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1. da Imutabilidade
É fácil perceber, ao longo da leitura, que Platão deseja que seu cidadão permaneça o mais
imutável possível, a fim de que não se degenere, fazendo o mesmo com a cidade. Isso fica
evidente na passagem em que discute com Adimanto, dizendo que não deve haver nem a riqueza
nem a pobreza na cidade:
422a "Uma porque dá origem ao luxo, à preguiça e ao gosto pelas novidades; e outra, à
baixeza e à maldade, além do gosto pela novidade."
Como se vê, Platão não deseja que seus homens conheçam nada além do que sempre
conheceram, ao longo de sua educação, e qualquer coisa fora do comum, qualquer novidade é
vista como uma ameaça em potencial à ordem da cidade. Se isso ainda não ficou bem
demonstrado, outro trecho o fará:
424a-e "Acautelem-se o mais possível (os guardiões), com receio de, se alguém disser que
'os homens apreciam acima de tudo o canto que tiver mais novidade' (...) . Tal coisa não deve ser
louvada e nem entendida assim"
Uma vez demonstrado que na república platônica os cidadãos seriam induzidos desde a
infância a não gostar de novidades, e suas vidas seriam sempre as mesmas, realizando sempre a
mesma função para a qual nasceram, passemos à análise do Estado formado por tais indivíduos.
Platão admite no início do texto, e essa é inclusive a razão que dá para que discutam a formação
de um Estado, que a cidade é o homem em escala maior. Sendo assim, a cidade tende a se
comportar do mesmo modo como se comportam seus cidadãos; se os homens são sempre os
mesmos e repudiam a novidade, assim será a cidade onde habitam. E numa cidade assim, não é
possível que haja aprendizado.
Pois é fato que se aprende através da experiência, observando os erros e tentando não
repeti-los. Mas como errar na execução de uma tarefa que praticamos mecanicamente desde a
infância? E mesmo se errássemos, isso seria uma novidade, e a desprezaríamos, voltando às
atividades padronizadas de sempre. Desse modo não há possibilidade de geração de
conhecimento, e todas as atividades são regidas por um conjunto de regras pré estabelecidas,
baseado numa experiência anterior, desatual, e que não leva em consideração o contexto,
portanto, falho. As tarefas seriam realizadas mecanicamente, instintivamente e imutavelmente.
Uma das principais características do mundo é a mudança.O próprio Platão admite mais
tarde na República que as coisas no mundo necessariamente mudam, e que a razão por que
mudam é que elas têm que mudar. Mas sua proposta é, estranha e contraditoriamente, evitar as
mudanças ao máximo, para que seu modelo permaneça sempre o mesmo, imaculado. Isso é
impossível. Ou é aberta a possibilidade de mudança dentro da República, ou essa será destruída, já
que o mundo é maior que a cidade, e mais forte. Platão, que se preocupou sempre em estar de
acordo com a natureza, pecou contra ela, ao tentar minimizar mudanças.
3. do Fetiche do proibido
Platão pretende que em sua cidade haja apenas o belo e o bom, que todo o resto seja
proibido.Há em todas as artes a beleza e a harmonia, que seriam "irmãs" da virtude e da
temperança, ao passo que a fealdade e a arritmia levaria à maldade e a injustiça. Usando esse
pretexto, ele propõe que seria permitido aos artistas fazerem suas obras segundo o modelo de belo
e bom, sob pena de serem proibidos de exercer sua arte ou de serem expulsos da cidade. Isso fica
claro nas seguintes passagens:
401a-e- "Em todas essas coisas há com efeito beleza ou fealdade. E a fealdade, a
arritmia, a desarmonia, são irmãs da linguagem perversa e do mau caráter; ao passo que as
qualidades opostas são irmãs e imitações do inverso, que é o caráter sensato e bom.
-Certamente - disse
-Mas então só aos poetas é que devemos vigiar e forçá-los a introduzirem nos seus versos a
imagem do caráter bom, ou então a não poetarem entre nós? Ou devemos vigiar também os
outros atistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro,
quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer outra obra de arte? E se não
forem capazes disso não deverão ser proibidos de exercer o seu mister entre nós (...)?"
Desse modo, qualquer produção feita na República teria como modelo uma idéia de belo e
bom arbitrária. Pois as opiniões divergem acerca desse assunto. Um arquiteto poderia desenhar
um prédio para a cidade que fosse para ele mesmo belíssimo, e outro arquiteto o acharia feio. E os
guardiões, que não são arquitetos, o que achariam? Dariam razão a qual dos dois arquitetos, e
qual obra considerariam virtuosa e condizente com o estilo de vida pretendido por eles? E quando
surgissem divergências entre os próprios guardiões, que fariam eles para julgar?
Para que se mantenha a unidade e a coerência é então necessário considerar apenas um
modelo de beleza, que seria portanto arbitrário. Os outros modelos seriam suprimidos, e até
mesmo desconhecidos dos cidadãos, que nasceram vendo apenas aquela beleza há por toda a parte
em sua cidade. Mas com certeza as outras cidades não adotariam o mesmo modelo da República.
E os mercadores e viajantes, em contato com outras cidades e outros modelos, que fariam eles?
Muito provável que os repudiassem, e os considerassem feios, por estarem acostumados com seu
próprio estilo. Mas se por algum motivo gostassem deles, e também os achassem belos, seriam
esses homens então uma ameaça à ordem da República.
Enquanto o número desses homens que absorveram outro modelo de belo fosse
inexpressivo, o perigo que ofereceriam é pequeno. Mas, aos poucos, provavelmente cresceria,
pois, como o próprio Platão diz mais tarde, é natural e necessário que as coisas mudem, e seu
modelo de belo não seria exceção. Não seria possível manter todas as obras belas, segundo o
mesmo modelo, eternamente. E o "feio", justamente por ser proibido, ganharia um poder de
atração muito grande. Ao longo da história tivemos vários exemplos de como as coisas proibidas
passam a ser mais atraentes, e de uma maneira descontrolada e perigosa, pois tem que ser feita às
escondidas. É o caso da lei seca americana, quando se proibiram as bebidas alcóolicas. Justamente
quando era proibido, o consumo de alcóol atingia seu ápice, e por ser ilegal, ao seu redor surgiam
verdadeiras máfias, causando mais problemas. É o caso ainda das drogas no mundo inteiro, que
continuam a ter um enorme consumo, mesmo sendo proibido, e geram grupos criminosos que em
alguns lugares chegam a competir com o Estado.
Assim, antes de se proibir alguma coisa, é necessário avaliar se isso não acabará trazendo
ainda mais problemas, ao invés de resolve-los. E quando a proibição diz respeito a algo tão
pessoal, que é o conceito que cada um tem de belo, com certeza ela não trará boas consequências,
principalmente numa sociedade que deseja manter a ordem acima de tudo.
Enfim, Platão mais uma vez agiu contra a natureza ao impor o seu modelo de belo à todas
as outras pessoas, e ao pretender que ele fosse único e imutável. Como se sabe, o que é proibido é
muitas vezes mais atraente e mais perigoso, e obras feitas segundo um outro modelo de beleza
logo começariam a surgir na República, e a substituição desse por aquele modelo não se daria de
forma pacífica.
4. dos Filósofos
Um último e talvez menos importante problema da obra é a questão de os governates
serem filósofos. O problema que vejo não consiste no fato de os governates serem filósofos, mas
na justificativa que Platão dá para isso. Numa certa passagem, no começo da obra, ele discute com
um de seus interlocutores sobre a natureza que devem ter os governates. Concordam que eles
devem ser fogosos, rápidos e fortes. Então Platão apresenta um argumento para que eles sejam
também filósofos:
376a-e- "Ora, não se te afigura que o futuro guardião precisará ainda de acrescentar ao
seu temperamento fogoso um instinto de filosofo?
-Como assim?- retorquiu ele. - Não compreendo.
-Essa qualidade- respondi - vê-las-às também nos cães, coisa que é digna de admiração num
animal.
- Que qualidade?
- O fato de quando vêem algum desconhecido o suportarem a custo, sem que antes lhes tenha
feito qualquer mal. Ao passo que, se virem um conhecido, o acolhem bem, ainda que nunca lhes
tenha feito qualquer benefício. Ou ainda não te surpreendeste com este procedimento?
- Até agora, mal tinha prestado atenção a esss fato. Mas é manifesto que procedem deste modo.
- Mas sem dúvida que demonstra a engenhosa conformação de sua natureza, que é
verdadeiramente amiga de saber.
-Em quê?
-No fato de não distinguir uma visão amiga e inimiga, senão pela circunstância de o conhecer ou
não. E como não terá alguém o desejo de aprender, quando é pelo cohecimento e pela
ignorância que se distinguem familiares dos estranhos.
-Não pode ser de outro modo.
-Ora - disse eu- , ser amigo de aprender e ser filósofo é o mesmo?
-É o mesmo - respondeu ele.
- Portanto, admitamos confiadamente que também o homem, se quiser ser brando para os
familiares e conhecidos, tem de ser por natureza filósofo e amigo do saber.
-Admitamos - redarguiu ele.
- Por conseguinte, será por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte quem quiser ser um perfeito
guardião de nossa cidade."
Desse modo Platão prova que os guardiões devem ser filósofos. Mas não parece ser um
argumento consistente, pois a única finalidade seria a distinção de conhecidos e desconhecidos.
Não é necessário que um homem seja filósofo para que seja brando com quem conhece e severo
com os desconhecidos. Essa característica inclusive gera mais problemas, pois nem todos os
conhecidos têm boas intenções para com a cidade e nem todos os desconhecidos têm más. Uma
visão baseada unicamente no conhecimento, como a dos cães, acabaria por deixar passar cidadãos
(conhecidos) que fazem mal à cidade. Se o dono chuta o cachorro, este gane e se retira e mais
tarde nem se lembra do fato, e volta a lamber os pés do homem que acabou de chutá-lo. Com
certeza não é esse tipo de guardião que Platão pretende para sua cidade.
Essa passagem parece muito mais ser apenas um pretexto para que se aceite a idéia de que
os governantes sejam filósofos. O leitor não percebe problemas ao ler a passagem, pois de fato
pode ser considerado amigo do saber quem tem uma visão basada no conhecimento. E depois, ao
longo da obra, não se lembra da razão de tal fato, mas apenas aceita, já que tem na memória que
concordou anteriormente que os filósofos devem governar, apesar de não se lembrar por quê. E
assim Platão consegue introduzir nas pessoas a idéia de que os governates ideais devem ser
filósofos, ele próprio sendo um. Mais um recurso de um hábil escritor.
E assim encerro minha análise da República, que, apesar de curta e incompleta, espero que
seja coerente. Não abordei todos os temas, e os que abordei, não o fiz de forma completa. Talvez
tenha me faltado um pouco do estilo do próprio Platão ao analisar problemas. Talvez devesse ter
sido mais minucioso e não ter me comportado como um glutão, que "se agarra num dos pratos, à
medida que os servem, antes de ter gozado suficientemente do primeiro." São lições aprendidas
com o homem que acabei de criticar, mas não de desmerecer. Platão foi sem dúvida um grande
homem, de idéias brilhantes, e que conseguia expor suas idéias de forma convincente. Os pontos
que apresentei contra sua obra não a invalidam, nem sequer a estremecem. E é prestando uma
homenagem ao habilidoso escritor da obra abordada nesse trabalho, que o encerro.
Bibliografia:
1. A República / Platão; tradução: Pietrop Nassetti, São Paulo, Martin Claret, 2002