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Peregrinação quaresmal no Ano Jubilar Jubileu e Quaresma Livres porque perdoados das dívidas
Purificação da Memória em Tempo Quaresmal Um 70 vezes 7 na Quaresma do Jubileu
Quaresma: tempo jubilar
Peregrinação e religiões
Em todas as religiões e em todos os tempos os fiéis procuram libertação, que é ao mesmo tempo
material (procura do bem-estar) e espiritual (aperfeiçoamento interior).
Os Egípcios peregrinavam ao túmulo de Osíris em Abydos. Na Índia, consideráveis multidões
peregrinam para os dois mil santuários dos altos lugares do Himalaia e das margens do Ganges.
Os budistas visitam sempre os lugares de recordação de Buda. Em Meca, os peregrinos
muçulmanos cumprem uma das grandes prescrições do islão: peregrinar. Mesmo na China, as
montanhas santas de Taichan continuam a ser lugares venerados por milhões de peregrinos. No
Japão, os xintoístas fazem peregrinação a numerosos lugares, entre eles, montanhas, fontes e
vulcões (Fugi-Yama é o lugar mais sagrado).
Mas foi sobretudo o cristianismo que despertou este velho instinto de nomadismo e atraiu
milhões de peregrinos para os lugares da fé. Primeiro, para Jerusalém, com o Santo Sepulcro e os
lugares onde viveu Jesus. Depois, Roma e Santiago de Compostela, para onde se desviaram os
peregrinos cristãos, impedidos de visitar a Terra Santa, após a conquista de Jerusalém pelos
sucessores de Omar, em 697. Relíquias e túmulos de santos atraíram multidões a S. Dinis e a São
Martinho de Tours. Desde o século XIX, as peregrinações começaram a orientar-se para
santuários marianos: medalha milagrosa na rue du Bac, em Paris (1830), La Salette (1846),
Lourdes (1858), Pontmain (1871), Fátima (1917). A maior parte das peregrinações tiveram
origem em aparições de Nossa Senhora, em tempos marcados pela influência da doutrina de Karl
Marx e de Darwin. Todas essas aparições se caracterizam por um apelo da Virgem Maria à
conversão, e reafirmam a liberdade e responsabilidade dos homens perante Deus.
Por ocasião da celebração dos 2000 anos do nascimento de Jesus, o Papa João Paulo II convoca
os cristãos para uma grande festa e incita-os a empreenderem peregrinações de conversão. O ano
jubilar é "uma espécie de convite para uma festa nupcial", escreve o Santo Padre. E acrescenta,
sublinhando a ideia de unidade cristã que deve caracterizar a peregrinação: "Acorramos todos,
vindos das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais espalhadas pelo mundo, para a festa que se
prepara; tragamos connosco aquilo que já nos une, e o olhar fixo unicamente em Cristo permita-
nos crescer na unidade que é fruto do Espírito" (Incarnationis Mysterium, n. 4).
Peregrinação quaresmal
A peregrinação manifesta um ardente desejo de mudança inerente à espécie humana e revela a
sua condição peregrina de ser que se encontra sempre a caminho (homo viator). Peregrinar é
passar para a outra margem, para outra cidade; é procurar outra condição de vida; é deixar o
passado e projectar-se para a frente; é mudar de vida.
A peregrinação tem, por isso, como primeira condição, deixar para trás todos os impecilhos que
dificultam a caminhada. Para os cristãos, o maior impecilho é o pecado, ou a condição de homem
velho adormecido em situações que o afastaram de Deus. A meta da peregrinação cristã é a
celebração da festa da Páscoa, em que o homo viator se encontra recriado e configurado com
Cristo ressuscitado. Esta celebração tem um tempo de preparação: a peregrinação quaresmal, ou
tempo de conversão.
A peregrinação "é exercício de ascese activa, de arrependimento pelas faltas humanas, de
vigilância constante sobre a própria fragilidade, de preparação interior para a conversão do
coração" (Incarnationis Mysterium n. 4).
O arrependimento/conversão leva o cristão a cobrir-se simbolicamente de cinzas no começo da
Quaresma. Reconhece assim a sua origem: o pó da terra, que recebeu o sopro vital de Deus
Criador. Cobrir-se de cinzas significa renunciar ao pecado de soberba de Adão, que quis ser
autosuficiente e rejeitou Deus, para ser senhor de si próprio.
Uma atitude feliz e corajosa para celebrar pela duo milésima vez a Páscoa de Jesus, que se
humilhou até à morte de cruz, para oferecer à humanidade o dom do perdão e do amor de Deus,
Pai de misericórdia.
Jubileu e Quaresma
À primeira vista, há uma ligação imediata entre estas duas realidades - a quaresma e ano jubileu:
são tempo de conversão efectiva, tempo de mudança, tempo de prática de obras de misericórdia a
preparar um tempo novo, uma vida nova, um mundo novo. São tempos de 'morte', melhor, de
morrer para muita coisa, em vista de um nascer de novo, de uma verdadeira ressurreição.
Mas a relação entre a quaresma e o ano jubileu é capaz de ser algo mais profundo, mais global e
envolvente da espiritualidade e do quotidiano dos cristãos...
Hoje, na Igreja, o ano jubileu é uma comemoração - a comemoração da vinda de Jesus Cristo ao
mundo. É o aniversário dum mistério, o mistério da Incarnação, o qual, em si mesmo, se anuncia
como uma dádiva de amor e de bem para com todos os homens e mulheres que vivem esta
existência finita, limitada, marcada por dores, angústias e ânsias de libertação. Ora, o mistério
pascal é justamente o da celebração desse Jesus que se deixa aniquilar, que se deixa matar, fiel a
um projecto de salvação de tudo e todos. Quaresma e ano jubileu são, assim, tempo de re-centrar
a nossa vida em Jesus Cristo e no seu Evangelho. Constituem tempo privilegiado para uma
leitura mais assídua e meditada dos evangelhos, para uma maior configuração com a vida e
projecto de Jesus, para uma relação mais intensa e pessoal com Deus pela oração. Tempo para
descobrir, em Jesus, a humanidade divinizada e a divindade humanizada. São tempo de busca da
luz, a luz que nos guia na vigília pascal e nos há-de guiar em toda a vida: Jesus é a nossa luz, só
Ele é caminho, verdade e vida. Tempo, pois, de recusa e abandono de todos os ídolos que se
queiram converter em absoluto nas nossas vidas.
Outro aspecto de profunda conexão entre jubileu e quaresma é o que nos desvenda o ideal e a
prática da peregrinação. Quaresma aponta necessariamente para os quarenta anos de
peregrinação do povo bíblico no deserto, para os quarenta dias de errância de Jesus também no
deserto. A peregrinação a Roma, a Jerusalém, ou a qualquer outro lugar, é também uma nota
fundamental do jubileu. Assim como Jesus veio do Pai e para ele regressou, através da sua
Incarnação e Ressurreição, assim também a vida do cristão há-de ser uma peregrinação contínua,
uma conversão contínua. Tomamos mais consciência de que deus é o único e verdadeiro Senhor
do tempo e da história, que tudo vem d'Ele e se encaminha para ele. Isso é motivo de celebração,
de festa, de paragem interior e louvor... mas é também compromisso de caminhar em busca de
aperfeiçoamento, em busca do limar de todas as arestas que ainda nos impedem de ser santos
como Deus é Santo, de ser perfeitos como o Pai é perfeito.
Finalmente, parece-me importante destacar um outro nexo entre jubileu e quaresma: a libertação
de todas as cadeias de morte que sempre afectam pessoas e sociedades, hoje como ontem. O ano
jubileu, que a Bíblia diz celebrar-se todos os cinquenta anos, era uma instituição que, no
seguimento do que se vivia no dia de sábado e no ano sabático (de 7 em 7 anos), servia para
práticas autenticamente revolucionárias (mesmo se não temos a certeza de que tudo se fazia
como estava prescrito na Bíblia...), tais como libertação dos escravos, possibilidade de regresso
ao seu clã/família, perdão de todas as dívidas, recuperação do património pela devolução dos
bens aos antigos proprietários, repouso da terra onde os pobres podiam ir recolher do que
necessitassem, etc. etc. Todas estas medidas tinham uma intenção: dar a oportunidade a todos de
um recomeçar a partir do zero, começar uma vida nova. E é bem uma perspectiva quaresmal: a
preparação da ressurreição, a preparação dos 'novos céus e nova terra' pede uma conversão de
mentalidades e de atitudes e de estruturas e de leis e de instituições e de costumes que, muitas
vezes, matam a vida plena que Jesus quer que vivamos. Reavivar, actualizando, as leis sociais do
jubileu bíblico, eis um desafio autêntico para a quaresma: amnistias de vária ordem? Restituição
a trabalhadores? Resgate de escravos (como o fez há pouco o Vaticano em relação a jovens da
Serra Leoa)? Perdão de dívidas dos países pobres? Mais abertura face a casais cristãos que
tiveram que refazer a sua vida?
Jesus fez a sua quaresma, os seus quarenta dias no deserto, "cheio do Espírito Santo", acabado de
receber o baptismo do Jordão (Luc. 4). Foi esse mesmo Espírito que guiou toda a vida de Jesus
para proclamar, viver e estabelecer, de facto, o Reino, o Ano da graça! É esse mesmo Espírito
Santo que nos será dado como indulgência maior e nos capacitará para viver todo o ano jubilar
em espírito quaresmal, em espírito de renovação das nossas vidas. Com Ele teremos forças no
nosso caminhar peregrino, com Ele ousaremos o desprendimento das cargas que nos matam e
destroem, com ele ganharemos a coragem para os combates da construção de um mundo mais ao
gosto de Deus e do Homem.
Iniciando a Quaresma, um "tempo favorável e de salvação", pode-se dizer que o seu espírito mais
genuíno é a vivência jubilar da libertação, que parte da sua primeira fonte e modelo que é o amor
de Deus: inteiramente gratuito, unicamente dom. Apenas uma condição é imposta pelos
recebedores: serem perdoados "como perdoamos aos nossos devedores". Isto se passa ao nível
interpessoal, mas também ao nível da própria família humana na sua globalidade.
Por isso o Papa, na Tertio Millenio Adveniente, indica com clareza que uma das formas de viver
o Jubileu passa pelo empenhamento dos cristãos em proporem que ele seja "um momento
favorável, entre outras coisas, a uma redução importante ou até ao perdão total da dívida
internacional".
Verificou-se esse envolvimento, que teve momentos altos nas manifestações por altura da
Cimeira do G8, primeiramente em Birmingham e, no passado mês de Junho, em Colónia. O mais
importante dos seus resultados não foi a redução conseguida, "migalhas de consolação", mas
sim, como diz a Directora da Coligação Jubileu 2000, constatar que "a criação de um novo
paradigma económico está surgindo pela crise financeira, por milhões de pessoas que estão
fazendo campanha em todo o mundo, por influência dos media e por estrelas do pop e pessoas
famosas que reflectem a mudança da forma de pensar do povo."
Também entre nós se deram alguns passos: o grupo dinamizador da Campanha pelo Perdão da
Dívida apresentou mais de 100.000 assinaturas, sinal da interpelação que foi para muitos e do
envolvimento para alguns. Há agora que continuar a desenvolver uma atitude crítica perante o
nosso mundo que se tornou numa aldeia, onde tudo o que é importante também nos diz respeito.
Em relação à Dívida Externa há que enquadrá-la na dramaticidade da situação, expressa nos
números, contemplada nas imagens dos media, e sentida no corpo e no espírito de tanta gente
com quem a nossa vida se cruza no dia a dia: os homens e as mulheres que deixaram as suas
terras para aqui tentarem sobreviver. E esses são apenas uma amostra deste mundo cada vez mais
perto e ao mesmo tempo cada vez mais contrastante, como nos é mostrado pelo Relatório do
Desenvolvimento Humano, segundo o qual os activos das 200 pessoas mais ricas são maiores do
que o rendimento conjunto de 41 % da população mundial; onde uma contribuição de 1% dessas
200 pessoas podia prover o acesso de todos à educação primária; onde a distância entre os países
mais ricos e os mais pobres, sendo de 3 para 1 em 1820, passou de 72 para 1 em 1992.
O apelo à conversão significa dar uma orientação nova às atitudes que não estão em sintonia com
o Reino de Deus. Falar do perdão da dívida implicará ultrapassar a atitude simplista de quem diz:
"se deves, paga" e passar para uma atitude mais crítica que permite perguntar: "perdoar para
quê ?" E nesta fase convém, em primeiro lugar, saber que, ao advogar o perdão, ninguém quer
beneficiar os ladrões e os corruptos, mas apenas aqueles que suportam os efeitos negativos de
dívidas que não contraíram; em segundo lugar, convencer-se de que o perdão não corresponde a
uma esponja passada por sobre os problemas, mas é um processo estruturado de forma a não
permitir a repetição do mal cometido; depois importa saber que as disponibilidades liberadas
pelo perdão devem ser devidamente monitorizadas por entidades independentes. E, acima de
tudo, é preciso acreditar que o perdão dignifica, eleva e liberta a quem o concede. Não tem
sentido falar de Jubileu sem a referência à libertação dos cativos de qualquer tipo; fazer um
Jubileu para Deus é tarefa completamente inútil, uma vez que foi Ele que o estabeleceu por causa
dos seus filhos que quer ver livres e felizes.
A campanha pelo perdão da dívida vai continuar, o problema do comércio internacional está a
preocupar mais a sociedade civil (lembre-se o que se passou em Seattle nos últimos dias do
milénio), a xenofobia provocará os nossos conceitos e atitudes (veja-se o caso de El Ejido, aqui
ao lado), a defesa da vida humana como valor fundamental também nos poderá interpelar
(recorde-se a campanha promovida pela Comunidade de Santo Egídio contra a pena de morte), o
relacionamento entre os países do Norte e os do Sul poderá despertar a nossa imaginação e
criatividade (não se esqueça que em Portugal funciona, durante este semestre, a Presidência da
Comunidade), o problema da guerra e da paz e especialmente o caso de Angola constitui um
sério apelo (esteja-se atento, pois vai ser levada a cabo uma campanha de recolha de assinaturas
entre as crianças em favor dessa causa).
Converter-se ao Senhor quer dizer virar-se para Ele, para o mundo novo que nos é proposto.
Virar-se também para o perdão da dívida, a qual constitui um dos ingredientes da confusão na
casa dos filhos de Deus.
d) É aqui que o Santo Padre insere a "purificação da memória" (IM 11), que é a celebração
propriamente dita do perdão, do perdão que se pede, do perdão que se oferece, porque a palavra
do perdão só pode ser ouvida, escutada, acolhida. A palavra do perdão ninguém pode dizê-la a si
mesmo. O perdão só pode ser dito aos outros e para os outros, ou escutado dos outros e pelos
outros. A purificação da memória é o sinal da presença do Espírito Santo, que cura as máculas do
coração sem deixar feridas; a memória purificada é condição da reconciliação e da alegria
jubilar, porque liberta o homem, liberta o cristão do ressentimento. E aqui tem de novo sentido a
indulgência, porque na indulgência, como perdão, implora-se que a Igreja purifique (colocando-
se em lugar deles) a memória dos que não podem, ou não sabem ou não querem; que ela
interceda por aqueles que desejariam ouvir ou dizer a palavra do perdão, que purifica e pacifica o
coração, mas não podem. Ela faz por nós o que nós não podemos fazer. Mas porque a memória é
a faculdade da identidade, purificar a memória é redescobrir a identidade, pessoal, social,
cultural, e mesmo eclesial, nesta época de esquecimentos e de desencontros. Mesmo se é feita
quase de passagem, como um entre tantos sinais, a purificação da Memória aparece como o
núcleo essencial do processo de conversão e de mudança, de uma urgência epocal nesta fase de
transição e de decadência cultural que nos é dado viver. Mas de uma purificação que não é
apenas das sombras (porque purificar não é o mesmo que apagar), mas sobretudo daquela
agostiniana confissão da experiência do perdão e da mudança, que só é possível no toque da
graça, no toque do Espírito Santo, o único que tem acesso ao interior inefável e misterioso do
coração humano. Como confissão, a purificação da memória tornar-se-á um cântico do louvor
agradecido, para o recomeço de uma nova etapa da história pessoal e comunitária, porque o que
fica para trás passou, o que importa é o que se aguarda, porque o Senhor faz novas (e as renova)
todas as coisas (2Cor 5,17-18: '...quem está em Cristo é uma nova criatura...'; Fil 3,12-14: '...
esquecendo-me do que está para trás e avançando para o que está adiante...')
c) A purificação da memória terá como consequência a caridade (IM 12), sobretudo na sua
forma de caridade social (e pastoral e fraterna, e tantas outras formas). A caridade, embora
esteja na sua origem, é também consequência do perdão e da reconciliação, da mudança de
vida, que reconverte o coração do homem para o próximo, para o irmão que se encontra ao
lado. Este talvez seja o maior desafio para as comunidades cristãs, chamadas a ser fermento,
oásis de frescura neste deserto histórico das indiferenças, da massificação, do anonimato.
d) A purificação da memória passará também pela memória dos mártires (IM 13), que nos
remete para a história da santidade, para a história da Igreja que tem nos mártires de todos os
tempos, do passado como do presente, os melhores dos seus filhos, que se identificaram com
o Senhor no derramamento do seu sangue. A purificação da memória pela evocação do
testemunho dos mártires permitirá a redescoberta da unidade reconciliada da vida, na
coerência interna da palavra e da acção, da verdade, da liberdade e do amor.
g) A Virgem Maria (IM14), aquela que interiorizava no seu coração o que escutava, escuta que é
acolhimento do mistério da Incarnação do Verbo de Deus, aquela que é a mãe de Deus, da Igreja
e nossa mãe, é o modelo perfeito da vivência do ano jubilar, porque é a figura excelsa da Igreja,
dócil acolhimento do Verbo Incarnado e missão de O manifestar, de O dar à luz como redentor
do homem.
Tomando como referência a tentação satânica de Jesus Cristo no deserto, podemos ver nessas
tentações a sedução pelo 'carpe diem', em torno do prazer, da honra e do poder, por exemplo, na
tentação e sedução de aparecer permanente sob as luzes da ribalta, de protagonismo, etc., e pela
sedução do ter, da riqueza, do uso dos bens, da fruição de si. Aqui está a insinuação diabólica de
um modelo de homem conseguido, de homem plenamente realizado...
Mas esse não é o caminho que Cristo segue, não é o caminho cristão. Pelo contrário, Jesus
contrapõe outro modelo de homem, não do adâmico ou do trágico, mas sim o caminho do servo
(Is 52-53), caminho paradoxal do escondimento, da pequenez e da insignificância, representado
pelas três respostas de Jesus Cristo a Satanás, aqui sintetizadas em torno da oração, do jejum e da
esmola, como caminho outro ou como modelo de um outro tipo de humano que se colhe na
atitude de fé (obediência), ou seja, de confiante entrega ao mistério de Deus, que se vive na
atitude de esperança (pobreza), segundo a lógica do Espírito Santo, que abre o homem para a
perfeição do amor (caridade) do Pai (castidade).
Pode ver-se neste quadro o cruzamento da espiritualidade quaresmal, com os conselhos
evangélicos, com as virtudes teologais, com os dons do Espírito Santo e, finalmente, como raiz
última, com as pessoas da Santíssima Trindade.
Por trás, por conseguinte, da espiritualidade cristã (comum, aliás, como único caminho, mas que
pode ser percorrido de muitos modos) está o projecto divino do humano, as bases ou alicerces,
como que os princípios arquitectónicos de uma antropologia segundo o caminho e o ideal da
santidade, que é seguimento e participação no mistério da Santíssima Trindade, o tema por
excelência de contemplação e de adoração neste ano jubilar.
Das comunidades cristãs em ano jubilar - e, neste ponto espera-se muito sobretudo das
comunidades religiosas propriamente ditas, que, segundo a grande teologia da tradição
monástica, podem e devem ser consideradas como autênticos laboratórios da existência cristã
comprometida na radicalidade do seguimento de Cristo no caminho da caridade solidária,
daquele paulino "já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim"(Gal 2,20), - espera-se
uma profunda transformação, uma profunda renovação espiritual e apostólica, no sentido de
reencontrar-se, se é que se perdeu, aquela atmosfera de acolhimento, de recolhimento, de
silêncio, e de alegria cristã que decorrem de uma existência austera e pacificada.
A Quaresma que se aproxima é um tempo propício de perdão e reconciliação que, este ano,
participa da grande Graça do ano jubilar. A Quaresma é constituída por duas linhas de força: a
memória do baptismo e a prática da penitência a partir da certeza que o próprio justo peca sete
vezes ao dia por isso todos precisamos de perdão: receber perdão e conceder perdão.
Nesta situação de vivência quaresmal e jubilar, torna-se então mais urgente o apelo forte que nos
vem daquela norma evangélica que constitui, sem dúvida, um ideal elevado que nos é imposto
pelo seguimento de Jesus Cristo: "Não te digo que (perdoes) até sete vezes sete, mas até setenta
vezes sete" (Mt. 18,22).
Esta mesma norma, de espírito novo, é necessária para o cristão ser sal da terra e luz do mundo
(Mt. 5,13-14), participando de forma eficaz para transformar a sociedade dos homens.
Quem está atento aos sentidos que o mundo toma e é sensível aos valores humanos e à dignidade
da pessoa, reconhece que é necessário arrepiar caminho para criar um "mundo novo", com uma
cultura de humanismo e de paz e não de materialismo e de violência., como lucidamente se
exprime, no âmbito da UNESCO, Frederico Mayor, no seu livro recente "Un Monde Noveau".
Há pedras fundamentais na construção de um mundo diferente, mas entre as principais está, sem
dúvida, o reconhecer o mal que toma o nome de injustiça, de violência, de agressão e de
encantonamento dos mais fracos nas zonas da indignidade. O mal tem sempre uma dimensão
social: afecta quem o pratica e a quem o suporta. E é precisamente nessa juntura social que é
indispensável o perdão: pedir perdão e conceder perdão, no espírito do ideal das 70 vezes sete,
que sintoniza com o objectivo do Jubileu original que era o restabelecimento da igualdade entre
todos os filhos de Israel e a saída de si mesmo e da sua instalação para ir em socorro dos mais
pobres.
Não é situação do passado, nem do século XIX, nem do princípio deste século XX, a fractura
entre ricos e pobres. Hoje, essa fractura só tende a aumentar. Num mundo de mais riqueza, há
cada vez mais pobreza. E a riqueza existe nos ricos e a pobreza nos pobres. Não são entidades
abstractas. Na segunda metade do século XX, o rendimento mundial cresceu sete vezes mais,
enquanto o rendimento médio por pessoa só cresceu três vezes mais. Entre 1960 e 1995, os mais
ricos tiveram um aumento de rendimento de 70% para 86%, enquanto os mais pobres perderam
rendimento de 2,3% para 1,3%.
Estes números são o indicativo de que as desigualdades agravaram-se nos últimos anos e elas são
causadas pelos pecados dos homens.
Será que esta situação ainda desperta, por si mesmo e por forças envolventes, ondas de ódio
contra os que possuem bens volumosos?
Temos que criar condições para que o ódio e a violência não triunfem nos corações, mas cresça
em todos o espírito da paz e do perdão (cf. CA, 27). Isso deve levar a mobilizar os recursos em
ordem ao crescimento económico dos fracos e ao desenvolvimento das capacidades dos pobres
(cf. CA, 28).
O Jubileu é um tempo de espírito e de conversão do coração e de mudança de vida que têm
necessariamente origem no perdão que imploramos a Deus e que estamos dispostos a dar, na
dimensão do ideal evangélico dos 70 vezes 7. Na verdade o perdão é a grande manifestação do
espírito de Deus e é a condição essencial para a construção do mundo novo que é indispensável
não só para a felicidade, mas mesmo para a sobrevivência da vida humana.
O Secretariado procurará ter sempre presente a nova sensibilidade do nosso tempo, quanto à
Quaresma, a partir da sua restauração litúrgica com o Concílio Ecuménico Vaticano II.
Relativamente à actual celebração litúrgica da Quaresma, o Vaticano II, na Constituição
Sacrosanctum Concilium, no artigo 109, recomenda o seguinte: "Ponham-se em maior realce,
tanto na liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo
quaresmal, que pretende, sobretudo através da recordação ou preparação do Baptismo e pela
Penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à
oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:
a) Utilizem-se com maior abundância os elementos baptismais próprios da liturgia quaresmal e
retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição;
b) O mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos,
de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria da Penitência, que é a
detestação por ser ofensa de Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática
penitencial, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores".
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