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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
TÓPICOS ESPECIAIS EM PSICOLOGIA ESCOLAR I

ARIELLE ROCHA DE OLIVEIRA SILVA

MEMÓRIAS DE UMA OUTRA GUERRA


Mitos e Histórias

VITÓRIA
2008
“Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos, meus pobres enganos
Os meus vinte anos, o meu coração
E além de tudo me deixou mudo um violão”1

Agora falando sério2

No momento, as questões são grandes, enigmáticas e variadíssimas.


Vou arriscar escrever um pouco sobre a coisa da violência, e como ela atravessa
espaços e histórias em diferentes épocas. A partir de pedaços de histórias da
Ditadura militar vivenciada aqui no Brasil, tentar borbulhar em palavras, outras
inquietações. Percebi que até ontem, fui mera ouvinte dessa época, assim como
tantos de nós somos acerca do nazismo que ocorreu na Alemanha e das suas
outras formas que ainda reverberam entre nós das mais variadas formas.
A idéia é tentar pensar o que a ditadura tem a ver comigo hoje, com a minha
geração.
Uma geração ouvinte produzida por um silenciamento da história…
O que é produzido, quando pessoas que não viveram essa época ouvem sobre
ela? A partir disso, tentar relacionar fatos: seja da Ditadura aqui, na Alemanha,
ou/e nas atuais democracias e suas influências nas instituições hoje
Há poucos anos nossos jovens eram torturados, calados e mesmo assim ainda
eram afetados, provocados e convocados a manifestações, sejam elas as mais
sutis.
O que é produzido em nós quando ouvimos que pessoas foram torturadas por
insistirem em outras possibilidades de exercício de poder, que não passasse pelo
abafamento das vozes e desejos e pela violência, buscando alternativas ao
indignante poder vigente?
Divulgava-se a idéia do subversivo, dos terroristas, os esquerdistas que no final
das contas só queriam a baderna e os conflitos. “É claro que eles tinham de ser
presos. Onde já se viu? Sair pelas ruas falando das coisas secretas do governo,
desafiando as autoridades. Bando de cães nervosos! Acabem com eles, apertem

1
“ A Rita”, Música composta por Chico Buarque de Hollanda, em 1965, após a instalação do
Golpe militar, utilizando de metáforas para falar da Ditadura Militar.
2
“Agora falando sério” também é uma composição de Chico Buarque de Hollanda, 1969. Trazido
nos títulos por entender a importância da arte como meio de contestação política e em especial
no período da Ditadura Militar no Brasil, onde tivemos várias composições e produções de
mobilizações. Canções que também serviram como registro desse momento histórico.
as focinheiras e tornem-os dóceis.” A idéia era e continua sendo mesmo silenciar
a história, ou melhor, mascarar uma parte da história.
A velha história de que não temos nada a ver com isso…
No nazismo também não foi assim? Penso que ele só foi possível porque não se
“sabia” o que acontecia nos campos de concentração… Mortes e estilhaços de
corpos acontecendo no quintal vizinho, mas não se sabia o que estava
acontecendo. A não ser quem foi marcado, quem esteve lá.
Não se pode falar de tudo. Não se pode falar de todo nazismo, nem das torturas,
nem das prisões. O que se sabe é o que se viu e ainda se vê: Em nome da paz
justifica-se qualquer guerra.
E o que eu faço com a história a mim contada? Mal contada?
O que meus pais sabem sobre a ditadura? Burgueses comportados!

A sensação é de que resolvi combater a história forjada. Afinal, o que acontecia


aqui na década de 70? O mundo vivia coisas em 1968, 3. Os motivos para se
inserir na luta eram vários. Havia uma verdade revolucionária. Verdade que,
explica Guattari4, “acontece quando as coisas não te enchem o saco, quando
você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera
sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer,
correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuar em maio de 68; todo
mundo entendia de cara.”

Não precisava ser militante. Não um militante especialista. Servia aqueles das
lutas cotidianas, micro, aquelas que não precisam de gritos altos, mas só de uma
vontade de fazer diferente. Essa militância que serve pra mim. Essa que na
tenuidade da vida, escapa para outros contornos e cores. Militância que não
busca porta-vozes, mas sim combates ao lado da vida, em favor da vida e de sua
expansão junto às paixões, sons, pinturas. Evitando sempre o enrijecimento e a
guetorização, mas multiplicando alianças e forças dia-dia, trilhando as mais
variadas estradas. Expansão do mundo, onde não há o descarte dessa guerra
nossa de cada dia e nem das individualidades das lutas.

3
Convulsionado por uma série de acontecimentos como maio de 68 na França, e seus reflexos no
resto do mundo, e no caso do Brasil, o Ato Institucional nº 5, em 13 dezembro, que marcaria o
início da fase mais crítica da ditadura militar no Brasil.
4
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p.16.
Este trabalho poder ser um dispositivo para tentar capturar um pouco do que tem
me atravessado nesses últimos meses. A partir de experiências compartilhadas e
histórias que se formaram e que se fazem, acredito que o presente, por ele se
diferir dele mesmo, pode ser mudado hoje. Vou chamar de utopia ativa, uma
possibilidade de transformar os ecôos de algo que já aconteceu. Estranho, mas
creio ser possível. Acho que já está acontecendo. Utilizar da história como
instrumento de lutas que se dão hoje. Vou ouvir outra história que por vários
motivos foi impedida de aparecer e de ser contada. Daí surgem outras memórias,
outros encontros, outro presente, outro trabalho.

O QUE HOJE É BANAL, UM DIA VAI DAR NO JORNAL5


Nesse tempo, década de 60 e 70, busca-se um perfil psicológico dos “terroristas”,
difundindo a idéia de que os filhos da classe média não passavam de uns
“desequilibrados” que precisavam de tratamento. Assim, com essas práticas
intimistas, a privacidade se torna importante para a saúde da família, deixando
por conta do Estado os assuntos políticos, de forma que há um desvio de
interesse onde as pessoas ficam preocupadas apenas na manutenção da família
e na suas histórias particulares. Há uma utilização das técnicas psi pelo regime
militar no sentido de patologizar a militância política da época e as tentativas
daqueles senhores fardados de, naturalizando a ditadura e psicologizando o
cotidiano, responsabilizar os núcleos familiares pela dissidência e desajuste dos
jovens militantes. Traça-se um “perfil subversivo” justificados por fatos como, pais
separados, não conheceu a mãe, não se dá bem com a madrasta… práticas de
culpabilização e responsabilização do outro que vigora até hoje, explicitamente
em nossos “campos escolares de concentração”. Jogo político, respaldado por
saberes de profissionais/especialistas, que afirma a prática de se produzir o
silenciamento de outras histórias que se entrecruzam nos processos políticos.
Sobre isso, nos fala Coimbra,6 que em todas as ditaduras latino-americanas e
durante o nazismo, o regime de força só conseguiu se sustentar por tanto tempo,
porque existiram profissionais que, empregando seus saberes, deram apoio ao

5
Trecho da música “Hino da repressão”, Chico Buarque, 1985.
6
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no
Brasil do “Milagre”, oficina do autor, Rio de Janeiro, 1995, p.205.
terrorismo de Estado em diferentes setores e áreas. Por isso a máquina perversa
pôde se manter azeitada e funcionando.
Apesar do silenciamento e desses exemplos de práticas “psi”, que nos anos 70
colaboraram para sustentar o estado de terror que se abateu sobre o país,
podemos trazer também alguns “gritos” seja entre os psi ou/e afins, que
apareceram como outras práticas possíveis, formas de resistência, movimentos
sociais, protesto, sempre em favor dos Direitos Humanos.7

“O grupo Tortura Nunca Mais, que surgiu em 1985,


aparece mesmo na época que essa história estava
esvaziada e enfraquecida e no momento em que o
terrorismo de estado estava deixando de ser questionado.
Na função de esclarecer as situações de tortura, mortes e
desaparecimento de presos políticos e denunciar
processos de violações de Direitos Humanos.” 8

Sobre a proposta desse movimento, Coimbra sinaliza:

Por mais perigoso, delicado e doloroso que seja, o ato de


denunciar, de falar sobre as violações que sofremos, ele é
o início de uma caminhada fundamental para que histórica
e socialmente possamos viver com os terríveis efeitos
produzidos em nós por tais práticas. A fala, a denúncia, o
tornar público, nos retiram do território do segredo, do
silêncio, da clandestinidade.9

Junto a isso, a idéia é questionar essa mercantilização da memória, onde há uma


compensação financeira para os familiares das vítimas da violência produzindo a
7
Em seu livro, citado na nota anterior, Cecília traz outras práticas psi, como o Psicodrama, final
dos anos 60 e início dos 70, que entre outras coisas, tenta fugir do monopólio psicanalítico,
apostando em outras formas de pensar a terapia. Uma terapia que “traz o direito de cidadania
para o corpo humano”. Ela traz também o movimento da Análise Institucional, durante a década
de 80, conseqüência do movimento institucionalista francês.
8
RODRIGUES, H. de B. C. Direitos Humanos e Intervenção Clínica. Em: C. M. B. Coimbra,
(coord.). Psicologia, Ética e Direitos Humanos: Comissão Nacional de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia. Brasília. 1998, p.70.
9
COIMBRA,Cecília Maria Bouças. Gênero, Militância e Tortura. Strey, Marlene; Azambuja,
Mariana & Jager, Fernanda (orgs). Violência, Gênero e Políticas Públicas, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004, p.45-62.
idéia capitalista de que “Pagou, reparou, pagou, esqueceu”! É uma luta pela
publicização dos fatos, dessa outra história que em muito está escondida nos
arquivos da Ditadura, buscando com isso não uma vitimização dos envolvidos,
nem considerando-os coitados que precisam da ajuda do Estado,

“Cremos que a construção do lugar do vitimado faz


funcionar um movimento de despotencialização política e
uma rede de transformação das violências sociais em
problemas individuais que favorecem o isolamento,
constituído no silêncio solitário10”

Por isso, há a tentativa de se produzir algo de novo na vida dessas pessoas,


outra relação com o mundo, de maneira que a publicização só faz sentido nesse
contexto de investigação, esclarecimento a fim de reconstruir a dignidade dos
envolvidos. Trazer junto com as experiências de resistências as lembranças das
propostas e projetos das lutas que os moviam.

Com isso, podemos sair do lugar de vítima fragilizada,


despotencializada e ocuparmos o da resistência, da luta,
daquele que passa a perceber que seu caso não é um
acontecimento isolado; ele se contextualiza, faz parte de
outros e sua denúncia, esclarecimento e punição dos
responsáveis abre espaço e fortalece novas denúncias,
novas investigações. A dimensão coletiva desse caminho
se afirma e, com isso, temos a possibilidade de começar a
tocar na impunidade; de mostrar que tal quadro – onde as
punições nunca acontecem – pode ser mudado, pode ser
revertido11.

10
RODRIGUES, H. de B. C. Direitos Humanos e Intervenção Clínica. Em: C. M. B. Coimbra,
(coord.). Psicologia, Ética e Direitos Humanos: Comissão Nacional de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia. Brasília. 1998, p. 78.
11
COIMBRA,Cecília Maria Bouças. Gênero, Militância e Tortura. Strey, Marlene; Azambuja,
Mariana & Jager, Fernanda (orgs). Violência, Gênero e Políticas Públicas, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004, p.45-62.
Entendemos que não se trata de vítimas, são guerreiros da e pela vida,
sobreviventes que buscam a reafirmação da vida sempre. Uma sobrevivência
que deve ser tratada com cuidado para não se tratar apenas numa alternativa a
morte. Trata-se de “lutas pela vida que apontam para muito mais: uma vivência
absolutamente possível, potente, prazerosa e inventiva”. 12

O silenciamento tem que ser pensado e questionado já que se produz como algo
natural da história, a morte, a dor, a impunidade. Ele distorce vivências, produz
tristeza, fragilidades e impotência. Há uma naturalização de práticas de extinção
da vida. Quando pensamos no nazismo, era normal que os judeus morressem,
assim como foi produzido que os contrários ao governos eram traidores da pátria
e colocavam em risco a segurança do regime. Era assim que se justificavam as
práticas violentas, torturas e prisões e desaparecimentos com o intuito de
contenção. Contenção, que segundo COIMBRA e LEITÃO13, não é somente a
título de punição e exemplo, mas objetivando a produção de uma outra história: a
história oficial que tenta ocultar os pensamentos, as práticas, os movimentos e a
potência de grupos comprometidos com a possibilidade de transformação social.

A GUERRA CONTRA O MEDO


Hoje, continuam sendo produzidos os “novos inimigos do regime”: os miseráveis
e negros que são ameaça para democracia, suspeitos que devem ser evitados
por meio da eliminação. Dessa forma se dá a extinção da miséria, mas não por
sua superação, mas pela eliminação de quem, de alguma forma, a põe em
evidência e com essa exposição, incomoda os segmentos superiores. Nesse
contexto cria-se o “mito da guerra civil”.

Já desde o início dos anos 1980, quando o aumento da


criminalidade passou a ser associado a “práticas
democráticas” — propostas com o fim dos governos
militares — os meios de comunicação de massa

12
RODRIGUES, H. de B. C. Direitos Humanos e Intervenção Clínica. Em: C. M. B. Coimbra,
(coord.). Psicologia, Ética e Direitos Humanos: Comissão Nacional de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia. Brasília. 1998, p. 78.
13
COIMBRA, Cecília Maria Bouças ; LEITÃO, Maria Beatriz Sá. Direitos Humanos e a Construção
de uma Ética Militante; Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. p.171.
começaram a dar destaque à questão da violência nos
grandes centros urbanos, em especial, no Rio de Janeiro e
em São Paulo. A crença de que vivemos em um estado de
guerra apodera-se, em especial, das classes média e alta,
que se trancam em condomínios fechados, em prédios de
apartamentos, com a ilusória esperança de abandonar a
insegurança, e/ou utilizam guaritas e guardas armados,
fechando ruas e usando portões eletrônicos. Com isso,
crescem as fábricas e o mercado de equipamentos de
segurança, alarmes, câmeras de circuito fechado de
televisão; enfim, desenvolve-se uma promissora indústria
de segurança. Não satisfeitos com tais medidas, muitos
recorrem a cães ferozes e a cercas eletrificadas para se
proteger.14

É em nome dessa guerra, e em prol da ordem e da segurança que se juntam


cada vez mais aliados em favor do aumento da punição, da polícia, das forças
armadas e em nome dessa guerra há a autorização para o extermínio da classe
pobre, conseqüência da divulgação desse medo e desse caos pelos meios
midiáticos onde a população fica cada vez menos tolerante e mais faminta de
combates e tiros. Em nome dessa paz justifica-se as piores aberrações contra a
vida e todas as formas de violência contra a “pobreza perigosa”.
O mito da “guerra civil”, a política de “tolerância zero”, a
conseqüente criminalização da pobreza, com a produção,
em especial, nos grandes centros urbanos, de sentimentos
de medo, terror e insegurança, vêm reiterando uma
determinada concepção de segurança pública: sua
militarização por meio do apelo à lei, à ordem, ao
endurecimento, à repressão. 15

Pensar essas práticas policiais hoje frente aos pobres é voltar a teorias racistas
na aliança perigosa com a tecnologia, produzindo práticas de eugenia e práticas
14
COIMBRA, Cecília Justiça e Segurança Pública. Trabalho apresentado no Ciclo de Debates
“Psicologia e Preconceito Racial”, organizado pelo CRP-SP, em 10 de julho de 2003.
15
Idem.
higienistas, com suas regras de higiene, onde há uma forma de se cuidar do filho
que não seja na sujeira, na má alimentação. Nessa mídia, forjam-se verdades
que permitem a população aceitar essas operações no Rio. Como diz Cecília
Coimbra16,
“sem sombra de dúvida, os estereótipos em relação aos
pobres de hoje são os mesmos que foram utilizados para
os "subversivos" de ontem. (...) “Da mesma forma que se
construíram perigosos ‘inimigos da Pátria’ nos anos 60 e
70, também hoje, principalmente via meios de
comunicação de massa, estão sendo produzidos ‘novos
inimigos internos do regime’, quais sejam, os segmentos
mais pauperizados, todos aqueles que os ‘mantenedores
da ordem’ consideram ‘suspeitos’ e que devem, portanto,
ser evitados e, mesmo, eliminados".
E nesse sistema de segurança, vemos a volta do “esquadrão da morte”.
“Os Esquadrões da morte, principalmente nos anos 70,
foram utilizados – segundo as informações veiculadas pela
mídia- como instrumentos para “diminuir” os índices de
criminalidade entre as populações marginalizadas. Ligam-
se também à polícia política, fazendo parte do chamado
“sistema de segurança”. Tanto no Rio quanto em São
Paulo, os “Lideres” do “Esquadrões da Morte”, ao fazerem
parte do aparelho repressivo, como OBAN, DOI-CODI/SP,
DOI-CODI/RJ17, transmutam-se como em heróis nacionais,
intocáveis pela justiça. Os que se dispõem a apontar os
violentos crimes por eles cometidos passam a ser

16
Em seu livro “Operação Rio – o mito das classe perigosas: um estudo sobre a violência
urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública”. Niterói, Rio de janeiro, 2001.
17
Esses órgãos emergiram em 1968 como forças unificadas antiguerrilha com financiamentos
privados e públicos: a operação bandeirante (OBAN), e no começo dos anos 70, a OBAN se
institucionaliza como DOI/CODI – destacamento de operações e informações /centro de
operações de defesa interna- em cada região militar do país, estruturam-se os DOI/CODI s, o que
significa uma integração maior entre os organismos repressivos já existentes, passando a dispor
do comando efetivo sobre todos os órgãos de segurança existentes numa determinada região
militar. Tais são seus poderes e força que, no inicio dos anos 70, chega-se a falar da existência de
um verdadeiro Estado dentro do Estado. (pag.21)
identificados como “inimigos do regime” e tratados como
tal”.18

Hoje continuam atuando impunemente contra as parcelas mais pobres e de fato


se vestem de capas de heróis, sempre com a ajuda da mídia, onde
recentemente, com o filme Tropa de Elite, divulgou a imagem de uma polícia forte
e incorrupta, e que para estar dentro tem que ser determinado, passar pelos
diversos constrangimentos, sem perder a pose de super-homem. Não é apenas o
bandido que deve sustentar a visão de “super macho”, mas também os nossos
militares precisam estar dispostos a matar, não serem piedosos. Uma produção
de subjetividade permissiva a essa prática violenta contra as favelas e os pobres.
Como se a única forma de assegurarmos um reconhecimento social e obtermos
“respeito” fosse por meio da violência, da imposição de forças. Produzir
subjetividades é produzir valores que determinam formas de agir, pensar, sentir e
viver dos indivíduos e consequentemente das instituições e da sociedade como
um todo. Produção que se fortalece nos campos de treinamento militares, onde
incorpora-se a idéia de que o trabalho é lutar contra verdadeiros inimigos das
favelas, visto nas próprias músicas de guerra, que afirmam que “hoje eles vão
subir para matar”. Nesse âmbito das polícias brasileiras, faz com que domine
uma subjetividade autoritária e antidireitos humanos.
É um verdadeiro confronto de animais bravos que, inevitavelmente se remete a
vontade de eliminação, passando pela limpeza social e pelo extermínio. Dessa
forma, enquanto a polícia utiliza de forças violentas contra essa parte da
população, a mídia garante que são os pobres que devem ser temidos e, por
isso, combatidos. Está claro que a tolerância de políticas repressivas está sempre
baseadas em políticas de medo. Difusões de medo têm, a todo tempo, servido
para fazer funcionar estratégias de exclusão, controle, disciplinamento, em
especial, nos “segmentos subalternizados”. Com isso há uma produção secular
de que, com o pobre, está o crime. Políticas que se desdobram de maneira
perversa, com o eterno auxílio das corporações midiáticas, produzem a idéia de
que a periculosidade e violência estão em todos os moradores desses espaços
populares. É o “estigma do lugar do mal” que reproduzem bandidos a todo

18
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no
Brasil do “Milagre”, oficina do autor, Rio de Janeiro, 1995, p. 21.
momento, ou seja, todo morador da favela, ou dos bairros com famosas bocas de
fumo e famosos pela criminalidade, são perigosos em potencial. Por conta disso,
pouco importa os relatos de quem vive e convive nesse meio marginal. Não
adianta eles falarem que tem mais medo da polícia que simplesmente “arromba
as portas e entra batendo”, do que dos bandidos. E assim cada vez mais se
investe em práticas repressivas, a pedido inclusive da população aterrorizada
pelos crimes e violência que pensam não ter relação de fato com essa situação.
Investe-se em repressão, em prisões, em armamentos… cada vez mais no
extermínio. Pelo medo, cala a sociedade, leva a uma hipnose social, a uma
cumplicidade.

Numa entrevista com Marcelo Yuka19, um músico carioca, ele fala sobre a forjada
segurança em que a população acredita que as armas trazem proteção:

“Esse país tem 500 anos de repressão armada. Imagina a


cena do primeiro português chegando com sua garrucha no
meio de um monte de índio e atirando: "Pow!". E de lá pra
cá isso só piorou, nunca ajudou a melhorar nada. Aí você
vai criando uma sociedade adestrada a achar que arma
traz segurança. Arma não traz segurança. O que traz
segurança é oportunidade, consideração, justiça,
principalmente justiça social. A gente tem que entender que
matar traficante também é crime. Existe um conceito na
sociedade de que a polícia pode matar bandido. Mas onde
isso está na Constituição? Isso só gera uma falsa
sensação de segurança.”(grifo meu)

E continua falando sobre a invasão das polícias na favela:

“Por que não tem invasão social? Por que não invade com
hospital, escola? Em vez de caveirão, carro do sacolão.
Combater tiro com tiro é uma burrice tão grande que chega
a ser medieval. A palavra justiça é muito fiel a seus
19
Entrevista encontrada no site fazendomedia.com, de Marcelo Salles, com o título “ 6
perguntas para Marcelo Yuka”.
princípios. É seguir a lei, nem mais, nem menos. Quem dá
o tratamento do traficante não é o presidente ou a polícia, é
a lei. E lá não tem pena de morte. E lá não diz que quem
mora perto pode ganhar tiro. Tem uma questão ainda mais
profunda, entre moral e ética. Não é ético arriscar tantas
vidas numa operação, mas a moral vê a limpeza como algo
bom. Quando alguém é seqüestrado, há uma grande
mobilização de policiais, da mídia, e o Estado mostra que
dá valor à vida. Mas o mesmo não acontece nas operações
em favelas. É por isso que eu digo: existe carne de
primeira e carne de segunda. Uma é bem localizada, tem
direito à vida. A outra é mal localizada e seu direito à vida
não é respeitado.” (grifo meu)

“A memória não é sonho, é trabalho”

“Chora a nossa pátria mãe gentil, choram marias e


clarisses no solo do Brasil. Mas sei que uma dor
assim pungente não há de ser inutilmente”20

Em meio a tantas repressões políticas, é no seio dessa ditadura militar que


começam a se gestar novas formas de resistência, produzindo novos sujeitos
políticos. No âmbito mais repressivo é que também movimentos sociais vão
ganhando força fazendo alianças com organizações interessadas na justiça e no
combate contra tortura e as formas de violência.

Pensar esse tipo de poder é também pensar em resistência, que também pode
ser pensada pela via da invenção, do campo do sensível, que vaza o campo da
percepção. É buscar na memória, o que ela pode trazer de potência e
transformação em sua própria história, na medida em que interfere em práticas
que ela mesma desdobrou e produziu. Trazer as resistências de ontem é traçar
estratégias para lidar com as formas de eliminação que se dão hoje, uma vontade
de combate em nós que se torna mais palpável quando se entende o porquê de
20
Trecho da música “O bêbado e a Equilibrista” de João Bosco, 1979. Sinaliza também as marcas
deixadas em tantos corpos e vidas e a luta pela anistia e volta dos exilados. Maria era mãe do
Herbert José de Sousa, conhecido como Betinho, um sociólogo e ativista dos direitos humanos
que com o aumento da repressão, foi obrigado a se exilar no Chile em 1971. Clarice no trecho é a
mulher do jornalista assassinado na ditadura Vladimir Herzog.
querer se garantir Direitos Humanos e tudo que ele engloba. Esse porquê fica
claro quando lançamos mão dessa outra história que existe. Uma história viva
que existe na fala de quem lutou e guerreou na época do regime, e que afeta
também quem só foi nascer em outras datas... “memória que não é privada, mas
é de todos. As histórias dos outros que sempre serão nossas.”21
São esses bons encontros que nos fazem insistir em vidas nômades, pensar
sempre em outros possíveis a partir de um desenvenenamento dos corpos e
práticas. Transformação da história, ou melhor, o conto de uma outra história que
de tão real, ainda deixa marcas e cicatrizes, sejam elas físicas ou/e na alma.
Tanto faz. Sem essa dicotomia de corpo e alma. Não há possibilidade da alma
não sentir a dor que se passou nos tantos corpos torturados e nem de, no corpo,
não aparecer as conseqüências de um passado que por tantas vezes aterrorizou
vidas, abafou desejos sem precisar tocar na pele, mas que por tocarem na alma,
machucaram o corpo. “Sabem muito bem que, assim como o corpo, a alma só
pode suportar um certo número de golpes”. Golpes que não são oculares,
visíveis, mas que massacram, separam, matam. Dores que exigem um certo tipo
de esquecimento da memória. “Não se trata da memória do visível, das imagens,
mas a memória da dor, da humilhação, do golpe quase mortal que sofreu seu
desejo quando foi atropelado pela forças reativas do “milagre brasileiro”. Querem
isolar o tumor, a ferida, o pedaço envenenado do seu corpo vibrátil, para que não
se contamine o resto, o atual, com seu efeito despotencializador. Querem que
aquele seu corpo possa vibrar novamente. Querem seguir vivendo…” 22
Jamais esquecer que nessa outra história apreendida, formaram-se guerreiros,
uns mutilados, outros mortos, outros desaparecidos. Uma luta que não pode
negar a intoxicação deixada nas armas dos combatentes, ou seja, nos corpos.
Uma história que não vem como saudosismo, um “recordar melancólico”, “mas
uma tentativa de trazer esses tempos em suas mais diversas dimensões, com
todas as marcas, com toda a paixão e a vida ali presentes.” 23

21
COIMBRA, Cecília Maria Bouças; LEITÃO, Maria Beatriz Sá. Direitos Humanos e a
Construção de uma Ética Militante; Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 –
jan./jun. 2007, p. 175.
22
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo /
Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007, p.165.
23
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no
Brasil do “Milagre”, oficina do autor, Rio de Janeiro, 1995, p. 350.
Paixão e acontecimentos que vibram junto a mim, sacodem e me faz pensar no
que vivemos hoje. Algumas práticas de violência parecidíssimas e que da mesma
forma, nos tendem ao silenciamento, a acomodação e a conivência. Porém, a
perversidade dessa “história oficial” que sombreia os embates e projetos,
silenciando as utopias que aconteceram nas noites frias da ditadura, não impede
que escape essa outra história, nos invadindo e nos convidando a cavar essa
memória ignorada e afirmar hoje novas estratégias de lutas. Lutas para uma
possibilidade de justiça, de vida. Luta contra a impunidade e contra uma política
hipócrita e silenciosa. Fazemo-nos assim testemunhas dessa outra história. Uma
história que não foi vivida por nós de forma ocular, mas permite ser sentida com
toda força. Outra idéia de testemunha que está além da vivência de um fato, mas
que nos torna presente na cena ao aceitarmos as palavras vivas de quem narra
com o corpo os sofrimentos e lutas.
Penso que trazer essa trajetória, falar sobre ela, já é ação. Ação em uma geração
que por mais distante que esteja da Ditadura de 64, pode se afetar intensamente
com as histórias coletivas e as dores que se tornam nossas. Entender que a
reflexão do passado pode trazer maior força contra as ditaduras que nos
atravessam hoje junto às práticas de violência e extermínio da vida e dos
desejos. Essa retomada pode evitar que troncos e chibatadas se reproduzam e
se repitam infinitamente, sempre sob o mesmo pretexto de se buscar a paz e
evitar a desordem dos terroristas e criminosos.
Ousar tracejar uma outra história, inventar um outro presente … Eis o nosso
grande desafio que se transforma a cada dia!

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