a seguinte
observagáo : os Testemunhas nos lembram que a soma 1+1+1
nao pode dar senáo o resultado 3 ; donde concluem que os
católicos professam o triteísmo pagáo (a associacjio das cifras
3 e 1 em Deus envolvería contradigáo). Contudo, recorrendo
a outra imagem, os cristáos lhes podem recordar que a pró-
pria matemática admite, sob outro aspecto, a perfeita com-
patibilidade de 3 com 1; basta para isto mudar o sinal (por X
em vez de +) na operagáo ácima: tem-se entáo: lxlXl = l-
— Eis desta vez urna Trindade que nao quebra a unidade, ou
urna unidade que é riquíssima (elevada ao cubo) sem, porém,
perder a sua simplicidade e unidade... Pois bem ; para ilus
trar o misterio da Trindade Divina, recorra-se á figura da
multiplicagáo ácima proposta, nao á da adigáo, e ver-se-á que
nao é dogma absurdo.
d) No tocante á expectativa de iminente manifestaeao
de Cristo, nao é necessário demonstrar quanto é vá; as múl
tiplas tentativas adventistas de calcular a data mediante a
combinagáo de textos da Escritura constituem a melhor
prova de que nada se pode dizer de preciso a respeito. Querer
desvendar o misterio «do dia e da hora» seria contradizer á
explícita intencáo do Senhor, o qual em sua sabedoria preferiu
que o homem vivesse continuamente como se o dia presente
fósse o último de sua existencia neste mundo (cf. Mt 24,45-25,13;
Me 13,32; At 1,7).
Nao há, de resto, na Escritura indicio de que a historia
deva terminar ñas proximidades do ano 2000. Quanto á ex
pectativa de um reino milenario de Cristo glorioso sobre a
térra, deriva-se de falsa interpretagáo de Apc 20. Éste texto
na verdade se refere ao período que corre entre a primeira e
a segunda vinda de Cristo : neste intervalo o Senhor já reina
sobre a térra, pois infligiu derrota ao Príncipe deste mundo,
quando remiu o género humano na cruz (cf. Jo 12,31; 16,11);
desde entáo Satanaz é como o cao acorrentado que pode
ladrar, sim, mas nao consegue morder senáo a quem se lhe
entrega voluntariamente (S. Agostinho). Os cristáos reinam
com Cristo no século presente, pois já atualmente possuem
as arras da gloria celeste (cf. Ef 1,14). A tal reino de Cristo
no mundo o Apocalipse atribui a duragáo de 1000 anos...; a
cifra é, segundo a mentalidade do livro sagrado, evidentemente
simbólica, designando urna duragáo que tem sentido completo

— 88 —
em si ou que no seu remate chega ao termo intencionado por
Deus (mil é símbolo de totalidade e plenitude). A ressurreigáo
primeira, que inaugura o reino dos justos com Cristo, é a
vivificagáo das almas pelo Batismo, ao passo que a ressurrei
gáo segunda, que rematará os mil anos, significa a vivificagáo
dos corpos no dia do juízo final, quando toda carne res-
suscitar.
Em conclusáo: muitas concepgoes fantásticas dissemi
nadas com muito entusiasmo, eis a que se resume a posigáo
dos Testemunhas de Jeová. Se os erros sao condenáveis, ao
menos o entusiasmo da seita merece aprego, e é portador de
mensagem para o mundo contemporáneo : lembra a todos,
principalmente aos católicos (luz do mundo e sal da térra),
que abominável é, aos olhos do Senhor, toda modalidade de
tibieza e aburguesamento espiritual (cf. Apc 3,15s; Mt 5,13-16)!

CORRESPONDENCIA MIÚDA

OFICIAL X : Eis as respostas sucintas as estimadas pergvmtas de


V.S. concernentes á Moral de guerra :
a) A um batalháo ou grupo que se ache em retirada, nao é lícito
matar os habitantes que váo ficando pela retaguarda, para evitar que
déem informacóes prejudiciais a respeito désse grupo. —A razáo é que
esses habitantes sao inocentes ; nao podem ser considerados cidadaos be
ligerantes. Nao há dúvida, a Moral permitirá que o dito grupo evite a
transmissáo de informasóes, por outro meio, porém, que nao o morti
cinio.
b) Nao é permitido executar a ordem de superiores que mandem
fuzilar inocentes, mesmo que a desobediencia redunde no fuzilamento do
subalterno rebelde. — Compreende-se bem: só é lícito matar a quem tem
culpa (e ainda assim, só no caso em que a existencia désse culpado seja
de todo incompatível com o bem comum). Pois bem ; tirar a vida a
um inocente (que nao é injusto agressor) para que eu mesmo n!U) venha
a perder a vida, é realizar um ato intrínsecamente man em vista de
um efeito bom ; ora nem mesmo em vista do bem se pode praticar o
mal ou o pecado.
No caso proposto, porém, resta saber se a pessoa tida como inocente
é realmente isenta de culpa.
c) Tor motivo análogo, nao é lícito a um soldado infligir a morte
a si mesmo para nao cair vivo em máos inimigas ou para evitar as tor
turas que fariam revelar gravíssimos segredos de guerra. O suicidio é
agáo intrínsecamente má.
d) Em geral, toda guerra irrestrita e indiscriminada é reprovada
pela moral crista, pois vai atingir pessoas e valores que nao participam
da acáo bélica e que de modo nenhum perderam seu legítima direito a
existencia.

— 89 —
e) É permitido, sim, atrair o adversario para urna "ratoeira",
como fez Aníbal em Cannes, pois em guerra se podem aplicar estrata
gemas requintados. As partes beligerantes devem estar acauteladas a
propósito de tais recursos e tém obrigacáo de usar da máxima prudencia
para nao ser colhidas em "ratoeira" ; o beligerante tem que pensar duas
vézes sobre as palavras e as atitudes do adversario antes de tomar suas
decisóes. A "batalha de exterminio" que resulte do recurso á ratoeira,
se se trava entre os beligerantes nresmos, nao poderá ser reprovada.
f) A respeito das Ordens militares, daremos resposta mais longa,
se Deus quiser, em um dos próximos fascículos de "P. R.".

CONSULENTE : Muito vivamente nos interessamos pelo caso pro-


posto. Para definir urna atitude correspondente, será preciso levar em
considerado o seguinte :
Urna pessoa enferma tem obrigacáo de se submeter á intervencao
cirúrgica aconselhada pelos médicos, desde que realmente dessa operacáo
se possam prever efeitos benéficos para a saúde. A criatura humana
toca o dever de conservar a sua vida ; em conseqüéncia, nao lhe é lícito
omitir o recurso aos meios normáis de medicina (naturalmente, opera-
góes extraordinarias, no «strangeiro ou avultadamente dispendiosas nao
sao meios normáis).
Se, porém, se pode prever com seguranga moral que a intervengao
será inútil, só servindo para aumentar incómodos, já deixa de haver
obrigagáo de a sofrer.
O juízo sfibre cada caso particular está a cargo do bom médico mais
do que do paciente. Supóe-se que o médico seja> mais objetivo do que o
enfermo nessas situares.

A. V. (Sao Paulo): A respeito do problema do mal, da preciéncia e


da bondade do Criador, queira conferir "P. R." 5/1957, qu. 1 ; 7/1957,
qu. 8 e 9 ; 5/1958, qu. 3 e 6. Caso seja oportuno mais algum esclareci-
mento, queira escrever-nos.

JUDÁ (Nova Friburgo): Recebemos há muito a prezada cartinha


de V.S., á qual só agora respondemos por falta de espaso em "P. R."
e por falta de enderégo do amigo.
O confronto que o consulente instituí entre Gen 37,9s (a narrativa
do sonho de José) e Gen 35,18 (Raquel morreu ao dar á luz Benjamim)
leva-o a assinalar urna incoeréncia á qual o autor sagrado nao teria
dado importancia. A mengáo de pai, máe e onze filhos^ em Gén_ 37 era
necessária para indicar que todoa os familiares de Jaco lhe seriam tri
butarios. O número exato désses todos nao preocupava muito o escritor
sagrado ; o que lhe parecía certo era que, para designar a totalidade dos
membros de urna familia, é preciso mencionar, ao lado do esposo, a
esposa (quer esteja viva, quer morta). — Tal era a mentalidade orien
tal ; acomodemo-nos a ela, sem a querer reduzir as categorías de pensa-
mento dos homens do séc. XX.

MILES (N. F.): A respeito de Jacques Soria, eis as noticias dese-


jadas :
"Corsario huguenote (calvinista francés) do séc. XVI, senhor de
Flocques, oriundo da Normandia. Quando em 1569 comandava urna ar
mada de 20 ou 30 navios ñas costas da Bretanha, apresou e saqueou todos
os navios católicos sem distingáo de nacionalidades. Em 1570 dirigiu-se
para as costas de Portugal e de Espanha. Alentado pelos éxitos ante
riores, aventurou-se até as Canarias, onde tomou um navio portugués
que se dirigía á India levando a bordo grande número de Religiosos e

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cuja carga era constituida por reliquias, rosárioñ, etc. Foi acusado de
nesta ocasiáo ter praticado bárbaras crueldades contra 40 Religiosos,
que langou ao mar depois de os ter mutilado" (Grande Enciclopedia Por
tuguesa e Brasileira, vol. 29, pág. 686).
Os 40 Religiosos mencionados sao o Bem-aventurado Inácio de Aze-
vedo S. J. e seus companheiros.

F. F. TEIXEIRA: Nao há motivo para pterplexidade. As noticias


da imprensa sao suscetiveis de múltiplas interpretacóes; freqüente-
mente exploram o aspecto sensacional, sem atender exatamente a vera-
cidada dos fatos. Foi certamente o que se deu quando os nossos perió
dicos referiram a vida do citado personagem.
Quanto as atitudes do mesmo perante os acontecimentos internacio-
nais, sabemos que a questáo é muito delicada : um gesto movido pela
melhor das intengóes é freqüentemente mal interpretado. Nao tenha
dúvida, objetivamente falando, nada houve de partidario no caso.
Enquanto é peregrino nesta térra, o cristáo abstém-se de julgar
para nao ser julgado (cf. Mt 7,1). Ele entrega tudo ao juízo de Deus,
que sonda os corasóes e as consciéncias, sabendo avaliar a verdadeira
situagáo das almas (cf. 1 Cor 4,5). Os homens se enganam fácilmente
ñas suas apreciagóes, principalmente quando tém por objeto figuras de
grande projecáo.

D. ESTÉVÁO BETTENCOURT O.S.B.

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