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Volmar Camargo Junior

Um resto de
café frio
Volume 1

A fonte das coisas imperfeitas


À Natascha

e a todos os que amo.

2
Volmar Camargo Junior
Um resto de
café frio

Volume 1

A fonte das coisas imperfeitas

Canela – RS – Brasil

2009

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Apresentação

Do que é feito um poeta?

Embora sua literatura passeie livre e solta pela prosa, pe-


los contos e causos, Volmar Camargo Junior diz que não é
íntimo da poesia. Os versos o desafiam. As palavras correm,
e Volmar as captura, laça-as mesmo, põe-lhes ordem. É um
embate. E, no final, o que temos? Um rebanho de textos
cristalinos.

Sim, cristalinos, pois a transparência é sua marca. Situa-


ções banais do cotidiano, pedacinhos perdidos da realidade
prosaica ou do Universo surreal, um resto de café no fundo
da xícara ou um diabinho que se esgueira pelos cantos, qual-
quer coisa lhe serve de mote para construir um verso. E de-
pois outro, e assim uma sequência, um novelo que se desen-
rola prazerosamente diante dos olhos do leitor.

Há diferentes formas, métricas diversas, um pout-pourrit


de estilos – indrisos, poetrix, sonetos, versos livres, versos
brancos. Permeando todos, um fio comum: a observação
arguta e a sensibilidade à flor da pele, traços sempre marcan-
tes nesses espíritos que se embrenham pela árdua tarefa de
captar o inesperado e com ele produzir o belo.

Não é isso, afinal, um poeta? Um mago, um feiticeiro


que vê do mundo o que aos olhos comuns escapa, e que nos
oferece doses inebriantes de uma poção sempre inédita,
mesmo quando feita com as mesmas palavras-ingredientes
de nossa fala comum.

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Volmar já deixou de ser, há tempos, um aprendiz dessa
feitiçaria. Ler seus poemas é embarcar numa viagem da qual
não se retorna intacto. Nessa viagem, o mais surpreendente é
encontrar num verso algo de nós mesmos que até então nos
passara despercebido. Pura mágica? Não. Pura poesia.

Convido-os, leitores, a se deixarem levar pelas páginas


que seguem. Tenham todos uma boa viagem!

Marcia Szajnbok
São Paulo
Janeiro de 2009

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Guerreiro

O escritor latino-americano é um guerreiro.

Mas esta luta não é contra um adversário identificável,


ou movido por um ideal supremo; o escritor latino-
americano luta porque esta é a única opção que lhe resta, luta
por desespero, por desamparo, por causa do abandono.

Este escritor é, desde sempre, lançado à margem. Contra


ele, reúnem-se todas as condições adversas possíveis: a es-
cassez de leitores, a indiferença do mercado literário, o es-
nobismo da crítica, a arrogância da Academia. Mas este escri-
tor prossegue, apesar das dificuldades, apesar da descrença.
E ele tem certeza de que, no final desta jornada, não encon-
trará a vitória, mas apenas o descanso e a certeza de ter tri-
lhado o caminho autêntico.

Volmar Camargo Jr. é desta etirpe de guerreiros; não es-


creve pelo sucesso, ou pelo dinheiro, ou por nenhum outro
motivo além da escrita e do prazer que este ofício propor-
ciona. Conheci-o, primeiro, como o extraordinário analista
literário que é, com sua incrível capacidade de desvendar os
meandros dum texto e trazer à tona sua essência, posterior-
mente, como prosador, a reconstruir o espírito de seu Rio
Grande através de causos, e, por fim, como poeta.

É imbuído do mesmo ardor em compreender e dominar


a prosa que Volmar se aproximou da poesia, buscando no-
vas formas, explorando suas possibilidades, sempre consci-
ente de que, para criar o novo, antes é preciso conhecer a
tradição.

7
A luta literária empreendida por ele é a mesma de outros
escritores latino-americanos, pretéritos ou de nossa época,
uma eterna busca por identidade, por entendimento e pela
maestria.

É nesta árdua estrada sem fim que nossos caminhos se


cruzaram. E é com grande honra que apresento os textos
deste poeta-guerreiro.

Henry Alfred Bugalho


Nova York
Fevereiro de 2009

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Sumário

Apresentação

Do que é feito um poeta? – Marcia Szajnbok 5


Guerreiro – Henry Alfred Bugalho 7

“A fonte das coisas imperfeitas”

O fim da poesia 11
Esquecimento 15
Gravidade 17
Distância 18
A fonte das coisas imperfeitas 19
O fio do tempo 20
O pior dos deuses 21
O tempo, o verbo e o verso 22
Muito de tudo 23
O caroço de uma hora (A essência das horas) 24
Noite 28
Moléstia Rara 29
O poço 30
O ser definitivo 31
A bolha 32
Mundo solitário 34
Passado 36
O campo e a mancha 37
O chão verdadeiro 38
O que brota da terra 39
Força irresistível 41
Madureza 43

9
Ironia 44
Humor noturno 46
Espaço urbano 47
Ruído 48
Isso que se move em nós 49
Incógnita 51
Noite prenha 52
Retorno 53
Valsa para a poesia 54
Um tênue fio de prata (Janela aberta no tempo) 56
Sedução 57
Gula (Como a carne) 58
Transparência 59
Olhos ocultos 60
Poema sobre um resto de café frio 61
Um bom andar 62
Origem 63

10
O fim da poesia

a poesia é o que resta


da inexistência que é o ser
e da pobreza total que é
existir na imensidão

é o que nos cabe


em tantas coisas que não vemos
que de tão ínfima
só existe por não existir

é o elogio do infinito à nossa miséria


é a dimensão do irreal
da relativa e tênue
pele que cobre a carne do cosmos

a poesia não é o sangue


não é essa pele
não é dessa carne
não é o corte
nem é a lâmina que corta

é a própria possibilidade
de haver uma ferida

se há uma ferramenta
uma arma
um instrumento
um meio
é o poeta

11
há um fim, creio que haja
quem o saberá?

decerto não será Deus


que desconhece a poesia
porque, se há Deus
este é perfeito
e a poesia é uma falha na perfeição

decerto não será o Universo


posto não reconhecer nas próprias dobras
as incertezas em tantas e
irreparáveis leis sem reparo
remendo ou peça de reposição

decerto não serão


o tempo e o espaço
posto serem eles mais ilusórios
que uma imagem refletida
de uma imagem refletida

não, decerto não será


de forma alguma, o poeta

o poeta faria o mesmo que


o Universo
que sustenta as leis
que sustentam o espaço
que sustenta o tempo
que sustenta o mundo
que sustenta as paredes
que sustentam os espelhos
que estarão defronte um para o outro
até que tudo se acabe
ou mude
12
quem pode saber
o fim da poesia
e que não dirá jamais
é a palavra

é muda e em si
não há nada
e há tudo
eis o que nem Deus
se existe
previa

e Deus, lembrai, é uma palavra

em si não há lei alguma


e há todas
porque traduz
o que o Universo precisa
mover-se inteiro
para fazer

e Universo, lembrai, é uma palavra

o espaço e o tempo
não cabem nem duram
dentro de si próprios
tanto que dependem um
da existência do outro
mas cabem e duram tanto
quanto duram seus nomes

tempo e espaço que, lembrai, são palavras

o poeta que pensa que


13
acredita que se lembra
por toda a sua vida
sem fim conhecido
sabe que ser, pensar, acreditar
viver, conhecer, recordar, saber,

são, ainda lembro, palavras

talvez não haja poesia –


sem Deus, se existir
sem Universo
tempo
espaço
poetas
– sem meios para um fim em círculo

sendo círculo, poesia é mágoa

ressente-se porque
até mesmo poesia é uma palavra
e não há palavra sem palavras
como não há poesia sem poesia

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Esquecimento

i.

ecoa em cada quadro dessa galeria


a justeza por que caminho,
e a aspereza do alheio

as mãos que não trazem calos


os impossíveis desapegos
um panorama do que não possuo

a perfídia do leito
cada hora perdida
cada fio de cabelo

os princípios e os fins
as cãibras, o suor
o cheiro de noite e os sonhos

a tortura, a morte, a dor,


o rancor e a solidão
o que de mim não se enamora

sussurra uma voz com cheiro velho


“ouço estrelas”, sabe-me o destino todo
fujo

15
ii.

persegue-me insistente o eco


que ecoa e ecoa e ecoa
nesse templo vazio e oco

buscam-me mortas
as coisas, mortas as horas,
as letras, mortas

o nunca, o nada, o pó
de uma rua velha, numa casa velha,
num mundo invisível e velho

ainda desperto ante o corredor


áspero e poeirento
sinto a frialdade do seu hálito

em cada quadro dessa galeria


ecoam o velho e o sono,
ecoam o verbo e o verso

vencido, desisto da fuga


devora-me uma fome urgente que não tem nome
sou engolido pelo torpor do esquecimento

16
Gravidade

o peso de uma pena


caiu sobre meus ombros
com pena, segui andando

17
Distância

entre nós
um dois
espaço

18
A fonte das coisas imperfeitas

na criação do Universo
de inconcebível perfeição
alguém esqueceu de cobrir um buraco

nesse mesmo buraco inocente


caíram – ou foram jogadas –
todas as coisas que não deram certo

de tanto derrubarem lá
o que não funciona direito
acabou ficando cheio

se um dia a misericórdia
permitir que alguém o encontre
e, pior, se puder consertá-lo

será o fim da ciência


do amor, da poesia
e de todos os nossos medos

19
O fio do tempo

o tempo nasceu quando


o tecido infinito de estrelas
começou uma vez a ser feito

(nasceu só para tecê-lo)

por muito querer conhecê-las


distraiu-se até perder o jeito
e o tecido acabou desmanchando

(o Universo virou um novelo)

20
O pior dos deuses

o tempo é o menos óbvios dos deuses


ilude-nos com isso de passado e futuro
e ri de nossos medos

a esperança é a única entre os deuses


capaz de sofrer conosco
mas ri de nossos medos

de todos eles, ainda pior é o amor

perto dele, o tempo e a esperança são amadores

21
O tempo, o verbo e o verso

um ilude
o outro finge
o terceiro acontece

22
Muito de tudo

é tarde para decidir sobre essas coisas,


essas que ficam em nós impregnadas,
as sobras do mundo nas estradas,
a poeira acumulada nos sapatos

é inútil a incerteza dos destinos


as coisas estariam explicadas
haveria menos de nada
e tudo seria limitado

há muito de tudo,
há, às toneladas
e é tão pesado

por outro lado,


nessa vida
o que há

é pó

23
Do caroço de uma hora
(A essência das horas)

do caroço de uma hora


extraí a substância vítrea
oleosa
fugaz como a vontade
etérea como a sensatez

em nenhum recipiente
pude contê-la a contento
escapava sempre um tanto
às vezes muito
quase sempre dobrava de tamanho
e assim, aos poucos
às gotas
às partículas
preencheu o espaço
tão meu conhecido

era sedutora, envolvente


a bruma que nascia
pois era bruma
era um vapor invisível
que fez sumir as paredes
a paisagem da janela
os hábitos convenientes
e os meus pés

sim, por dias


se ainda lembrava o que eram
fiquei sem vê-los

24
deixei-me entregue
à essência do caroço das horas
inalei, comi, bebi
despi-me
e assim, despido
cobri-me inteiro com ela

não era dor


era antes um frio
das pontas dos cabelos até a boca do estômago
enredou-me
dentro e fora de mim vivia aquilo
impossível conter
e mesmo quando do fundo da garganta
nasceu o último murmúrio
a coisa cristalizou-se
virou gelo
rocha
diamante
vidro

era o vidro em mim


o vidro das horas
- o vidro das raízes do tempo
de toda árvore vítrea que é o tempo
da seiva vítrea
sangue do que não se vê –
era o vidro em mim
não mais nas horas
não mais preenchendo os vãos
entre as partículas da poeira
do tecido das estrelas
era o vidro em mim
deixou de ser essência
25
primordial ou quintessencial
era em mim
era eu

e
como é próprio das coisas
nascidas ou tiradas
da árvore que dá os frutos do tempo
o vidro que tinha a mim cristalizado
sumiu

voltaram as roupas
as paredes, as janelas
a paisagem
os sapatos

da essência das horas


restou só
uma gota
escorreu-me pela testa até a ponta do nariz
intempestiva
decidida
livre
lançou-se no espaço
num mergulho que só eu percebi
até o choque derradeiro contra o piso

saí
fechei as janelas, tranquei as portas
segui como pude
vivo como consigo

ainda lá está, intocado


o piso onde caiu a última gota
da substância vítrea
26
oleosa
extraída do caroço de uma hora

tinha a esperança que


onde a gota caiu
pudesse brotar outra árvore
com um tempo diferente
quem sabe misturado
a um tanto da poeira
dessa poeira que sou eu

27
Noite

mortas as coisas do tempo


caem, exaustas, as horas,
e eu, descanso

28
Moléstia rara

olhei minha cara no espelho


estava eu lá, o eu de sempre
o eu mesmo refletido

havia porém algo em mim


brotando como trepadeiras
por debaixo das pálpebras

enrolando-se em meus cabelos

achei-me até um pouco mais alto

29
O poço

encontrei há tempos um poço


onde havia de mim idêntico,
mesmo que inverso, um outro

do fundo, com rancor autêntico,


encarou-me aquele eu imerso
impondo que fosse em seu encontro

entre a borda e a água ficou suspenso

o olhar que lá deixei cair dentro

30
O ser definitivo

o ser definitivo
tal homem e bicho
será finito

etéreo, incorpóreo
crescerá como quiser
e quando quiser, morrerá

será como os sonhos

partindo sem ser lembrado

31
A bolha

há em mim uma bolha

resistente aos segredos


às dúvidas e ao destino
ao sufocante espaço que lhe designei
entre as verdades incontestáveis

mantém esse corpo vivo


cobrem-na a carne e as lembranças
cobrem-na por todos os lados
amoldou-se de dentro para fora

se de vazio ou
de incompletude ou
de infinito é repleta, não sei
ignoro seu conteúdo

nasceu comigo
não aumenta
não diminui
mas está-se degradando

não provoca dor, nem prazer


nem bem, nem vicia
nem modifica coisa alguma
nem tampouco se manifesta

incita-me a perscrutar
sua superfície que já foi lisa
temo que seu desejo
seja finalmente romper-se
32
às vezes escapa-me
aos poucos cuidados que lhe dedico
desliza sem ser notada
assume uma nova forma

cobre-se de atrevimento
veste-se com paixão
tira-me o sono e se exibe
não raro me desacomoda

só assim quando foge


quando não em mim
nem nela ou em pensamento
vejo-a inteira tal como é

33
Mundo solitário

nas profundezas
no espaço vazio
ou alhures
— como achares melhor —

existe um mundo
um outro mundo
feito ele todo
de imprecisão

coisas que vivem


ainda sem nome
uns tantos fios
desamarrados

cores que nunca conheceremos


sem outras semelhantes
que se modificam
se forem vistas

uma fonte de calor


vinda de sabe-onde
que se dissolve
por conta própria

campos imensos
ruas sem fim
janelas de cortinas fechadas
casas sem endereço

34
lá jamais encontrei alguém
nem sei bem como chegar
nem como percorrer esse caminho

é um mundo bem solitário

35
Passado

nenhuma força emenda


sonhos, ruínas ou pó
quimeras ou as coisas que erram

canções desfeitas, palavras uma vez ditas


luzes que piscam nesse campo sem cor
– onde dorme o pouco que ainda há –

esparsos jazem os restos arruinados

moídos à exaustão pela eternidade

36
O campo e a mancha

manchas de uma cor incerta


invadem a estreita faixa de campo
uma terra descoberta
quase sem vegetação

muitas, desordenadas
obedecem a um líder
que desconhecem
trazem-no, as manchas,
impresso na intimidade

devagar, sem estratégia


dividem-se
ou se multiplicam

sou inclinado a lembrar


que havia um campo
o tempo, o operário das coisas
incertas e desconhecidas
fez aquilo que faz melhor

nem lembro mais de que cor


era essa faixa estreita de terra
antes que a mancha cobrisse tudo

agora tudo
campo e mancha
são uma coisa só

37
O chão verdadeiro

o chão ruiu
abriu-se a terra em galerias, labirintos
uma teia infinita de túneis

não deixou de ser o mesmo chão duro


que gera a vida, a imundície
o pó

descobriu-se
sem qualquer pudor
para promover a revolta em ânimos e estômagos

não sangrou como dizem que sangra


ou gemeu ou fez qualquer menção
de dor

bastou-lhe
para causar tamanho desespero
escarrar em todos a ignorância do perigo

sob o chão em que erigimos a totalidade das coisas


havia um outro, mais verdadeiro
ainda que oco

38
O que brota da terra

dois besouros desses que brotam da terra


um casal ou
pai e filho ou
rivais por uma oportunidade rara
de permanência no mundo
entre tantos insetos

giram no ar
uma dança ou
enlace ou
alguma forma de comunicação

sem ruído
unidos no ar
contornam as linhas
de um desenho irreproduzível
uma vez separados
tornam a se enfiar na terra
escondem-se daquelas linhas invisíveis
e de uns olhos curiosos

se sob a silenciosa inércia da terra


lutaram até a morte ou
permaneceram separados ou
tornaram a se encontrar
— e unidos permitiram
a permanência no mundo
entre tantos insetos —
eu nunca soube, nunca voltei a ver
besouros sobre a superfície

39
o desenho e as linhas traçadas
ficaram plantados nalgum canteiro da memória
e por mais atenção que lhes dedique
deles jamais brotou sequer um rascunho

40
Força irresistível

minhas pernas já não doem


meus pés de tão cansados
retiraram-se da caminhada
ainda era tão cedo

não se queixam os joelhos


terem-me trazido tantos dias
e tantas coisas conheceram
que só aos joelhos é dado conhecer

arrastaram-me os braços
contra a força da terra
contra o peso que carrego
ainda tão pesado

não consegui deixá-lo – esse peso


ancorado em algum porto
ir e depois voltar
como fazem a dor e o sonho

é a permanência
a imobilidade
a irresistível e magnífica
atração dos corpos

abro a boca para tentar sair


debruço-me nesses papéis
desdobro uma melodia guardada
e permaneço

41
algo se desprende e vai
leve e tão sem compromisso
desconhecido de si
e nem sabe que existo

42
Madureza

vida acumula debaixo das unhas


os poros exalam tempo, e a poesia
branqueia e míngua como o cabelo

43
Ironia

i.

que esperar de um mundo


de casca lisa, dura e seca
e miolo quente e macio

senão a ironia besta


de vê-lo como um ovo cozido
oval forma de planeta

ii.

na secura lisa da casca


encontrei um oco escondido
em velha pedra esquecida

a tal que o operário erudito


ignorou por ser um esteta
e o mais que aqui não repito

iii.

o oco da pedra era o ninho


duma ave cuja exótica dieta
era de pátrias, homens e livros

o que achei até hoje me espanta


e hoje ainda me assombro sozinho
um arrepio de medo ainda agora

44
iv.

eram ovos, uns tantos ovinhos


de casca lisa, dura e seca
e miolo quente e macio

que ironia, se essa ave choca


e assim do ovo nasce um bicho
e o bicho abre o bico e grita

v.
as cascas do ovo virariam comida
o ninho da ave viraria comida
o oco da pedra viraria comida

pátrias, homens, livros


a própria mãe do passarinho
e eu mesmo, se não sair correndo

vi.

e se ele devorar a si próprio


que ironia, meu Deus, que ironia
mesmo o nada seria devorado

melhor continuar com a ironia besta


pensar o mundo como um ovo cozido
ainda que ridícula, oval forma de planeta

45
Humor noturno

um odor profundo que se avoluma


um odor noturno quase amanhecido
um odor pesado de que sou íntimo

um humor grosso que a terra secreta


um pouco apenas num canto da casa
um resto do enterro da madrugada

um pouco de ontem regurgitado

uma nova e inevitável manhã

46
Espaço urbano

o cheiro e a poeira e o desespero


erigiram milhões de colunas de ferro
e de inércia cobriram-se inteiros

47
Ruído

era um ruído fluido e flexível


de consistência adocicada e fria
vaga presença e andar fugidio

e vagarosamente se movia

esse ruído, de passo macio

plantou em mim alguma simpatia


sabe que deixo-lhe o espaço vazio
e que o espero assim que morre o dia

48
Isso que se move em nós

isso que se move em nós


que nos fascina e que nos retira
do tempo, do mundo
da terra, de nós mesmos

isso que preenche o espaço


que une e entrelaça mãos
gera um mar de criaturas
que se reconhecem e criam

isso que é desconhecido


não se faz ver nem ouvir
se exprime pela estranheza
de si esvai-se incontinenti

isso que é e que não é


que está onde não está
que pára o tempo e a razão
e dentro e fora de si existe

ainda que possuisse massa


ou que pudesse ser medido
ainda que fosse sólido
ainda que estivesse vivo

isso ainda seria inteiro


perfeito e indefectível
e a um tempo seria muitos
e incontáveis unidades

49
ainda habitaria em nós
tornar-nos-íamos fascinantes
comeríamos o pão do tempo
e eternamente existiríamos

50
Incógnita

um diabinho empoeirado se esgueirava


entre as pernas das cadeiras
debaixo das camas, à hora do banho

encurralou-se num canto da casa


com esses dois dedos
sem querer, esmaguei-o

morreu, uma pena, sem nenhum esforço

morreu, desgraçado, sem dizer a que veio

51
Noite prenha

frágil é o que faz uma noite


tão relativa e insubstancial
perder-se quando o sol penetra

os cães e os uivos
os segredos e o sono
as fortunas que lhe preenchem

gerados da secura sem amor do crepúsculo

não podem nem ser abortados

52
Retorno

inverta-se a ordem do tempo


apaguem os passos da morte
e a memória caia em descrédito

decresçam os fios de cabelo


expire-se o ar inspirado
e reviva a carne devorada

nem mesmo assim é possível

voltar ao ponto de partida

53
Valsa para a poesia

gira a dança
gira o tempo
gira em curvas
arbitrárias

volta inteira
volta imensa
vai ligeira
volta breve

curvilínea
gira a dança
no espaço
sem sentido

gira a dança
anti-horária
gira o tempo
ao contrário

gira em curvas
desafia
cem mil horas
arbitrárias

gira e paira
volta e pára
pisa em falso
cai desfeita

54
volta inteira
volta imensa
volta breve
volta sempre

gira a dança
gira o tempo
vai e volta
eternamente

55
Um tênue fio de prata
(Janela aberta no tempo)

presos por um tênue fio de prata

as horas e os modos de olhar o mesmo


um rosto no espelho que não conheço
e um respiro descompassado

muitos agoras sem amanhã

sem parapeito
escancarada
uma janela aberta no tempo

56
Sedução

em ti escorro, me derramo e aquieto


murmuras algo feito quente e macio
dá-me teu núcleo noturno e delicado

como os tolos que seduzes


e a cada hora, maldita, bendita,
ora me abandonas e novamente amanhã

se vais, respiro o que restar de teu hálito

espalho em mim um fio de teu suor

57
Gula
(Como a carne)

temor te morde, temor de morte


como a carne, como a vida, como o ser
de temor te como, p’ra não perder-te

58
Transparência

as palavras só ficam claras


quando a morte se lhes avizinha.
mortas, de tão claras, transparecem

59
Olhos ocultos

guardo comigo oculta


uma coleção imensa
de pares de olhos

vejo tudo o que vejo


com quaisquer deles
indistinto é o modo de olhar

deixo que a sorte, o azar,


enfim, o acaso
determine quais vou usar

uns dias sou míope


outros daltônico
outros ainda inteiramente cego

vejo tudo o que vejo


não muda nunca o olhar
ou quem olha, ou o que é olhado

o que muda é a luz


a ilusória impressão
que se guarda das coisas

60
Poema sobre um resto de café frio

ficou a hora tarde


e nos telhados, noite
mais ninguém sabe

no fundo negro uma cidade

o fundo é negro, vejo-me


negrume que me reflete
oculto nele a vontade

e nada com que se compare

61
Um bom andar

vi um passante com belo par


de bons sapatos envernizados
passo macio, um bom andar
mal se notava que eram calçados

era o chão vago, subliminar


tal vão caminho pouco pisado
passo macio, um bom andar
e esse passante despreocupado

já eu fiquei no meu lugar


é-me bastante observar
aonde os passos tem levado
esse passante que é passado

quisera eu ter um belo par


de bons sapatos envernizados

62
Origem

Acostuma-te à lama que te espera!

Augusto dos Anjos


Versos íntimos

ergui com tijolos vermelhos


paredes duras e um telhado
pintei-os inteiramente de branco
com o resto da cal que me foi legado

durante quarenta noites e dias


choveu a chuva da poesia
dessas que levam toda uma vida
como essa mesma que levou a minha

dissolveu as telhas e os tijolos


quatro paredes, telhado, tudo
tornou a ser um rubor embarrado

viver ao léu agora é o que me resta


contar com o dia que ela a mim dissolva
acostumar-me à lama que me espera

63
64

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