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3.

A CONDIÇÃO TRANSPOLÍTICA DA CIBERCULTURA

RUÍNA DO ESTADO E DA POLÍTICA NO APOGEU DA CIVILIZAÇÃO MEDIÁTICA

Lê gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide. Baudelaire(1985, p. 312)1

1. NOTA INTRODUTÓRIA

A empiria processual da transpolítica — a sua fenomenologia típica e imanentemente múltipla (por


mais abstrata que seja) — constitui característica significativa do mundo tecnológico
contemporâneo. Cenário historicamente inédito, com emergência majoritária na segunda metade do
século XX, segue, no entanto, desconsiderado pela teoria social e, em especial, pela teoria da
comunicação. Remanesce, por inteiro, como objeto de reflexão crítica.

Naturalmente, a diversidade e as filigranas de sua manifestação social-histórica - acontecimentos,


situações, fenômenos, processos, tendências — são por demais extensivas para ser teoricamente
integralizadas no momento. Sob tal evidência, este capítulo reúne os elementos teóricos,
epistemológicos e, em menor medida, empíricos da investigação de um dos aspectos provavelmente
mais relevantes da questão: o das relações entre transpolítica e cibercultura. Nesse recorte, o foco
reflexivo recai:

1. sobre as relações de assincronia radical progressiva entre o estatuto atual do Estado e da


política como instituições herdadas do projeto da modernidade (cf. Habermas, 2002;
Lyotard, 1986; 1993) e o modus operandi dromocrático avançado da história hodierna; e,
em perspectiva,
2. sobre as conseqüências para os discursos teleológicos e promocionais que vicejam
justamente por força do mencionado descompasso. Em termos específicos, a investigação
estabelece, ao modo de teses — situadas no nível mais abstrato de uma proposta
epistemológica orientada —, os indicadores argumentativos essenciais sobre a condição
singular do Estado e da política institucionalizada no contexto social-histórico da
dromocracia cibercultural, conforme adiante caracterizada.2 A tarefa de apreensão dessas
relações e do vislumbre de tal condição institucional é — como os próprios conceitos o
pressupõem — saldada em remissão fundamental à questão da velocidade tecnológica (cf.
Virilio, 1984a; 1984b; 1984c; 1995; 1996; 2002; Trivinho, 2001; e, nesta obra, parte J,
capítulos l e 2; e parte II, capítulo 2), há décadas um capital social majoritário (também
considerado adiante) de valo-ração desigual de cidadãos, corporações, Estados,
organizações não-governamentais e mesmo nações inteiras. Para tanto, a conjuntização dos
elementos de base da argumentação assenta-se em três procedimentos basilares, que
constituem, a propósito, as fases temáticas de trabalho: a partir da determinação das
relações de desnível progressivo entre a alta capacidade dromocrática do modus operandi
do parque infotecnológico instituído (rnegainfoburocracia transnacional3 e mercado de

1
"Esgota-se a clepsidra; o abismo está sedento". Tradução de Ivan Junqueira (ibidem, p. 313).
2
Vejam-se, a respeito, também Trivinho (1999, parte l, capitulo V; 2001, pp. 209-227); e, na presente obra,
parte l, capítulos 1 e 2; e parte II, capítulos 2 e 4.
3
A expressão conceitual se refere à instância social, econômica e política (lato sensu) formada pela
totalidade das organizações privadas e instituições estatais, de pequeno a grande porte, responsáveis, direta
consumo de senhas infotécnicas de acesso) e a combalida competência ciberdromológica
das instituições políticas herdadas, o percurso reflexivo pressupõe:
a. a admissão e compreensão do estado de coisas derivado dessa discrepância
dromológica como imanentemente identitário ao fenômeno transpolítico;
b. a determinação e caracterização crítica da dromoinaptidão do Estado e do
imaginário político instituído ante as injunções dinâmicas dessa condição histórica
inédita; e, com isso,
c. a genealogia, contextualização e pressuposta desmistificação dos discursos
ciberufanistas internacionalmente correntes, que, num influxo neo-iluminista
pragmático, utilitário e, não raro, místico, desprovido de autoconsciência histórica e
teórica consistentes acerca do modus operandi da época, apresentam a
"popularização" progressiva de objetos infotecnológicos (por "redução gradativa e
irreversível" de custos e/ou de preços de mercado) e a ciberaculturação em massa
como formas de viabilização ou provisão eficaz de "inclusão digital" — com o
glamour populista de uma "inclusão social" — capaz de reverter, totalmente (em
perspectiva), a regra permanente de exclusão (sistêmica e endêmica) da civilização
tecnológica avançada.

2. TRANSPOLÍTICA
CONCEITO E EMPIRIA PROCESSUAL - ORIGEM, NATUREZA E HORIZONTES

Uma sucinta revisão bibliográfica do conceito de transpolítica foi estabelecida na introdução desta
obra (cf. parte I, capítulo 1). Necessita, com efeito, ser aqui reposta, em novas bases, a título de
sistematização complementar.

As primeiras percepções conceituais do fenômeno foram apresentadas por Virilio (1978; 1984;
1996) e Baudrillard (1983; 1990) no último quarto do século XX. Constituem, evidentemente,
perspectivas muito diferentes em matéria epistemológica e valorativa, embora o uso de significante
idêntico se justificava pelas propriedades empíricas do próprio fenômeno. Para ambos os autores, o
conceito de transpolítica:

1. abarca o cenário transnacional da guerra fria, polarizado entre duas esferas institucionais e
geoestratégicas de poder, tais como reduzidas a seus "centros" de inteligência e comando,
os Estados Unidos e a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas;
2. pressupõe relação inextricável entre desenvolvimento tecnológico-nuclear avançado,
sofisticação do conflito bélico (com a automação da capacidade de ataque e defesa em
tempo real) e terrorismo informacional de Estado;

ou indiretamente, pela produção, comercialização e reciclagem de objetos Infotecnológicos e produtos


ciberculturais, pelo processo extensivo de reescritura cibercultural e pela estabilidade internacional do
cyberspace. Fragmentária e socialmente capilarizada (isto é, desprovida de qualquer centro de comando),
com desenvolvimento e direção inteiramente articulados pelas leis oscilatórias do mercado, essa instância,
suplantou, sub-repticiamente, em matéria de hegemonia histórico-cultural, a velha indústria cultural,
desencadeando, em conseqüência, um deslocamento significativo de poder sociomediático das tecnologias
e redes de massa para as tecnologias e redes interativas (cf. Trivinho, 1999, parte l, capitulo l; 2001, pp. 213-
215).
3. define uma condição aporética da política oficial em escala mundial, no sentido de que,
produzida diretamente pelas duas esferas beligerantes, figurava, perante e para eles, como
construção social-histórica inteiramente autônoma, com vigência e curso impossíveis de
serem prontamente alterados ou solucionados, seja por cada Estado, seja por esforço mútuo;
e,
4. por derivação lógica, designa uma condição estrutural e duradoura de impotência dos
Estados nacionais e do imaginário político institucionalizado, posto que, ao desencadearem
o jogo de conflito por recalcitração de interesses, congelavam, simultaneamente, as
possibilidades de ação racional progressiva (própria ao campo político), restando reféns das
regras desse jogo. Encerrava-se, assim, nessas injunções idiossincráticas, a superação do
político como vetor de produção, organização e transformação (dialética ou não) das
condições sociais de existência humana.

Com efeito, a especificidade da transpolítica, para Baudrillard, residia no fato de, para além do
poder tecnomilitar absoluto que ela implica, vigorar como mera simulação política da guerra de
destruição total. O conflito bélico transpolítico se limitava à lógica binária de uma truculência
simbólica mútua e permanente - o jogo da chantagem imanente às situações de terror, processo
agônico majoritariamente realizado no âmbito sígnico —, cuja evidência era a de jamais ter seu
conteúdo efetivado: a rigor, a culminância destrutiva seria antitética à essência da própria guerra,
posto que inexistiria vencedor.

Essa condição excepcional de neutralização e congelamento bélicos do político, de vácuo de poder


institucional e de fogo em razão do mútuo reescalonamento desse poder ao patamar de aniquilação
máxima e imediata — pressupostos básicos da transpolítica, para Baudrillard —, operava, como
conseqüência irrecorrível, a suspensão do movimento (dialético, no caso) da própria história: no
cenário da racionalidade tecnológico-nuclear, um passo militar adiante em direção ao inimigo
significava ruptura do precário equilíbrio estacionário do terror, condição histórica de guerra então
desfavorável para ambos os beligerantes.

O simulacro da política internacional redundava, para Baudrillard, no hiper-realismo da guerra.4 A


notável resultante desse cenário era a necessidade obsessiva diária de produção de indicadores
(forjados que fossem) e de demonstração veemente de supremacia econômico-financeira,
tecnológica, cultural e militar por parte dos dois modelos de organização social e política.

No todo, o fenômeno transpolítico configurava, para Baudrillard, uma garantia paradoxal e banal de
reprodução do gênero humano sem solução de continuidade. Sem motivos, no entanto, para celebrar
esse cenário, Baudrillard sinaliza, assim, que a potência do político — esta, sim, fórmula evidente
de realização de barbárie — já se corroía tarde e sem deixar saudades.

Diferentemente, para Virilio, a transpolítica configurava ameaça real de aniquilação universal, tal
como jamais imaginada em fases históricas pregressas. Participava e se nutria, como tal, do que o
autor nomeou "guerra pura", processo cujos objetos de disputa política já não eram territórios,
culturas e/ou mercados, pomos de discórdia tradicionais e modernos (no sentido histórico-cultural),

4
De fato, durante a guerra fria, o conflito bélico se processava basicamente - como se sabe -no terreno da
informação, da espionagem, da corrupção, da chantagem e da tortura psicológica.
mas o domínio emergencial e absoluto da velocidade técnica e tecnológica, fonte de poder — vale
enfatizar — tão antiga quanto a epopéia da espécie. A supremacia dromocrática no campo militar,
então reivindicada por ambos os Estados beligerantes, permitia o trabalho estratégico diuturno e
invisível do conflito, então imperceptível aos cidadãos comuns.

A capacidade técnica e tecnológica, instalada em rede interativa nacional e transnacional, para a


iniciativa de ataque nuclear e para a reação defensiva havia chegado ao ponto de subtrair
sumariamente da inteligência estratégica o tempo necessário para a reflexão — duração de que
sempre se nutriu a ação propriamente política — e de se resumir à legitimidade do acionamento
imediato de dispositivos digitais. A contenda nuclear, assim fora de controle do cálculo
convencional (relativamente lento) entre meios e fins, restava inteiramente facultada à incerteza.

Para Virilio, era necessário, pois, politizar a transpolítica, isto é — pelo que se depreende de sua
reflexão —, reposicioná-la, por prudência, na mesa de negociações racionais, próprias das regras
políticas (convencionais ou heterodoxas), para esgotamento dos canais institucionais de
conversação e de entendimento possível, em nome da reversão satisfatória do horizonte de terror.
Em suma, a única alternativa viável, nessas condições, residia, para Virilio, na própria recuperação
do potencial do político, contra-estratégia pacífica que pressupunha a politização permanente da
guerra pura, do seu substrato técnico e tecnológico (a velocidade) e de todos os fatores direta ou
indiretamente vinculados.

Naturalmente, o fenômeno da transpolítica ultrapassa o seu vínculo originário com a guerra fria. Por
certo, o jogo de neutralização pela chantagem nuclear entre os Estados capitalistas do bloco
ocidental e as burocracias socialistas do Leste se rompeu ao final da década de 80 do século
passado, com o desmoronamento encadeado destas últimas e com o conseqüente deslocamento (em
natureza, modus operandi, intensidade e implicações singulares) do eixo básico do conflito bélico
mundial para o embate dos países ocidentais desenvolvidos do hemisfério norte (sob a liderança dos
Estados Unidos), com o terrorismo de milícias étnicas organizadas em rede internacional invisível.
A evidência distintiva da transpo¬lítica pulsa plenamente nesse novo estirão factual, na medida em
que a repentina mudança de referenciais do processo bélico mundial potencializou o coeficiente de
imprevisibilidade da qual se nutrem as suas formas de manifestação.

A constância da transpolítica não se reduz, porém, a sinuosidades de idêntica rota. Seu processo
fenomênico perdura (e, por extensão, a sua temática se convalida, com novos matizes, para o debate
intelectual) porque os seus elementos estruturais — a saber, amplitude internacional, acontecimento
fora de controle, erosão da função pública do Estado e da política instituída, velocidade tecnológica,
violência objetiva (concreta ou simbólica) do arranjamento sociotécnico, conteúdo de terror,
incerteza — constam, nos dias atuais, multiplamente rearticulados e revigorados.

Com essa tônica, o conceito de transpolítica abrange, a rigor, todos os acontecimentos e fatos,
situações e circunstâncias, fenômenos, processos e tendências sociais, econômicos e/ou
tecnológicos, seja duradouros, seja transitórios, sempre de alcance macroestrutural, cuja natureza,
dinâmica e conseqüências escapam, inteira ou parcialmente, à jurisdição das instituições políticas
consolidadas na trajetória de realização do iluminismo francês e do liberalismo inglês nos últimos
séculos; vale dizer, cenários cujo desenvolvimento e consolidação heterodoxa se autolegitimam nos
e a partir dos fluxos auto-regulatórios e oscilantes do mercado das trocas - locus conservador do
investimento social de desejos e intenções em massa -, à revelia inexorável, à sombra indiferente
e/ou às expensas cínicas e não-contabilizadas do potencial de administração, monitoramento e/ou
con¬trole por parte do aparelho de Estado e/ou das regras racionais e discursivas da lógica
pragmática da ação política institucional.5

Nessa perspectiva, o conceito de transpolítica encerra, no contexto deste capítulo, demarcação


social-histórica, tecnocultural e operacional específica: vincula-se exclusivamente ao modus
operandi dromocrático da cibercultura, aqui tomada como nomenclatura definitória de época,
compreendendo, no pormenor, o ciclo social-histórico estruturado como civilização mediática
avançada (cf. Tri-vinho, 1999; 2001, pp. 209-227; parte I, capítulos l e 2; parte II, capítulos 2 e 4; e
parte III, capítulo 2)6. A transpolítica se lastreia, por pressuposto, na onda de esgotamento estrutural
do capitalismo tardio (cf. Mandei, 1985; Habermas, 1980; Beinstein, 2001), em sua fase neoliberal,
informacional globalizada (Póster, 1990; Castells, 2003; Gorz, 2005) e cultural pós-moderna (cf.
Lyotard, 1986; 1993; Kroker e Cook, 1988; Jameson, 1997; Vattimo, 1987; 1990;Trivinho, 2001,
pp. 39-78, 161-174)7, tal como plenamente definida a partir do fim da guerra fria.

3. A CONDIÇÃO TRANSPOLÍTICA DA CIBERCULTURA MODUS OPERANDI DO TERROR


DROMOCRÁTICO DIFUSO

A dinâmica estrutural típica do modo de socialização cibercultural - referenciada nos capítulos


precedentes - pode ser teoricamente explanada em perspectiva sinóptica. Sua complexidade
dromocrática - aquela relativa a um contexto social-histórico imanentemente promanado da
velocidade tecnológica e comunicacional como regime de articulação e modulação da vida humana
— radica numa equação empírica tautológica silenciosamente embutida nos discursos publicitários
pantópicos (corporativos, governamentais e/ou acadêmicos) de promoção da época: o imperativo
histórico da interatividade como procedimento comportamental-padrão e conservador (cf. parte I,
capítulos l e 2, desta obra), que o presente cinicamente consagra (para além de qualquer modismo)
como indicador de progresso em matéria de cultura profissional ou informal, requer de todos os
indivíduos e setores acesso ao domínio privado pleno das senhas infotécnicas de acesso ao e de
participação permanente e efetiva nas relações sociais na cibercultura. A equação de partilha
modelar do mainstream da sociabilidade interativa e do mercado de trabalho virtualizado em
metrópoles, cidades médias abastadas e demais espaços urbanizados com perfil idêntico de

5
Vínculos com processos bélicos não são necessários ou diretos. Podem ser indiretos ou mesmo remotos.
Em que pese a validade desse axioma, é no contexto histórico da cibercultura que o conceito de
transpolítica implica, em sua empina processual, tanto mais a guerra informacional em estágio avançado,
conforme doravante processada através do e mediante o uso do cy-erspace. Valem, nesse tocante, as
sinalizações de Virilio (1999, pp. 127-139) -alarmistas, por certo, mas não sem razão a príorí, em tempos de
imprevisibilidade acentuada da disputa internacional pelo direito à ameaça nuclear - acerca da "bomba
informática" socialmente representada pela interatividade como "processo energético" da rede, epicentro
de um potencial acidente de proporções globais nunca antes imaginado. Uma abordagem critica e mais
detalhada sobre a ligação entre guerra e tecnologias de vigilância e controle foi feita por Bogard (1996).
6
A estipulação dessa relação não responde à intenção restringente a priorí. Visa-se, com ela, garantir bases
teóricas e epistemológicas consistentes para a mobilização critica do conceito de transpolítica.
7
Tais indicações bibliográficas demarcam, no nível dos pressupostos da reflexão - à falta de espaço mais
apropriado e extenso para ela -, os elos teóricos em jogo na contextualização social-histórica e
epistemológica da noção de transpolítica. Materializam, suficientemente, nesse aspecto, o que não pode ser
desdobrado por agora.
desenvolvimento estipula, pois, dois tipos diferentes de acesso, o segundo condicionado ao
primeiro: o domínio do capital infotecnológico (equipamento conectado ao cyberspace, status de
usuário teleinteragente pressuposto) e do capital cognitivo conforme (conjunto satisfatório de
conhecimentos pragmáticos e utilitários sobre linguagens, produtos e redes digitais, língua inglesa
inclusa) determina, em tese, as possibilidades de sintonia com a época e seus horizontes e de
usufruto de oportunidades (nem sempre reais) na esfera tecnológica da produção e na do tempo
livre e de lazer. Os ingredientes da equação antes mencionados, constitutivos da sociossemiose
plena da interatividade (cf. Trivinho, 2001, pp. 175-185 e 209-227; e, nesta obra, parte II, capítulo
2), põem-se, portanto, como capital social [na perspectiva de Bourdieu (1979; 1980)] de permissão
e prerrogativas — um capital cibercultural completo. Em suma, o acesso ao capital social de acesso
constitui a empiria processual típica abrangida pelo conceito de dromoaptidão propriamente
cibercultural (cf. Trivinho, 2001, pp. 219-227; e, nesta obra, parte I, capítulos l e 2; parte II,
capítulos 2 e 4), competência individual e coletiva socialmente gerenciada no e pelo mercado de
trabalho e no e pelo mercado de consumo (por todos os produtos destinados ao lazer digital e
virtual, on-line ou não). Para além disso, a lógica da cibercultura encerra, com efeito, uma inflexão
de monta, cuja gravidade tem sido infelizmente pouco notada ou compreendida: discursos
promocionais da época rezam que o domínio das senhas infotécnicas de acesso precisa se traduzir
efetivamente em posse privada (isto é, vincular-se, sobretudo e diretamente, ao espaço residencial) e
essas senhas devem dispor de potência plena contínua (isto é, viger atualizadas, em compatibilidade
com as últimas versões lançadas pelo setor produtivo da megainfoburocracia transnacional). Se a
exigência social de mantença de senhas infotécnicas no domo já espolia e esgarça, per se, a
dromoaptidão cibercultural própria, esse fato se intensifica exponencialmente quando as senhas
precisam ser sempre plenas, o que pressupõe que o domínio ideal do capital cognitivo seja
consolidado no e a partir do domo. Nesse contexto, a natureza do acesso ao tipo de capital social de
acesso acaba por modular ainda mais — para cima ou para baixo - a escala de inserção da
dromoaptidão própria dos sujeitos teleinteragentes na hierarquia dinâmica da cibercultura. Não
basta, portanto, qualquer tipo de acesso, qualquer objeto infotecnológico (qualquer hardware,
quaisquer softwares e netwares), qualquer capital cognitivo, qualquer dromoaptidão — o
pertencimento ao mainstream predominante depende de uma fila a priori de fatores.

Tal embaraço endógeno suplementar obedece a razões sistémicas. O modus operandi da


cibercultura prevê, como garantia imanente de auto-reprodução social-histórica, a reciclagem
estrutural das senhas infotécnicas de acesso (cf. Trivinho, 1999, parte I, capítulo IV; 2001, pp. 216-
218; e, nesta obra, parte I, capítulo 1; e parte II, capítulo 2): versões vigentes de objeto
infotecnológico (considerado no todo ou em partes) vêem-se sobrepujadas por congéneres
supostamente mais avançadas em matéria de velocidade de processamento e capacidade de
assimilação e armazenamento de dados8, movimento eclipsante que repercute, em retorno, no
estágio conquistado do capital cognitivo e até no alcance atingido de permissibilidade on-line. Essa
sobredeterminação cíclico-retroativa cumpre, obviamente, função impessoal não somente
desqualificadora. Devastação tecnológica programada, baseada em tendências relativamente
calculadas de mercado e que, na ponta da cadeia factual, acaba por se autopropor como legítima e

8
Na última década do século passado, o tempo cíclico médio dessa depreciação sociotécnica era de cerca de
um ano e três meses. Recentemente, especialistas do ramo a estimam - talvez com certo exagero - em algo
próximo de um semestre.
necessária, a reciclagem estrutural se destina a redesenhar integralmente, no transcurso de pouco
tempo, a paisagem do parque digital instituído.9

O núcleo de pulsação dessa lógica sociotécnica — o seu "âmago pulmonar", para usar uma
metáfora problemática, mas validamente sinalizadora — chama-se mais-potência (ibidem), valor
infotécnico cumulativamente suplementar que, incorporado à totalidade ou a partes do objeto
infotecnológico (pressupostos todos os produtos ciberculturais indispensáveis), perfaz (ou
pretensamente perfaz) a imagem da versão mais atual das senhas de acesso. A mais-potência
funciona como moeda sistêmica da cibercultura. Sua proposição industrial cíclica, a sua promoção
publicitária permanente e a demanda por ela no mercado de produtos ciberculturais a transformam,
em escala macrossocial, em dispositivo de provocação de estabilidades transitórias no parque digital
vigente, em compatibilidade com a necessidade de (indução de) desequilíbrios estruturais
intermitentes em nome da sobrevida ampliada, com margens garantidas de segurança, do setor
produtivo da megainfoburocracia transnacional.10 A potência interativa do parque tecnológico
estagia, então, em média estatística, em determinada escala de mais-potência até restar pari passu
comprometida — simbólica, física e socialmente — por senhas infotécnicas de acesso
representativas de mais-potência superior. É a partir desse nível sistêmico de processamento que a
lógica da reciclagem estrutural, de par com os discursos publicitários do ramo, alcança, como
pressão autoritária e sedutora partout, as residências, corporações e setores comerciais, os governos
e as demais organizações, subordinando-os à autocombustão cíclica crescente do capitalismo tardio
em sua fase virtual.

Em especial, o capital social individual conquistado num período vê-se, então, açambarcado pela
exigência sumária de domínio (considerado tanto mais como "posse") de sua variante ulterior e
prevalente. O deslocamento progressivo da mais-potência repercute, por evidente, sobre a
capacidade do próprio acesso à época (o segundo da mencionada equação), sucateando o seu
potencial dromológico de inserção, de partilha e de alcance. Garantias no hic et nunc recobram,
então, o seu sentido fictício original ao terem certo esboroamento adiante. A lógica da reciclagem

9
Por certo, o processo preserva algo de fundamentalmente iluminista: realiza-se em nome do "progresso".
A diferença, com efeito, é significativa: ele não é protagonizado ou imposto por nenhum discurso especifico,
de caráter legitimatório. Trata-se, antes, do modus operandi regulatório do próprio sistema. Qualquer forma
de produção ideológica (no sentido clássico da expressão) consta, na origem, imanentemente incorporada
ao "metabolismo" infotecnológico do modo de produção vigente, não deixando de ser dela, na verdade,
mera derivação simbólica instrumental. Não por outro motivo, toda e qualquer produção social discursiva
tem, nesse contexto, tão-somente função publicitária e, como tal, imanentemente parasitária do
movimento e da lógica da cibercultura - mera embalagem de adorno que torna os pretensos signos do
futuro tecnológico antecipadamente glamorosos e convidativos. Sobre essa indistinçào entre ideologia e
necessidade estrutural do modo de produção e de vida, vejam-se Adorno e Horkheimer (1973, pp. 184-205),
Marcuse (1967, pp. 31-32) e Habermas (1980, 2001). Lembre-se que, pressupondo o hipostasiamento e a
obliteração do iluminismo e do liberalismo doravante em estágio tardio de decadência, essa indistinção
aponta para circunstância histórica de maior gravidade: aprofunda e, ao mesmo tempo, denega a evidência
ideológica da forma social atual da vida humana, instituindo, como fato naturalizado, todo tipo de tendência
social, política, econômica, tecnológica e moral. Que parcelas significativas do establishment acadêmico
referendem, desavisadamente, como se fosse algo positivo, o desaparecimento das ideologias constitui,
mais que viço patético de desatenção ao mainstream contemporâneo, tendência tão sinistra quanto a do
fenômeno analisado.
10
Segurança de que o Estado obviamente se nutre, via tributação especifica. (Veja-se nota 16.)
estrutural tem função de máquina de guerra: ao triturar direitos, pisoteia, de roldão, o (valor cultural
epocal do) próprio cidadão, em sua forma interativa; substancialmente aética, atenta, nesse sentido,
contra os próprios consumido¬res, que financiam, a rigor, o desenvolvimento das indústrias do
ramo, e o fazem, de toda forma e para todos os efeitos, de maneira relativamente pacífica (com
insatisfação, porventura, mas sem protesto ou revolta), como protocolo de relação com a época
quase nada problemático, "natural", em crença obtusa e caucionaria num pacto com supostos signos
do futuro.

Não por outro motivo, a pressão empírica e publicitária do contexto é sutilmente implacável em
suas recomendações de praxe ao prever, no núcleo do capital social conforme, no que concerne ao
domínio privado pleno padrão, a necessidade deste outro elemento basilar: o acompanhamento
satisfatório (em geral, não-seqüencial, em sentido estrito) da lógica da reciclagem estrutural da
mais-potência das senhas infotécnicas de acesso. Esse apontamento atualiza e reescalona, por
pressuposto, a explanação (anterior) a respeito da lógica da cibercultura. Em suma, a dromoaptidão
condecorada pelo mainstream digital é a que equivale àquele domínio (posse) das senhas
infotécnicas próxima ou precisamente situado no ponto extremo da esteira agontstico-restaurativa
da mais-potência11; aquela (dromoaptidão) capaz de "suportar" relativamente bem os efeitos
colaterais propositais de exclusão característicos da lógica da reciclagem estrutural, que se dispõe
aberta à sua reciclagem própria, ao seu deslocamento vertical na ordem da mais-potência; enfim,
aquela que traduz, no trato pragmático com as senhas, assimilação e mantença de capital social
intermitentemente inflado de "novo" valor. Os demais níveis de ', dromoaptidão são objeto de
tolerância operacional necessária, justamente porque fadados ao definhamento.

Em linhas gerais, sintetizam-se na sucinta reflexão acima os elementos epistemológicos e empíricos


fundamentais implicados na noção de dromocracia cibercultural, na verdade a designação mais
apropriada para a era em curso. Perfaz, nessa medida e com efeito, mais que a dinâmica estrutural
de seu modo interativo de socialização, a sua autopoiesis típica, intrínseca e intocável, em
espelhamento fiel ao ou, melhor, por refração identitária do desenvolvimento social e, sobretudo, do
princípio da velocidade ligado ao cyberspace, vórtice matricial descentrado de macrocentripetação
referencial em tempo real para todos os contextos glocais interativos socialmente fractalizados (isto
é, igualmente descentrados em sua natureza híbrida, para além do global e do local) (cf. parte III,
capítulos l e 2, desta obra), esteio fundamental do modo informacional de produção e reprodução
transnacional e longeva da vida humana no capitalismo tardio em sua fase cibercultural. Cúmplice
secreto da recente trajetória histórica das democracias formais (em seu modelo republicano ou
monárquico, ocidental ou oriental), o complexo modus operandi da dromocracia cibercultural é, em
essência, transpolítico, na acepção anteriormente consolidada.

A invisibilidade operacional desse movediço "edifício" sociotecnológico — com a licença de outra


metáfora — guarda mais facilidade de encerrar e autolegitimar socialmente um terror pulverizado e
irresolúvel, sem fonte específica, sem rosto, que ataca sem ataque e, por isso, segue mais fortemente
sem ser combatido ou impermeável à resistência ativa; um processo civilizatório que, para além das
exigências convencionais de qualificação cognitiva e especializada para a vivência no contexto de

11
Os discursos de promoção da época atribuem, tanto mais no âmbito informático, valor de
Éïfaíus ao que é "de ponta". A expressão, comum em outros setores tecnológicos, preenche-: se, no caso, de
sentido literal.
qualquer espaço urbano, faz sobrepender, nos ombros de todos, via pressão autóctone de fatos e
discursos de época, a exigência de acesso individualizado à condição de domínio privado pleno das
senhas de acesso (incluso o acompanhamento da roda-viva da mais-potência) que, ao mesmo|
tempo, subtrai, a olhos vistos, a possibilidade de usufruto desse ditame ao não condicionar,
socialmente, pelo imaginário político vigente e, sobretudo, pelos seus instrumentos executivos e
normativos (as instituições herdadas da modernidade política), a distribuição equitativa dos acessos
previstos - esse processo civilizatório não vigora senão como fascismo cibertecnológico
hipostasiado e obliterado nas relações sociais.12 Não por outro motivo, a dromocracia cibercultural
vigora como modo peculiar de arranjamento contemporâneo da violência da técnica (cf. parte I,
capítulos l e 2; e parte II, capítulo 2, desta obra).

Normalizada, como processo sine qua non, nos e pelos "mecanismos de mercado", a manifestação
fenomênica desse terror dromocrático-transpolítico, com efeito, encontra-se — é forçoso admiti-lo
—, em geral, absurdamente bem assimilada (por quase "homeostase", a bem dizer) pelos milhões de
consumidores, categorias profissionais, corporações, governos e demais setores sociais. Os
discursos promocionais correntes, por sua vez, burilam, adornam e fecham, nesse aspecto, o ciclo
de suavizarão necessária: o terror cibercultural, doravante a própria estrutura dromológica do
mundo vivido, tornou-se tão terno que se fez íntimo e sutil, em que pese o caráter socialmente
predatório de suas reverberações. Para os efeitos de praxe, vige uma inversão banal de valores: tudo
se processa como se não ocorresse violência alguma e, pior, como se falar em terror ou fascismo do
arranjamento técnico sofisticado fosse extravagância e insensatez da crítica teórica às tendências de
época.

Como não poderia deixar de ser, essas injunções — modus operandi dromocrático, transpolítica,
invisibilidade operacional, terror objetivado e auto-anulado — sobredeterminam, rearticulam e
reescalonam, evidentemente, os "esquemas" sociais convencionais de integração, segregação e
banimento in loco (de indivíduos, empresas e demais instâncias). Na cibercultura, o postulado
maniqueísta da inclusão/exclusão consta inteiramente implodido em favor de uma dinâmica
matizada, híbrida, que se lastreia e se perfila numa complexa e oscilatória hierarquia (com várias
filigranas em sua graduação de entremeio) de tipos de acesso ao capital social propriamente
dromocrático. Se, sobretudo nos países subdesenvolvidos, a prerrogativa de mero acesso às senhas
infotécnicas não é dada a todos; se, no caso da parcela aí beneficiada pelas oportunidades
desigualmente distribuídas, a preservação e otimização de tais senhas no domo ou no escritório

12
A natureza desse fascismo difere, pois, fundamentalmente, do tipo tecnológico de fascismo exposto por
Kroker e Weinstein (1994). Para eles, o fascismo da cibercultura tem um protagonista: a classe virtual.
Predatória, ela destrói os espaços democráticos em nome do lucro e da expansão do virtual. Essa
característica justifica a propensão retro desse fascismo - retrofascismo. Sob a égide da classe virtual, o
contexto de vida é, de fato, tortura sutil: a violência simbólica do virtual sacrifica seres humanos ao excluir
quem não domina as idiossincrasias das linguagens e procedimentos informáticos. O fascismo original,
fisicamente repressor, cede lugar a um fascismo paradoxal, auto-escamoteador, de tipo suave- o fascismo
liberal. Por outro ângulo, porém, com foco nos contingentes com acesso aos fatores ; tecnológicos da
cibercultura, compreende-se melhor aquilo para o que Kroker e Weinstein : chamam a atenção: a "ideologia
do virtual" - a da mencionada classe - indexa sorrateiramente as práticas sociais, confina o corpo à fronteira
eletrônica e subordina a subjetividade ao écran, a fim de, no todo, "convidá-la" a encarar o mundo por meio
de determinadas molduras, todas reduzidas ao Windows, tomado "consciência telemática elevada" e como
"sistema operacional da cultura".
próprio também não é dada a todos; se, nesse patamar, no caso do estrato socialmente favorecido, a
possibilidade equitativa de acompanhamento permanente do rastro cíclico da mais-potência não é,
per se, evidente; enfim, se a dromoaptidão propriamente cibercultural é objeto de tal domínio
granulado e ra¬refeito, internamente diferenciado (quanto mais se desce a pirâmide dromocrático-
cibercultural), tem-se, pois, dado um drama cultural surdo e concretamente difuso que não poderia
ser senão identitário ao terror ex-nihilo, proveniente como que do nada e processado como tal, ao
calor de vozes uníssonas do mercado de trabalho e de lazer em torno da cantilena teleológica
corporativa, estatal e não-governamental do domínio privado pleno das senhas de acesso. A
segregação e a expulsão in loco dromocrático-cibercultural e transpolítica — no fundo, a grande
regra, denegada até mesmo pelo pensamento social responsável — patenteia a questão da exclusão
como processo não somente mais problemático (e isso não porque, sempre no plural encerre
modalidades cumuladas) como também inalcançável.

Por motivos lógicos — em coerência com os últimos duzentos anos de influência iluminista e
liberal —, é nesse contexto que se encontra compulsoriamente desencadeada a necessidade
premente de ciberalfabetização em massa, em escala crescente. Esse requisito responde a quatro
imperativos, que totalizam as dimensões — das pragmáticas às mais abstratas — do processo
civilizatório em curso: do ponto de vista coletivo e dos destinos individuais, ele (o requisito) se
impõe para a formação e requalificação da força de trabalho necessária e dos quadros suficientes de
consumidores em compatibilidade com os desafios cognitivos e prático-operacionais da esfera da
produção e do mercado de lazer, articulados por tecnologias digitais segundo pressupostos
dromocráticos; cio ponto de vista econômico e pragmático, (ele se põe) para, de modo parelho,
prover margens de garantia para o desenvolvimento da megainfoburocracia transnacional,
especialmente mediante recuperação superavitária do investimento feito no deslocamento contínuo
da mais-potência das senhas infotécnicas de acesso13; do ponto de vista cultural e educacional, para

13
Note-se que o processo inteiro é marcado por uma centrifugação endógena a priorí, em bases
consistentes de segurança: inexiste, da parte da megainfoburocracia transnacional - setor básico e
altamente rentável do tardocapitalismo cibernético -, intenção real de inclusão de contingentes cada vez
mais amplos no universo das senhas infotécnicas e do cyberspace, sobretudo naquele patamar em que se
encontra a mais-potência. Tal tendência só envolve o ramo governamental e não-governamental dessa
instância tecnocrática (vejam-se as notas 3 e 16) quando a indiferença cínica em relação a dramas sociais é
maior que a própria responsabilidade política e ética do Estado. A ingenuidade teórica soa mais intensa
quando não se leva em consideração que a megainfoburocracia consegue se manter sob os auspícios do
consumo de poucos e, bem assim, movimentar, a partir daí, a máquina inteira, o mundo inteiro, por
pressões pantópicas invisíveis, mas eficazes e continuas, que atingem a maioria dos setores da vida humana,
em escala nacional e internacional, e provêm, especialmente no nível das nações, o modelo "necessário" de
desenvolvimento para espelhamento generalizado. Há, portanto, uma contradição endêmica insolúvel
entre, por um lado, necessidades históricas motivadas por pressões sociais por mais-qualificação,
provenientes seja do mercado de trabalho informatizado, seja do de lazer digital, e, por outro, a relativa (e
sempre oscilante) suficiência econômico-financeira da instância tecnocrática responsável pela proposição e
reprodução comercial de objetos e produtos ciberculturais, redes digitais e soluções interativas. Os dois
fatores, que representam interesses objetivados, apontam para direções inteiramente opostas. Dada a
natureza paradoxal desse processo - que combina centrifugação endógena compulsória (segregação e
exclusão), "coação" descentrada e sutil em direção aos objetos e procedimentos ciberculturais mais-
potentes (instaurada como "convite" de contexto, que enleva, que "arrasta") e ampla compensação
financeira suficiente (hiperlucratividade via consumo minimal) -, e uma vez que a megainfoburocracia, pelos
fundamentos do mercado, não dispõe, a rigor, de meios para resolver, por si mesma (tampouco o deseja), a
a formação das gerações presentes e vindouras em identidade ao modelo-padrão de ente humano
glocal teleinteragente, doravante requerido; e, do ponto de vista histórico, para otimizar as bases
tecnocráticas específicas de reprodução social-histórica da civilização mediática avançada,
especialmente através do acionamento utilitário diuturno do universo on-line instituído.

A natureza do fenômeno dromocrático-cibercultural transcende, obviamente, os propósitos neo-


iluministas (sempre bem intencionados) de provisão de condições sociais para o acesso em ampla
escala às novas linguagens de acesso. A magnitude do processo demonstra, per se, o conteúdo
ingênuo (e até anedótico) de tal intenção.

A ciberalfabetização em massa equivale, literalmente, a uma sobreaculturação, isto é, a uma


aculturação tecnodromocrática cumulativa à e, não raro, para além da aculturação convencional
própria da socialização primária (no sistema familiar, religioso e vicinal) e complementar (do
sistema escolar), necessária à "negociação" com os modelos de sociabilidade e de moral vigentes.
Essa sobreposição pretensamente requalificatória expõe bem a proporção daquilo em que radica o
próprio processo civilizatório mediático avançado dos indivíduos, corporações, governos e demais
setores, um processo tecnológico e antropológico longitudinal, sem centro de comando e hipertélico
[sem finalidade, na acepção peculiar de Baudrillard (1976; 1983)], destinado a civilizar corpos,
mentes e estruturas sociais para a dromocracia cibercultural, em prol da perpetuação desta como
época histórica.14

4. RUÍNAS INSTITUCIONAIS

ESTADO E POLÍTICA NA DROMOCRACIA CIBERCULTURAL

necessidade social de ciberalfabetização em massa doravante exigida pela esfera de trabalho e de lazer, o
Estado, em sua clássica propensão regulatória residual segundo princípios keynesianos, vê-se então
compelido (ou "forçado") a intervir mediante políticas públicas especificas, sem que, para tanto, esteja
consistentemente preparado (do ponto de vista da flexibilidade institucional, da "modernização"
infotecnológica e da visão social-histórica prospectiva). (A necessidade de freqüentes parcerias com
organizações da sociedade civil, com base em relativa ou total delegação de poder, para a criação,
desenvolvimento e concretização de projetos na área social da cibercultura, não demonstra senão, em certa
medida, a preponderância do modelo procedimental neoliberal camuflada no próprio resíduo keynesiano
mencionado.) Não é, pois, por acaso, que remanesce a utilidade estratégica do discurso iluminista, sempre
publicitariamente solene em sua tônica "inclusiva": o Estado preserva esse discurso como oportuno recurso
de rescaldo a velhas "soluções" para o mencionado drama social e, assim, consegue "escapar" da cilada
histórica que o põe em berlinda fatal, como se, ao menos, estivesse realizando a sua parte. O cenário
político oficial próprio da res da cibercultura é exemplar nesse aspecto. A apreensão histórica das
microcontradições sociais atuais, em cujo modus operandi vigoram as tecnologias e redes digitais -
apreensão norteada pêlos princípios da sododromologia fenomenológica -, testemunha um Intimo liame
entre cibercultura como categoria de , época e simulação do iluminismo estatal em política. A assincronia
entre forças produtivas altamente sofisticadas e limitação intrínseca do imaginário político instituído explica
(mas não justifica), em linhas gerais, essa sobrevida histórica do iluminismo como logro dissuasivo e cínico -
vale dizer, como antiiluminismo -, em sua enésima manifestação como falácia tardia. c A necessidade dessa
simulação institucional não é senão, vis-à-vis, sintoma do descompasso;' dromocrático (a ser) abordado no
tópico seguinte.
14
No fundo, o fenômeno é - não se pode deixar de reconhecê-lo - amplo demais para ser, por ora,
completamente apanhado pela razão cientifica, e isto já sem contabilizar as conseqüências infindas que
projeta no horizonte.
Esse cenário social-histórico transpolítico reescreve, evidentemente, a condição do Estado moderno,
legado pela tradição cio iluminismo e do liberalismo. A manterem-se as tendências correntes, ao
Estado não calha outro horizonte senão o estranhamento e degredo diários (propositais ou
involuntários) de seus próprios desígnios históricos e institucionais. A evidência dessa intempérie
paradoxal pulsa no social em virtude da impossibilidade elou incapacidade de o Estado gestar e
implementar políticas macroeconômicas consistentes de distribuição equitativa do capital social
exigido, na modalidade da dromoaptidão propriamente cibercultural, mediante condicionamento
programado de margens crescentes de acesso privado; individualizado e pleno às senhas
infotécnicas de acesso, em estrita consonância com as necessidades social-históricas (e ditames
autopromocionais da época) de ciberalfabetização massificada e permanente, compatível, por seu
turno, com a lógica da reciclagem estrutural e tal como demandada pela esfera da produção e do
mercado de lazer digital, vale dizer, políticas públicas eficazes, de caráter adequadamente
compensatório e/ou corretivo e de validade extensiva, capazes de aplacar ou estancar os efeitos
espirais duradouros do terror estrutural obliterado do modus operandi da dromocracia cibercultural.

O veredicto factual comparativo da época não poderia ser menos peremptório, no quadro desta
hipótese histórica implacável: a ruína mais acabada e incontornável do Estado coincide com a
emergência irreversível da transpolítica dos fenômenos tecnológicos atuais, arranjados socialmente
na forma-fluxo da comunicação em tempo real como vetor de articulação e modulação da vida
humana. A matéria envolve, com efeito, complicadores de maior peso. A sina do Estado moderno
não é senão o sintoma de uma falência institucional encadeada que atinge, para além da política
stricto sensu (em natureza, imaginário e alcance), o chamado "terceiro setor", formado por ONGs e
demais organizações sociais (fundações culturais e educacionais, centros de pesquisa, entidades
religiosas, empresas de comunicação, e assim por diante).15

Essa corrosão em cadeia radica em motivos sistêmicos e pode ser apreendida em duas vertentes
explicativas e conexas, conforme segue:

1. As idiossincrasias historicamente inéditas da civilização mediática avançada incluem —


conforme sinalizado na nota introdutória — uma contradição absoluta, não dialética, entre, por um
lado, a natureza, o funcionamento e a eficiência do universo infotecnológico vigente, regido pelos
princípios mercadológicos e financeiros do setor produtivo da megainfoburocracia transnacional e,
por outro, o modo de gestação, o diâmetro de alcance, a durabilidade e a eficácia das políticas
públicas do Estado e de seus organismos multilaterais de partilha, destinadas a contrapesar as
injunções e saldar os dilemas do contexto; em outras palavras, (incluem) um desnivelamento
vultoso entre a capacidade operacional; de produção de reverberações e repercussões mediante
indução de deslocamentos infotecnológicos correntes (lógica da mais-potência) por parte do capital
e a capacidade estratégica e administrativa de acompanhamento institucional adequado do
funcionamento, da significação social-histórica e dos rumos mediatos dessas reverberações e
repercussões.16 O processo envolve, fundamentalmente, uma distinção intransponível de

15
Óbvia e infelizmente, a dimensão de gravidade desse contexto se torna mais inimaginável quanto mais se
suspende - como sói acontecer - a devida reflexão epistemológica e critica, de filigrana, acerca da lógica
idiossincrática da cibercultura.
16
Essa asserção subsiste mesmo que o Estado e a política instituída também participem, de maneira não
necessariamente harmoniosa, da megainfoburocracia transnacional (cf. nota 3), seja como instância
velocidades, que representa, no fundo, um conflito histórico seminal de modelos dromológicos de
desempenho, de tipos e intensidades de dromoaptidão operacional e instrumental (agora tomada no
sentido mais extensivo, não propriamente ligada às senhas infotécnicas de acesso). A potência
dromocrática do modus operandi cibercultural é — ou, ao menos, tem se mostrado —, de fato, bem
mais elevada que a competência dromológica conjunta do Estado, da política instituída e das demais
instâncias que lhe dão retaguarda, na qualidade de gestores, propositores, empreendedores e/ou
gerenciadores no âmbito dos "negócios digitais". A resultante das implicações das tecnologias
digitais no social ultrapassa o imaginário mapeador, propositivo e administrativo das instituições
herdadas. A lógica da cibercultura zomba do Estado e da política — deve-se registrá-lo, se se
quiser, numa metáfora expressiva. Essa discrepância executiva e acintosa de desempenhos reflete
um descompasso dromocrático de temporalidades. É como se o Estado moderno e a política
instituída pertencessem à época essencialmente distinta da dromocracia cibercultural17; como se, no
conjunto, o imaginário político instituído, na totalidade de seus recursos disponíveis de inteligência
estratégica e retaguarda organizativa e operacional, não seguisse o mesmo calendário do modus
operandi digital e de suas reverberações problemáticas no modus vivendi hodierno. Esse abismo
sistémico obliterado se alarga e se aprofunda ciclicamente com a pressão sem rosto da lógica da
reciclagem estrutural (cf. item seguinte), vale frisar, com o movimento sociotécnico progressivo da
mais-potência no tecido binário da dromocracia cibercultural. Não por acaso, esse abismo se põe,
mais propriamente, como um crash diuturno e silencioso no coração da época.

Do ponto de vista metodológico, importa pouco, a rigor, qualquer apreensão de fundamento ou


valoração de "substância" dos dois pólos do processo, na forma da alegação de que a razão deste,
por exemplo, está no fato de o Estado e a política instituída - seculares, burocratizados,
espetacularizados, não raro auto-referenciais e lentos (mesmo que doravante em rede), com tônica
na vigilância e no controle racionalizados (cf. Weber, 1971; 1994, pp. 517-580; Poulantzas, 1977;
Marcuse, 1967; Kelsen, 2000; Bobbio e Bovero, 1994; Wacquant, 2001; Debray, 1994;
Schwartzenberg, [1977]; Castells, 2002) - serem essencialmente dromoinaptos18; ou no fato de o
capital próprio do escalão produtivo da megainfoburocracia ser, pelo contrário, essencialmente ágil,
arrojado, mutante, aberto ao mundo e focado na inovação constante, com inteligência estratégica
maturada na necessidade diuturna de sobrevivência e expansão no reino global e altamente flutuante
do valor de troca digital; ou, ainda, se se quiser, no fato de a dromoaptidão da própria tecnologia,

regulatória que lhe confere legitimidade stricto sensu, seja como (co-)desenvolvedores de hardwares,
softwares e netwares e/ou gerenciadores de sistemas e redes de informação, seja ainda como parceiros em
projetos sociais, geralmente de "inclusão digital". Veja-se, a esse respeito, Trivinho (1999, parte l, capitulo I).
17
0 argumento, se não inteiramente novo e/ou não evidente pene, vale, sem dúvida, como hipótese
confiável e veraz.
18
Tese que, a rigor, constitui, do ponto de vista histórico, enorme equivoco, conforme o demonstra Virilio
(1996), em seu Vítese e polítique (original de 1977). Como se sabe, o Estado, em nome de sua
autopreservação, granjeou, de fato - em seu arranjamento imperial, calcado em forças armadas organizadas
e nômades -, largo período de glória dromocrática, cujos traços (já amplamente aplacados) se preservam
(setorialmente) otimizados no presente, sob os auspícios da racionalidade tecnocientífica a serviço do
campo bélico. ; Esse sofisticado poderio militar - poder veloz de morte em massa jamais visto em etapas
históricas pregressas - convive, paradoxalmente, com a dromoinaptidão estrutural crônica do próprio Estado
em relação a infortúnios e desafios tecnoculturais emergentes na sociedade civil contemporânea. Conforme
lembra Virilio na mesma obra acima, a dromocracia se liga, umbilicalmente, à guerra, não à realização da
igualdade e da solidariedade entre os cidadãos.
considerada como objeto-processo autocrático, com "vida", "gênio" e "desejo" próprios e que se
reproduz de modo hipertélico ao calor dos imperativos e tendências de mercado — conforme as
irônicas metáforas de Baudrillard (1976; 1983) e Sfez (1994) -, evidenciar, per se, a dromoinaptidão
do aparato institucional herdado da modernidade. Embora as duas últimas hipóteses sejam, de
longe, as corretas (a terceira menos que a segunda), importa aqui, antes de tudo, apreender e
demonstrar, pelo prisma da categoria da velocidade — vale dizer, mediante leitura
sociodromológica crítica do modus operandi da cibercultura —, o resultado em bloco das
repercussões da mencionada discrepância visceral de desempenhos e de eficácia em termos de ruína
da função pública do Estado, da política instituída, das ONGs c das demais organizações,
pressupondo, nessa esteira, as respectivas conseqüências na grade de discursos ciberufanistas
internacionalmente vigentes, calcados ou não na utopia neo-iluminista da "inclusão digital".

2. Esses apontamentos merecem complementação pormenorizada, porquanto implicam, em retorno,


sério impacto na necessidade social-histórica de ciberalfabetização em massa. Na medida em que o
descompasso entre a construção dromocrática aleatória do mundo cibercultural, com as injunções
idiossincráticas anteriormente dissecadas, e a capacidade de resposta consistente por parte do
Estado e da política instituída é flexionado pela lógica da reciclagem da mais-potência, as políticas
públicas do Estado e/ou os projetos sociais de "inclusão digital" de ONGs e congêneres (de alcance
nacional, regional ou local) voltados para a viabilização ou provisão de acesso ao domínio (tanto
mais pri¬vado e pleno quanto possível) das senhas infotécnicas ou, em particular, ao capital
cognitivo conforme sem compromisso com a posse objetal privada e individual (conforme
exclusiva¬mente previsto no conceito de ciberalfabetização em massa) -numa palavra, voltados
para o condicionamento social extensi¬vo da "aquisição" da dromoaptidão interativa — encontram-
se fadados ao insucesso relativo recorrente a médio prazo. Em batalha sob condições sistêmicas de
desequilíbrio dromológico a priori, as políticas e projetos implementados hoje, plenamente válidos e
necessários de partida, caem comprometidos na seqüência, na medida em que — conforme antes
visto — os seus resultados ficam prejudicados a cada par de rotações na escala da mais-potência,
para renovação dos parques tecnológicos nacionais e dinamização da economia global. Em termos
empíricos, a transmissão social do conhecimento sobre linguagens informáticas vê-se erodida num
par de anos sempre que o setor produtivo e comercial da megainfoburocracia transnacional e o
mercado comungam em prol desse deslocamento peculiar; recursos cognitivos socialmente
disponíveis e pedagogicamente providos hoje perdem, no todo ou em parte, função e utilidade na
seqüência. A lógica da reciclagem estrutural da mais-potência, ao flexionar os conhecidos esquemas
endógenos de segregação próprios do capitalismo tardio — esquemas sobre os quais se ergue o
edifício da dromocracia cibercultural —, responde fundamentalmente pelo princípio epocal da
exclusão como regra (cf. Trivinho, 1999, parte I, capítulo VIII; nesta obra, parte I, capítulo 2; e
parte II, capítulo 2).

Em tal cenário, a ciberalfabetização em massa, em particular, na qualidade de dramático desafio


social-histórico e político contemporâneo e conforme propalado e legitimamente reivindicado pelos
discursos neo-utópicos correntes, resulta ser, obviamente, no estrito rigor do termo, missão histórica
impraticável. Para além de qualquer pessimismo — a ser sempre, aliás, a priori, descartado na
"cozinha" epistemológica da reflexão teórica —, a impossibilidade intrínseca (do ponto de vista
histórico, político e técnico) desse mister não demonstra senão o equívoco falacioso de todas as
intenções teleológicas politicamente carretas (agora reescalonadas para o contexto da cibercultura e
do cyberspace) em favor da "inclusão digital" como forma de desexclusão social total, seja por via
da facilitação do crédito pessoal para a aquisição de "equipamentos populares" com "softwares de
patente"19, seja por via da promoção ampliada de softwares de "código aberto" (chamados "livres"
por precioso equívoco).

Não é senão igualmente óbvio que esse modus operandi sistêmico sucateie o que é tradicional e
estacionário em matéria política e administrativa de solução para problemas sociais. Numa palavra,
a dromocracia cibercultural escapa, a rigor e no todo, à herança institucional, muito embora a ela se
veja presa por injunções jurídicas setoriais e pela necessidade de parcerias oportunas. Nessa
perspectiva, se a política instituída se autodesvela em seu decadente status de espectadora
parasitária da transpolítica da dromocracia cibercultural, o Estado, na condição de refém e anexo
dos movimentos espirais e hipertélicos do fenômeno digital, contabiliza, por conseguinte, mais um
respiro agônico (entre tantas mortes) de sua função pública como sujeito histórico.20 Confirmando,
pois, o substrato da própria noção de transpolítica, o modus operandi dromocrático-cibercultural
prescinde de solução operacional completa e definitiva, mesmo a longo prazo. A contradição
endêmica e aporética entre a potência dromocrática de sofisticação cíclica do universo
infotecnológico vigente e a potência dromológica relativamente extática das instituições políticas
modernas constitui flexão estrutural sem possibilidade de redenção histórica.21 Somente uma
mitigação sazonal — mesmo assim tímida e precária, com avanços sob retrocessos certos — é,
nesse terreno, avistável no horizonte.22 Do que se conclui: a questão do acesso na dromocracia

19
O programa "Computador para Todos", desencadeado pelo governo brasileiro em 2005, é um exemplo
populista híbrido das duas alternativas. O projeto, que no fundo se destina a alargar as margens de
informatização e ciberespacialização das residências, corporações e demais organizações no território
nacional, prevê vendas de equipamentos com sistema operacional de "código aberto" (Linux, em versão
portuguesa, com 27 aplicativos) ao preço final à vista de R$ 1.255,00 ou em 25 parcelas (!) de R$ 69,90
(alcançando, neste caso, o total de RS 1.747,00). (Empiria extensiva do produto: processador Intel Celeron
0315,40 Gb, 128 Mb RAM, gravador de CD, monitor de 15", teclado ABNT e conexão com a internet.).
20
Já que a política, como representação social-histórica do principio greco-renascentista do humano como
medida de todas as coisas, deixou há muito de ter controle sobre o desenvolvimento social da técnica, o
Estado, como representação simbólica da política institucionalizada, não pode, sob pena de fracasso
continuo, arvorar-se em senhor do desdobramento do fenômeno tecnológico regido pelo mercado.
21
Se a condição do Estado escapa, nesse aspecto, até a ele mesmo, ao não se configurar (ela) como questão
política justamente por transcendê-lo em natureza devido ao próprio contexto transpolítico, vê-se, pois,
quão pouco importa, para os intentos deste capitulo, especificar o modelo de Estado em jogo - se
teocrático, monárquico (puro), monárquico/republicano parlamentarista, monárquico/republicano
presidencialista, socialdemocrata, socialista ou comunista, para citar os principais. Trata-se, antes e no todo,
do Estado moderno, de tônica industrial ou pós-industrial [há pouco tido como de bem-estar social (cf.
Marcuse, 1967)], aqui considerado independentemente de seu hemisfério geográfico de referência. A
perspectiva sociodromológica da condição social de calamidade em escala internacional da cibercultura, na
medida em que permite a apreensão, em registro social-histórico e antropológico, do pomo nevrálgico que
matiza, em geral, o estatuto do Estado em seu próprio environment, pode dispensar tais apontamentos
empíricos de pormenor, sem prejuízo para a checagem das hipóteses teóricas de trabalho e, sobretudo, para
a consolidação consistente das teses e conclusões de processo.
22
Dispensável registrar, em complemento à nota anterior, que a presente obra não pretende restaurar (ou
fazer restaurar) qualquer potência controladora do Estado e das demais instituições nos domínios da
cibercultura. A tese da impossibilidade de desenlace do desnível dromo-lógico apontado dispensa ilações
nesse sentido. Trata-se aqui, simplesmente, de reconhecer o estágio atual da dinâmica dos processos
cibercultural — vale frisar, o acesso ao domínio privado pleno às senhas infotécnicas de acesso —
não constitui, em sua natureza, problema propriamente político: ela é, no fundo, transpolítica. Tanto
mais assim, na vacuidade institucional apontada e na intempérie das esperanças de praxe, o
fenômeno transpolítico, nuançado pelo terror cultural do imperativo interativo, obtém sinal verde
para prosperar sem fim.

Os registros precedentes totalizam e atualizam as sinalizações empíricas e epistemológicas basilares


da condição transpolítica da dromocracia cibercultural (que prevê, intrinsecamente, o cenário de
falência das instituições sociais vigentes) — tese que se vem defendendo em diversos fóruns de
debates, dentro e fora da universidade.

Os apontamentos não revelam senão a validade de uma hipótese problemática e arriscada, mas
amplamente instrutiva, especialmente para o movimento çiberufanista internacional: em vez de se
supor necessário ou inevitável o trabalho (não pouco obsessivo) de reinvenção do imaginário
político estabelecido e da potência do Estado para lhe conferir os requintes dromoaptos faltantes, é
necessário reco¬nhecer, antes e em detalhes, a profusa manifestação fenomênica da transpolítica
cibercultural como forma de prudência teórico-epistemológica e político-estratégica contra toda
tomada de posição eventualmente positivista, funcionalista e/ou pragmática, não raro precipitada e
ingênua, diante da violência tecnológica invisível da mutação antropológica em curso.

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4. ESTÉTICA E CIBERCULTURA

ARTE NO CONTEXTO DA SEGREGAÇÃO DROMOCRÁTICA AVANÇADA

A MARCA DE UMA MORDIDA em lugar algum.


Também a da
tens de combater,
a partir daqui.
Celan(1999, p. 123)23

A identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime na


realidade.
Adorno (1970, p. 15)

1. NOTA INTRODUTÓRIA

A ninguém que tenha se dedicado à história da cultura escapa o fato de que a autonomia da arte
sempre foi precária. Refém sistemática do finalismo fetichista na ordem tribal, da racionalidade
transcendental da iconografia cristã, da astúcia filantrópica da custódia aristocrática, do maneirismo
mercantil da burguesia abastada, do nepotismo mítico da raça ariana e da cooptação ideológica em
nome do proletariado, a arte viu-se, a partir de meados do século passado, imersa em seu cativeiro

23
Destaques da edição original.
mais sedutor: parceira indispensável do processo de produção e/ou senhora de sua própria trajetória
no capitalismo, segue tutelada pelas leis do mercado, articulada, provida de dentro, pela linguagem
dos negócios (Trivinho, 2001b). A insistência tardia dessa circunstância histórica atirou-a, com
efeito, num emaranhado não menos comprometedor e, ao que tudo indica, de tendência longeva: o
mencionado jugo, na fase tecnológica mais avançada da vida humana, se refrata, cumulativamente,
na fusão — não raro desacompanhada de tratamento conceitual mais acurado — entre estética e
suporte hipermediático, assim tornado isento de toda reserva crítica.

O fato, que, salvo juízo mais completo, foi até agora pouco notado, tem óbvia inserção na grade de
reflexões teóricas sobre a cibercultura, tal como adiante caracterizada. Todavia, os principais
núcleos temáticos aí pressupostos não têm sido apropriada ou satisfatoriamente tratados, do ponto
de vista da categoria da crítica teórica, na literatura ensaística disponível. Por certo, desde, pelo
menos, meados dos anos 80 do século XX, a produção teórica sobre a cibercultura é pródiga. Em
torno dela, vê-se, aliás, reacender a fermentação intelectual antes intensamente coagulada no debate
internacional sobre a sociedade pós-industrial e, anos mais tarde, cumulativamente, sobre a relação
entre a modernidade (e seu projeto) e a cultura pós-moderna. Essa notação, entretanto, segue de par
com a evidência de que expressiva parte das intervenções ensaísticas atuais sobre arte e cibercultura
ancora-se numa metodologia descritivo-constatatória e/ou terminológico-classificatória, muitas
vezes não sendo senão um panegírico (mesmo quando velado), flagrantemente laudatório, em prol
das tendências da época, no todo ou em parte — neste último caso, com o referendo, quase sempre
tácito, a algum aspecto prático então tomado como vantajoso. Além disso, não é difícil perceber que
os termos do debate estão mal colocados.

Mutatis mutandis, esse arrazoado se projeta, com enfática validade, para as formas
cibertecnológicas de presença da produção estética, aí inclusa a sua correspondente representação
teórico-epistemológica.

Nas áreas de ciências humanas e sociais, mormente no âmbito da comunicação — que se tornou
locas científico e cultural privilegiadamente estratégico para a compreensão da dinâmica e da
estética da civilização contemporânea, suplantando, nesse pormenor, nas últimas três décadas, até
mesmo o potencial então granjeado, durante século e meio, pela sociologia e, há mais de dois
milênios, pela filosofia —, é urgente, pois, a conjugação de esforços teóricos de avaliação de ambos
os problemas e, sobretudo, das estratégias epistemológicas e práticas voltadas para a sua, senão
superação, ao menos mínima neutralização. O presente capítulo pretende contribuir, no que puder,
para suprir essa lacuna. Não por outra razão, ele se dedica às estruturas e condições contextuais de
base (sociais, culturais e transpolíticas) da relação entre estética e tecnologia comunicacional
avançada, no que concerne, especificamente, à situação da produção artística inovadora em sua
relação com os materiais e suportes digitais e, por dedução, com a própria natureza e tendências do
contexto social-histórico no qual e a partir do qual se realiza tal produção.24 Em termos mais

24
A argumentação envolve, em único fôlego - e isso não sem a devida consciência do autor acerca da
eventual impropriedade desse procedimento, não obstante ser ele o mais adequado a diminutas condições
de espaço -, o arco de ramificações e propostas estéticas abrangidas pelo conceito de arte digital ou
ciberarte, que sinonimizam, mutatis mutandis - haja ou não direto vinculo com o cyberspace -, com os
conceitos de arte virtual, arte numérica, arte hiper-mediática, arte hipertextual, arte interativa, arte
precisos, o estudo demanda a caracterização problematizadora dos aspectos de fundo — não raro,
objetos de olvido — implicados no recorte assinalado, pressupostos sine qua non que, envolvendo
as contradições, os paradoxos e/ou as aporias da dinâmica simbólica do contexto, exercem, em
reverso, direta ou indiretamente, pressão sobre o estatuto, o papel e o destino da produção artística
na cibercultura. Tais aspectos de fundo estão diretamente relacionados à dimensão mais sutil dos
processos simbólicos calcados na lógica invisível da velocidade (cf. Virilio, 1984a; 1984b; 1984c;
1996; 2002).

Não se trata, pois — fique previamente assente —, de reflexão teórica sobre a arte propriamente
dita.25 Com efeito, a leitura, pelo prisma do social-histórico, do que de sociotécnico se projeta na
arte digital é, em si mesma, argumentação de contextualização dessa mesma produção, e, sem
dúvida, tal leitura constitui, em filigrana, e provê, significativamente, argumentação sobre a arte
propriamente dita ou sobre aspectos que lhe são identitários. (Inversamente, uma reflexão teórica
centrada nos materiais e suportes da arte virtual é, pelo mesmo prisma, simultânea e
necessariamente, reflexão sobre os fatores contextuais aos quais os materiais e suportes estão,
umbilical e incondicionalmente, atados.) Evidentemente, a condição epocal da arte não será
devidamente apreendida exceto se se tomar como objeto de dissecação a especificidade
tecnocultural de seu próprio cenário.

2. CIBERCULTURA: DROMOCRACIA26

A fim de cumprir a agenda prevista, tece-se, a seguir, um conjunto de considerações sobre a


cibercultura e suas relações com a dromocracia, o terror e as novas formas de segregação social. Na
seqüência, retomar-se-á a questão da arte.

2.1. Dromocracia cibercultural

A noção de cibercultura nomeia a fase contemporânea da civilização tecnológica. Abrange, como


bloco social-histórico, o estirão mais avançado da mundialização do capital, fincada nas tecnologias
do virtual e em redes interativas. Não marca, portanto, tout court, uma nova era; confunde-se, antes,
com ela: é a própria. Assim encarada — em sua real amplitude, vale dizer, como universo material,
simbólico e imaginário não redutível aos processos exclusivamente constatados na interioridade do
cyberspace, como sói fazer a literatura ensaística especializada, no Brasil e no exterior —, a
cibercultura radica no próprio contexto a priori de relação com os media, e redes interativos, com o

telemática, web art, "artemídia" avançada, arte fractal, arte holográfica eletrônica, infografia, e demais
variantes.
25
O argumento é encaminhado menos por motivos de ordem metodológica do que por dever de ética no
âmbito da produção intelectual. Consigne-se que, não sendo o autor propriamente um artista, no rigor
histórico e profissional da palavra - muito cedo, após célere passagem pela literatura e outras artes,
transitou ele desse universo de expressão para o campo igualmente aberto da reflexão teórica -, o lugar da
elaboração epistemológica com base no qual se tece a presente contribuição e se vislumbra saldar a lacuna
antes mencionada só poderia ser, no caso, o da perspectiva esboçada, centrada, frise-se, no contexto
social?; histórico contemporâneo e na condição da arte nele.
26
Não sendo preciso, no momento, o detalhamento da temática - não a constitui, aliás, o objeto precípuo da
reflexão -, vale registrar que uma análise completa a esse respeito encontra-se em Trivinho (1999, parte l;
2001a, p. 209-227; e, nesta obra, na parte l, capítulos 1 e 2; e parte II, capitulo 2). Cumpre-se, na seqüência,
uma sinopse reescalonada do essencial sobre a matéria.
imaginário socialmente erigido com base neles, em torno deles e para eles, com os discursos e
práticas (mesmo as referentes aos usos sociais) que os promovem e com as linguagens específicas
que representam e doravante precisam ser dominadas.

A cibercultura é talhada, de ponta a ponta, pela dromocracia. O conceito de dromocracia, cunhado


por Virilio, em 1977, num contexto de discussão sobre as relações entre campo político e campo
bélico no âmbito da história ocidental27, refere-se a uma dinâmica societária subordinada ao
imperativo da velocidade. Como tal — aromas, prefixo grego, significa "rapidez, agilidade" —, o
conceito abrange as profundas mudanças por que a vida humana tem passado nas últimas décadas,
em virtude da aceleração tecno¬lógica levada a cabo em todos os setores (esfera da produtividade,
mercado de trabalho e de consumo, comunicação, urbanização, modelos e modismos,
relacionamentos e assim por diante). Sob a tutela dromocrática, o mundo e seus pertences, na
cibercultura, liquefazem-se em lapso de tempo historicamente ultracurto, a efemeridade não se
alçando senão, como valor, à condição de "útero" de todas as coisas e, simultaneamente, também de
seu epitáfio.28

A matéria merece sucinta inflexão no âmbito diacrônico. Se a lógica da velocidade sempre pautou a
existência humana, nem sempre, porém, constituiu-se como regime específico, vale dizer, como
eixo estrutural de reconfiguração e reescalonamento de sentidos existenciais e valores sociais,
hábitos e práticas, relações e processos. Nos marcos do presente estudo, a dromocracia é, no rigor
da palavra, fenômeno antropológico e sociotranspolítico que aflora apenas em condições históricas
especiais, infotecnologicamente saturadas. A mutação observada no estatuto sociocultural e
político-econômico da velocidade no transcurso dos últimos séculos, sobretudo a partir do advento
da fase industrial da formação capitalista e, mais tarde, (do advento) da configuração mediática da
vida social — uma enorme mudança: grosso modo, de princípio de modulação de práticas a vetor
prioritário de projeção e modulação de toda uma dinâmica sociotecnológica —, demarca pari passu
o talhe social-histórico da dromocracia como estrutura dinâmica que refunda a questão da
hierarquia em escala planetária.29 Vice-versa, a emergência da dromocracia, tal como aqui
caracterizada, assinala, ao mesmo tempo, o reescalonamento formal, embora sutilizado, e a
nebulosa banalização, em vias de saturação terminal, do vetor da velocidade ao nível intersticial da
vida cotidiana, desde a esfera do trabalho à do tempo livre. Nessa esteira, ao longo das últimas três
décadas, a dromocracia entrou em sua fase cibercultural.30 E, com efeito, equivocada a impressão de

27
Espectro temático fundamental de Velocidade e política, conforme dados bibliográficos detalhados
adiante.
28
No fundo, é o vetor dromológico, tal como vislumbrado por Virilio, que contextualiza, com originalidade
epistemológica, a célebre passagem de O manifesto comunista, de Marx (como, de resto, o pensamento
deste sobre a função social-histórica da "classe social detentora dos meios de produção"), segundo a qual,
no reino do capital, "tudo o que é sólido desmancha no ar", mote mais tarde retomado por Berman (1987),
como metáfora da modernidade industrial.
29
Ela reinventa, dentro e fora das nacionalidades, não somente um novo critério de estratificação social,
como também a realiza. Vejam-se, a respeito, Trivinho (1999, parte l, capitulo Vi 2001a, pp. 224-225; e,
nesta obra, parte l, capitulo 2; e parte II, capitulo 2).
30
A inovação teórica trazida para esse âmbito temático radica justamente no estabelecimento conceituai
mais rigoroso dessa relação, traduzida, precisamente, na inserção estratégica do referido conceito no
contexto da cibercultura, a fim de melhor apreendê-la e explicá-la. Em outra oportunidade (Trivinho, 2001a,
que a linha de desenvolvimento de um fenômeno cruzou o percurso histórico do outro. Na verdade,
a cibercultura internacional provém justamente do longevo estirão econômico-dromocrático de
industrialização e pós-industrialização ocidental (cf. parte I, capítulo l, deste livro). A cibercultura,
como arranjamento societário mais avançado da civilização mediática, tendo otimizado, às últimas
conseqüências, o vetor da velocidade, com a instituição cotidiana do tempo real interativo, cooptou
e fagocitou, em si e para si, em caráter definitivo, o modelo dromocrático de funcionamento,
dissipando-se, por conseguinte, qualquer distinção ou divisa entre os dois âmbitos considerados.
Assim como os media incrustaram-se, para o bem e para o mal, no coração da cultura e de sua
produção hodierna — de maneira tal que todo e qualquer estudo sobre estas tenha, doravante, que
contemplar, em algum grau de intensidade, mas sempre privilegiadamente, o imperativo
comunicacional, sob pena seja de extemporaneidade, seja de anacronismo ou defasa-mento (cf.
Trivinho, 2001a, p. 86) —, a dromocracia vige, com sinete de ferro e fogo, no epicentro da
dinâmica descentrada da cibercultura, de modo que qualquer consideração sobre a primeira acaba
por ser, via de regra, elocução sobre a segunda, e vice-versa. A dromocracia é o motor invisível da
cibercultura. A imperícia metodológica quanto ao valor social dessa relação torna lacunar a reflexão
teórica sobre um e outro tema, bem assim compromete os resultados atingidos. Sob tais injunções,
se, por um lado, a cibercultura já nasceu dromocrática, há razões, entretanto, para, por outro, falar-
se, com pleonasmo zero, em dromocracia cibercultural (idem, 1999, parte I, capítulo V; 2001a, pp.
209-227; e, na presente obra, parte I, capítulos l e 2; e parte II, capítulos 2 e 4)31; É essa formação
sociotecnológica que, mais precisamente — para reciclar um dado lançado acima —, designa, pois,
a fase contemporânea do desenvolvimento histórico do capital. Com um detalhe de monta, em geral
parcamente notado (que aqui não pode ser senão destacado en passant): a dromocracia cibercultural
é da ordem da transpolítica (cf. parte II, capítulo 3, deste livro). A maioria dos processos e
fenômenos que nela nascem, se desenvolvem e desaparecem não perpassam mais o território das
instituições convencionais da política herdada, tampouco são por elas administráveis ou
controláveis. Sob a chancela das formações voláteis, flutuantes, sempre precocemente agônicas, de
significação sobremaneira obtusa em sua máxima transparência, a lógica da transpolítica, capilari-
zada no imperativo informático, enquadra-se na espiral irrefreável, infinita, de ocorrências auto-
referentes, anômalas, hipertélicas e não-transcendentes.32

2.2. Neodarwinismo sociodromocrático cibercultural

Esse mosaico de fatores começa, com efeito, a revelar a sua real complexidade quando se nota que,
ao longo da segunda metade do século XX — sobretudo depois do surgimento da internet, no final
dos anos 60, e do da web, no início dos 90 —, a dromocracia passou a articular-se, mais
definidamente, como terror.33 Um terror, porém, de feições especiais: à violência dissuasiva própria
da política institucionalizada, capitaneada por Estados nacionais, com apoio ou não em

p. 220), registrou-se que "a dromocracia se tornou, mais que tudo, a lógica do regime próprio da
cibercultura".
31
A rigor, pleonasmo haveria se a explicitação do fenômeno se fizesse sob a expressão "cibercultura
dromocrática".
32
A temática é retomada mais adiante no contexto da estética.
33
Toda a energia dromológica do social gira, doravante - mais além dos próprios media interativos -, em
torno da rede imaterial internacional em que se converteu o planeta.
organizações multilaterais34, e por grupos guerrilheiros, político-religiosos e/ou étnicos a lógica da
cibercultura acumula — e mesmo sobrepõe — a ameaça vinculada à sua própria exigência: o
imperativo do ser veloz. Impessoal, desprovido de núcleo de gestação e comando, o terror
dromocrátim-cibemiltural traduz-se como coação tecnológica processada nas e pelas injunções das
pressões sociais pantópicas, já intensamente introjetadas no e pelo imaginário do capital (esfera da
produção e mercado), das instituições e do tempo livre. Ele se recria e pulsa de acordo com o modo
pelo qual se configura o social contemporâneo, sobretudo nas metrópoles e cidades de médio porte.
Trata-se, por isso, de uma sorte de terror inclinado ao interstício. No que tange às individualidades,
ele não provém de fora; gesta-se, antes, de dentro, fustigando, em especial, o que é íntimo: a
mentalidade cotidiana, no que nela há de vínculo particularmente com o inconsciente.

O conceito fundamental dessa problemática necessita, cada vez mais, de grifo: dromoaptidão.
Conforme especificado em outras oportunidades (idem, 2001a, pp. 209-227; e, na presente obra,
parte I, capítulos l e 2; e parte II, capítulo 2), a dromoaptidão — de clara inspiração na noção de
dromocracia, de Virilio — concerne às condições materiais e propensões subjetivas que, de acordo
com o discurso tecnológico da época, precisam ser doravante totalizadas para se consubstanciar o
pleno domínio (a partir do domo, no caso das individualidades) do objeto infotecnológico (completo
e atualizado, incluindo o conjunto de softwares requeridos), da rede interativa (língua inglesa e
acesso wireless, via cabo ou mesmo por linha telefônica pressupostos), do estatuto social de ente
teleinteragente, do capital cognitivo correspondente e da capacidade de acompanhamento das
reciclagens estruturais tanto cio objeto infotecnológico quanto do capital cognitivo.35 Tais
elementos, abrangidos pelo conceito de sociossemiose plena da interatividade (cf. parte II, capítulos
l e 2, desta obra), funcionam, de maneira cada vez mais cerrada, como linguagem tecnológica de
acesso (senhas infotécnicas) ao modelo predominante de existência, seja presencial (em geral, na
esfera do trabalho e do tempo livre e de lazer), seja virtual [no cyberspace, o mais recente universo
tecnossimbólico/imaginário do multicapitalismo tardio, espaço renovado de atuação humana e,
portanto, um direito (ainda não devidamente transformado em objeto de Estado e de políticas
públicas)].

A voz múltipla e altissonante da época, subordinada a agressivo fluxo publicitário


fragmentariamente estandardizado, assim proclama, com inflexão pantópica: se dromoaptidão é
ethos interativo, não há, em caso diverso, que se falar em ser. No rigor do conceito, dromoaptidão
cibercultural é, portanto, capital social sine qua non, em sua reconfiguração mais recente como
capital propriamente simbólico (cf. Bourdieu, 1982, 1983, 2002) exigido para se ser — e, por aí,
alcançar-se cidadania (teleinteragente) no mundo. Trata-se de regra sumária, inescapável quanto
irrecorrível, que cartografa desde subjetividades individuais até países inteiros, enquadrando, por
pressuposto, grupos, instituições e corporações.

Define-se, tout court, nos bastidores desse caleidoscópio de fatores, a contemporaneidade ou a


extemporaneidade da relação para com a época e para com a forma da vida nela e por ela

34
Conforme disso nos dão bem noticia Negri e Hardt (2001).
35
Se dromoaptidáo é, fundamentalmente, dinamismo eficaz, passível de comprovação a qualquer
momento, doravante tal premissa recai sobre todas as demandas da cibercultura: dos conhecimentos
teórico-técnicos às habilidades pragmáticas e capacidades adaptativas, das chances de aquisição e
renovação de objetos e produtos ciberculturais as possibilidades de fruição respectiva, e assim por diante.
incentivada.36 É a dromoaptidão que, em sua unidade processual, contém, consubstancia e fomenta,
a um só tempo e integralmente, a dromocracia cibercultural como fase hodierna da civilização
mediática.

A dedução do exposto resulta, de certa maneira, óbvia. A quem ou à instância social que não é
concedido o domínio pleno (tanto mais privado quanto possível) das senhas infotécnicas a
dromocracia cibercultural cifra a acentuada ameaça de amputação simbólica do devir. Essa
condição — a da inexistência do domínio indicado -caracteriza inapelavelmente a dromoinaptidão.
E pela recolocação da divisão esquemática entre aptos e inaptos, alicerçada na distribuição social
aleatoriamente desigual dos acessos como capital simbólico, que o modus operandi da cibercultura
realiza a forma de segregação técnica doravante mais avançada, incomparavelmente mais eficaz,
porque refratário à fácil identificação em meio ao ema¬ranhado de sulcos e desvios da pródiga
fenomenologia dos processos cotidianos. Sobre o dorso de um indivíduo ou grupo, sobre o conjunto
das vigas de uma instituição ou corporação, sobre um país inteiro [assim socialmente
considerado(a)] dromoinapto o neodarwinismo cibercultural flexiona o peso de sua violência
simbólica: desterro de todos os elementos e setores com base nos quais se forjam os rumos
mundiais da existência contemporânea.

Esses apontamentos — para retomar a temática do terror —, embora demarquem o aspecto


essencial do problema, não o esgotam. Algo mais relevante precisa ser ainda computado. Se o
modus operandi da dromocracia sempre foi da ordem da violência (Virilio, 1996; Trivinho, 2001a;
e, nesta obra, parte I, capítulos l e 2; e parte II, capítulo 2) e se as tintas desse pertencimento, agora
fincado nos vetores da cibercultura, constam acentuadas, a própria dromoaptidão — e não já a
dromoinaptidão socialmente produzida — encerra, por conseguinte, a violência em bloco desse
mundo, legitimada e irradiada especialmente pêlos ventos normativos da esfera da produção. Um
ser veloz, em cujo corpo a dromoaptidão se incrustou como habitus37, representa, em estado
avançado, como figura psíquica típica da época, a introjeção dessa nova modalidade de violência.

Note-se o que, na ausência de maior aproximação com o processo, tende-se a tomar como
contradição: ao mesmo tempo em que a época assimila o ser dromoapto à modalidade prioritária de
ser, ela dispõe a dromoaptidão como agressão sofisticada. Em outros termos, a cibercultura nos põe
de frente com a barbárie e, simultaneamente, nos convida, mediante ameaças doces, sempre não
notadas, a ingurgitá-la. O capital cognitivo necessário à inserção na cibercultura, promovido
diuturnamente como solução, não constitui senão, no fundo, problema. Não se trata, absolutamente,
de contradição ou paradoxo de época, mas da própria coerência interna desta: violência sofisticada
do imaginário tecnológico instituído.

A tutela avançada da aceleração tecnológica em todos os setores sociais acabou, de uma forma ou
outra, se convertendo em drama humano requintado, tão invisível quanto difuso, como a maioria
dos fatores do contexto do qual ele se nutre.

36
As senhas infotécnicas de acesso à cibercultura constituem os pilares de um tipo de relígare inédito,
totalitário, porque indexador e onipresente, fundamento tecnológico de uma nova religião, laica, mercantil
e obliterada, que não se dá nem se nomeia como tal.
37
Aloca-se, para esse trecho, a significação que ao termo empresta Bourdieu (1982; 1983; 2002).
É nesse quadro que se apresenta, de maneira renovada, a questão da morte simbólica. Pressupondo,
no caso, em sua base constitutiva, o terror dromocrático-cibercultural, ela soa, logicamente, como a
reverberação social colateral, até agora incontrolada, de boa parte da empiria implicada na
explanação anterior.

A forma da morte própria da cibercultura corresponde a óbito desacompanhado da destruição física


de corporeidades. Trata-se de falecimento efetivo (de indivíduos, empresas, governos etc.) enquanto
em vida — bomba de nêutrons: produção de carcaças no quadro geral da deterioração flexível de
tudo o que é espiritual (simbólico). Em termos mais específicos — para uma simples referência
àquilo de que se trata —, a ausência da posse plena do acesso ao capital de acesso (ao objeto
infotecnológico, à rede e ao capital cognitivo conforme) equivale, no todo ou em parte, à
angariação, dia menos dia, de uma pena capital, decreto de desterro no local: morte abstrata, mas
efetiva, por denegação pantópica por parte do contexto38, por fabricação social de impotência para
os acessos requeridos; morte por dromoinaptidão socialmente induzida — eliminação simbólica
sumária por miséria propriamente informática. Nisso reside, grosso modo, o neodarwinismo
sociodromocrático da cibercultura.

3. ARTE: CONDIÇÃO SOCIAL-HISTÓRICA E FUNÇÃO ESTÉTICA

Tais condições sociotecnológicas, tanto mais por sua gravidade, não somente redefinem, no âmbito
político da estética, o estatuto da arte, senão ainda sugerem o reescalonamento de seu papel social e
cultural.

Posto que os novos materiais e suportes com os quais e com base nos quais a arte tem construído a
sua imagem mais recente constam aí implicados e, ainda, em virtude de motivos justifica¬dos na e
pela própria epistème engajada no mapeamento feito, a produção tecnoartística avançada não
pode(ria) deixar de levar em consideração as injunções desse cenário, nem de dar respostas
es¬teticamente consistentes a ele. Não podendo (ou não devendo), por constituição originária e/ou
por princípio identitário, desvincular-se da lógica do entorno — melhor, do estado da arte dele —,
não pode (ou não poderia), por conseguinte, esquecer-se dos processos simbólicos invisivelmente
predominantes (em especial, o terror dromocrático e a eliminação simbólica em série), sob pena já
não tanto de anacronismo, mas, a partir dessa "disritmia" temporal, de ingenuidade política.

3.1. Ciberufanismo estético

A recente trajetória dos fatos torna tal preocupação legítima. Assim como, segundo o célebre
axioma estético-estratégico de Benjamin (1978, p. 240), o fascismo da primeira metade do século
passado havia espetacularizado a política — e, nesse caso, a resposta a tal barbárie deveria ser a
politização da arte —, as tendências majoritárias da cibercultura acabaram, de certa forma, por

38
Sabe-se que corpos e mentes tornados dromoinaptos encontram-se aleatoriamente distribuídos em toda
parte. Mesmo que hoje tal condição (de não-acesso, excetuados os casos auto-exclusão voluntária)
represente mercado - haja vista que o caixa de órgãos, empresas e entidades civis responsáveis pela
ciberalfabetizacão social gravita em torno disso – o dromoinapto não é senão, em geral, objeto de ínfima
atenção pública, não raro entrecortada por menoscabo. Contra ele a época faz recair um novo tipo de
preconceito, ancorado na absolutização da velocidade como valor social (cf. parte l, capitulo 2, desta obra).
cooptar a produção artística em prol de sua própria perpetuação (da cibercultura) e por fazer da arte,
em todos os domínios digitais, instrumento da construção da imagem do próprio futuro (daquela,
cibercultura) e de suas possibilidades supostamente legítimas. De maneira tal que, na atualidade, é
impossível não reconhecer que a arte digital acabou por vigorar, involuntariamente, como emblema
exponencial das tendências (cada vez mais acentuadas e que, aliás, viraram mote acadêmico) de
fusionismo dessimbólico entre ente humano e aparato informático e de, por assim dizer,
"promiscuidade" apolítica tácita entre corpo, subjetividade e cyberspace39 O argumento em prol do
contrário parece, há muito, ter perdido o seu momento de validação histórica. Dificilmente
contornáveis a médio ou a longo prazo, trata-se de tendências que, salvo melhor juízo, vigoram
amputadas da autoconsciência necessária acerca de suas próprias conseqüências.

A resultante desse processo de tensão (quase) zero entre sujeito e objeto não se apresenta senão — à
falta de melhor expressão — como ciberufanismo estético, procedimento de celebração (direta ou
indireta) da dromocracia cibercultural que, traduzido, em essência, no seguir (e na colaboração
para) o curso preponderante da época (sob o pressuposto vitalista de que somente a isso se pode
chamar vida), pretende representar o envelhecimento do ideal de politização da arte (agora nos
termos assentados adiante).

O fato merece flexão especial, em palavras mais objetivas. A desautorização programada ou a


desabilitação aleatória da tensão para com o que, no perímetro da preocupação estética, é próximo
e/ou íntimo — os materiais e suportes, o projeto e o processo criador, a forma imediata e mediata do
existente —, vale dizer, a demissão do que aqui se compreende como o fundamento estratégico da
crítica equivale, no contexto social-histórico da cibercultura, ao crash do princípio estético da arte,
isto é, ao desmerecimento desta como vetor antropológico prioritário de explicitação das
contradições do existente e de contraponto a ele, e como fonte de (re)criação e proposição de uma
autonomia subjetiva mínima, satisfatória, incondicional e, por isso — se se quiser —, autêntica do
ser no e perante o mundo. Tudo adquire ar mais sério e inquietante ao se considerar que, em
particular, o entrançamento dessimbólico (voluntário ou involuntário) da arte com o cyberspace não
deixa de significar, em certa medida, peremptoriamente, "promiscuidade" com o principal eixo de
sustentação e reprodução do multicapitalismo cibernético globalizado, pressuposto no mapeamento
anteriormente feito. Essa especial injunção lança, em reverso, luz sobre o todo: a significação
essencial de uma aderência a materiais e su¬portes digitais desacompanhada da preocupação
sistemática em relação ao âmbito social-histórico não encerra senão reacionarisrno ao nível da
dimensão política da estética — neo-regressão política por abraço ao futurismo tecnológico, como,
de resto, à sua representação publicitária corrente40; no sentido diametralmente oposto — aproveite-

39
A omissão quanto ao fato de que, muitas vezes, é a própria arte que adere, voluntária e desavisadamente,
aos declives do contexto subtrairia, com efeito, boa soma de verdade a qualquer explanação a esse respeito.
A rigor, a arte não tem deixado de contribuir para a (afirmação da) tendência de aceitação social ampliada
do suporte (com as implicações antes demonstradas) no qual hoje ela se vê amplamente embrenhada (não
raro, sem prontidão reflexiva mais criteriosa), quando, antes, deveria pô-lo sob reserva e suspeita.
40
Depois das erosões no tecido da metafísica ocidental pela discussão internacional sobre o pós-moderno,
inaugurada na década de 80 do século XX, tudo o que, em estética e em política, se liga à categoria do futuro
prende-se, direta ou indiretamente, à imagem desse neo-reacionarismo típico. Tal premissa, aliás, não deixa
de demonstrar o quanto, em regra geral, futurismo em estética representa posição e visão de mundo
se o ensejo para dizê-lo —, agir segundo o critério da autonomia, da tensão produtiva e, quando o
caso, da resistência, tal é a imagem do que, nesse mesmo âmbito, representa (e preserva) avanços
em matéria teórica, em prol da autenticidade e da dignidade do trabalho do conceito.41

3.2. Princípio da politização multilateral Transpolitização do real pela arte

À produção tecnoartística atenta às ciladas e dissuasões desse contexto o horizonte acena com uma
mínima, mas indispensável possibilidade: a politização da cibercultura, de seus vetores de
sustentação (em especial, o cyberspace), de sua lógica dromocrática e de seus prováveis horizontes.
Tal politização se cumpre, formalmente, com a ativação permanente de uma categoria incondicional
de crítica durante a práxis reflexiva (seja em arte, seja fora dela). Crítica é, a um só tempo, epicentro
de mediação imanente do trabalho intelectual, desempenho diuturno de alerta às cooptações do
existente e às ilusões em relação ao devir e, sobretudo, procedimento estratégico de tensionamento
simbólico. Politização é método teórico-prático específico de relação com o mundo (em sua
imediatidade e integralidade), bem como com os seus elementos constitutivos. A crítica
compreende, em essência, a politização. A politização, por seu turno, é a dinâmica da crítica, a sua
representação cinética, por assim dizer. É a politização que, no fundo, tensiona. Nesse aclive
estratégico, a crítica não deixa de ser — à falta de melhor termo — método.

Em palavras contextualizadas, politizar significa, nessa perspectiva, transformar em fonte de


questionamento público o que insiste em subtrair-se ao campo da visibilidade, menos por carência
de explicitação (fato normalmente assimilado à clássica ocultação) do que por excesso de
transparência (o que envolve a produção cultural da obviedade como valor, sempre dissuasiva em
função da letargia que instila no conjunto dos sentidos percepcionais)42, e, de maneira conjugada,
(politizar significa) focar (isto é, estabelecer como destino reflexivo) as tensões inexoravelmente
existentes na relação com o objeto em contexto e, ao mesmo tempo, elaborá-las no plano do
conceito.

Se, em matéria teórica, somente a categoria da crítica politiza, além da relação com o objeto, o
processo de pensamento e a sua fundamentação, a tessitura discursiva, a proposta epistemológica e
a relação com os principais interlocutores envolvidos e com as tendências teóricas e práticas do
mundo (cf. Trivinho, 2001a, pp. 161-174), essa politização multilateral tem, em matéria estética,
com efeito, expressão obviamente peculiar, a começar pelos precedentes históricos próprios a esse
campo. Arte é [ou deveria ser], mais que outra expressão humana, heterodoxia, desconstrução e/ou
ruptura. Do contrário, oblitera-se o que lhe é mais caro: a identidade a si própria, sustentada no
pressuposto originário de mutação contínua, seja em seu próprio âmbito, seja no do social-histórico.
Nessa perspectiva, tensionamento estético e da estética e, por esta, do real implica (re)politização
mnltidimensional da arte (tanto em seu momento de concepção quanto em sua práxis), não, todavia,

politicamente reacionárias. Para uma contextualização desse argumento, fincada na relação entre
modernidade e pós-modernidade, veja-se Trivinho (2001a, pp. 39-78).
41
Trata-se, de toda forma, de questão banalizada. Tal inversão de valores se consumou há bom par de anos,
desde que os códigos da informatização, da virtualização e da cibericonização hipertextual se tornaram o
paradigma publicitário padrão da cibercultura, e a interatividade, a sua práxis publicitária matricial.
42
O excesso de transparência do mundo - a exuberância (sempre crescente) da explicitação dos signos -
logra acerca do fundamental a ser notado; gesta, paradoxalmente, a taxa (quase) nula da percepção
relevante.
no sentido de Benjamin (1978), stricto sensu falando — posto que não se trata de política em prol
de uma visão teleológica de mundo, como o marxismo, ou programática, como a do partido ou da
vanguarda (cuja potência desmoronou nas últimas três décadas, juntamente com o edifício da
modernidade) —, e sim, no mínimo, na perspectiva do que está bem além da política de ofício (de
direita ou de esquerda), espetacularizada e engessada, forjada no terreno do Estado e de suas
instituições, dos media e do mercado. Nisso se encerra expressiva soma do que se pode designar
como politização transpolítica. Eis que, quando aqui se evoca a politização estética e da estética,
faz-se, a rigor, remissão à transpolitização da arte. Essa associação expressiva, longe de constituir
trocadilho, merece comentário extra e especial, conforme segue.

Os conceitos de politização e de transpolítica têm, cada qual, sentido polissêmico no presente livro.
Com efeito, ambos confluem de maneira definida. De fato, a natureza do trabalho de politização
abordado neste capítulo não mantém, à primeira vista, relação lógica de sentido com a transpolítica
— como categoria e como empiria processual — de que trata o primeiro capítulo da parte I, o
terceiro da parte II e o Excurso da parte III. Vigoram, a rigor, em dimensões diferentes de
significação. Não obstante, há um sentido de transpolítica que não pode ser perdido de vista e, não
se reduzindo à mencionada empiria processual, coincide inteiramente com o princípio da
politização, sem perda de nexos imanentes de coerência. Se politizar - vale, aqui, a ênfase - significa
tensionar a forma de organização sociotecnológica do real por meio da crítica teórica orientada,
para além de qualquer vínculo com a política stricto sensu e com o imaginário político instituído —
fato que envolve a característica primeira da transpolítica, aquém mesmo de seu traço de escape de
todas as formas de administração, gerenciamento e controle por parte das instituições políticas
modernas, herdadas do iluminismo francês e do liberalismo inglês do final do século XVIII -,
transpolítica, por seu turno, além de equivaler à fenomenologia aleatória do mundo tecnológico
(ibidem), inclui, em seu conteúdo, como procedimento, o tensionamento metapolttico programado
da organização do existente, fora também da política stricto sensu e sem envolver, a princípio ou
necessariamente, a referida ausência de controle. Essa ambigüidade positiva mostra que o conceito
de transpolítica pressupõe ruptura possível de seu vínculo interno — só aparentemente exclusivo —
com o universo sociotecnológico instituído e pode ser concebido, com inflexões diferenciais, como
traço idiossincrático de uma forma particular de mobilização da categoria da crítica em relação ao
e/ou contra a configuração do existente. Perceber tais nuances epistêmicas é fundamental para
compreender como o caráter inadministrável, não-gerenciável e incontrolável dos fenômenos e
tendências contemporâneos por parte das instituições modernas convive, no mesmo conceito, com a
proposta de contra-politização do real e de sua empiria processual transpolítica.

O princípio da politização abordado neste capítulo implica, pois, a transpolítica em acepção


específica, embora a transpolítica per se, isto é, tal como se põe na literatura ensaística especializada
(ibidem), não pressuponha tal princípio. Nessa perspectiva, a expressão "politização transpolítica"
não deixa de encerrar certo pleonasmo (fora, claro, do plano dos significantes) — justificado,
porém, pelas filigranas nela envolvidas. Transpolitizar, como categoria, teria, assim, a vantagem de
cumular a significação dos dois termos, sem ecos internos.

Politizar (ou transpolitizar) é, em síntese, mais que tomar consciência da própria transpolítica como
fenômeno contemporâneo e da transpolitização da vida social como processo multilateral dela
derivado. Politizar é tensionar/desafiar diretamente o real de maneira que o questionamento
(teórico-prático) não se subordine nem se reduza aos elementos constitutivos das instituições
modernas.

Trata-se de um projeto reflexivo que, no âmbito estético e fora dele, não pode ser realizado —
nunca é demais frisar — senão pelo crivo de uma crítica teoricamente reconstituída,
epistemologicamente reavivada e metodologicamente reorientada.43

Mutatis mutandis, em tempos dromocráticos avançados, a arte precisa nutrir-se do paradoxo de sua
própria inserção contextual: precisa ser tensionalmente identitária ao seu objeto, o mundo
tecno¬lógico transpolítico. Isso significa: mímesis (o que também implica a fatoração do suporte) e,
ao mesmo tempo, reserva radical — desconfiança a priori procedente de dentro. A politização ou é
imanente ou não o é.

Doravante, a repolitização da arte (na acepção aqui sugerida) deve, assim, levar em conta a
transpolítica da civilização mecliática avançada e, em sentido inverso e simultâneo, lidar/"jogar"
com ela atentando contra os seus fundamentos, manifestações e tendências, sem utilizar as
categorias que sustentam o imaginário político instituído, renúncia consciente que a produção
artística pós-68, em especial, não tem, de toda forma, deixado de exercitar de maneira abundante e
diversificada.

Se, nessa esteira, (trans)politizar a arte significa, especificamente, politizar a relação com o insight e
com o projeto artístico, com o processo criador, com os materiais e suportes, com as técnicas
utilizadas, com a obra e sua destinação, com o público e com o contexto social-histórico (imediato e
mediato), tal premissa fixa e refunde, em seu pontilhado, o sentido seqüencial da elocução. No
limite, sob a radicalização necessária das hipóteses, politizar significa, como tese prioritária e
aberta, questionar a tecnociência, sua natureza e suas tendências predominantes, através da estética
permitida e produzida com base na própria tecnociência, e, simultaneamente, explorar os limites
desta contra ela mesma — o que, por certo, não implica somente questionar, pela arte de ponta, o
mundo fundado na racionalização e no cálculo informáticos.44 Em perímetro mais estrito, politizar
significa, tout court, jogar o conservadorismo latente das técnicas, da tecnologia e dos media contra
ele mesmo — vale dizer, os materiais e suportes contra eles mesmos —, e, por pressuposto, em
perímetro mais alargado, (jogar) a cibercultura contra ela mesma, a dromocracia contra ela mesma,
o cyberspace contra ele mesmo, e assim por diante.45 Trata-se, numa palavra, de pentear o
ctberufanismo a contrapelo.46

43
Uma abordagem mais acurada tanto sobre a natureza da critica e da politização quanto sobre como elas
se configuram no campo da tecnoarte avançada escapa evidentemente ao presente ensejo. Parâmetros
mais avançados a esse respeito, exclusivamente relacionados ao primeiro tema, no que ele implica a cultura
pós-moderna, encontram-se em Trivinho (2001a, pp. 161-174).
44
Evoca-se, aqui, obviamente, a arte digital dotada de autonomia integral em relação à lógica do mercado.
45
Esses apontamentos não vislumbram, muito menos encerram, evidentemente, nenhum programa para a
arte; não pressupõem, absolutamente, a renovação do ultrapassado adágio de seu engajamento
institucional ou, pior, partidário. Nem sequer sugerem o desencadeamento de um modelo de arte
dromocrática, tampouco de seu oposto, a arte da desaceleração. Antes, chamam, com ênfase, a atenção
para um fato óbvio e, por isso, olvidado. A rigor, a arte não se define pelo uso puro e simples dos materiais e
suportes, mas na e pela relação especifica que estabelece consigo mesma, com sua história (com base na
relação técnica e estética com aqueles) e com a dinâmica material e simbólica do contexto social-histórico. É
Somente essa compreensão transpolttica crítica do contexto e do social-histórico — crítica de si
mesma, antes de tudo — está à altura do desafio lançado pêlos fenômenos tecnológicos
contemporâneos e, por isso, pode encará-la de frente sem ser "vista" como extemporânea pela
"inteligência" segredada do próprio desafio como processo, mesmo que a sua eficácia simbólica
e/ou prática (a da mencionada compreensão transpolítica) tenha de ser sempre posta em dúvida.
Nisso reside o sentido pleno da transpolitização da produção artística como contrapolitização
determinada do real transpolítico. Transpolitizar o real pela arte é pôr em xeque a transpolitização
operada pela própria dromocracia cibercultural. De todas as formas de produção cultural (tomadas
na acepção antropológica) atualmente prevalentes — incluindo a ciência e o jornalismo —, somente
a arte, com sua incomparável liberdade (ainda que condicional) de criação semiótica, parece estar à
altura da dimensão abstrata envolvida no cumprimento dessa contra(trans)politização.

A possibilidade de explicitação da violência simbólica difusa através de um princípio de desafio que


lhe é identitário não denota senão a suma importância da posição da arte e de sua função estética no
processo de articulação internacional dos esforços de avaliação crítica da lógica da cibercultura.
Quer-se crer que, a esse respeito, o presente estudo, embora sinóptico, tenha sido, de alguma forma,
útil.

Se, conforme antes sinalizado, politizar significa, em sentido genérico, trazer à luz os dados
empíricos da época, a fim de arrancá-la do limbo sombrio que mantém o seu modus operandi
tecnológico, simbólico e imaginário geralmente livre de questionamento, a ativação estética do
princípio teórico sugerido — e isso em fidelidade à complexidade progressiva das práticas artísticas
e em nome da diversidade das formas e expressões até mesmo em uma única ramificação ou
tendência — não deixaria de ser, na atualidade, um dos mais nobres préstimos intelectuais que a
arte, como reflexão específica sobre a existência, poderia prestar à história contemporânea do
pensamento.

Esse procedimento, com efeito, somente poderia ser levado a cabo — sublinhe-se — pelo prisma de
uma categoria incondicional de crítica, desprovida, por pressuposto, da ilusão corrente de se
considerar que tais e quais aspectos particulares das tecnologias interativas e do cyberspace são, em
si — mormente pelas possibilidades pragmáticas que entreabrem —, positivos ou vantajosos.47 O

em virtude desse núcleo de referência que determinada proposta estética estabelece ruptura com as
tendências artísticas herdadas, sela a sua mensagem aos contemporâneos e legitima os horizontes que
vislumbra. Re/ação com: é de critério, pois, nesse âmbito, que se trata. Isso significa, em suma, tão-somente
aceno - aqui feito - para um principio doravante fundamental em arte, a saber, o da necessidade de
produção, por tal ou qual vertente estética, de tensão (tanto mais conceitualmente firme quanto possível)
com o imperativo da velocidade e com o modo de organização do mundo nela fincada e por ela fomentada.
46
Para reescrever a estrutura de uma conhecida expressão certa vez usada por Benjamin, no âmbito teórico
da filosofia da história. Se a história, como processo de disputa, distribuição e consolidação de poder, não é
senão a história dos vencedores - enquanto os vencidos jazem no chão, em meio à destruição generalizada,
que remanesce depois invisível, sempre indiferentemente pregressa, sem possibilidade de redenção -, era
preciso, sugeriu Benjamin, penteá-la a contrapelo.
47
Não é raro, na produção ensalstica direta ou indiretamente versada na problemática da cibercultura, que
o ciberufanismo vigente entre por essa porta (em geral, da frente) da construção teórica. No âmbito da
reflexão sistemática, a concessão metodológica, em especial a fincada em simpatias pré-simbólicas e
protoconceituais para com determinados aspectos do objeto, representa o caminho mais curto para a
afirmação - voluntária ou involuntária - da ingenuidade política.
procedimento contém, como valor imensurável, o que, de resto, continua a ser verdade histórica em
estética: a autonomia mais radical que sempre se pode buscar, mesmo a duras penas, em
determinada época, sempre dignificou, em reverso — onde o ápice é mais alto —, o labor da arte.

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