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VITÓRIA
2008
“Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos, meus pobres enganos
Os meus vinte anos, o meu coração
E além de tudo me deixou mudo um violão”1
1
“ A Rita”, Música composta por Chico Buarque de Hollanda, em 1965, após a instalação do
Golpe militar, utilizando de metáforas para falar da Ditadura Militar.
2
“Agora falando sério” também é uma composição de Chico Buarque de Hollanda, 1969. Trazido
nos títulos por entender a importância da arte como meio de contestação política e em especial
no período da Ditadura Militar no Brasil, onde tivemos várias composições e produções de
mobilizações. Canções que também serviram como registro desse momento histórico.
as focinheiras e tornem-os dóceis.” A idéia era e continua sendo mesmo silenciar
a história, ou melhor, mascarar uma parte da história.
A velha história de que não temos nada a ver com isso…
No nazismo também não foi assim? Penso que ele só foi possível porque não se
“sabia” o que acontecia nos campos de concentração… Mortes e estilhaços de
corpos acontecendo no quintal vizinho, mas não se sabia o que estava
acontecendo. A não ser quem foi marcado, quem esteve lá.
Não se pode falar de tudo. Não se pode falar de todo nazismo, nem das torturas,
nem das prisões. O que se sabe é o que se viu e ainda se vê: Em nome da paz
justifica-se qualquer guerra.
E o que eu faço com a história a mim contada? Mal contada?
O que meus pais sabem sobre a ditadura? Burgueses comportados!
Não precisava ser militante. Não um militante especialista. Servia aqueles das
lutas cotidianas, micro, aquelas que não precisam de gritos altos, mas só de uma
vontade de fazer diferente. Essa militância que serve pra mim. Essa que na
tenuidade da vida, escapa para outros contornos e cores. Militância que não
busca porta-vozes, mas sim combates ao lado da vida, em favor da vida e de sua
expansão junto às paixões, sons, pinturas. Evitando sempre o enrijecimento e a
guetorização, mas multiplicando alianças e forças dia-dia, trilhando as mais
variadas estradas. Expansão do mundo, onde não há o descarte dessa guerra
nossa de cada dia e nem das individualidades das lutas.
3
Convulsionado por uma série de acontecimentos como maio de 68 na França, e seus reflexos no
resto do mundo, e no caso do Brasil, o Ato Institucional nº 5, em 13 dezembro, que marcaria o
início da fase mais crítica da ditadura militar no Brasil.
4
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p.16.
Este trabalho poder ser um dispositivo para tentar capturar um pouco do que tem
me atravessado nesses últimos meses. A partir de experiências compartilhadas e
histórias que se formaram e que se fazem, acredito que o presente, por ele se
diferir dele mesmo, pode ser mudado hoje. Vou chamar de utopia ativa, uma
possibilidade de transformar os ecôos de algo que já aconteceu. Estranho, mas
creio ser possível. Acho que já está acontecendo. Utilizar da história como
instrumento de lutas que se dão hoje. Vou ouvir outra história que por vários
motivos foi impedida de aparecer e de ser contada. Daí surgem outras memórias,
outros encontros, outro presente, outro trabalho.
5
Trecho da música “Hino da repressão”, Chico Buarque, 1985.
6
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no
Brasil do “Milagre”, oficina do autor, Rio de Janeiro, 1995, p.205.
terrorismo de Estado em diferentes setores e áreas. Por isso a máquina perversa
pôde se manter azeitada e funcionando.
Apesar do silenciamento e desses exemplos de práticas “psi”, que nos anos 70
colaboraram para sustentar o estado de terror que se abateu sobre o país,
podemos trazer também alguns “gritos” seja entre os psi ou/e afins, que
apareceram como outras práticas possíveis, formas de resistência, movimentos
sociais, protesto, sempre em favor dos Direitos Humanos.7
10
RODRIGUES, H. de B. C. Direitos Humanos e Intervenção Clínica. Em: C. M. B. Coimbra,
(coord.). Psicologia, Ética e Direitos Humanos: Comissão Nacional de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia. Brasília. 1998, p. 78.
11
COIMBRA,Cecília Maria Bouças. Gênero, Militância e Tortura. Strey, Marlene; Azambuja,
Mariana & Jager, Fernanda (orgs). Violência, Gênero e Políticas Públicas, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004, p.45-62.
Entendemos que não se trata de vítimas, são guerreiros da e pela vida,
sobreviventes que buscam a reafirmação da vida sempre. Uma sobrevivência
que deve ser tratada com cuidado para não se tratar apenas numa alternativa a
morte. Trata-se de “lutas pela vida que apontam para muito mais: uma vivência
absolutamente possível, potente, prazerosa e inventiva”. 12
O silenciamento tem que ser pensado e questionado já que se produz como algo
natural da história, a morte, a dor, a impunidade. Ele distorce vivências, produz
tristeza, fragilidades e impotência. Há uma naturalização de práticas de extinção
da vida. Quando pensamos no nazismo, era normal que os judeus morressem,
assim como foi produzido que os contrários ao governos eram traidores da pátria
e colocavam em risco a segurança do regime. Era assim que se justificavam as
práticas violentas, torturas e prisões e desaparecimentos com o intuito de
contenção. Contenção, que segundo COIMBRA e LEITÃO13, não é somente a
título de punição e exemplo, mas objetivando a produção de uma outra história: a
história oficial que tenta ocultar os pensamentos, as práticas, os movimentos e a
potência de grupos comprometidos com a possibilidade de transformação social.
12
RODRIGUES, H. de B. C. Direitos Humanos e Intervenção Clínica. Em: C. M. B. Coimbra,
(coord.). Psicologia, Ética e Direitos Humanos: Comissão Nacional de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia. Brasília. 1998, p. 78.
13
COIMBRA, Cecília Maria Bouças ; LEITÃO, Maria Beatriz Sá. Direitos Humanos e a Construção
de uma Ética Militante; Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. p.171.
começaram a dar destaque à questão da violência nos
grandes centros urbanos, em especial, no Rio de Janeiro e
em São Paulo. A crença de que vivemos em um estado de
guerra apodera-se, em especial, das classes média e alta,
que se trancam em condomínios fechados, em prédios de
apartamentos, com a ilusória esperança de abandonar a
insegurança, e/ou utilizam guaritas e guardas armados,
fechando ruas e usando portões eletrônicos. Com isso,
crescem as fábricas e o mercado de equipamentos de
segurança, alarmes, câmeras de circuito fechado de
televisão; enfim, desenvolve-se uma promissora indústria
de segurança. Não satisfeitos com tais medidas, muitos
recorrem a cães ferozes e a cercas eletrificadas para se
proteger.14
Pensar essas práticas policiais hoje frente aos pobres é voltar a teorias racistas
na aliança perigosa com a tecnologia, produzindo práticas de eugenia e práticas
14
COIMBRA, Cecília Justiça e Segurança Pública. Trabalho apresentado no Ciclo de Debates
“Psicologia e Preconceito Racial”, organizado pelo CRP-SP, em 10 de julho de 2003.
15
Idem.
higienistas, com suas regras de higiene, onde há uma forma de se cuidar do filho
que não seja na sujeira, na má alimentação. Nessa mídia, forjam-se verdades
que permitem a população aceitar essas operações no Rio. Como diz Cecília
Coimbra16,
“sem sombra de dúvida, os estereótipos em relação aos
pobres de hoje são os mesmos que foram utilizados para
os "subversivos" de ontem. (...) “Da mesma forma que se
construíram perigosos ‘inimigos da Pátria’ nos anos 60 e
70, também hoje, principalmente via meios de
comunicação de massa, estão sendo produzidos ‘novos
inimigos internos do regime’, quais sejam, os segmentos
mais pauperizados, todos aqueles que os ‘mantenedores
da ordem’ consideram ‘suspeitos’ e que devem, portanto,
ser evitados e, mesmo, eliminados".
E nesse sistema de segurança, vemos a volta do “esquadrão da morte”.
“Os Esquadrões da morte, principalmente nos anos 70,
foram utilizados – segundo as informações veiculadas pela
mídia- como instrumentos para “diminuir” os índices de
criminalidade entre as populações marginalizadas. Ligam-
se também à polícia política, fazendo parte do chamado
“sistema de segurança”. Tanto no Rio quanto em São
Paulo, os “Lideres” do “Esquadrões da Morte”, ao fazerem
parte do aparelho repressivo, como OBAN, DOI-CODI/SP,
DOI-CODI/RJ17, transmutam-se como em heróis nacionais,
intocáveis pela justiça. Os que se dispõem a apontar os
violentos crimes por eles cometidos passam a ser
16
Em seu livro “Operação Rio – o mito das classe perigosas: um estudo sobre a violência
urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública”. Niterói, Rio de janeiro, 2001.
17
Esses órgãos emergiram em 1968 como forças unificadas antiguerrilha com financiamentos
privados e públicos: a operação bandeirante (OBAN), e no começo dos anos 70, a OBAN se
institucionaliza como DOI/CODI – destacamento de operações e informações /centro de
operações de defesa interna- em cada região militar do país, estruturam-se os DOI/CODI s, o que
significa uma integração maior entre os organismos repressivos já existentes, passando a dispor
do comando efetivo sobre todos os órgãos de segurança existentes numa determinada região
militar. Tais são seus poderes e força que, no inicio dos anos 70, chega-se a falar da existência de
um verdadeiro Estado dentro do Estado. (pag.21)
identificados como “inimigos do regime” e tratados como
tal”.18
18
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no
Brasil do “Milagre”, oficina do autor, Rio de Janeiro, 1995, p. 21.
momento, ou seja, todo morador da favela, ou dos bairros com famosas bocas de
fumo e famosos pela criminalidade, são perigosos em potencial. Por conta disso,
pouco importa os relatos de quem vive e convive nesse meio marginal. Não
adianta eles falarem que tem mais medo da polícia que simplesmente “arromba
as portas e entra batendo”, do que dos bandidos. E assim cada vez mais se
investe em práticas repressivas, a pedido inclusive da população aterrorizada
pelos crimes e violência que pensam não ter relação de fato com essa situação.
Investe-se em repressão, em prisões, em armamentos… cada vez mais no
extermínio. Pelo medo, cala a sociedade, leva a uma hipnose social, a uma
cumplicidade.
Numa entrevista com Marcelo Yuka19, um músico carioca, ele fala sobre a forjada
segurança em que a população acredita que as armas trazem proteção:
“Por que não tem invasão social? Por que não invade com
hospital, escola? Em vez de caveirão, carro do sacolão.
Combater tiro com tiro é uma burrice tão grande que chega
a ser medieval. A palavra justiça é muito fiel a seus
19
Entrevista encontrada no site fazendomedia.com, de Marcelo Salles, com o título “ 6
perguntas para Marcelo Yuka”.
princípios. É seguir a lei, nem mais, nem menos. Quem dá
o tratamento do traficante não é o presidente ou a polícia, é
a lei. E lá não tem pena de morte. E lá não diz que quem
mora perto pode ganhar tiro. Tem uma questão ainda mais
profunda, entre moral e ética. Não é ético arriscar tantas
vidas numa operação, mas a moral vê a limpeza como algo
bom. Quando alguém é seqüestrado, há uma grande
mobilização de policiais, da mídia, e o Estado mostra que
dá valor à vida. Mas o mesmo não acontece nas operações
em favelas. É por isso que eu digo: existe carne de
primeira e carne de segunda. Uma é bem localizada, tem
direito à vida. A outra é mal localizada e seu direito à vida
não é respeitado.” (grifo meu)
Pensar esse tipo de poder é também pensar em resistência, que também pode
ser pensada pela via da invenção, do campo do sensível, que vaza o campo da
percepção. É buscar na memória, o que ela pode trazer de potência e
transformação em sua própria história, na medida em que interfere em práticas
que ela mesma desdobrou e produziu. Trazer as resistências de ontem é traçar
estratégias para lidar com as formas de eliminação que se dão hoje, uma vontade
de combate em nós que se torna mais palpável quando se entende o porquê de
20
Trecho da música “O bêbado e a Equilibrista” de João Bosco, 1979. Sinaliza também as marcas
deixadas em tantos corpos e vidas e a luta pela anistia e volta dos exilados. Maria era mãe do
Herbert José de Sousa, conhecido como Betinho, um sociólogo e ativista dos direitos humanos
que com o aumento da repressão, foi obrigado a se exilar no Chile em 1971. Clarice no trecho é a
mulher do jornalista assassinado na ditadura Vladimir Herzog.
querer se garantir Direitos Humanos e tudo que ele engloba. Esse porquê fica
claro quando lançamos mão dessa outra história que existe. Uma história viva
que existe na fala de quem lutou e guerreou na época do regime, e que afeta
também quem só foi nascer em outras datas... “memória que não é privada, mas
é de todos. As histórias dos outros que sempre serão nossas.”21
São esses bons encontros que nos fazem insistir em vidas nômades, pensar
sempre em outros possíveis a partir de um desenvenenamento dos corpos e
práticas. Transformação da história, ou melhor, o conto de uma outra história que
de tão real, ainda deixa marcas e cicatrizes, sejam elas físicas ou/e na alma.
Tanto faz. Sem essa dicotomia de corpo e alma. Não há possibilidade da alma
não sentir a dor que se passou nos tantos corpos torturados e nem de, no corpo,
não aparecer as conseqüências de um passado que por tantas vezes aterrorizou
vidas, abafou desejos sem precisar tocar na pele, mas que por tocarem na alma,
machucaram o corpo. “Sabem muito bem que, assim como o corpo, a alma só
pode suportar um certo número de golpes”. Golpes que não são oculares,
visíveis, mas que massacram, separam, matam. Dores que exigem um certo tipo
de esquecimento da memória. “Não se trata da memória do visível, das imagens,
mas a memória da dor, da humilhação, do golpe quase mortal que sofreu seu
desejo quando foi atropelado pela forças reativas do “milagre brasileiro”. Querem
isolar o tumor, a ferida, o pedaço envenenado do seu corpo vibrátil, para que não
se contamine o resto, o atual, com seu efeito despotencializador. Querem que
aquele seu corpo possa vibrar novamente. Querem seguir vivendo…” 22
Jamais esquecer que nessa outra história apreendida, formaram-se guerreiros,
uns mutilados, outros mortos, outros desaparecidos. Uma luta que não pode
negar a intoxicação deixada nas armas dos combatentes, ou seja, nos corpos.
Uma história que não vem como saudosismo, um “recordar melancólico”, “mas
uma tentativa de trazer esses tempos em suas mais diversas dimensões, com
todas as marcas, com toda a paixão e a vida ali presentes.” 23
21
COIMBRA, Cecília Maria Bouças; LEITÃO, Maria Beatriz Sá. Direitos Humanos e a
Construção de uma Ética Militante; Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 –
jan./jun. 2007, p. 175.
22
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo /
Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007, p.165.
23
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no
Brasil do “Milagre”, oficina do autor, Rio de Janeiro, 1995, p. 350.
Paixão e acontecimentos que vibram junto a mim, sacodem e me faz pensar no
que vivemos hoje. Algumas práticas de violência parecidíssimas e que da mesma
forma, nos tendem ao silenciamento, a acomodação e a conivência. Porém, a
perversidade dessa “história oficial” que sombreia os embates e projetos,
silenciando as utopias que aconteceram nas noites frias da ditadura, não impede
que escape essa outra história, nos invadindo e nos convidando a cavar essa
memória ignorada e afirmar hoje novas estratégias de lutas. Lutas para uma
possibilidade de justiça, de vida. Luta contra a impunidade e contra uma política
hipócrita e silenciosa. Fazemo-nos assim testemunhas dessa outra história. Uma
história que não foi vivida por nós de forma ocular, mas permite ser sentida com
toda força. Outra idéia de testemunha que está além da vivência de um fato, mas
que nos torna presente na cena ao aceitarmos as palavras vivas de quem narra
com o corpo os sofrimentos e lutas.
Penso que trazer essa trajetória, falar sobre ela, já é ação. Ação em uma geração
que por mais distante que esteja da Ditadura de 64, pode se afetar intensamente
com as histórias coletivas e as dores que se tornam nossas. Entender que a
reflexão do passado pode trazer maior força contra as ditaduras que nos
atravessam hoje junto às práticas de violência e extermínio da vida e dos
desejos. Essa retomada pode evitar que troncos e chibatadas se reproduzam e
se repitam infinitamente, sempre sob o mesmo pretexto de se buscar a paz e
evitar a desordem dos terroristas e criminosos.
Ousar tracejar uma outra história, inventar um outro presente … Eis o nosso
grande desafio que se transforma a cada dia!