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A Impraticabilidade da República

por Ian Nascimento

Platão cria, na República, um modelo de cidade. Discute vários aspectos de tal


comunidade, como sua organização política, o modo de educar as crianças, e chega a definir como
se deve fazer arte. Esse modelo é, para ele, o mais próximo do perfeito que uma sociedade
humana pode chegar. Meu objetivo nesse trabalho é demonstrar a impraticabilidade da República,
sempre tendo em consideração que o próprio Platão admite que sua proposta é apenas um
modelo, do qual os homens deveriam tentar se aproximar ao máximo. Para tal, me valerei
principalmente do próprio raciocínio, como faz o próprio Platão, e ainda de alguns poucos dados
históricos. Através da análise de várias passagens do texto em questão creio que é possível chegar
a um resultado satisfatório dentro do objetivo que me proponho alcançar.
Muitos dos argumentos de Platão são baseados em meras suposições, que não são de
modo algum necessárias. E muitos dos meus próprios argumentos são também suposições, que me
pareceram mais próvaveis que as propostas do autor. Assim, talvez somente se o modelo de
cidade proposto por Platão (chamado doravante de República) fosse implantado de fato no mundo
real, poderíamos ver quem tinha razão. Talvez ele, talvez eu, ou nenhum dos dois.
Já outras passagens me pareceram logicamente falsas, ou insuficientes. Outras entram em
contradição com coisas ditas anteriormente. Desse modo, não há um único argumento através do
qual se possa dizer definitivamente "A República é impossível.". Meu trabalho se compõe de um
conjunto de argumentos, que isoladamente talvez não afetem muito as estruturas da cidade, mas
que se somados, perceber-se-á que a República, tal como proposta por Platão é impossível de ser
seguida.
Dividi as passagens que escolhi tratar, e as nomeei conforme o problema que parecia haver
nela. Assim se dividem meus argumentos:
1. da imutabilidade;
2. da infelicidade dos cidadãos
3. do fetiche do proibido
4. dos filósofos
É válido lembrar que Platão chegou a se defender de vários argumentos que lhe foram
levantados no futuro, e nem todos os meus foram inéditos. Sua defesa não me pareceu satisfatória,
entretanto.

1. da Imutabilidade
É fácil perceber, ao longo da leitura, que Platão deseja que seu cidadão permaneça o mais
imutável possível, a fim de que não se degenere, fazendo o mesmo com a cidade. Isso fica
evidente na passagem em que discute com Adimanto, dizendo que não deve haver nem a riqueza
nem a pobreza na cidade:
422a "Uma porque dá origem ao luxo, à preguiça e ao gosto pelas novidades; e outra, à
baixeza e à maldade, além do gosto pela novidade."
Como se vê, Platão não deseja que seus homens conheçam nada além do que sempre
conheceram, ao longo de sua educação, e qualquer coisa fora do comum, qualquer novidade é
vista como uma ameaça em potencial à ordem da cidade. Se isso ainda não ficou bem
demonstrado, outro trecho o fará:
424a-e "Acautelem-se o mais possível (os guardiões), com receio de, se alguém disser que
'os homens apreciam acima de tudo o canto que tiver mais novidade' (...) . Tal coisa não deve ser
louvada e nem entendida assim"
Uma vez demonstrado que na república platônica os cidadãos seriam induzidos desde a
infância a não gostar de novidades, e suas vidas seriam sempre as mesmas, realizando sempre a
mesma função para a qual nasceram, passemos à análise do Estado formado por tais indivíduos.
Platão admite no início do texto, e essa é inclusive a razão que dá para que discutam a formação
de um Estado, que a cidade é o homem em escala maior. Sendo assim, a cidade tende a se
comportar do mesmo modo como se comportam seus cidadãos; se os homens são sempre os
mesmos e repudiam a novidade, assim será a cidade onde habitam. E numa cidade assim, não é
possível que haja aprendizado.
Pois é fato que se aprende através da experiência, observando os erros e tentando não
repeti-los. Mas como errar na execução de uma tarefa que praticamos mecanicamente desde a
infância? E mesmo se errássemos, isso seria uma novidade, e a desprezaríamos, voltando às
atividades padronizadas de sempre. Desse modo não há possibilidade de geração de
conhecimento, e todas as atividades são regidas por um conjunto de regras pré estabelecidas,
baseado numa experiência anterior, desatual, e que não leva em consideração o contexto,
portanto, falho. As tarefas seriam realizadas mecanicamente, instintivamente e imutavelmente.
Uma das principais características do mundo é a mudança.O próprio Platão admite mais
tarde na República que as coisas no mundo necessariamente mudam, e que a razão por que
mudam é que elas têm que mudar. Mas sua proposta é, estranha e contraditoriamente, evitar as
mudanças ao máximo, para que seu modelo permaneça sempre o mesmo, imaculado. Isso é
impossível. Ou é aberta a possibilidade de mudança dentro da República, ou essa será destruída, já
que o mundo é maior que a cidade, e mais forte. Platão, que se preocupou sempre em estar de
acordo com a natureza, pecou contra ela, ao tentar minimizar mudanças.

2. da Infelicidade dos cidadãos


Outra questão que precisa ser levada em conta é a da felicidade da população. Numa
sociedade que pretende ser a melhor, a felicidade, razão da existência humana, deveria ter um
papel fundamental. Mas não é o que se vê na República. Platão dá muita ênfase no trabalho e se
esquece do lazer. Os cidadãos tem suas funções definidas na infância e não lhes é permitido
exercer qualquer outro tipo de atividade. O autor chega a pensar na possibilidade de artíces da
mesma classe se aventurarem a exercer outra atividade que não a sua, contanto que não tentassem
nenhuma tarefa inerente às outras duas classes:
434a-e "Se um carpinteiro experimentar fazer o trabalho de um sapateiro, ou o sapateiro
o de um carpinteiro, trocando os utensílios respectivos ou os salários, ou se o mesmo homem
tentar exercer ambos os ofícios, ou se fizerem as outras mudanças, porventuras acha que o fato
causará grande prejuízo à cidade?
-De modo algum- respondeu.
- Mas quando um homem for, de acordo com sua natureza, um artífice ou negociante, e
depois (...) tentar passar para a classe dos guerreiros, ou um guerreiro para a dos chefes e
guardiões, sendo indigno disso, (...), ou quando o mesmo homem tentar exercer todas essas
funções ao mesmo tempo, penso eu que também acharás que essa mudança e confusão serão a
ruína da cidade.
-Absolutamente."
Como se vê, não é dada a possibilidade de escolha da atividade a ser exercida por cada
pessoa. Se um cidadão tiver aptidão para uma tarefa, mas realmente gostar de outra, mesmo não
sendo tão bom, não lhe será permitido escolher, e ele terá que se conformar a realizar, dia após dia
, a mesma tarefa. A especialização, como se pode constatar nos dias de hoje, faz realmente com
que o homem exerça bem sua tarefa, mas gera estresse e infelicidade. Nos dias de hoje, essa
infelicidade é compensada muitas vezes por bens materiais. Mas e os chefes e guardiões da
República, já que não lhes é permitido possuir bens, o que escolheriam eles para compensar sua
infelicidade?
O desafio é um dos principais geradores de prazer. Sem desafio a vida se torna fútil e
desmotivada, e consequentemente, infeliz. Mas onde é possível achar qualquer tipo de desafio
numa sociedade totalmente padronizada, sem possibilidade de mobilidade social, onde a cada um
só é permitido realizar a tarefa que lhe foi dada e nada mais?
Platão mais uma vez antecipa as objeções que lhe seriam feitas:
419a- "Que dirás então em sua defesa, Sócrates, se alguém afirmar que não tornarás
esses homens nada felizes (...)?"
O argumento que ele usa, entretanto, não é válido. Diz ele que, ao construir a cidade,
deve-se pensar na felicidade de todos, e não só de uma pequena parte. Não se deve tornar uma
classe especialmente feliz, pois assim ela não exerceria sua função. A cidade deve ser feliz, antes
dos seus cidadãos. Somente quando a cidade como um todo for feliz é que poderão o ser seus
habitantes:
420a-e- " (...) deve-se ter em cosideração a cidade inteira, para que ela a alcance (a
felicidade) , e forçar os auxiliares e os guardiões a proceder assim e persuadi-los, a fim de que
sejam os melhores artistas no seu mister,e asssim em todas as profissões; e deste modo, quando
toda a cidade tiver aumentado e for bem administrada, consentir a cada classe que participe da
felicidade conforme a sua natureza."
Isso é, naturalmente, um absurdo. A cidade se constitui de muitos homens. Como o
próprio Platão afirma, a cidade é o homem em escala maior. Desse modo, é impossível que a
cidade seja feliz antes que o sejam os cidadãos que a compõem. São os habitantes felizes que
tornam a cidade feliz, e não o contrário. O autor diz, numa passagem, que é somente pela parte da
cidade que sabe o que deve temer e que exerce a coragem que se pode transferir o título de
corajosa à cidade. Pensando do mesmo modo, é necessário que haja uma parte feliz na cidade para
que esta possa ser chamada de feliz. Em resumo, a cidade somente se tornará feliz se nela
habitarem homens que participam da felicidade e que possam lhe tranferir tal título, e não o
contrário, como quer nos fazer acreditar Platão.
Assim, persiste o problema. Parece difícil crer que os habitantes da República,
principalmente os guardiões, possam ser muito felizes, o que é indispensável na "melhor das
cidades". Se seriam ou não, essa talvez seja uma questão que só poderia ser constatada na prática,
se algum dia tal proposta tentasse ser seguida a risca. Enquanto isso não acontece, parece-me
difícil crer que possam ser felizes homens que exercem uma única tarefa a vida inteira, que vivem
numa sociedade monocultural (sim, pois tudo é feito de acordo com a idéia do belo e do bom, e
nada mais é permitido, com receio de venham a estragar a moral da cidade.). No caso dos
guardiões, é ainda mais complicado, pois eles, ao contrário dos outros, não podem ter propriedade
privada, e nem sequer uma família. Assim, sem qualquer perspectiva de mudança na vida, sem
outra coisa a se apegar que não seja o seu ofício e a própria cidade, os cidadãos se veriam
imersos num modelo de vida totalmente estático e repetitivo, de modo algum atraente, e logo
passariam a desejar viver como os habitantes de outras cidades, a quem é permitido possuir bens,
constituir família, criar seus filhos, ficar rico e outras coisas que não são permitidas na República.
Talvez os cidadãos das outras cidades nem fossem realmente felizes, mas um habitante da pólis
platônica ao olhar para eles, se sentiria privado, lesado e desejaria fazer as coisas que lhe são
proibidas, mesmo que como meras experiências.
Talvez Platão tenha percebido o perigo que isso representava. No fim do diálogo ele
propõe um outro modelo segundo o qual é possível ser feliz. É o mito do Er. Segundo ele, a alma
é imortal e pertence a um ciclo. Se a pessoa foi justa em vida, e praticou o bem, quando morrer
sua alma viverá mil anos de felicidade. Se, ao contrário, a pessoa foi injusta e cometeu maldades,
sua alma será atormentada por longos mil anos. Assim, Platão tranfere o problema da felicidade
para outra vida. Não faz mal que se viva infeliz em sua cidade, contanto que se seja justo, para que
se possa mais tarde receber a recompensa decuplicada:
621a-d- "Se acreditarem em mim, crendo que a alma é imortal e capaz de suportar todos
os males e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos por todas as
formas a justiça com sabedoria, (...), e, depois de termos ganho os prêmios da justiça, (...) tanto
aqui como na viagem de mil anos que descreveremos, seremos então felizes."
Não é meu papel aqui discutir sobre a imortalidade da alma. Mas independentemente do
mito ser ou não verdadeiro, o problema persiste. Pois os cidadãos ainda seriam infelizes, e isso não
pode acontecer na República. Pois lá se exalta o belo e o bom. Tudo que lá é produzido tem como
padráo a beleza. Pessoas infelizes acabariam por se sentir excluídas duma sociedade assim,
quebrando a unidade pretendida por Platão. Além disso, a infelicidade faria com que os cidadãos
exercessem suas funções com menos qualidade. Fica assim demonstrado que a felicidade é parte
essencial da República, e que mesmo assim ela não pode ser atingida, o que impossibilita a
formação desse Estado tal como proposto por Platão.

3. do Fetiche do proibido
Platão pretende que em sua cidade haja apenas o belo e o bom, que todo o resto seja
proibido.Há em todas as artes a beleza e a harmonia, que seriam "irmãs" da virtude e da
temperança, ao passo que a fealdade e a arritmia levaria à maldade e a injustiça. Usando esse
pretexto, ele propõe que seria permitido aos artistas fazerem suas obras segundo o modelo de belo
e bom, sob pena de serem proibidos de exercer sua arte ou de serem expulsos da cidade. Isso fica
claro nas seguintes passagens:
401a-e- "Em todas essas coisas há com efeito beleza ou fealdade. E a fealdade, a
arritmia, a desarmonia, são irmãs da linguagem perversa e do mau caráter; ao passo que as
qualidades opostas são irmãs e imitações do inverso, que é o caráter sensato e bom.
-Certamente - disse
-Mas então só aos poetas é que devemos vigiar e forçá-los a introduzirem nos seus versos a
imagem do caráter bom, ou então a não poetarem entre nós? Ou devemos vigiar também os
outros atistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro,
quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer outra obra de arte? E se não
forem capazes disso não deverão ser proibidos de exercer o seu mister entre nós (...)?"
Desse modo, qualquer produção feita na República teria como modelo uma idéia de belo e
bom arbitrária. Pois as opiniões divergem acerca desse assunto. Um arquiteto poderia desenhar
um prédio para a cidade que fosse para ele mesmo belíssimo, e outro arquiteto o acharia feio. E os
guardiões, que não são arquitetos, o que achariam? Dariam razão a qual dos dois arquitetos, e
qual obra considerariam virtuosa e condizente com o estilo de vida pretendido por eles? E quando
surgissem divergências entre os próprios guardiões, que fariam eles para julgar?
Para que se mantenha a unidade e a coerência é então necessário considerar apenas um
modelo de beleza, que seria portanto arbitrário. Os outros modelos seriam suprimidos, e até
mesmo desconhecidos dos cidadãos, que nasceram vendo apenas aquela beleza há por toda a parte
em sua cidade. Mas com certeza as outras cidades não adotariam o mesmo modelo da República.
E os mercadores e viajantes, em contato com outras cidades e outros modelos, que fariam eles?
Muito provável que os repudiassem, e os considerassem feios, por estarem acostumados com seu
próprio estilo. Mas se por algum motivo gostassem deles, e também os achassem belos, seriam
esses homens então uma ameaça à ordem da República.
Enquanto o número desses homens que absorveram outro modelo de belo fosse
inexpressivo, o perigo que ofereceriam é pequeno. Mas, aos poucos, provavelmente cresceria,
pois, como o próprio Platão diz mais tarde, é natural e necessário que as coisas mudem, e seu
modelo de belo não seria exceção. Não seria possível manter todas as obras belas, segundo o
mesmo modelo, eternamente. E o "feio", justamente por ser proibido, ganharia um poder de
atração muito grande. Ao longo da história tivemos vários exemplos de como as coisas proibidas
passam a ser mais atraentes, e de uma maneira descontrolada e perigosa, pois tem que ser feita às
escondidas. É o caso da lei seca americana, quando se proibiram as bebidas alcóolicas. Justamente
quando era proibido, o consumo de alcóol atingia seu ápice, e por ser ilegal, ao seu redor surgiam
verdadeiras máfias, causando mais problemas. É o caso ainda das drogas no mundo inteiro, que
continuam a ter um enorme consumo, mesmo sendo proibido, e geram grupos criminosos que em
alguns lugares chegam a competir com o Estado.
Assim, antes de se proibir alguma coisa, é necessário avaliar se isso não acabará trazendo
ainda mais problemas, ao invés de resolve-los. E quando a proibição diz respeito a algo tão
pessoal, que é o conceito que cada um tem de belo, com certeza ela não trará boas consequências,
principalmente numa sociedade que deseja manter a ordem acima de tudo.
Enfim, Platão mais uma vez agiu contra a natureza ao impor o seu modelo de belo à todas
as outras pessoas, e ao pretender que ele fosse único e imutável. Como se sabe, o que é proibido é
muitas vezes mais atraente e mais perigoso, e obras feitas segundo um outro modelo de beleza
logo começariam a surgir na República, e a substituição desse por aquele modelo não se daria de
forma pacífica.

4. dos Filósofos
Um último e talvez menos importante problema da obra é a questão de os governates
serem filósofos. O problema que vejo não consiste no fato de os governates serem filósofos, mas
na justificativa que Platão dá para isso. Numa certa passagem, no começo da obra, ele discute com
um de seus interlocutores sobre a natureza que devem ter os governates. Concordam que eles
devem ser fogosos, rápidos e fortes. Então Platão apresenta um argumento para que eles sejam
também filósofos:
376a-e- "Ora, não se te afigura que o futuro guardião precisará ainda de acrescentar ao
seu temperamento fogoso um instinto de filosofo?
-Como assim?- retorquiu ele. - Não compreendo.
-Essa qualidade- respondi - vê-las-às também nos cães, coisa que é digna de admiração num
animal.
- Que qualidade?
- O fato de quando vêem algum desconhecido o suportarem a custo, sem que antes lhes tenha
feito qualquer mal. Ao passo que, se virem um conhecido, o acolhem bem, ainda que nunca lhes
tenha feito qualquer benefício. Ou ainda não te surpreendeste com este procedimento?
- Até agora, mal tinha prestado atenção a esss fato. Mas é manifesto que procedem deste modo.
- Mas sem dúvida que demonstra a engenhosa conformação de sua natureza, que é
verdadeiramente amiga de saber.
-Em quê?
-No fato de não distinguir uma visão amiga e inimiga, senão pela circunstância de o conhecer ou
não. E como não terá alguém o desejo de aprender, quando é pelo cohecimento e pela
ignorância que se distinguem familiares dos estranhos.
-Não pode ser de outro modo.
-Ora - disse eu- , ser amigo de aprender e ser filósofo é o mesmo?
-É o mesmo - respondeu ele.
- Portanto, admitamos confiadamente que também o homem, se quiser ser brando para os
familiares e conhecidos, tem de ser por natureza filósofo e amigo do saber.
-Admitamos - redarguiu ele.
- Por conseguinte, será por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte quem quiser ser um perfeito
guardião de nossa cidade."
Desse modo Platão prova que os guardiões devem ser filósofos. Mas não parece ser um
argumento consistente, pois a única finalidade seria a distinção de conhecidos e desconhecidos.
Não é necessário que um homem seja filósofo para que seja brando com quem conhece e severo
com os desconhecidos. Essa característica inclusive gera mais problemas, pois nem todos os
conhecidos têm boas intenções para com a cidade e nem todos os desconhecidos têm más. Uma
visão baseada unicamente no conhecimento, como a dos cães, acabaria por deixar passar cidadãos
(conhecidos) que fazem mal à cidade. Se o dono chuta o cachorro, este gane e se retira e mais
tarde nem se lembra do fato, e volta a lamber os pés do homem que acabou de chutá-lo. Com
certeza não é esse tipo de guardião que Platão pretende para sua cidade.
Essa passagem parece muito mais ser apenas um pretexto para que se aceite a idéia de que
os governantes sejam filósofos. O leitor não percebe problemas ao ler a passagem, pois de fato
pode ser considerado amigo do saber quem tem uma visão basada no conhecimento. E depois, ao
longo da obra, não se lembra da razão de tal fato, mas apenas aceita, já que tem na memória que
concordou anteriormente que os filósofos devem governar, apesar de não se lembrar por quê. E
assim Platão consegue introduzir nas pessoas a idéia de que os governates ideais devem ser
filósofos, ele próprio sendo um. Mais um recurso de um hábil escritor.

E assim encerro minha análise da República, que, apesar de curta e incompleta, espero que
seja coerente. Não abordei todos os temas, e os que abordei, não o fiz de forma completa. Talvez
tenha me faltado um pouco do estilo do próprio Platão ao analisar problemas. Talvez devesse ter
sido mais minucioso e não ter me comportado como um glutão, que "se agarra num dos pratos, à
medida que os servem, antes de ter gozado suficientemente do primeiro." São lições aprendidas
com o homem que acabei de criticar, mas não de desmerecer. Platão foi sem dúvida um grande
homem, de idéias brilhantes, e que conseguia expor suas idéias de forma convincente. Os pontos
que apresentei contra sua obra não a invalidam, nem sequer a estremecem. E é prestando uma
homenagem ao habilidoso escritor da obra abordada nesse trabalho, que o encerro.

Bibliografia:

1. A República / Platão; tradução: Pietrop Nassetti, São Paulo, Martin Claret, 2002

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